O que os adolescentes do município do Rio de Janeiro, Brasil, têm feito para reduzir sua exposição à violência comunitária?

Emanuele Souza Marques Michael Eduardo Reichenheim Érika Barbosa dos Santos Stella R. Taquete Claudia Leite de Moraes Sobre os autores

Resumo

O objetivo do estudo é conhecer as estratégias individuais mais utilizadas por adolescentes de escolas públicas e privadas da IX Região Administrativa do município do Rio de Janeiro para evitar a exposição à violência comunitária, bem como investigar o perfil de coocorrência e sua prevalência em subgrupos populacionais específicos. Trata-se de um estudo seccional com 693 indivíduos. As informações referentes às estratégias para evitar a exposição à violência comunitária foram coletadas por meio de questionário multidimensional autopreenchido em sala de aula. As estratégias mais utilizadas foram: evitar passar onde há pessoas armadas (55,5%), evitar andar sozinho (30,5%) e evitar voltar para casa de madrugada (24,7%). Observou-se que as meninas adotam mais todos (concomitantemente) os quatro tipos de comportamento limitantes para reduzir sua exposição à violência comunitária (53% vs. 32%). Ressalta-se que a adoção de tais estratégias diferiu segundo os indicadores socioeconômicos, sendo maior entre os adolescentes oriundos de família de estratos de renda mais baixos. Tais achados chamam a atenção para a alta frequência de utilização de tais estratégias por adolescentes, o que pode cercear e limitar o pleno desenvolvimento de suas habilidades sociais e culturais.

Palavras-chave:
Exposição à violência; Violência comunitária; Adolescentes; Inquéritos epidemiológicos

Introdução

A violência comunitária (VC) é considerada um problema de saúde pública em muitos países de alta, média e baixa renda, incluindo o Brasil11 Dahlberg LL, Krug EG. Violence a global public health problem. Cien Saude Colet 2006; 11(2):277-292.. De modo geral, esse tipo de violência tem os adolescentes e jovens como um dos grupos mais vulneráveis22 David-Ferdon C, Simon TR. Preventing youth violence: opportunities for action. Atlanta: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2014., sendo eles as principais vítimas das manifestações letais e não letais33 Guterman NB, Cameron M, Staller K. Definitional and measurement issues in the study of community violence among children and youths. J Community Psychol 2000; 28(6):571-587.. A relevância do problema nessa parcela da população é clara ao constatarmos que, no cenário global, um quarto das vítimas de homicídios são adolescentes, sendo os meninos com idade entre 15 e 19 anos os mais vulneráveis44 United Nations Children's Fund (UNICEF). A familiar face: violence in the lives of children and adolescents. New York: UNICEF; 2017..

A América Latina e o Caribe apresentam as maiores taxas de homicídio entre adolescentes, com o Brasil sendo um dos cinco países com maiores taxas nessa faixa etária44 United Nations Children's Fund (UNICEF). A familiar face: violence in the lives of children and adolescents. New York: UNICEF; 2017.. Entre 2008 e 2018, ocorreram 628 mil homicídios no país, sendo 91,8% das vítimas do sexo masculino e 55,3% com idade entre 15 e 29 anos55 Cerqueira D, Bueno S, Alves PP, Lima RS, Silva ERA, Ferreira H, Pimentel A, Barros B, Marques D, Pacheco D, Lins GOA, Lino IR, Sobral I, Figueiredo I, Martins J, Armstrong KC, Figueiredo TS. Atlas da violência 2020. Rio de Janeiro: IPEA; 2020.. A situação no estado do Rio de Janeiro (RJ) é ainda mais alarmante. A taxa no estado era de 183 por 100 mil em 2018, cerca de 63% acima da média brasileira 55 Cerqueira D, Bueno S, Alves PP, Lima RS, Silva ERA, Ferreira H, Pimentel A, Barros B, Marques D, Pacheco D, Lins GOA, Lino IR, Sobral I, Figueiredo I, Martins J, Armstrong KC, Figueiredo TS. Atlas da violência 2020. Rio de Janeiro: IPEA; 2020..

Com relação às violências não letais, estudo de 2005 focando esse tipo de violência em adolescentes escolares de São Gonçalo, RJ, estimou que metade já havia presenciado alguém ser ferido gravemente; um em cada três já havia enfrentado situação de perigo e insegurança na vizinhança e 12,7% havia tido suas casas arrombadas ou roubadas66 Assis SG, Pesce RP, Avanci J. Resiliência: enfatizando a proteção na adolescência. Porto Alegre: Artmed; 2006.. Outro estudo desenvolvido com esse público na cidade de São Paulo no ano de 2017 revelou que 15,3% dos entrevistados já tinham sido vítimas de roubo com violência nos 12 meses anteriores à entrevista. A vitimização por violência física com arma de fogo também chamou a atenção dos autores: 7,6%77 Peres MFT, Eisner M, Loch AP, Nascimento A, Papa CHG, Azeredo CM, Silva LAM, Santos LA, Leite MA, Esposito MP, Astolfi R. Violência, bullying e repercussões na saúde: resultados do Projeto São Paulo para o desenvolvimento social de crianças e adolescentes (SP-PROSO). São Paulo: USP; 2018..

Enquanto adolescentes e jovens do sexo masculino são mais vulneráveis às violências interpessoais ligadas ao tráfico de drogas, à VC nos centros urbanos e às disputas de terras na áreas rurais, a violência sexual perpetrada por não parceiros íntimos é uma das principais violações de direitos humanos contra meninas e mulheres88 World Health Organization (WHO). Violence against women prevalence estimates, 2018: global, regional and national prevalence estimates for intimate partner violence against women and global and regional prevalence estimates for non-partner sexual violence against women. Geneva: WHO; 2021.. Em 2018, por exemplo, a prevalência global de violência sexual perpetrada por não parceiros íntimos contra mulheres de 15 a 49 anos ao longo da vida foi de 6%88 World Health Organization (WHO). Violence against women prevalence estimates, 2018: global, regional and national prevalence estimates for intimate partner violence against women and global and regional prevalence estimates for non-partner sexual violence against women. Geneva: WHO; 2021..

Apesar dos poucos estudos, a violência sexual também parece ser relevante no Brasil. Segundo Cerqueira et al. 99 Cerqueira D, Coelho DSC, Ferreira H. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Rev Bras Segur Publica 2017; 11(1):24-48., entre 2011 e 2014, as notificações de estupro cresceram 66,1% no país. Ao analisar o vínculo entre vítima e agressor, observou-se que os principais perpetradores desse tipo de violência contra adolescentes de 14 a 17 anos são desconhecidos (30,6%), seguido de amigos/conhecidos (26,0%). Em 2014, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) registrou 20.085 casos suspeitos de estupro no Brasil, sendo 1.369 no estado do Rio de Janeiro. Estudos populacionais também revelam características importantes desse tipo de violência comunitária. Segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde Escolar (PeNSE) de 2015, inquérito nacional que envolveu 102.072 adolescentes escolares das cinco regiões do Brasil, a prevalência de violência sexual ao longo da vida foi de 4,0%, sendo os maiores valores encontrados em meninas, de 15 anos ou mais, autodeclaradas não-brancas e oriundas de escolas públicas1010 Terribele FBP, Munhoz TN. Violência contra escolares no Brasil: Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PeNSE, 2015). Cien Saude Colet 2021; 26(1):241-254..

Além das diversas repercussões negativas na saúde de suas vítimas, a exposição à VC também se constitui um importante limitador de vivência e interação social nessa faixa etária, trazendo prejuízo ao bom desenvolvimento de suas habilidades sociais, ou seja, a capacidade de expressar desejos, sentimentos e opiniões, bem como de interagir com outras pessoas1111 Pinto LW, Assis SG. Violência familiar e comunitária em escolares do município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(2):288-300.. Importa pontuar que a adolescência é uma época em que ocorrem muitas mudanças emocionais, sociais e físicas1212 O'Donohue WT, Benuto LT, Tolle LW, Payne L, Davis R. Introduction and the Wellness Imperative with Adolescent Behavioral Health. In: O'Donohue WT, Benuto LT, Tolle LW, editors. Handbook of Adolescent Health Psychology. Berlin: Springer; 2013. p. 3-12.. Essas transformações ocorrem juntamente com o aumento da autonomia, da individualização, do desenvolvimento de identidades, da maior influência dos pares, da necessidade de afirmação perante o grupo e da exploração do ambiente no qual vive, experimentando riscos1212 O'Donohue WT, Benuto LT, Tolle LW, Payne L, Davis R. Introduction and the Wellness Imperative with Adolescent Behavioral Health. In: O'Donohue WT, Benuto LT, Tolle LW, editors. Handbook of Adolescent Health Psychology. Berlin: Springer; 2013. p. 3-12.

13 Steinberg L, Morris A. Adolescent Development. J Cognitive Education and Psychology 2001; 2(1):55-87.
-1414 Steinberg LD. Adolescence. New York: McGraw-Hill; 1993.. Se por um lado há maior autonomia, liberdade, tempo fora de casa, interação social entre os pares e menor supervisão parental, essenciais para o pleno desenvolvimento dos adolescentes, por outro, tais mudanças podem ser uma “via de mão dupla”, já que aumentam a possibilidade de meninos e meninas serem mais expostos a diferentes tipos de VC44 United Nations Children's Fund (UNICEF). A familiar face: violence in the lives of children and adolescents. New York: UNICEF; 2017..

Diante da necessidade de independência, estar entre amigos e vivenciar novas experiências, e também dos riscos da exposição às violências que isso naturalmente impõe, muitos adolescentes e suas famílias desenvolvem estratégias individuais para reduzir a possibilidade de vitimização. Tais ações envolvem restrições ao domicílio, evitar relação com alguns grupos, não frequentar certos eventos sociais ou mesmo alguns territórios. Essas limitações nem sempre são bem aceitas pelos adolescentes, em função do tolhimento de uma liberdade recém conquistada ou mesmo por medo de sofrerem discriminação por parte dos pares pelo excesso de zelo familiar1111 Pinto LW, Assis SG. Violência familiar e comunitária em escolares do município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(2):288-300.,1515 Kliewer W, Parrish KA, Taylor KW, Jackson K, Walker JM, Shivy VA. Socialization of coping with community violence: influences of caregiver coaching, modeling, and family context. Child Develop 2006; 77(3):605-623.. Além disso, apesar de visarem a redução do risco de exposição à violência, tais estratégias de proteção, quando abarcam diferentes aspectos da vida dos adolescentes, podem levar ao isolamento e prejudicar o desenvolvimento social dos indivíduos.

Apesar dos altos índices de violência no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades brasileiras, a literatura sobre as estratégias individuais de enfrentamento à VC no dia a dia de adolescentes e jovens ainda é escassa. Pouco se sabe quais as estratégias mais adotadas, se existem diferenças entre meninos e meninas e se diferem de acordo com suas características sociodemográficas. Parece-nos relevante lançar mais luz sobre o tema, já que essas medidas podem ser heterogêneas, a depender das características dos envolvidos, do grau de violência comunitária e dos contextos sociais envolvidos, e esses predicados se relacionam à qualidade de vida dos adolescentes. Este estudo visa, portanto, conhecer as estratégias individuais mais utilizadas por adolescentes que frequentavam o ensino médio de escolas públicas e privadas de uma Região Administrativa do município do Rio de Janeiro para evitar a exposição à violência comunitária; investigar o perfil de coocorrência dessas estratégias; e examinar a prevalência das mesmas em subgrupos populacionais específicos, formados a partir de características demográficas e indicadores socioeconômicos das famílias.

Métodos

Desenho e local do estudo

O estudo faz parte de um projeto de pesquisa maior, intitulada “Estupro de vulnerável e outras violências contra adolescentes e jovens do sexo feminino”. Trata-se de um estudo seccional com estudantes do 2º ano do ensino médio de instituições públicas e privadas da IX Região Administrativa (RA) do Rio de Janeiro, Brasil. A IX RA contém aproximadamente 191.000 habitantes, com renda per capita média de R$ 1.836/mês no em 2010. Apesar de a região ter o quinto maior índice de desenvolvimento humano (IDH) do munícipio, o local é marcado por uma população de distintos níveis socioeconômicos. A região apresenta áreas totalmente urbanizadas (casas, edifícios e condomínios de classe média e alta), cujo entorno é permeado de favelas (e.g., Borel, Macacos e Complexo do Andaraí), e locais com habitações mais pobres, desassistidas de condições mínimas de saneamento básico1616 Prefeitura do Rio de Janeiro. Dados do Rio [Internet]. 2020. [acessado 2021 jun 4]. Disponível em: https://apps.data.rio/armazenzinho/#DadosdoRio
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Participantes

Em 2016, a IX RA tinha cinco escolas públicas e 15 privadas, abrangendo 29 e 23 classes, respectivamente, de 2º ano do ensino médio. Essas classes continham 1.470 estudantes. Os participantes foram selecionados por meio de um complexo procedimento de amostragem, estratificada de acordo com três grupos: escolas privadas com aulas diurnas, escolas públicas com aulas diurnas e escolas públicas com aulas noturnas. Vinte e seis turmas foram selecionadas, com probabilidade proporcional ao tamanho da escola. Todos os alunos das turmas sorteadas foram convidados a participar da pesquisa. O tamanho amostral do estudo de fundo foi de 721 estudantes, sendo a taxa de resposta de 96,1%. É importante pontuar que esse esquema de amostragem implicou diferentes pesos amostrais para cada escola e seus respectivos alunos. Neste estudo foram incluídos apenas os adolescentes com idade entre 15 e 19 anos, resultando em uma amostra de 693 alunos.

Coleta de dados e instrumentos de aferição

A coleta de dados foi realizada entre outubro de 2016 e fevereiro de 2017 por uma equipe previamente treinada. As informações foram obtidas por meio de autopreenchimento de questionário multitemático em sala de aula e busca ativa de informações de identificação e sociodemográficas faltantes por meio de ligações telefônicas.

As estratégias individuais para evitar exposição à VC foram mensuradas por meio de dez questões fechadas do módulo II de um instrumento desenvolvido no Brasil para uma pesquisa anterior sobre juventude, violência e polícia1717 Musumeci L, Ramos S, Paris LL, Ribeiro E, Alvadia Filho A. Juventude, violência e polícia: resultados da pesquisa amostral. Rio de Janeiro: Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC); 2012.. As questões se referiam à adoção de comportamentos para se proteger da violência comunitária ou para sentir-se mais seguro. Os estudantes foram perguntados se evitavam sair de casa à noite, sair de sua comunidade ou bairro, não voltar para casa de madrugada, ir a festas, frequentar um grupo de amigos, andar sozinho, não usar certas linhas de ônibus, ir à escola, passar onde há pessoas armadas e passar perto da polícia. Para cada questão eram oferecidas três opções de respostas relativas à frequência com que utilizavam tais estratégias em seu dia a dia (nunca, às vezes e frequentemente). As três opções foram consideradas nas análises de prevalência no agregado da amostra e por sexo. Nas análises por subgrupos e de coocorrência focalizando a adoção de diferentes estratégias por um mesmo indivíduo, as variáveis de interesse central foram dicotomizados (não vs. sim), agrupando-se as duas últimas categorias.

O questionário também foi composto por variáveis demográficas, socioeconômicas, do contexto familiar e referentes à escola. A maior parte das variáveis são autoexplicativas e estão descritas na primeira tabela da seção de resultados. A posição econômica da família foi avaliada por meio do Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), versão 20151818 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério Brasil 2015 e atualização da distribuição de classes para 2016 [Internet]. 2016. [acessado 2021 jun 4]. Disponível em: https://www.abep.org/Servicos/Download.aspx?id=12
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. O CCEB é construído a partir de um sistema de pontuação formado pela escolaridade do chefe da família em anos de estudo, acesso a serviços públicos, posse de bens duráveis e contrato de empregados domésticos. As famílias são classificadas em sete estratos socioeconômicos, a saber A; B1; B2; C1; C2; D-E. O estrato A apresenta o maior poder aquisitivo, enquanto o estrato E, o menor1818 Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). Critério Brasil 2015 e atualização da distribuição de classes para 2016 [Internet]. 2016. [acessado 2021 jun 4]. Disponível em: https://www.abep.org/Servicos/Download.aspx?id=12
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Análise de dados

A análise dos dados contemplou uma primeira etapa de descrição da amostra estudada no agregado e segundo estratificação por sexo, visando caracterizar o perfil populacional, bem como identificar a frequência de utilização de diferentes estratégias para evitar a VC. Em seguida, estimou-se a prevalência de utilização de cada uma das estratégias segundo variáveis demográficas (idade, etnia e com quem o adolescente mora) e socioeconômicas (escolaridade materna, estrato socioeconômico e gestão da escola). Hipóteses nulas de independência foram avaliadas usando o teste do quiquadrado com nível de significância (α) de 0,05 como demarcação de rejeição da H0.

O perfil de coocorrência de estratégias foi representado graficamente por diagramas de Venn, agrupando-se as experiências em quatro conjuntos: limitação do ir e vir (evita sair de casa à noite, sair da comunidade ou bairro e voltar para casa de madrugada), limitação do convívio com seus pares (evita ir a festas, frequentar um grupo de amigos e ir à escola), atitudes de prudência ou de cuidado (evita andar sozinho e usar certas linhas de ônibus) e evitar andar próximo a pessoas armadas (evita passar onde há pessoas armadas e passar perto da polícia).

Todas as análises usaram a suíte svy do Stata 16 para lidar com a estrutura complexa de amostragem.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAAE nº 48107514.2.0000.5282) e pela Secretaria de Estado de Educação. O Termo de Consentimento Livre Esclarecido foi assinado pelos alunos, e o Termo de Assentimento, pelos pais/responsáveis.

Resultados

A Tabela 1 apresenta o perfil dos adolescentes participantes. A amostra como um todo é homogênea em relação à idade (média: 16,9 anos; SD: 0.9). Pouco mais de 50% se autodeclararam brancos. A maioria dos adolescentes reportou não coabitar com ambos os pais (55,6%), quase um terço residindo apenas com a mãe. Cerca de 11% das mães apresentam menos de oito anos de estudo. A maioria dos estudantes fazia parte do estrato econômico B e estava matriculada na rede privada de ensino. Há uma maior proporção de meninas mais novas do que de meninos.

Tabela 1
Perfil demográfico, socioeconômico, familiar e da escola dos adolescentes escolares IX RA do município do Rio de Janeiro, RJ, 2017.

As frequências de estratégias individuais utilizadas pelos participantes para evitar exposição à VC são apresentadas na Tabela 2. As mais comuns foram: evitar passar onde há pessoas armadas (55,5%); evitar andar sozinho (30,5%); e evitar voltar para casa de madrugada (24,7%). Observa-se diferenças estatisticamente significativas entre meninos e meninas. Estas evitam mais frequentemente sair de casa à noite (28,2% vs. 10,4%); voltar para casa de madrugada (31,4% vs. 16,8%); ir a festas (10,5% vs. 5,3%); andar sozinha (43,3% vs. 15,5%); usar certas linhas de ônibus (22,7% vs. 17,0%); e passar perto da polícia (12,4% vs. 11,5%).

Tabela 2
Adoção de comportamentos para prevenção de vitimização à VC por adolescentes escolares da IX região do município do Rio de Janeiro, RJ, 2017.

O perfil de coocorrência das estratégias, segundo o sexo, é apresentado na Figura 1. Observa-se que 32% e 53% dos meninos e meninas, respectivamente, costumam adotar todos (de forma concomitante) os quatro tipos de comportamento limitantes (limitação do ir e vir, limitação do convívio com seus pares, atitudes de prudência ou de cuidado e evitar andar próximo a pessoas armadas) para reduzir sua exposição à violência comunitária. Quando analisamos a adoção das estratégias individuais em cada grupo separadamente, também observou-se uma maior utilização de tais atitudes por parte das meninas em todos os grupos estudados (dados não mostrados em tabelas e figuras), reforçando o quadro encontrado.

Figura 1
Coocorrência das estratégias individuais para evitar a exposição à violência comunitária em adolescentes escolares do sexo masculino e feminino.

A Tabela 3 apresenta a prevalência de utilização de cada uma das estratégias de prevenção de vitimização à VC segundo alguns indicadores socioeconômicos e desagregada por sexo. Observa-se que tanto as meninas quanto os meninos dos estratos socioeconômicos mais baixos são os que mais evitam passar perto de policiais. Em contraponto, os adolescentes dos estratos mais altos evitam mais passar em locais onde há pessoas armadas. Procurar não utilizar usar certas linhas de ônibus foi mais frequente nos adolescentes, de ambos os sexos, que tinham mães com maior escolaridade, pertencentes a famílias de estratos socioeconômicos mais altos e estudantes da rede privada de ensino. Evitar sair da comunidade ou bairro e evitar voltar para casa de madrugada foram mais frequentes entre os meninos e meninas cujas mães apresentam baixa escolaridade. Meninos dos estratos C, D e E evitaram mais sair de casa. Semelhante aos meninos, as meninas de escolas públicas evitaram mais ir à escola.

Tabela 3
Frequência de comportamentos para prevenção de vitimização à violência comunitária segundo indicadores socioeconômicos das famílias de adolescentes escolares da IX RA do município do Rio de Janeiro, RJ, 2017.

O perfil das estratégias individuais utilizadas para reduzir a exposição à violência comunitária segundo características demográficas dos adolescentes está na Tabela 4. Evitar voltar para casa de madrugada foi mais frequente entre meninos e meninas com idade entre 15 e 16 anos, meninas não brancas e meninos que moram com pai e mãe. Deixar de ir a festas foi mais frequente entre meninas com idade entre 15 e 16 anos. Evitar frequentar um grupo de amigos foi mais comum entre meninos que não residem com ambos os pais. Faltar à escola foi mais corriqueiro em meninos com idade maior do que 16 anos e entre meninas que não moram com pai e mãe. Os meninos não brancos evitam mais passar onde há pessoas armadas, e meninos com idade maior do que 16 anos evitam mais passar perto da polícia.

Tabela 4
Frequência de comportamentos para prevenção de vitimização à violência comunitária segundo indicadores demográficos das famílias de adolescentes escolares da IX RA do município do Rio de Janeiro, RJ, 2017.

Discussão

Os achados do presente estudo indicam que a maior parte dos adolescentes adota uma gama diversificada de atitudes e comportamentos protetores para reduzir sua exposição à VC que restringem a liberdade e ameaçam o pleno gozo de seus direitos fundamentais. A necessidade de se proteger da violência promove um conjunto de comportamentos e atitudes que reduzem a mobilidade urbana dos adolescentes, diminuem o contato social com seus pares e ameaçam, inclusive, o acesso à escola e a outros equipamentos sociais tão necessários ao desenvolvimento enquanto cidadão. O grande número de adolescentes, especialmente do sexo feminino, que pratica várias dessas estratégias concomitantemente também chama a atenção. Não menos importante é a constatação de que, apesar de presente em todos os grupos estudados, de forma geral os adolescentes filhos de mães de menor escolaridade, que pertencem aos estratos econômicos mais baixos e que frequentam a escola pública são os que mais adotam tais estratégias, reforçando o caráter social do problema. Também relevantes são os achados que indicam diferenças nas frequências e na natureza das estratégias utilizadas por meninos e meninas.

A VC faz parte do cotidiano de muitos adolescentes em todo o mundo, incluindo o Brasil. Alguns estudos mostram que tanto a exposição direta (quando a violência é dirigida ao próprio indivíduo) quanto a indireta (quando o indivíduo é não é o alvo direto da violência) a esse tipo de violência podem influenciar negativamente a saúde mental do indivíduo1919 Foell A, Pitzer KA, Nebbitt V, Lombe M, Yu M, Villodas ML, Newransky C. Exposure to community violence and depressive symptoms: eExamining community, family, and peer effects among public housing youth. Health Place 2021; 69:102579.,2020 Lopes CS, Moraes CL, Junger WL, Werneck GL, Ponce de Leon AC, Faerstein E. Direct and indirect exposure to violence and psychological distress among civil servants in Rio de Janeiro, Brazil: a prospective cohort study. BMC Psychiatry 2015; 15:109.. Diante desse cenário, adolescentes buscam diferentes formas de lidar e tentar evitar a exposição à violência, de modo a manter a integridade física, reduzir o estresse e garantir a saúde mental. O esforço de adotar estratégias individuais para manejar ou reduzir tal exposição pode reduzir suas consequências diretas. No entanto, como já apontado, tais ações podem trazer sérias limitações à vida desses adolescentes, em função da redução de um convívio livre e seguro com seus pares.

Durante a adolescência, a socialização exerce papel fundamental no desenvolvimento dos indivíduos. Dessa forma, a adoção de estratégias que cerceiem a liberdade e reduzam o convívio social pode ser extremamente nociva, e também interfere diretamente na maneira como o adolescente vivencia o espaço urbano e a vida em comunidade. Além de já estar tendo seu direito à segurança violado, muitas das estratégias adotadas para reduzir a exposição às violências (e.g., evitar sair da comunidade ou bairro, sair de casa à noite, voltar para casa de madrugada ou usar certas linhas de ônibus) ferem outros direitos fundamentais, como o direito de livre locomoção em território nacional, que é garantido pela Constituição Federal Brasileira em seu artigo 5º, inciso XV2121 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República; 1988..

Recentemente, a pandemia de COVID-19 nos mostrou uma série de consequências comportamentais, emocionais e na saúde mental em adolescentes, decorrentes do isolamento social, da falta de interação social e do confinamento em espaços pequenos2222 Figueiredo CS, Sandre PC, Portugal LCL, Oliveira TM, Chagas LS, Raony I, Ferreira ES, Araujo EG, Santos AA, Bomfim PO. COVID-19 pandemic impact on children and adolescents' mental health: Biological, environmental, and social factors. Prog Neuro-psychopharmacol Biol Psychiatry 2021; 106:110171.

23 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19: crianças na pandemia covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.

24 Mangueira LFB, Negreiros RAM, Diniz MdFFM, Sousa JK. Saúde mental das crianças e adolescentes em tempos de pandemia: uma revisão narrativa. Rev Eletr Acervo Saude 2020; 12(11):e4919.
-2525 Singh S, Roy D, Sinha K, Parveen S, Sharma G, Joshi G. Impact of COVID-19 and lockdown on mental health of children and adolescents: a narrative review with recommendations. Psychiatry Res 2020; 293:113429.. Em recente estudo de revisão sistemática e metanálise com o objetivo de estimar a prevalência de problemas de saúde mental em crianças e adolescentes durante a pandemia de COVID-19, Ma et al.2626 Ma L, Mazidi M, Li K, Li Y, Chen S, Kirwan R, Zhou H, Yan N, Rahman A, Wang W, Wang Y. Prevalence of mental health problems among children and adolescents during the COVID-19 pandemic: a systematic review and meta-analysis. J Affective Disorders 2021; 293:78-89. estimaram prevalência de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático de 29%, 26% e 48%, respectivamente. Outras duas revisões sistemáticas corroboram as altas prevalências encontradas no estudo de metanálise2727 Jones EAK, Mitra AK, Bhuiyan AR. Impact of COVID-19 on mental health in adolescents: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(5):2470.,2828 Nearchou F, Flinn C, Niland R, Subramaniam SS, Hennessy E. Exploring the Impact of COVID-19 on mental health outcomes in children and adolescents: a systematic review. Int J Environ Res Public Health 2020; 17(22):8479.. Todos esses autores, mesmo reconhecendo os múltiplos determinantes dos altos índices de sofrimento mental, atribuem grande importância ao isolamento social nesse processo. Ainda que o isolamento social devido às estratégias utilizadas para evitar a VC não seja da mesma natureza e não tenha as mesmas repercussões da restrição vivenciada na pandemia, é possível especular que ele também traga algum grau de prejuízo à saúde mental dos envolvidos. Tal hipótese é reforçada ao se perceber que grande parte da amostra utiliza habitualmente diferentes estratégias que restringem o ir e vir, confinando o adolescente em seu local de moradia.

Além dos problemas de saúde mental já destacados, a adoção das estratégias para evitar a exposição à VC também pode trazer consequências negativas de curto, médio e longo prazo em outras esferas da vida dos adolescentes. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989)2929 Organização das Nações Unidas (ONU). Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Nova York; 1989., em seu artigo 58, reconhece como direito da criança e do adolescente a participação na vida cultural e artística do lugar onde vive, destacando que é dever do Estado estimular a oferta de atividades culturais, artísticas, esportivas, recreativas e de lazer ao público infanto-juvenil. A importância de os adolescentes frequentarem locais de difusão cultural, como museus, galerias de arte, bibliotecas, cinemas, teatros e centros de ciência, e prática esportiva são basilares para o aprendizado e trocas culturais nessa faixa etária3030 Massarani L, Reznik G, Rocha JN, Rowe SF, Martins AD, Amorim LH. A experiência de adolescentes ao visitar um museu de ciência: um estudo no museu da vida. Ens Pesqui Educ em Cienc 2019; 21:e10524.,3131 Lopes ACB, Berclaz MS. A invisibilidade do esporte e da cultura como direitos da criança e do adolescente. Rev Direito Praxis 2019; 10(2):1430-1460.. A falta de vivência nessas atividades impacta de forma negativa o crescimento, o desenvolvimento e a formação do adolescente. Tanto as restrições impostas pela violência comunitária como por comportamentos que visam evitá-la, associadas à pequena oferta e ao limitado acesso a equipamentos sociais que ofereçam atividades culturais e de lazer, são ameaças a tais direitos.

O diferente perfil de coocorrência das várias ações entre meninos e meninas também merece debate. O percentual de meninas que adotaram estratégias de diferentes naturezas de forma concomitante foi cerca de 65% maior do que o observado entre os meninos (53% vs. 32%). A literatura tem evidenciado que a escalada das violências nos centros urbanos e o medo da vivência dessas situações fazem com que os pais restrinjam a circulação dos filhos3232 Carver A, Timperio A, Crawford D. Playing it safe: the influence of neighbourhood safety on children's physical activity. A review. Health Place 2008; 14(2):217-27.,3333 Letiecq BL, Koblinsky SA. Parenting in violent neighborhoods: African American fathers share strategies for keeping children safe. J Family Issues 2004; 25(6):715-734.. Entretanto, tais restrições não têm a mesma intensidade e frequência em crianças e adolescentes do sexo masculino e feminino. Refletir sobre o papel da família brasileira no estabelecimento de regras e recomendações distintas, a depender do sexo do adolescente, pode auxiliar a entender essas diferenças.

Como enfatizado por diversos autores, as representações sociais de gênero das famílias influenciam a forma de socialização de seus filhos3434 Nascimento CRR, Trindade ZA. Criando meninos e meninas: investigação com famílias de um bairro de classe popular. Arq Bras Psicol 2010; 62(2):187-200.. Tais representações se traduzem nas atitudes e estratégias parentais de educação, interação e controle3434 Nascimento CRR, Trindade ZA. Criando meninos e meninas: investigação com famílias de um bairro de classe popular. Arq Bras Psicol 2010; 62(2):187-200.,3535 Sampaio ITA. Práticas educativas parentais, gênero e ordem de nascimento dos filhos: atualização. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum 2007; 17(2):144-152.. Ainda que as diferenças venham diminuindo ao longo do tempo, desde o nascimento da criança os pais educam, criam expectativas e distribuem atividades distintas para meninos e meninas, reproduzindo os papéis de gênero construídos socialmente ao longo da história3434 Nascimento CRR, Trindade ZA. Criando meninos e meninas: investigação com famílias de um bairro de classe popular. Arq Bras Psicol 2010; 62(2):187-200.

35 Sampaio ITA. Práticas educativas parentais, gênero e ordem de nascimento dos filhos: atualização. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum 2007; 17(2):144-152.
-3636 Piccinini C, Gomes A, Moreira L, Sobreira Lopes R. Expectativas e sentimentos da gestante em relação ao seu bebê. Psicologia: Teor Pesq 2004; 20(3):223-232.. Segundo Trindade (2005)3737 Trindade ZA. Masculinidades, Práticas Educativas e Risco Social. Simpósio Nacional de Psicologia Social e do Desenvolvimento e X Encontro Nacional PROCAD-Psicologia/CAPES: Violência e Desenvolvimento Humano. Textos Completos 2005:123-127., ainda é possível perceber que meninos são educados para dominar o espaço público, enquanto as meninas o são para se responsabilizar mais pelo espaço privado (o lar) e por todas as tarefas a ele relacionadas: afazeres domésticos e cuidados de crianças e idosos, em detrimento do incentivo à escolarização e à profissionalização. Em sociedades machistas e patriarcais como a brasileira, essas diferenças são bem perceptíveis. Diante da rigidez nos papéis de gênero, que culmina em estratégias de educação parental distintas de acordo com o sexo da criança, não é de surpreender que as meninas tenham adotado um maior número de estratégias e limitações do que seus pares masculinos. Para minimizar essas diferenças de gênero, Beauvoir3838 Beauvoir S. Infância. In: Beauvoir S. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2016. p. 11-74. menciona que a família e a sociedade devem encorajar as meninas a se manifestarem, a terem a mesma curiosidade, iniciativa e ousadia que os meninos, a exercerem mais sua liberdade, de modo a compreender, apreender e descobrir o mundo que as cercam - ou seja, as meninas precisam ser criadas e educadas de forma semelhante aos meninos.

Por fim, vale a pena enfatizar as desigualdades sociais e demográficas identificadas ao se analisar as prevalências de utilização de cada uma das estratégias pelos diferentes estratos populacionais. Adolescentes oriundos de famílias socialmente mais vulneráveis adotaram mais estratégias para reduzir sua exposição à VC. Quando se leva em consideração as características demográficas dos indivíduos, também se observa que os mais vulneráveis são os que mais sofrem restrições. Certamente a maior utilização de estratégias por esse grupo se relaciona de forma direta à ausência do Estado e à falta de segurança pública nos locais de circulação desses adolescentes. Os resultados aqui encontrados são coerentes com as altas taxas de violência letal, roubos e agressões, entre outras violências a que são expostos, seja como autor ou como vítima, adolescentes e jovens negros, com baixa escolaridade e moradores de periferias urbanas3939 Wanzinack C, Signorelli MC, Reis C. Homicides and socio-environmental determinants of health in Brazil: a systematic literature review. Cad Saude Publica 2018; 34(12):e00012818..

Os resultados do presente estudo devem ser interpretados à luz de suas limitações e de seus pontos fortes. Uma possível limitação é o fato de incluir apenas adolescentes matriculados e que frequentavam a escola durante o período de coleta de dados. A restrição da amostra aos que estavam na escola pode ter subestimado a frequência de adoção das estratégias, uma vez que a falta à aula pode ter sido uma ação voltada à redução da exposição às situações de VC. A generalização dos achados para a população de adolescentes do município do Rio de Janeiro também deve ser feita com cautela. Apesar de contemplar adolescentes matriculados em escolas públicas e privadas de uma área heterogênea da cidade, nossa amostra não foi capaz de reproduzir o perfil socioeconômico do município do Rio de Janeiro. Quando comparada a essa população, nossa amostra contemplou maior número de adolescentes de classe média, em detrimento da população das classes econômicas desfavorecidas. É possível que, se o estudo contemplasse áreas da cidade mais empobrecidas e com maiores taxas de violência, o uso de estratégias para reduzir a exposição à VC tivesse sido ainda mais frequente. Por fim, outra possível limitação diz respeito ao número de dados faltantes de algumas variáveis incluídas no estudo. Entretanto, é importante mencionar que o percentual de dados faltantes variou entre 0,4% e 8,0%, valores considerados baixos. Desse modo, acreditamos que a ausência de tais informações não impacta os resultados encontrados.

Entre os aspectos positivos, destaca-se a originalidade do tema, pois há poucos estudos com enfoque nas estratégias individuais para evitar a violência comunitária, principalmente em países de média e baixa renda, locais onde a violência comunitária é mais prevalente. Estudos como este complementam evidências anteriores que já destacavam a população de adolescentes e jovens como os principais grupos de risco à violência comunitária no Brasil e no restante do mundo, trazendo luz às estratégias individuais utilizadas para a proteção dessa população. Ao se concentrar nas estratégias que vêm sendo utilizadas por esse público e suas famílias, ressaltando os possíveis efeitos negativos delas para o pleno desenvolvimento de adolescentes, pretende-se sensibilizar os governantes e a sociedade como um todo para a necessidade imediata de enfrentamento de toda e qualquer forma de violência por parte do Estado e da sociedade como um todo.

Por fim, vale ressaltar que é preciso olhar para além do indivíduo quando se busca alternativas para a proteção dos adolescentes diante da violência crescente que aflige as grandes cidades brasileiras, entre as quais o Rio de Janeiro. As ações individuais de restrição à circulação dos adolescentes tão frequentes no dia a dia dos participantes da pesquisa são respostas insuficientes para resolver o problema, pois não têm como alvo prevenir a violência. Além disto, como debatido ao longo do artigo, quando se fazem muito presentes na vida dos adolescentes, podem trazer sérias repercussões para a saúde mental e restringem o desenvolvimento social dos indivíduos, além de ameaçar direitos básicos de qualquer cidadão. Portanto, é fundamental incluir outros atores nesse processo. Sem dúvida o papel do Estado, com sua política de segurança pública, visando a qualificação da estrutura, a formação e as ações das polícias, é fundamental. Porém, é necessário ir além, agregando outros setores. Por sua complexidade, a violência comunitária precisa ser enfrentada com políticas públicas que envolvam a redução das desigualdades sociais, por meio de ações equitativas nas áreas da saúde, geração de renda, educação, transporte, moradia e emprego, entre outras. As famílias, a comunidade e a escola também se fazem necessárias4040 Aisenberg E, Herrenkohl T. Community violence in context: risk and resilience in children and families. J Interpers Violence 2008; 23(3):296-315.

41 Esposito C, Bacchini D, Eisenberg N, Affuso G. Effortful control, exposure to community violence, and aggressive behavior: exploring cross-lagged relations in adolescence. Aggress Behav 2017; 43(6):588-600.
-4242 Jackson V, Chou S, Browne K. Protective factors against child victimization in the school and community: an exploratory systematic review of longitudinal predictors and interacting variables. Trauma Violence Abuse 2017; 18(3):303-321..

A promoção de uma cultura de paz tem sido recomendada pela UNESCO como estratégia de prevenção da violência e promoção de resiliência entre os adolescentes no ambiente escolar4343 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Cotidiano nas escolas: entre violências. Brasília: MEC; 2006.,4444 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Cultura de paz: da reflexão à ação; balanço da Década Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. Brasília: Associação Palas Athena; 2010.. À luz da identificação de alternativas para a prevenção da violência, é possível elaborar atividades para o desenvolvimento dos adolescentes baseadas no desenvolvimento de autonomia, consciência crítica e visão compreensiva, que potencializem sua resiliência para superação de dificuldades e os fortaleçam para lutarem por seus direitos4545 Pesce RP, Assis SG, Avanci JQ. Proteção e atenção às crianças e adolescentes em meio à violência comunitária. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP/CLAVES/CNPq; 2013..

Conclusão

Os achados da pesquisa indicam que a maioria dos adolescentes estudados, de ambos os sexos, utiliza diversas estratégias individuais para evitar a vitimização por VC. Ressalta-se que a adoção dessas estratégias foi maior entre os adolescentes cujos indicadores socioeconômicos eram mais baixos, evidenciando a desigualdade nesse cerceamento e o quanto esses adolescentes podem ter sua socialização prejudicada por suas respostas individuais ao medo de vivenciar episódios de violência. O estudo de estratégias para evitar a VC em todas as suas formas pode auxiliar na avaliação da execução e efetividade das políticas públicas de combate a esse tipo de violência. Dessa forma, estudos futuros visando a compreensão dos possíveis impactos que a falta de interação social decorrente da adoção de estratégias para evitar a exposição à violência podem apresentar na saúde e na qualidade de vida dos adolescentes se fazem necessários. No entanto, há que se reforçar que, diante da complexidade das violências em todas as suas faces e de suas amplas repercussões na sociedade, para que consigamos reduzir o problema, será necessário considerá-lo um problema de todos os setores do Estado, e não apenas como uma questão no âmbito dos indivíduos.

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  • Financiamento

    A pesquisa foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ (número da subvenção: E-26/010.002590/2014). ME Reichenheim foi parcialmente apoiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil (CNPq), projeto número 301381/2017-8. CL Moraes foi parcialmente apoiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil, número de projeto 302663/2015-0, e FAPERJ, número do projeto E-26/202.842/2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2022
  • Aceito
    03 Abr 2023
  • Publicado
    05 Abr 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br