Maternidade e maternagem em situação de rua: revisão integrativa

Keila Cristina Costa dos Santos Larissa Santos da Silva Marques Matheus Teixeira Gonçalves Mariana de Melo e Sousa Soledade João Gabriel da Silva Santos Jeane Freitas de Oliveira Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se identificar através da revisão integrativa a abordagem sobre a maternidade e maternagem em situação de rua. Trata-se de uma revisão integrativa realizada nas bases de dados PubMed, BIREME, Medline, e portal de buscas SciELO, em português, inglês e espanhol. A pesquisa foi realizada entre os meses de outubro a dezembro de 2021, seguindo às recomendações do fluxograma Prisma e suporte do software Mendeley, submetidos à análise de conteúdo de Minayo. Foram selecionados 18 artigos. A partir da leitura foi possível identificar duas categorias temáticas: “Maternidade e maternagem nas ruas” e “Principais desafios vivenciados na maternidade e maternagem em situação de rua”. Abordar sobre a maternidade e maternagem enquanto um campo de produção de saberes cria-se um tensionamento das construções sociais que não possuem efetivação de direitos por falta de programas e políticas intersetoriais contundentes. Além da estigmatização por uso de substâncias psicoativas como também a estrutura patriarcal atribuída à maternidade. A responsabilidade pelo cuidado acarreta diversas questões que atravessam a maternidade e maternagem nas ruas, são elas: preocupação com a saúde dos filhos, a criação da prole, bem como, o temor pela perda da custódia de seus entes.

Palavras-chave:
Maternidades; Pessoas em situação de rua; Mulher

Introdução

A existência da construção histórica do conceito de maternidade como desejo natural das mulheres, tem como pressuposto o querer ser mãe como um determinismo inato e inerente a todas, o qual foi socialmente construído ao longo dos séculos11 Giordani RCF, Picolli D, Bezerra I, Almeida CCB. Maternidade e amamentação: identidade, corpo e gênero. Cien Saude Colet 2018; 23(8):2731-2739.. Porém, há diversas formas de vivenciar e experienciar os papéis desempenhados na maternidade e maternagem, principalmente ao analisar a influência das partes que constituem o dinamismo relacional entre os indivíduos e as dimensões individuais, socioculturais e demográficas que moldam a forma de pensar, ser e agir no mundo22 Benatti AP, Pereira CRR, Santos DCM, Paiva IL. A maternidade em contextos de vulnerabilidade social: papéis e significados atribuídos por pais e mães. Interacao Psicol 2020; 24(2):130-141..

Considerando a forte influência do contexto social sobre a subjetivação de significados em relação à maternidade e maternagem, cabe destacar que as normas sociais impostas são capazes de atuar psicologicamente para que os ideais maternos sejam incorporados pelas mulheres, de forma que, muitas vezes, serão as causadoras de sentimentos que vão da culpa ao medo22 Benatti AP, Pereira CRR, Santos DCM, Paiva IL. A maternidade em contextos de vulnerabilidade social: papéis e significados atribuídos por pais e mães. Interacao Psicol 2020; 24(2):130-141.. Entretanto, as individualidades influenciam no processo do sentir e agir, possibilitando que as mulheres divirjam da norma. Dessa forma, medo, culpa, felicidade ou realização são sentimentos que podem ou não ser apresentados durante a maternidade e o processo de maternagem33 Souza MRS, Almeida DE, Gomes RS, Hack NS. Maternidade das mulheres em situação de rua: expressão de violação do direito à convivência familiar e comunitária. Cad Hum Perspect 2021; 5(12):46-59..

A contemporaneidade promove o surgimento de novas questões no que diz respeito ao contexto familiar e às concepções de maternidade e maternagem. Nesse sentido, aponta elementos instituintes e disparadores de novos processos a subjetivação, à medida que possibilita a dissonância constituída pela norma capitalista, racista e misógina reproduzida pelo sistema socioeconômico e cultural. Portanto, não se pode refletir sobre a gestação e o parto como um mero processo ou marco de preparação para exercer a maternidade e maternagem, mas como o período em que se estabelece o exercício cada vez mais ativo do papel materno, marcado por fatores subjetivos, cujo ápice se dará após o nascimento da criança44 Almeida ML, Almeida LP. A constituição da maternidade e a relação mãe-bebê no contexto da Morbidade Materna Near Miss: revisão narrativa. Rev Saude Desenv Hum 2021; 9(1):1-7..

Conviver com pessoas que ocupam a camada mais extrema da exclusão e da invisibilidade social, como as mulheres em situação de rua, possibilita um novo aprendizado sobre esse universo, desconstruindo preconceitos e estigmas que reforçam negativamente o exercício da maternidade e maternagem55 Santos FAM, Oliveira AFC, Porto DFS, Monteiro GC, Buss PZ, Cavalheiro CS, Ribeiro SL, Santos JVL, Capatto JMP. Gestante em situação de rua: os direitos da maternidade em face da vulnerabilidade social. RECIMA21 2023; 4(4):e443100.. Portanto, há de se considerar que as perspectivas com relação à maternidade e maternagem não são estáticas e sim mutáveis, e irão se modificar de acordo com épocas, relações sociais e outros fatores que poderão influenciar direta ou indiretamente na forma como as pessoas vão construir sua representação do papel materno ou seja, sua concepção acerca do mesmo33 Souza MRS, Almeida DE, Gomes RS, Hack NS. Maternidade das mulheres em situação de rua: expressão de violação do direito à convivência familiar e comunitária. Cad Hum Perspect 2021; 5(12):46-59..

A narrativa histórica aponta a mulher em situação de rua sendo estigmatizada e associada a prostituição e ao perigo. Ao explorar a maternidade e maternagem como campos de estudo, tenciona-se e questiona-se a relação entre liberdade individual e intervenção estatal. No contexto brasileiro, as discussões sobre mulheres e crianças nessas condições começaram em 2012, focando no uso abusivo de drogas em diversos âmbitos33 Souza MRS, Almeida DE, Gomes RS, Hack NS. Maternidade das mulheres em situação de rua: expressão de violação do direito à convivência familiar e comunitária. Cad Hum Perspect 2021; 5(12):46-59.,66 Santos GC, Baptista TWF, Constantino P. "De quem é esse bebê?": desafios para o direito à maternidade de mulheres em situação de rua. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00269320.. A construção desse discurso não é isenta de interesses e contém imprecisões, pois nem todas as pessoas que estão nas ruas usam substâncias psicoativas66 Santos GC, Baptista TWF, Constantino P. "De quem é esse bebê?": desafios para o direito à maternidade de mulheres em situação de rua. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00269320..

A narrativa com enfoque no consumo de drogas psicoativas apaga os atravessamentos e marcadores de vulnerabilidade social vivenciados por essas mulheres66 Santos GC, Baptista TWF, Constantino P. "De quem é esse bebê?": desafios para o direito à maternidade de mulheres em situação de rua. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00269320., criminalizando-as e considerando-as indignas de exercerem a maternidade e maternagem nas ruas. A situação dessas mulheres e seus filhos denuncia a aporofobia (pavor as pessoas pobres) ancoradas na historicidade e das desiguais relações de gênero, classe e raça, incidindo em corpos específicos: mulheres pretas e pobres, com vidas marcadas por violências estruturais e institucionais77 Santos GC, Constantino P, Schenker M, Rodrigues LB. O consumo de crack por mulheres: uma análise sobre os sentidos construídos por profissionais de consultórios na rua da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2020; 25(10):3795-3808.. Mulheres essas, desamparadas e desprotegidas socialmente, desafiam as normas instituídas da maternidade e maternagem.

A situação de rua é uma crise global de direitos humanos que requer uma resposta urgente visto que se trata de um fenômeno diverso, envolvendo principalmente os contextos socioeconômicos - as economias desenvolvidas, emergentes e em desenvolvimento, que afeta diversos grupos de pessoas de distintas formas, sendo que tem maior o impacto nas mulheres em situação de vulnerabilidade88 Arbia AA, Pereira VS, Granja B, organizadores. Atendimento à população em situação de rua: reflexões e práticas no Brasil e na Europa. Minas Gerais: UFJF; 2023.. Em 2018, nos Estados Unidos, segundo o Relatório Anual de Avaliação dos Sem-Abrigo (AHAR), os principais indicadores voltados para as mulheres, a qual representa 28% da população em situação de rua, seriam a morbidade e mortalidade materna grave, parto prematuro e bebês pequenos para a idade gestacional99 Henry M, Mahathey A, Morrill T, Robinson A, Shivji A, Watt R, et al. O Relatório Anual de Avaliação dos Sem-Abrigo (AHAR) de 2018 para o Congresso: Parte 1: Estimativas pontuais dos sem-abrigo. Washington D.C.: Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano, Escritório de Planejamento e Desenvolvimento Comunitário; 2018.. Assim, à medida que cresce a ênfase na abordagem dos determinantes sociais da saúde, torna-se mais importante para os profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas compreender a influência das comorbidades, complicações e assistência à saúde para as mulheres grávidas em situação de rua nos resultados da saúde1010 Clark RE, Weinreb L, Flahive JM, Seifert RW. A falta de moradia contribui para complicações na gravidez. Health Affairs 2019; 38(1):139-146..

Dessa forma, o interesse em desenvolver tal pesquisa consiste em ampliar o conhecimento devido a relevância da temática de face às normas sociais, fomentar novas discussões e estudos científicos com teor crítico visando os princípios do SUS: integralidade, equidade e universalidade do cuidado. Além disso, trata-se em questão de um assunto novo e pouco evidenciado cientificamente apresentando significativa pertinência para reforçar medidas que contemplem as necessidades destas mulheres. Diante disso, o presente trabalho parte do seguinte questionamento: como a maternidade e maternagem em situação de rua é abordada na produção científica nacional e internacional? Para responder tal questionamento, o presente estudo tem como objetivo conhecer como a maternidade e maternagem em situação de rua é abordada na produção científica através da revisão integrativa.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica descritiva do tipo revisão integrativa da literatura, de natureza qualitativa, vinculada ao Projeto aprovado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do projeto de pesquisa intitulado “Aspectos teórico-conceituais sobre maternidade/maternagem, paternidade/paternagem e vulnerabilidades”. A pesquisa descritiva tem como objetivo interpretar e descrever a realidade sem nela interferir ou modificá-la, de tal modo que as principais formas de levantamento de dados neste tipo de pesquisa são o banco de dados, a pesquisa qualitativa, bibliográfica e outras abordagens1111 Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2008.. É do tipo revisão integrativa por fornecer informações mais amplas sobre um problema, constituindo, assim, um corpo de conhecimento. Para a construção da revisão integrativa, consideraram-se as seis etapas como protocolos pré-definidos, sendo elas: identificação do tema e formulação da questão da pesquisa; estabelecimentos dos critérios de inclusão e exclusão; identificação dos estudos primários e selecionados; categorização e uso da matriz de síntese; análise sistemática, interpretação dos resultados; e apresentação da revisão/síntese do conhecimento1212 Dantas HLL, Costa CRB, Costa LMC, Lúcio IML, Comassetto I. Como elaborar uma revisão integrativa: sistematização do método científico. Rev Cien Enferm 2021; 12(37):334-345.. Essa metodologia foi usada pois permite uma análise aprofundada do tema, como também possibilita reunir ampla variedade de produções para formar um panorama geral acerca do assunto estudado. É possível ainda, através da revisão integrativa, identificar padrões e lacunas na literatura existente, consolidar informações e contribuir para novas pesquisas.

A produção dos dados aconteceu no período entre os meses de outubro a dezembro de 2021. A busca inicial das publicações on-line se deu nas seguintes bases de dados: Medical Literature Analysis and Retrievel System Online (MEDLINE), Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), PubMed (recurso gratuito desenvolvido e mantido pela National Library of Medicine (NLM) dos Estados Unidos) e o portal de buscas Scientific Electronic Library (SciELO). Realizou-se cruzamentos dos descritores, em português e espanhol, padronizados nos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e seus respectivos em inglês Medical Subject Heading (MeSH), com utilização dos operadores booleanos AND, AND NOT e OR. As bases de dados foram caminhos na procura de produções científicas através dos seguintes descritores: maternidades e pessoas em situação de rua. Vale registrar que o termo a maternagem não é descritor.

As etapas prosseguiram estabelecendo as composições dos descritores e a palavra-chave que seriam pesquisados, assim definidos: maternidades AND pessoas em situação de rua; maternidades OR pessoas em situação de rua; e maternidades AND NOT pessoas em situação de rua. Já com o termo espanhol foram: maternidades AND personas sin hogar; maternidades OR personas sin hogar; e maternidades AND NOT personas sin hogar. Por fim, a combinação na língua inglesa: maternity AND homeless persons; maternity OR homeless persons; e maternity AND NOT homeless persons. No levantamento, foram identificados 350.790 estudos, apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Estratégia de buscas por fontes de pesquisas.

Foram adotados os critérios de inclusão: publicações em língua portuguesa, inglesa ou espanhol, publicadas nos últimos dez anos (2011-2021) e artigos originais ou de revisão sistemática. Foram excluídos: artigos duplicados, publicações que não contemplavam o objetivo de estudo, além de outros tipos de estudo: revisão (narrativas, integrativas), editorial, reflexão e publicações que não apresentavam textos completos.

A seleção dos artigos se deu pela leitura dos títulos e resumos, mediante aplicação de critérios de inclusão. Os artigos foram sistematizados com auxílio do software Mendeley, um gerenciador de referências, que permite compartilhar e separar os artigos em pastas, contendo os “válidos” (atendiam aos objetivos da pesquisa), “duplicados” (se encontravam em mais de uma base de dados) e “excluídos” (não se enquadram nos critérios de inclusão estabelecido pela pesquisa).

No universo de 350.790 publicações científicas encontradas, após aplicação dos filtros (publicações em língua portuguesa, inglesa ou espanhol, publicadas nos últimos dez anos e artigos originais ou de revisão sistemática), ficaram 70.695, destes, após exclusão de duplicatas, ficaram 50.695. Após a leitura dos títulos e resumos, 35 estudos foram selecionados por estarem de acordo com os critérios pré-estabelecidos. Em seguida, foram eliminadas 17 publicações, a saber: por não terem textos completos (12), por serem carta ao leitor (01) ou que não respondiam a questão norteadora (04), pois tratavam de patologias associadas às mulheres em situação de rua, bem como questões da saúde mental dessas mulheres. Portanto, deste processo de seleção e elegibilidade, somente 18 publicações foram consideradas viáveis e incluídas no trabalho, as quais irão ser utilizadas para o aprimoramento, consolidação e construção desta pesquisa. Enfatizamos ser um quantitativo pequeno, considerando a singularidade e relevância da temática a ser estudada, mesmo utilizando o descritor da maternidade. A seleção seguiu o fluxograma adaptado do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA), demonstrado na ilustração da Figura 1.

Figura 1
Fluxograma do processo de seleção dos estudos por meio do método PRISMA.

Para caracterização dos estudos selecionados, elaborou-se um quadro síntese (Quadro 2) como instrumento de coleta de dados adaptado, contendo as seguintes informações: título do trabalho, periódico, tipo de estudo, autor(es), ano de produção, país e principais resultados.

Quadro 2
Caracterização dos artigos selecionados para o estudo.

Após a seleção dos artigos, os dados foram analisados de acordo com a análise de conteúdo proposta por Minayo1313 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 34ª ed. Rio de janeiro: Editora Vozes; 2011., que visa a compreensão de fenômenos sociais e do comportamento humano a partir de sua investigação. Para isso, as autoras propõem a organização em 3 etapas, são elas: pré-análise, exploração do material, e tratamento dos dados e interpretação. Após esse processo, os resultados extraídos apontaram o surgimento de duas categorias temáticas: “Maternidade e maternagem nas ruas” demonstrando a vivência dessas mulheres com a concepção de estarem grávidas e “Desafios da maternidade e maternagem em situação de rua”, com o enfoque nas vivências que essas mulheres perpassam diante da maternidade e maternagem nas ruas. Os achados foram discutidos com base na literatura nacional e internacional acerca do tema.

Por se tratar de uma pesquisa bibliográfica na qual as informações são disponibilizadas livre para o público, o estudo não foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Entretanto, é válido salientar que todas as condições éticas foram respeitadas tendo em vista a legitimidade das informações para o tratamento dos dados, análise e discussão.

Discussão

Maternidade e maternagem nas ruas

A maternidade encontra-se articulada na história, sendo afetada mutuamente e variando conforme os diversos contextos em que está inserida. Nesse sentido, muda de acordo com os contextos espaciais que os cercam e os configuram como um fenômeno multiforme, amplo e complexo, capaz de ser abordado de distintas perspectivas. Já sobre os corpos de mulheres, há a imposição de regras e padrões de normalidade, tendo a ciência um importante papel na construção de práticas e saberes que incidem sobre estes corpos. A mulher vista como sinônimo de mãe reflete esse ideal construído e quando é contrariado fora desse padrão, há tensionamentos3030 Moreira TAS, Cavalcante CPS, Ferreira DS, Paiva IL. Sobre "ser mulher e mãe" em situação de rua: invisibilidade na sociedade brasileira. Rev Pauta 2021; 19(47):121-137.. A partir disso, permite o distanciamento da subjugação social atormentada por preconceitos, construída a partir de uma postura vertical, unilateral e desinformada, que classifica as mães como “boas” ou “más”2121 Castilla MV. Maternidad, cuidados y castigos en barrios marginales y vulnerables de Buenos Aires. Runa 2017; 38(2):37-51.. Assim são apresentados como se fizessem parte da natureza das mulheres que se tornam mães, os atributos e valores e como também são produzidos, ampliados e atualizados pelos discursos científicos-normativos e reforçados pelo senso comum. Por isso, eles também norteiam muitos dos processos educativos que moldam mulheres e homens e/ou mães e pais de determinados tipos, e sua força reside nas múltiplas, sutis e sempre renovadas possibilidades de repetição1515 Castilla V, Lorenzo G. Emociones en suspenso: maternidad y consumo de pasta base/paco en barrios marginales de Buenos Aires. Cuad Antropol Soc 2012; 36:69-89..

Ao partir para o contexto das ruas, há evidências de que as mulheres que vivem nestas condições têm maior probabilidade de engravidar do que mulheres abrigadas que vivem na pobreza1818 Welch-Lazoritz ML, Whitbeck LB, Armenta BE. Characteristics of Mothers Caring for Children During Episodes of Homelessness. Community Mental Health J 2015; 51(8):913-920.. Falar de bem-estar ou do processo de maternidade para estas mães que vivem em condições de pobreza, exclusão, precariedade e vulnerabilidade é algo que, por vezes, parece tão distante quanto reconstruir vínculos maternos associados aos estereótipos hegemônicos que reproduzem políticas sociais e discursos institucionais presentes nos diversos setores da sociedade1515 Castilla V, Lorenzo G. Emociones en suspenso: maternidad y consumo de pasta base/paco en barrios marginales de Buenos Aires. Cuad Antropol Soc 2012; 36:69-89..

Entretanto, apesar dessas mulheres apresentarem vínculos familiares próximos ou distantes, elas ocupam seus lugares de mãe e exercem, como podem, a maternidade ainda que ora desistam, ora lutem por seus espaços em sociedade enfraquecidos, mas não deixam de exercer, da maneira como podem, a maternidade, e jamais cogitam a hipótese de abrirem mão desse lugar2020 Almeida DJR, Quadros LCT. A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Pesqui Prat Psicossoc 2016; 11(1):225-237.. Às concepções sociais de família e maternidade implicam modos específicos pelos quais social, política e economicamente concebemos os corpos das mulheres, suas emoções, desejos, e conflitos como também permitem discriminar entre aquelas que se conformam com essas normativas e as que não o fazem, entre as que consideram que podem cuidar e as que não podem1515 Castilla V, Lorenzo G. Emociones en suspenso: maternidad y consumo de pasta base/paco en barrios marginales de Buenos Aires. Cuad Antropol Soc 2012; 36:69-89..

No entanto, aceitar a gravidez para as essas mulheres que estão nas ruas, não significa necessariamente a criação de um vínculo afetivo com filho ou desejo de ficar com a criança e criá-la sendo evidenciado também na grande maioria dos manuscritos a insatisfação ao saber que estão grávidas. Algumas gestantes em situação de rua relatam se sentir revoltadas durante o processo de gestação, contudo há aceitação e como também o sentimento de felicidade1919 Costa SL, Vida SPC, Gama IA, Locatelli NT, Karam BJ, Ping CT, Massari MG, Paula TB, Bernardes AFM. Gestantes em situação de rua no município de Santos, SP: reflexões e desafios para as políticas públicas. Saude Soc 2015; 24(3):1089-1102.. Esses diferentes tipos de vínculos e sensações podem ser entendidos de acordo com as relações que a mulher vivenciou, a relação que possui com sua família e com filhos anteriores, e a perspectiva que tem de vida e de futuro.

Ao falar sobre vida e morte, muitas mulheres nas ruas revelam já terem pensado em se matarem, mas que pela presença de seus filhos e da responsabilidade que têm por eles, esses pensamentos foram cessados. Essa noção de sua maternidade não difere de muitas outras mães. Assim, contrariando o preconizado em teorias que tenderiam a retratá-las como incapazes, muitas mulheres estabeleceram vínculos preciosos e legítimos com seus filhos, investidas como guardiãs de sua prole, com uma maternidade que não difere de muitas outras mães55 Santos FAM, Oliveira AFC, Porto DFS, Monteiro GC, Buss PZ, Cavalheiro CS, Ribeiro SL, Santos JVL, Capatto JMP. Gestante em situação de rua: os direitos da maternidade em face da vulnerabilidade social. RECIMA21 2023; 4(4):e443100.. Além disso, percebe-se que cuidar do filho que vai nascer ou já nasceu é um fator motivador para essas mulheres seguirem em frente, sendo o trabalho visto por elas como a principal maneira de oferecer os cuidados maternos necessários2020 Almeida DJR, Quadros LCT. A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Pesqui Prat Psicossoc 2016; 11(1):225-237.,3030 Moreira TAS, Cavalcante CPS, Ferreira DS, Paiva IL. Sobre "ser mulher e mãe" em situação de rua: invisibilidade na sociedade brasileira. Rev Pauta 2021; 19(47):121-137..

Apesar disso, na maioria das vezes, há impossibilidade real de não conseguir prover o sustento da prole, devido às dificuldades para conseguir um trabalho ou renda, se identificar antecedentes criminais ou legais, falta de educação ou histórico de emprego assim como a recessão econômica do país1616 Dashora P, Slesnick N, Erdem G. "Understand My Side, My Situation, and My Story:" Insights into the Service Needs Among Substance-Abusing Homeless Mothers. J Community Psychol 2012; 40(8):938-950.,2020 Almeida DJR, Quadros LCT. A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Pesqui Prat Psicossoc 2016; 11(1):225-237.. Diante dessas barreiras individuais e discriminatórias para o emprego, coloca as mulheres em situação de rua, em um lugar de desespero, o que provoca a recorrência do uso de substâncias psicoativas (SPA’s) como forma de alívio2020 Almeida DJR, Quadros LCT. A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Pesqui Prat Psicossoc 2016; 11(1):225-237..

Este uso, demarca essas mulheres como inaptas para o exercício da maternidade e maternagem, sendo idealizadas como relapsas ou irresponsáveis. Além disso, algumas das mães não sabem ao certo o potencial patogênico do uso de drogas, álcool e cigarro durante a gestação. Sendo que muitas já têm mais de um filho e que nasceram saudáveis, e é essa invisibilidade de alguns problemas causados pelo uso de drogas durante a gestação que pode produzir esse efeito, uma vez que oferece a falsa impressão de que não há nenhum problema com a criança2020 Almeida DJR, Quadros LCT. A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro. Pesqui Prat Psicossoc 2016; 11(1):225-237..

Mundialmente, cresce a tendência de considerar o uso de drogas na gravidez como negligência infantil, destacando os direitos do feto sobre os das mulheres. Essa abordagem prioriza a proteção fetal, centrando-se na separação do binômio mãe-bebê, relegando o suporte às mulheres a um plano secundário e exigindo a custódia legal para assegurar esses direitos33 Souza MRS, Almeida DE, Gomes RS, Hack NS. Maternidade das mulheres em situação de rua: expressão de violação do direito à convivência familiar e comunitária. Cad Hum Perspect 2021; 5(12):46-59.,66 Santos GC, Baptista TWF, Constantino P. "De quem é esse bebê?": desafios para o direito à maternidade de mulheres em situação de rua. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00269320.. Contudo, uma pesquisa transversal realizada em Salvador, demonstra que para as gestantes o consumo de drogas por familiares e/ou companheiro gera enfraquecimento dos vínculos familiares e a vivência de situações de violências no contexto familiar e conjugal2222 Araujo AS, Santos AAP, Lúcio IML. O contexto da gestante na situação de rua e vulnerabilidade: seu olhar sobre o pré-natal. Rev Enferm UFPE 2017; 11(Supl. 10):4103-4110.. Sendo assim, essa realidade também as coloca numa situação de risco e de maior vulnerabilidade ao exercer e vivenciar sua maternidade com insegurança.

Assim a mulher em situação de rua expressa as contradições sociais de gênero, pois é socialmente esperado que essas mulheres em nome da “prole” interrompam o uso de drogas e se tornem domiciliadas, assumindo a provisão do bem-estar social com seus filhos sem que as condições estruturais, como políticas habitacionais, as favoreçam1515 Castilla V, Lorenzo G. Emociones en suspenso: maternidad y consumo de pasta base/paco en barrios marginales de Buenos Aires. Cuad Antropol Soc 2012; 36:69-89.,3030 Moreira TAS, Cavalcante CPS, Ferreira DS, Paiva IL. Sobre "ser mulher e mãe" em situação de rua: invisibilidade na sociedade brasileira. Rev Pauta 2021; 19(47):121-137.. Sendo que há uma questão de gênero envolvida, visto que essa culpabilização relacionada às drogas e responsabilidade não sobressai da mesma forma com os pais que estão nas ruas. Além disso, em relação aos sentimentos e emoções maternas, podemos dizer que em situações habituais do uso de drogas66 Santos GC, Baptista TWF, Constantino P. "De quem é esse bebê?": desafios para o direito à maternidade de mulheres em situação de rua. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00269320., surgem expressões que misturam o amor à maternidade e cuidados com os filhos, distanciando-se inclusive das regulamentações que impõem o modelo de maternidade responsável1515 Castilla V, Lorenzo G. Emociones en suspenso: maternidad y consumo de pasta base/paco en barrios marginales de Buenos Aires. Cuad Antropol Soc 2012; 36:69-89..

Assim vemos que as mulheres em situação de rua não têm possibilidade de defesa, de julgamento, tampouco de direito ao processo. São invisibilizadas e excluídas desse exercício por serem indignas à maternidade e maternagem dentro dos padrões sociais instituídos moralmente2626 Lansky S. De quem é este bebê? Construção, desconstrução e resistência pelo direito de mães e bebês em Belo Horizonte. Rev Saude Redes 2018; 4(Supl. 1):191-208..

Desafios da maternidade e maternagem em situação de rua

As práticas proibicionistas - como a internação, laqueadura e a separação compulsória entre as mulheres e seus bebês -, inicialmente restritas a algumas capitais brasileiras, se tornaram objeto de denúncias de movimentos sociais ligados aos Direitos Humanos, como os movimentos feministas e as universidades33 Souza MRS, Almeida DE, Gomes RS, Hack NS. Maternidade das mulheres em situação de rua: expressão de violação do direito à convivência familiar e comunitária. Cad Hum Perspect 2021; 5(12):46-59.. Essas organizações denunciam que mulheres em situação de rua e/ou com histórico de uso de drogas tinham seus filhos sequestrados ainda nas maternidades e encaminhados para a adoção, pela Justiça, à revelia das mães, mesmo quando estas manifestaram o desejo pela criança e buscavam meios para garantir a sua criação.

Entretanto, em estudos realizados em Belo Horizonte, foi possível observar avanços da Defensoria Especializada ao começar a combater o acolhimento compulsório de bebês diretamente na maternidade. Nessa atuação, percebeu-se que houve um chamamento das funções dos atores da rede de proteção da criança e do adolescente, de forma que se tornou mais robusta a integração entre eles, implicando no desenvolvimento e fortalecimento das políticas públicas, como A Nota Técnica Conjunta nº 001/2016 que instituiu as Diretrizes, Fluxo e Fluxograma para a Atenção Integral às Mulheres e Adolescentes em Situação de Rua e/ou Usuárias de Álcool e/ou Crack/outras Drogas e seus Filhos Recém-Nascidos2323 Corrêa WE, Falleiros TAB, Seixas AS. Nesrala DB. Síntese do caso do acolhimento compulsório de bebês na cidade de Belo Horizonte segundo a Defensoria Especializada da Infância e Juventude da capital. Rev Saude Redes 2018; 4(Supl. 1):227-229.,3232 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Nota Técnica Conjunta MDS/MS nº 001/2016. Diretrizes, Fluxo e Fluxograma para a atenção integral às mulheres e adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de álcool e/ou crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2016..

Contudo, a constatação de diferentes possibilidades de exercício do papel materno dessas mulheres sugere a existência de uma percepção de que o contexto de rua com a trajetória de uso de drogas e/ou álcool não favorece o cuidado a uma criança. Assim, quando decidem “entregar” para uma instituição ou alguém próximo, por mais que mantenha alguma vinculação com seus filhos, essas mulheres o fazem não por não os amar, mas justamente por acreditar que estão fazendo o melhor para eles3030 Moreira TAS, Cavalcante CPS, Ferreira DS, Paiva IL. Sobre "ser mulher e mãe" em situação de rua: invisibilidade na sociedade brasileira. Rev Pauta 2021; 19(47):121-137.. Além disso, essa Nota Técnica Conjunta nº 001/2016 ressalta que a condição de rua não deve ser motivo para a destituição familiar; que essa medida é extremamente excepcional e somente deve ser adotada quando esgotadas todas as possibilidades de convívio com a família. Essa destituição deve ser analisada rigorosamente por uma equipe multidisciplinar com uma atenção na família de origem até depois do afastamento para possível restituição, pois a retirada de crianças de suas mães viola os direitos da mulher, da criança e da família3232 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Nota Técnica Conjunta MDS/MS nº 001/2016. Diretrizes, Fluxo e Fluxograma para a atenção integral às mulheres e adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de álcool e/ou crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2016.. Diante disso, é importante a reflexão e compreensão que a mulher mãe em situação de rua, por estar neste contexto, não deve ser considerada indigna de exercer a maternidade e a maternagem, como muitos da sociedade vislumbram, e sim a importância de subsidiar formas e meios de amparo e suporte.

Esse afastamento de mães em situação de rua dos seus bebês recorrente é reflexo da expressão de discriminação de gênero, raça, da perseguição política e do moralismo2727 Karmaluk C, Lansky S, Parizzi MR, Batista G, Almeida E, Dias ALF, Natividade C, Gomes B. De quem é este bebê?: Movimento social de proteção do direito de mães e bebês juntos, com vida digna! Rev Saude Redes 2018; 4(Supl. 1):169-189.. Nesse cenário, reflete-se sobre quais vidas valem a pena em uma sociedade marcada pela naturalização da desigualdade e legitimação do exercício do biopoder sobre a vida. A condição da mulher, negra, em situação de rua ou de grande vulnerabilidade social, associada ao uso de álcool e/ou outras drogas têm sido um marcador para margem da ação violenta e conjunta de instituições como as da saúde e do Judiciário2525 Siqueira PM, Hernandez ML, Furtado LAC, Feuerwerker LCM. "Oh pedaço de mim, oh metade amputada de mim...". Saude Redes 2018; 4(Supl. 1):51-59..

Diante dessa discussão, é muito importante frisar a relevância do marcador racial nesse contexto, como aponta a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada em 2007/2008, evidenciando que 67% das pessoas em situação de rua eram negras (pretos e pardos)3333 Brasil. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez.. E em outra pesquisa realizada em um município baiano, detectou que a maioria das mulheres em situação de rua (70%) eram negras2929 Barros KCC, Moreira RCR, Leal MS, Bispo TCF, Azevedo RF. Vivências de cuidado por mulheres que gestam em situação de rua. Rev Rene 2020; 21:e43686., diante dos dados podemos afirmar que as mães negras são maioria nas ruas. Assim, faz-se necessário pensar no circuito de vulnerabilidades o qual se potencializa as desigualdades, violências e violações já existentes a essa população. Essas mulheres, na maioria dos casos, são direcionadas a trabalhos precarizados, menos remunerados e, em alguns casos, recorrerem à prostituição como fonte de renda e meio de sobrevivência. Atrelado a esse panorama, estão as violências vividas por essas mulheres, como espancamentos, chutes na barriga quando grávidas, como forma de evidenciar ainda mais suas vulnerabilidades, entre outras atrocidades sofridas no ambiente das ruas como também em instituições de saúde2929 Barros KCC, Moreira RCR, Leal MS, Bispo TCF, Azevedo RF. Vivências de cuidado por mulheres que gestam em situação de rua. Rev Rene 2020; 21:e43686.,3131 Coldibeli LP, Paiva FS, Batista CB. Gênero, pobreza e saúde: revisão sistemática sobre aa saúde de mulheres em situação de rua. Textos Contextos 2021; 20(1):1-14..

Diante disso, a postura dos profissionais de saúde e da assistência é apontada como um dos principais fatores que influenciam na qualidade do serviço oferecido, e muitas mulheres se sentem julgadas ou incompreendidas nestes locais ou na assistência prestada3131 Coldibeli LP, Paiva FS, Batista CB. Gênero, pobreza e saúde: revisão sistemática sobre aa saúde de mulheres em situação de rua. Textos Contextos 2021; 20(1):1-14.. Observa-se, portanto, que há quebra do sigilo profissional e dos vínculos necessários para o cuidado e tratamento. No lugar do estabelecimento de empatia para o cuidado, tem se demonstrado um espaço para instaurar a desconfiança, o medo da denúncia ou delação como colocam as mulheres. Frente a isso, elas evitam o pré-natal, o parto, saem fugidias das maternidades com seus bebês ou chamam a polícia para saírem dos hospitais2626 Lansky S. De quem é este bebê? Construção, desconstrução e resistência pelo direito de mães e bebês em Belo Horizonte. Rev Saude Redes 2018; 4(Supl. 1):191-208..

Em um estudo realizado com gestantes em situação de rua na cidade de Maceió, os relatos mostram, que a realidade assistencial das gestantes em condição de rua é a evasão das gestantes que não retornam às consultas por desânimo, exclusão social e peregrinação por uma vaga na Unidade Básica de Saúde2222 Araujo AS, Santos AAP, Lúcio IML. O contexto da gestante na situação de rua e vulnerabilidade: seu olhar sobre o pré-natal. Rev Enferm UFPE 2017; 11(Supl. 10):4103-4110.. Há muitos relatos que vão desde constrangimentos nos atendimentos pré-natais com ameaças de perda dos filhos pela situação de vulnerabilização vivenciada (uso de drogas, hipossuficiência econômica, histórico de situação de rua ou perda anterior da guarda de outra criança), até atrasos na obtenção da alta hospitalar pós-parto, com a retenção indevida e injustificada de mães e bebês nas maternidades públicas por longos períodos2424 Drummond NA, Martins AF, Godoy DB, Pinto JDA. Atuação estratégica em direitos humanos contra o afastamento arbitrário de bebês do convívio familiar: reflexões sobre a prática. Rev Saude Redes 2018; (Supl. 1):209-220.. Dessa forma, demonstra-se que mesmo no período de alta vulnerabilidade, como na gestação em situação de rua, não há o mínimo de respeito, tampouco uma assistência à saúde de qualidade e humanizada que haja acolhimento destas que já são tão invisibilizadas perante a estrutura da sociedade.

Além disso, muitas mulheres relatam que não realizam acompanhamento pré-natal, tampouco algum tipo de exame, pois têm receio e medo destes procedimentos, visto que só o que escutavam é que o uso de drogas era totalmente prejudicial ao bebê1616 Dashora P, Slesnick N, Erdem G. "Understand My Side, My Situation, and My Story:" Insights into the Service Needs Among Substance-Abusing Homeless Mothers. J Community Psychol 2012; 40(8):938-950.,1818 Welch-Lazoritz ML, Whitbeck LB, Armenta BE. Characteristics of Mothers Caring for Children During Episodes of Homelessness. Community Mental Health J 2015; 51(8):913-920.. Frente a isso, o distanciamento e a falta de vínculo com a equipe de saúde tornam-se uma realidade evidenciada pelos preconceitos impostos por uma assistência meramente institucionalizada, sem considerar o contexto macro e suas subjetividades que propõem o tratamento onde o indivíduo é tratado em sua integralidade e singularidade.

Ao discutir a Política Nacional de Assistência Social, observa-se que é apresentada à população em situação de rua serviços, equipamento de acompanhamento nas ruas e de abrigamento, além de auxílios ou transferências de renda (como Bolsa Família e Auxílio Aluguel). Entretanto, não se identificou na rede de serviços assistenciais públicos ou terceirizados programas focados especificamente na questão da maternidade e maternagem em situação de rua, ainda que o Brasil já possua histórias de pessoas e famílias que têm a situação de rua como experiência intergeracional1919 Costa SL, Vida SPC, Gama IA, Locatelli NT, Karam BJ, Ping CT, Massari MG, Paula TB, Bernardes AFM. Gestantes em situação de rua no município de Santos, SP: reflexões e desafios para as políticas públicas. Saude Soc 2015; 24(3):1089-1102.. Assim, durante a maternidade e maternagem nota-se que é ineficiente as ações da Política Nacional de Assistência Social para estabelecer vínculos de proteção e cuidado com a mulher e seus filhos/as. com o poder de decidir o que fazer com essas crianças1717 Slesnick N, Glassman M, Katafiasz H, Collins JC. Experiences associated with intervening with homeless, substance-abusing mothers: the importance of success. Soc Work 2012: 57(4):343-352.,2828 Sanchotene IP, Antoni C, Munhós AAR. MARIA, MARIA: concepções sobre ser mulher em situação de rua. Textos Contextos 2019; 18(1):146-160.. Compreendendo essa realidade, ressalta-se que os mais atingidos são sempre aqueles que estão nas posições de maior exclusão e vulnerabilidade, pois são os que têm menos apoio emocional, recursos e oportunidades para ficar com os filhos e, em última análise, os que perdem todas as batalhas.

Acredita-se na relevância do presente estudo como contribuição para o campo de pesquisa acadêmica na área da saúde, visto a necessidade de novas produções acerca do processo de maternidade/maternagem e vulnerabilidades, para o processo de transformação da visão estigmatizada, assim como para melhoria das políticas públicas que apresenta grande fragilidade e atuais retrocessos para condicionar uma assistência à saúde integral e humanizada.

Mediante os resultados obtidos com o levantamento realizado para esta revisão, constatou-se que há um número escasso de publicações científicas no cenário brasileiro e internacional que buscam discutir sobre a temática de maternidade em situação de rua. Tanto o resultado total quanto o relativo a cada estratégia utilizada para a busca da produção sinalizam que tais temas apresentam uma produção restrita, o que evidencia a invisibilidade das questões no campo científico ou incentivos à pesquisa. Sobre as características metodológicas dos artigos analisados, percebeu-se a prevalência de estudos de natureza qualitativa, com o uso de narrativas, relatos e associações livres, os quais atendem à demanda de entendimento da singularidade e dos significados que emergem. Entretanto, sugere-se que novos estudos sejam executados, trazendo um diálogo com as abordagens quantitativas, possibilitando a mensuração dos aspectos concernentes à temática com seu aprofundamento.

Ademais, alguns artigos não deixam explícitos detalhes importantes da metodologia utilizada, assim como informações essenciais, como o procedimento da análise dos dados. Considera-se que a qualidade dos artigos fica comprometida quando há problemas na clareza metodológica. Quanto às categorias temáticas apresentadas, foi possível, de modo geral, identificar semelhanças no quesito da maternidade atrelada às dificuldades e estigmas que fazem menção principal à questão estrutural e patriarcal da sociedade. Entretanto, verificou-se, também, que alguns dos trabalhos analisados não discutem a situação de rua e maternidade de maneira ampliada, no sentido de considerar integralmente os aspectos psicológicos, sociais e culturais envolvidos.

Considerações finais

A fim de obter um melhor entendimento sobre a maternidade e maternagem de mulheres em situação de rua, fez-se necessário a compreensão numa perspectiva ampla, situada no contexto histórico e social no qual cada indivíduo elabora sua existência, imbricada em uma rede de relações. Pensar a maternidade e a maternagem dessas mulheres implica considerar o entrelaçamento de relações, história de vida e recursos disponíveis como um ponto de partida, mas não um objetivo final. Dessa forma, é necessário analisar o processo e se dispor a atravessar esses olhares e viver as dores em conjunto. A partir disso, é possível moldar, em certa medida, o percurso das mulheres em busca de assistência de saúde, social, judicial ou a ajuda de amigos ou entre os pares, podendo também resultar na fuga da circulação nos serviços por medo ou insegurança.

Portanto, a precarização imposta às mulheres em situação de rua, faz com que elas vivenciem a intersecção de opressões e desigualdades, impostas por ambas, que também é somado à questão de raça, destacando-se como condições inerentes à sua realidade. Tendo isso em vista, se faz necessário o investimento em investigações que produzam conhecimentos a partir dessa perspectiva, sob uma ótica contextualizada, considerando a temática de gênero e suas especificidades, a fim de subsidiar a construção de políticas que efetivem, de fato, os direitos e cuidados na maternidade e maternagem por mulheres em situação de rua.

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  • Financiamento

    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2023
  • Aceito
    16 Set 2023
  • Publicado
    18 Set 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br