Resumo
O objetivo deste artigo é compreender o repertório de formas de ação política mobilizadas na construção das políticas públicas de saúde para travestis e transexuais em Manaus, Amazonas. A pesquisa etnográfica que sustenta este estudo combinou observação participante nos múltiplos espaços onde as políticas de saúde se gestam e entrevistas com membros de duas organizações trans existentes em Manaus, entre janeiro de 2016 e julho de 2018. Reconstruiu-se quatro formas de ação mobilizadas na luta por políticas de saúde, classificadas conforme algumas categorias nativas, a modo de tipos ideais: as de confronto, de articulação, de visibilidade e de colaboração, tendo a sociedade manauara como público e agentes do Judiciário, do Legislativo e do Executivo municipal e estadual, por vezes, como adversários, ou como aliados.
Palavras-chave:
Pessoas Transgênero; Travestilidade; Acesso aos Serviços de Saúde; Minorias Sexuais e de Gênero
Introdução
Com o advento da aids, na década de 1990, a saúde das pessoas trans adquiriu “relevância” para o Ministério da Saúde brasileiro. Inicialmente inscrita com discursos contraditórios, marcados pelo estigma e pelo imperativo de moralizar e controlar “sexualidades descontroladas”, a resposta à aids constituiu um marco na formação dos movimentos da diversidade sexual e de gênero11 Pelúcio L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume; 2009., para os quais a reivindicação do direito à saúde foi fundamental.
No período aberto pela primeira epidemia da aids, as categorias travesti, em 1980, e posteriormente a transexual, na década de 1990, emergiram como identidade política22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351.. Até a década de 1960 só se fazia referência a homens “em travesti” no carnaval e em festas, clubes gays e shows de travestis. Já na década de 1970, travestis transitavam as zonas de prostituição das grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo33 Green JN. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Unesp; 2000.. Para Mário Carvalho e Sérgio Carrara22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351., a categoria “travesti”, enquanto identidade política, parece aos poucos reconfigurar-se como categoria identitária e com nova visibilidade social no final da década de 197044 Facchini R. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond; 2005..
Em 1992, foi criada a primeira associação de travestis do Brasil, a Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL), no Rio de Janeiro, cujos focos iniciais foram o enfrentamento à violência policial sofrida pelas travestis profissionais do sexo e a prevenção da aids. A ASTRAL foi organizada pelas travestis que se prostituíam na Praça Mauá, com o apoio do projeto Saúde na Prostituição, do Instituto Superior de Estudos da Religião22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351..
O sucesso nas ações de enfrentamento à violência policial motivou as integrantes da ASTRAL a organizarem, ainda em 1993, o I Encontro Nacional de Travestis e Liberados (ENTLAIDS), que teve o slogan “Cidadania não tem roupa certa”22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351.. Contudo, Alessandro Soares Silva e Renato Barboza55 Silva AS, Barboza R. Exclusão social e consciência política: luta e militância de transgêneros no ENTLAIDS. Cad CERU 2009; 20(1):257-276. apontam outro fator que teria motivado a organização do encontro. Segundo esses autores, foi a insatisfação das integrantes da ASTRAL, que, por um lado, não se sentiam contempladas por discussões, como a da hormonioterapia e, por outro, precisavam aperfeiçoar a organização dos grupos que as representavam e discutir as estratégias políticas de combate à aids promovidas pela Coordenação do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, do Ministério da Saúde, de modo a construir respostas ao vírus da imunodeficiência humana HIV/aids específicas das travestis brasileiras.
Na ocasião, o evento contou com o apoio da Coordenação Nacional de Combate à aids, do Ministério da Saúde, e os ENTLAIDS passaram a configurar-se, ao longo dos anos, como o principal fórum deliberativo do movimento e responsável por sua organização em nível nacional22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351.. Se, por um lado, foi um período de maior participação do poder público nas diversas iniciativas de combate à epidemia, por outro, os movimentos sociais passaram a assumir posição central nas ações coletivas de enfrentamento à aids, envolvendo demandas e, concomitantemente, atuando como executores da política. Esse envolvimento ocorreu transversalmente pela elaboração e desenvolvimento de projetos, propostas de soluções, planos e estratégias como respostas, sendo o Estado o grande financiador desse processo. Nessa conformação de políticas de saúde, travestis e transexuais tornavam-se atores políticos e a travesti, categoria política e sujeito de direitos.
Mediante o ativismo trans na esfera pública nacional, as políticas de saúde, enquanto pauta do movimento social, contribuíram para legitimar as especificidades de suas demandas22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351.,66 Neves ALM. "Política é vida": ativismo e política de saúde trans em Manaus (AM) (tese). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.. São marcos dessas demandas os instrumentos que respaldam compromissos oficiais, tais como o “Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS)” e a “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)”. A regulamentação do Processo Transexualizador no marco do SUS teve início em agosto de 2008, por meio das Portarias do Ministério da Saúde nº 1.70777 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.707, de 18 de agosto de 2008. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Diário Oficial da União; 2008. e nº 45788 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008. Aprova a Regulamentação do Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de saúde - SUS. Diário Oficial da União; 2008., que regulamentam os procedimentos ambulatoriais e cirúrgicos para a readequação genital em mulheres trans.
Em 2011, a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT foi oficializada por meio da Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, garantindo o acesso aos serviços de saúde estabelecidos no processo transexualizador. Essa política tem como objetivo “[...] promover a saúde integral de LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuir para a redução das desigualdades e a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo”99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.836, de 1 de dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Diário Oficial da União 2011; 1 dez.(p.18). Destacamos que a Portaria é de 2011, mas ela só foi publicada e oficializada efetivamente em 2013, no âmbito da aprovação das políticas de equidade. O alcance do Processo Transexualizador foi ampliado por meio da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, que considerou o acolhimento e acesso aos serviços do SUS, desde o uso do nome social, acesso a hormonioterapia, à cirurgia de adequação à identidade de gênero1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2013..
A expansão dos dispositivos estatais de cuidado da saúde deu-se no contexto da expansão também do movimento trans. Surgiram novas organizações de pessoas travestis e transexuais, que articularam diversas conquistas junto ao Ministério da Saúde, com ênfase no reconhecimento de suas especificidades. Para Keila Simpson1111 Simpson K. Transexualidade e travestilidade na saúde. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Transexualidade e travestilidade na saúde. Brasília: MS; 2016. p. 9-15., a política pública de maior impacto para pessoas trans foi a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, em especial, o Processo Transexualizador do SUS - reivindicação antiga das pessoas trans do Brasil.
Conforme as medidas normativas do Governo Federal iam sendo oficializadas e executadas, outras iniciativas de promoção à saúde trans eram desenvolvidas no nível estadual. Na região Norte, por exemplo, o primeiro ambulatório trans da região, em Belém do Pará, foi criado em 2016, após nove anos do Processo Transexualizador instituído no SUS. O estado do Pará foi o quinto a implantar esse processo, com o sexto Ambulatório do Processo Transexualizador no Brasil, sob responsabilidade financeira do governo do estado. Essa conquista foi alcançada pela pressão e mobilização do Movimento LGBT do estado do Pará junto ao Ministério da Saúde e, sobretudo, junto à Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará66 Neves ALM. "Política é vida": ativismo e política de saúde trans em Manaus (AM) (tese). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019..
No Amazonas, cenário deste estudo, as políticas específicas em saúde são ainda mais incipientes. Uma das reivindicações da XVI Parada do Orgulho LGBT de Manaus, no início desta pesquisa em 2016, foi a construção de Políticas Públicas LGBT no Amazonas. Durante as comemorações do Dia da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro do mesmo ano, foi discutida pela primeira vez a Saúde Trans para além do papel das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e HIV/aids. As atuais políticas de saúde para pessoas trans em Manaus, incluem, além de práticas de prevenção contra o HIV/aids e outras IST, a orientação sobre a hormonioterapia ofertada pelo ambulatório vinculado à Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
São significativos os desafios burocráticos e as dificuldades materiais e subjetivas para acesso ao cuidado da saúde pela via da regulamentação do Processo Transexualizador no Brasil, e, em especial, no Amazonas. Após a análise dos marcos nacionais e locais citados, o fio condutor deste artigo foi a observação do processo de construção das políticas de saúde das pessoas travestis e transexuais no contexto da atenção básica e do atendimento especializado em Manaus, Amazonas.
Este artigo, portanto, tem como objetivo descrever os contextos e as condições da emergência de demandas que permitem pensar a Saúde Trans no Amazonas. Isto implicou em identificar o repertório de formas de ação política, utilizado pelo movimento trans em Manaus, no período de 2016 a 2018, considerando sua interação com outros atores sociais.
Método
O processo etnográfico e as particularidades do campo
A pesquisa empírica de corte etnográfico que sustentou o estudo combinou observação participante nos múltiplos espaços onde essas políticas foram gestadas e entrevistas com membros de duas organizações trans existentes em Manaus, a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (ASSOTRAM) e o Coletivo “O Gênero”, durante o período em que o trabalho de campo foi realizado, compreendido entre janeiro de 2016 e julho de 2018. A ASSOTRAM é gerida por travestis e mulheres trans. Antes da formação, todas elas possuíam experiência de ativismo em outros movimentos LGBT em Manaus. O Coletivo “O Gênero”, administrado por homens trans, foi criado em 2016. Antes da formação desse coletivo, nenhum dos membros tinha experiência com ativismo em movimento social.
No trabalho de campo, privilegiamos o acompanhamento da organização e a execução de eventos e outras reuniões em que esses movimentos estavam envolvidos. Acompanhamos ainda o processo de “fazer abordagem” em diferentes pontos e áreas de prostituição. “Fazer abordagem” é uma categoria do campo, acionada pelas ativistas da ASSOTRAM, que faz referência a práticas de distribuição de preservativos, orientações de prevenção às IST e distribuição de panfletos informativos com conteúdos relacionados a direitos das pessoas trans.
Tais ações eram, em sua maioria, organizadas em parceria com instituições, como a Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas (SUSAM), a Secretaria de Justiça de Cidadania (SEJUSC) ou a UEA. Também acompanhamos seminários acadêmicos sobre a temática, promovidos por instituições públicas de ensino, reuniões com a SUSAM e a Secretaria de Estado da Assistência Social (SEAS) do Amazonas, bem como páginas de Facebook dos eventos e das duas organizações sociais.
Na interface entre universidade e serviços de saúde, tivemos a oportunidade de participar da implementação do Ambulatório da Policlínica Codajás e observar o primeiro atendimento e a primeira reunião que a SUSAM convocou para discutir sua habilitação com a ASSOTRAM, O Gênero e a UEA. Acompanhamos atendimentos e reuniões com os professores da UEA responsáveis por esse atendimento; participamos das discussões no grupo de WhatsApp do ambulatório e vários outros movimentos de imersão no campo.
Para compreender os contextos e as condições da emergência de demandas que permitem pensar a saúde trans em Manaus, foi relevante, portanto, conhecer outros atores sociais e políticos - ativistas de outros movimentos LGBT, estatais, do campo da saúde, acadêmicos - que as promoveram, isto é, saber como as pessoas trans e esses outros atores participaram da construção de demandas formuladas em termos de políticas de Estado.
Abordamos empiricamente a atuação pública da ASSOTRAM e do coletivo “O Gênero” com relação a diferentes instâncias políticas e administrativas com diferentes atores, com o fim explícito de demandar e construir políticas públicas de saúde para pessoas trans em Manaus. A análise dessa atuação permitiu identificar quatro formas que são mobilizadas estrategicamente em processos de busca de reconhecimento: as de confronto, de articulação, de produção de visibilidade e as de colaboração com outros agentes. Elas serão apresentadas a seguir, delineando alguns aspectos que lhes são característicos.
Embora essas formas de ação política possuam roteiros de interação, características formais e gramáticas emocionais diferenciadas, e mobilizem diferentes recursos, atores e instituições, elas frequentemente se combinam e suas lógicas encontram-se densamente imbricadas. Dessa forma, serão classificadas a modo de tipos ideais weberianos1212 Weber M. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: Cohn G, organizador. Sociologia. São Paulo: Ática; 1999. p. 79-127., em função do seu rendimento heurístico. Esta variedade (bem como a variedade própria de cada tipo), sua mobilização estratégica e seu grau de eficácia (não apenas em função dos seus fins explícitos, mas também na construção das pessoas trans como sujeito político) permitirão apreciar a criatividade das e dos ativistas trans na construção de respostas às adversidades que enfrentam e às arbitrariedades a que são submetidas(os), bem como a trajetória e condições específicas da construção de um movimento trans e de políticas de saúde para pessoas trans em Manaus.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob Parecer nº 2.392.189, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 79369317.5.0000.5260.
Resultados e discussão
Nesta seção, descrevemos formas de ação política, com vistas a compreender como o Estado e o movimento social produzem uma série de formatos mais ou menos delimitados, que compõem um elenco distintivo de práticas de como “se fazem no Estado”. Essas formas de ação podem ser um suporte, um recurso e um compromisso na luta pela visibilidade, legitimação pública e luta pelos direitos das pessoas travestis e transexuais.
Confrontando os poderes e buscando aliados influentes
No trecho a seguir, desvela-se a fala de uma ativista que esteve junto com um grupo de profissionais do ambulatório de diversidade sexual e gênero, professores da UEA e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) que expuseram a ausência de políticas públicas de saúde trans em Manaus. Além de denunciar, buscaram aliados influentes em dois contextos: na Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE/AM) e no Conselho Estadual de Saúde do Amazonas (CES/AM). A recepção de demandas por parte destes aliados influentes serviria para “fazer pressão” no exterior da estrutura do Estado e para facilitar a implantação das políticas buscadas, trabalhando em seu interior. Para ilustrar este ponto, reconstruímos duas ações. A primeira é o “processo” na DPE/AM:
A gente entrou com processo na Defensoria. A gente está tentando marcar lá com o defensor para ver como é que está o andamento desse processo, pra saber se realmente ele fez a ação (Entrevista da ativista Joyce, concedida ao pesquisador, em 28/03/2018).
Em maio de 2017, durante o III Encontro Regional de Travestis, Transexuais e Homens Trans, foi criada a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas, que ficaria conhecida pela sigla ASSOTRAM. Naquele evento tinha participado o defensor público Curupira (nome fictício, que na literatura da mitologia amazônica é defensor da vida nas florestas), que, na sua fala durante a mesa redonda sobre direitos humanos, sinalizou seu “engajamento na luta pela garantia de direitos básicos da população LGBT” (Diário de campo, 17/05/2017).
Lembrando desse episódio, no início de 2018, as ativistas da ASSOTRAM resolveram contatar o “Dr. Curupira”. Na manhã de 9 de janeiro, após o agendamento via telefone, juntos com as ativistas da ASSOTRAM, Joyce, Flor do Dia e Rebecca, fomos até o gabinete para participar de uma reunião com o Dr. Curupira. Nesta reunião, que durou pouco mais de vinte minutos, elas reivindicaram “políticas públicas de saúde adequadas ao atendimento de travestis, transexuais e transgêneros no estado do Amazonas” (Diário de campo, 9/01/2018). A reunião “viabilizou” (transcrevendo as palavras de Flor do Dia) outra reunião com o “Dr. Caiçara” (nome fictício, que na mitologia amazônica é outro nome do defensor da vida nas florestas), na Defensoria Pública Especializada na Promoção e Defesa dos Direitos Relacionados à Saúde (DPE/AM).
O núcleo de saúde da Defensoria atua prioritariamente na solução extrajudicial para efetivar o acesso à saúde e faz a mediação para conseguir o atendimento na rede pública estadual e municipal de saúde. Via de regra, para assegurar o direito da população à saúde, antes de iniciar uma demanda judicial são feitas tentativas de mediação.
Joyce, ativista da ASSOTRAM, evocou a regulamentação do Processo Transexualizador atualmente vigente no nível federal pela Portaria nº 2.803/20131010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2013., do Ministério da Saúde, que obriga, nos termos da ativista, o Poder Público a fornecer todo o tratamento necessário, incluído o Processo Transexualizador. Mencionou que a portaria estipula a oferta de hormonioterapia, acompanhamento psicológico, assistente social e cirurgia de resignação sexual, mas, de fato, nada disso havia sido implementado no Estado.
O pedido de “intermédio” a Caiçara (termo acionado por Joyce na reunião), foi formulado na suposição de que o defensor pudesse tornar-se um aliado capaz de exercer influência, para o cumprimento da lei (neste caso, uma política de saúde regulamentada, e nos termos do discurso oficial, “pactuada” nas esferas municipal, estadual e federal). O tom do discurso de Joyce foi matizado unindo peças de uma forma de confronto com outras de caráter propositivo e colaborativo. Por um lado, ela denuncia o fato de a lei não estar sendo cumprida e o direito à saúde das pessoas trans não estar sendo respeitado, por outro, ela adota a lógica administrativa do Estado ao trazer à tona a figura do Tratamento Fora do Domicílio (TFD), oficializado pela Portaria nº 551313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Assistência à Saúde. Portaria SAS/MS nº 55, de 24 de fevereiro de 1999. Dispõe sobre a rotina do Tratamento Fora de Domicílio no Sistema Único de Saúde - SUS, com inclusão dos procedimentos específicos na tabela de procedimentos do Sistema de Informações Ambulatoriais do SIA/SUS e dá outras providências. Diário Oficial da União; 1999., da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, para argumentar que a implantação do Processo Transexualizador minimizaria custos para o Estado. O TFD é um programa que visa garantir, por meio do SUS, tratamento médico a pacientes portadores de doenças não tratáveis no município de origem por falta de condições técnicas. Esse dispositivo consiste em uma ajuda de custo à pessoa que solicitou, e em alguns casos, também ao acompanhante, encaminhados por ordem médica às unidades de saúde de outro município ou estado da Federação, quando esgotados todos os meios de tratamento na sua localidade de residência, desde que haja possibilidade de cura total ou parcial, limitado no período estritamente necessário a este tratamento e aos recursos orçamentários existentes1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Assistência à Saúde. Portaria SAS/MS nº 55, de 24 de fevereiro de 1999. Dispõe sobre a rotina do Tratamento Fora de Domicílio no Sistema Único de Saúde - SUS, com inclusão dos procedimentos específicos na tabela de procedimentos do Sistema de Informações Ambulatoriais do SIA/SUS e dá outras providências. Diário Oficial da União; 1999..
Ao propor a ideia de que a SUSAM, nessa hipótese, não precisaria custear o TFD do Processo Transexualizador em outros estados, de alguma maneira, Joyce está propondo ao defensor que pudesse “refletir junto conosco” sobre o potencial da SUSAM intervir, ampliando a infraestrutura física e de recursos humanos, tanto para as pessoas travestis e transexuais quanto para o Estado.
Não obstante, o tom de denúncia prevalece quando as ativistas evocam diversos riscos para a saúde e a vida das pessoas trans enquanto a política de saúde não for implementada. Flor do Dia relata os graves riscos que envolvem a não oferta do Processo Transexualizador:
É comum desde a infância fazer o hormônio. Se não tiver continuidade, a trans pode ter efeitos colaterais pra vida inteira, com efeitos irreversíveis. Temos conhecidas que chegaram até a se mutilarem. A ausência dessa política causa pra gente severos riscos e prejuízos à nossa saúde. Eu mesmo tive que ser prostituta e ir pra Europa fazer a minha, mas nem todo mundo tem essa sorte. As pessoas começam desde muito cedo, isso traz problemas psicológicos pra gente, porque não tem nenhum atendimento médico específico pra gente. Precisamos disso o mais rápido possível, as trans estão em depressão, se suicidando, se mutilando, precisamos urgente que a SUSAM possa estruturar o serviço (Fala de Flor do Dia, durante a reunião com o defensor público, em 11/01/2018).
A narrativa de Flor do Dia aciona a gramática do convencimento, conforme descrito em outras pesquisas1414 Teixeira F. Dispositivos de dor: saberes-poderes que (con)formam as transexualidades. São Paulo: Annablume, FAPESP; 2013.
15 Bento B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond; 2014.-1616 Borba R. O (des)aprendizado de si: transexualidades, interação e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.. Essas pesquisas relacionam a evocação de agravos físicos e, sobretudo, mentais, com a necessidade - marcada por um discurso psiquiátrico patologizador - de enquadrar-se no que é prescrito como um “transexual verdadeiro”1717 Borba R. Receita para se tornar um "transexual verdadeiro": discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trab linguist Apl 2016; 55(1):33-75., no caso, para serem escolhidas para realização de cirurgias. A seguir, buscamos reconstruir a segunda ação de confronto: a “denúncia” na reunião do CES/AM.
Noticiada pelas mídias sociais (grupos de WhatsApp e por e-mail), o grupo do ambulatório mobilizou-se, em conjunto com a ASSOTRAM e representantes do coletivo “O Gênero”, para realizarem uma “denúncia” ao Conselho Estadual sobre a ausência do processo de habilitação do ambulatório e apresentar o argumento utilizado pela SUSAM, justificando que um dos entraves para a mobilização da habilitação era a desativação do CES/AM.
Chegamos no dia e horário dessa convocação da reunião, junto com as(os) ativistas Joyce, Thiago, Flor do Dia, Dária e Denison no auditório do Centro de Convenções do Amazonas Vasco Vasquez.
Após a chegada do número necessário de conselheiros para cumprirem o quórum (quantitativo mínimo de conselheiros, para que as “pautas aprovadas tornem-se legítimas”), o presidente do Conselho, Francisco Deodato Guimarães, secretário de saúde na época, iniciou a abertura da seção citando os sete itens a serem discutidos na reunião: aprovação da pauta, apresentação e aprovação das atas, comunicação, informes dos conselheiros, apresentação, discussão e deliberação do plenário, apresentação de um pedido de vista de um conselheiro e o que houver. Este último item foi a oportunidade que a ASSOTRAM e “O Gênero” tiveram para inscrever a denúncia contra a SUSAM. O termo denúncia foi utilizado pelos ativistas e grupo do ambulatório durante a preparação dos argumentos que iriam falar na reunião e do “dossiê”, que será descrito a seguir.
Naquela manhã, os conselheiros limitavam-se a cumprimentos e conversas em voz baixa enquanto aguardavam os demais. Observou-se que a configuração das cadeiras dos conselheiros se organizava conforme parceria entre eles. Entretanto, após cada apresentação dos diversos temas dos subitens que compunham os sete itens da reunião, nos pareceu que, tratar de questões administrativas, tecer e consolidar redes de relações, havia dado lugar a uma atmosfera de gritos, brigas e acusações, que permaneceria até o final da reunião. Era visível uma ruptura entre os conselheiros.
Além do nosso grupo, que naquela ocasião estávamos como movimento, estavam presentes outras pessoas da sociedade manauara: o assessor jurídico do Conselho Regional de Medicina (CRM); a enfermeira do setor de hepatites do Hospital Tropical; o diretor e um médico da Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas; técnicas da Central de Atendimento de Medicamentos do Amazonas. Todos tinham como finalidade dar resolução a demandas específicas com o CES/AM.
Passava do meio-dia, nervos à flor da pele entre os conselheiros reunidos no auditório do Centro de Convenções Vasque Vasquez. Um “bate-boca” generalizado ecoava naquele espaço entre dois membros do Conselho. Acusavam-se reciprocamente de que, naquele momento, cada um estava defendendo o seu “puxadinho político” em vez de “representar a sociedade”. Por volta de quase uma hora da tarde, o presidente do Conselho conseguiu administrar a situação e as discussões e gritos cessaram. Assim, chegou o momento em que Joyce, representando a ASSOTRAM e Thiago, representando o coletivo “O Gênero”, conseguiram um espaço na pauta “o que houver” da reunião do Conselho Estadual de Saúde (CES/AM). Em fala ainda deslocada diante do “bate-boca” entre os conselheiros, Joyce fez uso da palavra:
“O estado do Amazonas” pouco fez ou então nada fez “para que essa política seja regulamentada, então nós enquanto Associação tivemos várias vezes na SUSAM, entendeu? Se colocando no dever de ajudar a executar esse projeto, e a SUSAM” até agora não se fez, na realidade, não se propôs à criação desse ambulatório. “Na última reunião, o que eles alegaram na SUSAM, é que o Conselho não estava se reunindo”. A política é bem clara, que a responsabilidade do Estado, mas também desse Conselho em fiscalizar. “Como é que a gente fica? Como é que o estado do Amazonas fica?” Eu, que sou uma mulher trans, não tenho direito a uma saúde básica, porque a saúde básica não me é garantida, e a política, ela garante isso, uma atenção básica, um atendimento interdisciplinar também. Desde 2011, a gente tem informações que existe um dinheiro que foi enviado para o Estado, mas que não foi implantada a política LGBT. “Não há exibição, não há nada que o Estado se prontifique a fazer. O que há, são atendimentos pontuais e voluntários que a gente tem que se acalmar. Enquanto isso”, a população necessita de vários atendimentos específicos e a gente não encontra, nem pra gay, nem pra lésbica, pra bissexual, principalmente pra transexual. Obrigada! (Fala da Joyce, na 310ª reunião do CES/AM - 20/05/2018. Grifos do autor).
A afirmação reiterada do direito a uma política e acesso à saúde integral LGBT, sempre com ênfase na regulamentação do Processo Transexualizador denota, nas falas, um campo de conflito muito evidente com relação ao direito das pessoas trans ao acesso e à permanência nos serviços públicos de saúde.
De visibilidade: evento da “pauta T”
Estamos aqui no dia da nossa visibilidade buscando inclusão, valorização e dignidade da pessoa humana, né? Pra isso, a gente da ASSOTRAM se organizou com a Rede Trans e o Gênero, para provocarmos uma discussão, não apenas de nós pra nós, mas com os representantes governamentais e da sociedade civil, para debatermos temas, como saúde, educação, segurança, mercado de trabalho, entre outros. Estamos aqui, existimos, resistimos e queremos uma vida digna. Nós vamos buscar políticas públicas! Hoje, a nossa tentativa é trazer eles [representantes do Estado] até nós! (Trecho da fala de abertura de Joyce no Workshop, 29/01/2018).
Em 29 de janeiro de 2018, data em que se comemora nacionalmente a visibilidade trans, a ASSOTRAM, em parceria com a Rede Trans do Brasil, organizou um workshop para discutir “a pauta T”. Tratava-se do primeiro evento realizado pela ASSOTRAM desde sua fundação. Em cima da porta do local do evento havia uma faixa de cor laranja, de aproximadamente dois metros de comprimento, com a frase “VISIBILIDADE TRANS AMAZONAS - RESISTÊNCIA POR DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS” escrita em letras brancas. A frase ficou centralizada entre dois desenhos de figuras humanas, sem os traços dos olhos, boca e nariz; a da direita, portava calça rosa e blusa azul com manga até o bíceps, e a da esquerda, saia rosa e blusa azul com manga até o antebraço. No desenho, as figuras pareciam saltando. Ao observar tais detalhes, percebemos outras figuras similares misturadas entre as figuras laterais e as letras.
Embora socialmente em grande medida contemporânea de outras identidades homossexuais, as categorias trans se constituem no Brasil como identidades políticas distintas no final do século XX e alcançam visibilidade incontestável a partir do século XXI, passando a compor o cenário das lutas sociais mais destacadas22 Carvalho M, Carrara S. Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sex Salud Soc 2013; 14:319-351.. Essa visibilidade é construída, entre outros palcos, em eventos públicos como as Paradas do Orgulho LGBT e o ENTLAIDS. Sua atuação política estrutura-se em torno de pautas, como a luta contra a violência, o respeito ao nome social e o acesso à saúde.
Ainda com as palavras de ordem da faixa na mente, entramos no teatro e fomos recebidos na porta do Les Artistes Teatro Café por Fifi, que fazia a recepção do evento. Fifi trajava um vestido longo vermelho, justo ao corpo, que valorizava suas curvas, e um decote que enfatizava seus seios. Tinha lenço envolto em seu pescoço nas cores azul, rosa e branco, em alusão às cores do orgulho trans. Então, ela nos disse: “nós existimos, resistimos e vamos ser notadas”, colocando em palavras o sentido dado pelas organizadoras à comemoração. A interpelação de Fifi evoca a constante busca e negociação pelas(os) ativistas trans de Manaus por espaços de visibilidade, respeitabilidade no Estado e na sociedade, seja qual for o lado da fronteira em que elas estejam, ora na prostituição, ora no comércio do centro da cidade.
Ademais, o workshop trans, enquanto ação política, buscou problematizar suas principais demandas nos setores da saúde, justiça, assistência social, segurança pública, educação e religião, para que alcancem e garantam o que solicitavam na faixa da entrada do Les Artistes Teatro Café: “Dignidade e direitos humanos”.
Ativistas trans e Estado: a reciprocidade como princípio organizador das formas de colaboração
Das diferentes formas de ação política identificados no processo de construção de políticas públicas de saúde trans em Manaus, as práticas do que, no jargão político brasileiro, especialmente do âmbito governamental e dos movimentos sociais, chama-se de “articulação”, marcadas pela colaboração, principalmente entre ativistas e gestores estatais, parecem ser as que prevalecem atualmente na relação entre as organizações trans e as secretarias estadual e municipal de saúde: existe uma relação recíproca entre movimento trans e Estado. Durante o período do trabalho de campo, foi rotineira a participação da ASSOTRAM e do coletivo “O Gênero” em reuniões com representantes dessas secretarias, tanto para a discussão da habilitação do ambulatório, como para a execução de “práticas de prevenção” de IST/HIV/aids.
As trocas estabelecidas nesses espaços e mediante essas atividades geravam tanto entrosamento como disputas e tensões em diversas escalas. Por exemplo, embora “a universidade” tenha participado em algumas das reuniões, as secretarias de saúde priorizavam escutar o movimento e não os profissionais de saúde que já atuavam no Ambulatório. Isto fez com que a relação entre os professores da universidade que conduziam o projeto do ambulatório e os órgãos do Estado ficasse fragilizada diante das disputas e da tensão em torno de quem iria coordenar o ambulatório após a habilitação.
O principal fruto do esforço de articulação entre a SUSAM e a Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) com a ASSOTRAM e “O Gênero” é a própria “escuta” dos movimentos, que se materializa nas demandas em torno do uso de hormônios; das cirurgias de resignação sexual; da redução de danos com relação ao uso de silicone industrial e a utilização de próteses de silicone; além do respeito ao nome social, considerado fundamental para o acesso e permanência nas unidades básicas de saúde. Mesmo não tendo eficácia imediata para tornar-se prioridade para o Estado, as reuniões têm se estabelecido como estratégia para a adoção do processo transexualizador e a política de saúde LGBT no Amazonas, como afirma Thiago:
Mesmo às vezes parecendo que não é prioridade, a reunião com as secretarias do estado e do município é uma oportunidade de que possa fazer acontecer as pautas da política estadual de saúde integral LGBT e a implementação do processo transexualizador (Entrevista concedida ao pesquisador no dia 13/11/2017).
Além da forma de recepção mencionada com relação ao processo transexualizador e à política integral de saúde LGBT, que corresponde a SUSAM e SEMSA, outra forma de interlocução encontrada pela ASSOTRAM e pelo coletivo “O Gênero”, foi a “pactuação” para atuarem na prevenção de HIV/aids e IST. Trata-se de um modo recíproco de atuação entre as secretarias e os movimentos sociais, em geral, os vinculados ao Fórum das Organizações da Sociedade Civil (OSC) IST/Aids, que incluíam a disponibilização de insumos (panfletos, preservativos, gel lubrificantes e outros), liberação de diárias e passagens e financiamento do coffee break para eventos. A “pactuação” gera obrigações recíprocas.
Deste modo, a SUSAM ou a SEMSA operam como “doadores” de insumos de prevenção e apoio para eventos, enquanto os movimentos retribuem divulgando suas atividades como uma “parceria” com as secretarias, contribuindo reciprocamente à legitimação de ambos os atores perante seus públicos.
A ASSOTRAM e “O Gênero” realizam “abordagens” de prevenção nos pontos de prostituição e em grandes eventos de Manaus. De acordo com as ativistas, a ação teve início em fevereiro de 2018, durante o carnaval. Cinco ativistas estavam presentes nas “bandas de carnaval” e no sambódromo, entregando camisinhas e lubrificantes, fomentados pelas secretarias de saúde. Após o carnaval, até a finalização do trabalho de campo, as abordagens restringiram-se apenas aos “pontos de prostituição”. Ainda que o principal argumento para a realização das abordagens tenha sido a prevenção de IST e HIV, durante as reuniões de organização dessas atividades, a ASSOTRAM foi ouvida e participou da construção quando a pauta do Processo Transexualizador foi acionada. O prestígio adquirido por meio dessas atividades também ficou evidente, pois em 2018, “O Gênero” começou a participar das reuniões e oficinas de prevenção de IST e HIV.
Marcel Mauss1818 Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. In: Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu; 2003. p. 183-294., no clássico Ensaio sobre a Dádiva, descreve relações e prestações de reciprocidade. Ao explorar as origens das trocas, este autor desvenda princípios fundamentais da organização e da lógica econômica e social da reciprocidade entre membros de uma sociedade. Para poder dar, é preciso produzir, e essa produção encontra-se subordinada à doação, que gera uma economia com princípios diferentes do valor utilitário dos objetos; constitui um valor simbólico com relação à posição social do doador e do receptor e à renovação das obrigações geradas entre estes. As dádivas são recíprocas e obrigatoriamente retribuídas. Nas trocas com as secretarias de saúde, as organizações trans, ao se colocarem como possível receptor, são, por sua vez, candidatas a atuar retribuindo. Ao se tornar e manterem-se como “parceiros”, cada um adquire, consolida e expande o reconhecimento que se revela em prestígio e em autoridade política.
Considerações finais
Considerou-se quatro formas de ação mobilizadas, a modo de dramaturgias políticas, no processo de politização da saúde trans no Amazonas, que classificamos, lançando mão de algumas categorias e noções nativas, como: confronto, articulação, visibilidade e colaboração. Trata-se de recursos interacionais diferenciados, presentes, com matizes, na atuação de diversos movimentos sociais perante o Estado. Diferentes contextos políticos fazem possível mobilizar diferentes recursos (conhecimentos, emoções, apelo moral etc.) com o fim de suscitar o reconhecimento buscado, em função da disposição (solidariedade, antagonismo etc.) dos interlocutores e dos efeitos da interação esperados pelos diferentes agentes envolvidos em termos do impacto público das suas ações.
As ações de “confronto” estiveram entre as primeiras executadas pelas pessoas trans, no Brasil, como protagonistas de ação política, principalmente no enfrentamento da violência policial. Com a organização política das identidades trans, o confronto, como modalidade de ação política, ocorre alinhado ao processo (mais abrangente) de judicialização de demandas sociais.
A segunda forma acionada corresponde ao que, em diversos âmbitos da política formal, chama-se de “articulação”. Esta implica em aliar-se a outros atores considerados influentes, entre estes a Universidade, pela relevância do seu papel, pelo prestígio da instituição como lugar da produção de conhecimento técnico-científico e pela expertise, experiência, capital político e disposição pessoal de algum professor ou grupo de professores. Foi uma articulação com a UEA que permitiu a instalação do primeiro ambulatório com atendimento específico para pessoas trans em Manaus.
A terceira forma de ação, as estratégias de visibilidade, tem relação com a forma como se mostram as relações entre política e entretenimento. Observamos que essa relação visa promover a ideia de respeito às diferenças e a valorização da “cultura LGBT” e amazônida. Além de o movimento ter programado discutir no workshop suas demandas específicas nos diversos setores da sociedade, houve a apresentação da performance musical de artistas amazonenses; a exibição de documentários de pessoas trans residentes no Amazonas; e, também, a apresentação da dança típica amazonense, a Ciranda, que foi coordenada por uma ativista da ASSOTRAM.
A atuação junto às secretarias de saúde traz à tona a quarta forma de ação, de “colaboração”. O estabelecimento de interações colaborativas do movimento com a SUSAM e a SEMSA varia conforme a demanda e o setor de política pública defendida pelo movimento e a permeabilidade do Estado às ditas políticas. Concluímos que os dois movimentos defendem nessa reivindicação que a ausência do processo transexualizador é considerada como algo não negociável. Durante as reuniões, foi afirmado o quanto a ausência dessa política constitui uma ameaça para a saúde da população trans, além de argumentarem o quanto é oneroso para o Estado não ter efetivado o processo transexualizador, já que, ao acionar o aparato jurídico, é possível obtê-lo por meio do TFD.
Este estudo objetivou aprofundar as discussões sobre a história do protagonismo das pessoas travestis e transexuais, mediante sua participação política, organização como movimento social e seu engajamento na implementação de políticas de saúde, na mudança das suas realidades e na ampliação dos seus direitos. Espera-se, com isto, contribuir para alargar os diálogos e reflexões dos estudos sobre políticas públicas de gênero e sexualidade no Brasil, principalmente, no que tange ao acesso, demanda e permanência nos serviços públicos de saúde, bem como à organização política das pessoas travestis e transexuais em contextos regionais.
Referências
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Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM - Brasil) pelo auxílio pesquisa do Programa de Apoio a Pós-Graduação - POSGRAD/FAPEAM 2022/2023 - Nº Processo: 01.02.016301.03033/2022-69 (RESOLUÇÃO Nº 005/2022). E da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Jan 2024 - Data do Fascículo
Jan 2024
Histórico
- Recebido
03 Fev 2023 - Aceito
15 Fev 2023 - Publicado
17 Fev 2023