Resumo
Este artigo tem por objetivo sistematizar e analisar em perspectiva histórica as discussões que permearam o tema da saúde indígena em interface com a demografia dessas populações, partindo da dimensão política que a quantificação dos povos indígenas assumiu durante a ditadura militar no Brasil. Abrangendo um extenso período que se estende do estabelecimento do Serviço de Proteção aos Índios em 1910 até o fim dos anos 1980, busca-se oferecer uma visão ampliada sobre o tema. O foco da análise recai especialmente nos anos 1970, destacando os atores envolvidos neste debate: lideranças indígenas, indigenistas, acadêmicos, profissionais de saúde e missionários.
Palavras-chave:
Saúde indígena; Demografia indígena; Indígenas e ditadura militar
Introdução
A saúde das populações indígenas brasileiras tem sido, nas últimas décadas, objeto de estudo das Ciências Sociais em interface, notadamente, com o campo da saúde coletiva11 Costa DC. Política Indigenista e assistência à saúde Noel Nutels e o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. Cad Saude Publica 1987; 4(3):338-401.
2 Verani CBL. A Política de saúde do índio e a organização de serviços no Brasil. Bol Museu Paraense Emílio Goeldi 1999; 1:143-164.
3 Garnelo L, Langdon EJ. A antropologia e a reformulação das práticas sanitárias na atenção básica à saúde. In: Minayo MC, Coimbra Jr. C, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2005. p.139-150.
4 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadores. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contracapa; 2004. p. 33-51.
5 Baruzzi RG. Do Araguaia ao Xingu. In: Baruzzi RG, Junqueira C, organizadores. Parque Indígena do Xingu: saúde, cultura e história. São Paulo: Terra Virgem; 2005. p. 59-112.
6 Cardoso AM, Santos RV, Garnelo L, Coimbra Jr. CEA, Chaves MBG. Políticas públicas de Saúde para os povos indígenas. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, editores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. rev. enl. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.
7 Coimbra CE, Santos RV, Welch R. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13:52.
8 Garnelo L. O SUS e a saúde indígena: matrizes políticas e institucionais do Subsistema de Saúde Indígena. In: Teixera CC, Garnelo L, organizadores. Saúde indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 107-142.
9 Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, Brito CAG. Diálogos entre indigenismo e Reforma Sanitária: bases discursivas da criação do subsistema de saúde indígena. Saude Debate 2019; 43(n. esp. 8):146-159.
10 Kabad JF, Pontes ALM, Monteiro S. Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1653-1666.-1111 Cunha MC, organizador. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 1992.. No campo da História Indígena, a questão sanitária passou a figurar como tema a partir da virada epistemológica da área entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990. Nesse cenário estavam as discussões sobre a ocupação do território, o contato e as epidemias que ocasionaram dizimações expressivas de povos ameríndios. No bojo dessa renovação historiográfica couberam análises que reconheceram os povos indígenas como agentes de suas histórias, a partir da multiplicidade de formas de interação no pós-contato. Além disso, buscou-se, através de releituras e de novos arcabouços de fontes, ampliar a descrição e a compreensão acerca do quantitativo populacional e dos processos de ocupação, permanências e mobilidades das populações indígenas por todo o território americano, compreendendo tanto o período pré-conquista (dialogando com o trabalho de arqueólogos) como o que se inicia com o advento dos europeus na América1212 Monteiro JM. Negros da Terra: e bandeiras nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.
13 Almeida MRC. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2003.-1414 Brito CAG. Medicina e antropologia: atenção à saúde no Serviço de Proteção aos Índios (1942-1956) [dissertação]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2011..
Mais recentemente, a partir de análises ancoradas na história da saúde indígena, buscou-se compreender a relação entre antropologia e saúde na construção de mecanismos de assistência sanitárias aos indígenas brasileiros entre as décadas de 1940 e 1960, principalmente, a partir do Serviço de Proteção aos Índios (SPI)1010 Kabad JF, Pontes ALM, Monteiro S. Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1653-1666.,1515 Brito CAG. Antropologia de um jovem disciplinado: a trajetória de Darcy Ribeiro no Serviço de Proteção aos Índios (1947-1956) [tese]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz; 2017.
16 Brito CAG. Convívio e contaminação: uma análise sócio-histórica sobre epidemias, demografia e povos indígenas na obra de Darcy Ribeiro. In: Santos RV, Guimarães BN, Campos MB, Azevedo MMA, organizadores. Entre demografia e antropologia: povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p. 203-217.
17 Brito CAG. A história da saúde indígena no Brasil e os desafios da pandemia de Covid-19. In: Sá DM, Sanglard G, Hochman G, Kodama K, organizadores. Diário da pandemia: o olhar dos historiadores. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 111-120.
18 Brito CAG. Integração não significa assimilação: o estudo de Darcy Ribeiro para a Unesco na década de 1950. Acervo 2021; 34(2):1-20.
19 Brito CAG, Lima NT. Antropologia e medicina: a saúde no Serviço de Proteção aos Índios (1942-1956). In: Teixeira CC, Garnelo L, organizadoras. Saúde indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.-2020 Pagliaro H. A revolução demográfica dos povos indígenas no Brasil: a experiência dos Kaiabi do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso (1970-1999) [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2002..
Adensando as investigações em torno da saúde das populações indígenas, os estudos sobre a questão demográfica e a contagem populacional indígena pautaram importantes debates nas últimas décadas, como sobre os distintos padrões de comportamento reprodutivo entre indígenas e não indígenas2121 Azevedo M. Demografia dos povos indígenas do Alto Rio Negro/AM: um estudo de caso de nupcialidade e reprodução [tese]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2003.
22 Wong L, Morell M, Carvalho R. Notas sobre o comportamento reprodutivo dos povos indígenas no período de 1991-2000. Rev Bras Estud Pop 2009; 26(1):61-75.-2323 Marinho G. Domicílios indígenas nos censos demográficos: classificação, composição e interfaces com a saúde [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz; 2015., as inequidades entre as diferentes categorias étnico-raciais identificadas pelos sistemas oficiais2424 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa Luta É Pela Vida: Covid-19 e os Povos Indígenas. APIB; 2020. e a prevalência de certas doenças entre grupos minoritários, como no caso da pandemia de COVID-192525 Sá DM, Sá MR, Lima NT. Telégrafos e inventário do território no Brasil: as atividades científicas da Comissão Rondon (1907-1915). Hist Cien Saude Manguinhos 2008; 15(3):779-810..
É certo que o tema da demografia nativa esteve presente nas narrativas sobre as populações indígenas nas américas desde os registros do período colonial, influindo nas políticas pombalinas, pautando as primeiras normativas e relação aos nativos no período imperial e avançando no século XX com a criação do primeiro Serviço de Proteção aos índios no país durante o período republicano. Nesse contexto, é possível afirmar que o tema atravessou o tempo e vem, ainda hoje, ganhando novos contornos simbólicos, políticos, teóricos e metodológicos.
Neste artigo buscaremos, a partir de uma sistematização histórica, localizar a discussão sobre a demografia indígena em interface com o tema da saúde dessas populações, desde a criação do SPI em 1910, até o fim da década de 1980, a fim de discutir os usos políticos da quantificação dos povos indígenas no contexto da ditadura militar no Brasil, a partir do campo de apoio à causa indígena mobilizado por acadêmicos, indigenistas, profissionais da saúde e missionários no final dos anos 1970.
Construção da Política indigenista no Brasil: saúde e demografia
Os primeiros anos da República brasileira foram marcados por inúmeras estratégias governamentais, em geral capitaneadas pelas forças militares, de reconhecimento territorial e populacional. Nesse cenário, destacam-se as expedições científicas patrocinadas pelo Estado brasileiro, como da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA) (1907-1915), conhecida como Comissão Rondon. Esta comissão, liderada pelo Marechal do Exército Cândido Mariano Rondon, tinha como objetivos não apenas a inspeção e o controle das fronteiras, como também a conexão da região Noroeste ao restante do país, através da instalação de linhas telegráficas, do incremento da produção agrícola, do conhecimento científico das riquezas naturais e do povoamento da região2626 Diacon TA. Rondon: o marechal da floresta. São Paulo: Companhia das Letras; 2006.
27 Lima NT. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Renavan, Iuperj, Ucam; 1999.
28 Maciel LA. A nação por um fio. Caminhos, práticas e imagens da Comissão Rondon. São Paulo: Educ/FAPESPE; 1998.
29 Bigio ES. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto: Petrobras; 2000.-3030 Oliveira JP. "Redimensionando a questão indígena no Brasil: uma etnografia das terras indígenas". In: Oliveira JP, organizador. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa; 1998.. Alinhada aos objetivos de interiorização da autoridade estatal e ao ideal de progresso defendidos no período, a Comissão refletia as demandas do Estado brasileiro em torno da necessidade de ampliação da comunicação, do controle das fronteiras e do povoamento dos sertões2929 Bigio ES. Cândido Rondon: a integração nacional. Rio de Janeiro: Contraponto: Petrobras; 2000.. Desse modo, a implantação do telégrafo ao longo de territórios considerados como vazios demográficos e de poder compunha o arranjo político de integração e modernização da República Brasileira.
Os objetivos de promover a integração via telégrafo, a ocupação dos sertões do noroeste e a interiorização do controle estatal (político e de fronteiras) foram, desde o início, comprometidos pela questão sanitária da região percorrida. Essa questão fica evidente nos dados sanitários apresentados nos relatórios oficiais da Comissão Rondon. Por serem as regiões percorridas pela Comissão consideradas “vazios demográficos”, já que não faziam referência clara à presença das populações indígenas que habitavam o território, os dados relativos às inúmeras etnias indígenas que historicamente viviam e atuavam socialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste do país, foram parcamente documentados.
Foi, no entanto, em meio a esse cenário político que a presença indígena passou a figurar institucionalmente no projeto de interiorização do poder estatal, sobretudo, com a criação, em 1910, do primeiro órgão governamental voltado para a questão indígena nacional, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Sob a direção de Rondon e vinculado ao Ministério da Agricultura (MAIC), o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) (como passou a se chamar a partir de 1918) foi estruturado em consonância com os objetivos estatais do período, que preconizavam o controle territorial, a defesa de fronteiras e o desenvolvimento regional, a partir de preceitos positivistas. Ainda nas primeiras décadas do século XX e contando com o apoio do órgão indigenista, a abertura de estradas de ferro, a instalação de Postos telegráficos e a criação de vilas de operários invadiram as terras indígenas dos “sertões” do país.
A política indigenista iniciada pelo SPI operou sob regime tutelar, onde o Estado brasileiro seria o responsável legal pelos coletivos indígenas e suas terras. O projeto apresentava-se como uma alternativa à catequese religiosa e se alinhava com o preceito republicano de separação entre Igreja e Estado. Além disso, buscava, ao “pacificar as populações indígenas”, transformá-las em trabalhadores nacionais, considerando, portanto, a condição de indígena como transitória3131 Lima ACS. Um Grande Cerco de Paz: poder tutelar; indianidade e formação de Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes; 1995.,3232 Paz MC. Noel Nutels, a política indigenista e a assistência à saúde no Brasil Central (1943-1973) [dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do estado do Rio de Janeiro; 1994.. Junto à invasão das frentes de expansão e ao “recrutamento” da mão-de-obra nativa, houve o advento de epidemias com potencial devastador para os povos originários, contribuindo para sua significativa retração demográfica.
Nesse sentido, também em consonância com os intentos da República Brasileira, que via no saneamento a chave para o desenvolvimento regional, o SPI, já em seu primeiro regulamento, ocupou-se da assistência sanitária aos grupos indígenas. No entanto, ao longo de sua atuação, não ofereceu uma estrutura organizada voltada especificamente para o tema da saúde3333 Oliveira PH. Vacinação grátis contra febre amarela e tuberculose. Extração de dentes grátis. Curativo e remédio grátis. Tudo por conta do Governo!!! In: Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. São Paulo: USP; 2008.
34 Figueredo RED. Histórias de uma antropologia da Boa Vizinhança: Um estudo sobre o papel dos antropólogos nos programas de assistência técnica e saúde no Brasil e no México (1942-1960) [tese]. Campinas: Unicamp; 2009.-3535 SEDOC - MI. Filme 387, FOT. 04154 - 04205 - SPI Eventos; 1940.. Os registros de surtos epidêmicos, a falta de assistência às populações indígenas e a fragilidade do SPI constavam nos relatórios e inquéritos realizados no interior desse Serviço, desde suas origens até os últimos anos de atuação. Os problemas apontados tratavam da falta de material médico, de profissionais da saúde, além de questões referentes ao impacto do convívio entre indígenas e não indígenas. Em 1942, a partir da criação da Seção de Estudos (SE), que tinha por objetivo realizar investigações da origem, costumes, tradições e línguas das populações indígenas, foram contratados os primeiros cientistas sociais, entre eles Darcy Ribeiro, recém-formado como especialista em Ciências Sociais pela ELSP (Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo). Capitaneada pelo médico Herbert Serpa, a SE ganhou novas funções ao longo de sua estruturação. Entre suas demandas se destaca a função de registrar o contingente populacional indígena, demanda esta que já se apresentava no SPI:
No Brasil, como por quase toda a aparte, os aborígenes estão diminuindo e tendendo a desaparecer, [...] nossos índios não são para nós raça inferior. São apenas irmãos atrasados em face de que não devemos nos colocar na situação de concorrentes. Como tais, é claro, eles terão que perecer, porque não dispõem dos recursos comparáveis aos nossos [...] (Memória sobre as causas determinantes da diminuição das populações indígenas do Brasil, 1940)3636 Coimbra Jr. CEA. O sarampo entre sociedades indígenas brasileiras e algumas considerações sobre a prática da saúde pública entre estas populações. Cad Saude Publica 1987; 3(1):22-37. (p.4).
Os recenseamentos demográficos brasileiros, iniciados em 1872, apesar de em algumas ocasiões terem registrado informações sobre os indígenas em território nacional, até então não haviam divulgado dados sobre o contingente absoluto desse segmento populacional. O marco dos censos modernos no país, o de 1940, identificou apenas quatro categorias de “Cor” compondo a população brasileira: “branca, preta, parda e amarela”, esta última referindo-se à população de origem ou ascendência do leste asiático. O registro e a contagem dos indígenas estavam, então, sob a responsabilidade do SPI e, a partir de 1944, de sua Seção de Estudos (SE).
Apesar de figurar como objetivo da SE, os levantamentos demográficos eram realizados de forma pontual e não continuada, dificultando uma análise pormenorizada da real situação do contingente populacional indígena no período. Os dados sobre as contagens populacionais eram apresentados em formatos de relatórios de Postos, reunidos em edições anuais dos chamados “Boletins Internos do SPI”. Além da questão demográfica, os boletins traziam dados sobre: nascimentos, óbitos, estado sanitário, enfermaria e movimentação das farmácias localizadas em alguns Postos.
É nesse contexto institucional e a partir de dados pouco sistematizados acerca da demografia e da saúde das populações indígenas sob a coordenação do SPI que Darcy Ribeiro empreende suas primeiras pesquisas de campo e estrutura suas análises sobre o futuro dos indígenas brasileiros. Como já dito, Darcy Ribeiro passa a compor os quadros do SPI em 1947, a partir de uma indicação direta de seu orientador na ELSP e importante interlocutor no período, o etnólogo de origem alemã, Herbert Baldus.
Logo nos primeiros anos de atuação no referido órgão, Ribeiro realizou estudos etnológicos e linguísticos entre os grupos indígenas do Mato Grosso (Região Sul e do Pantanal Mato-Grossense): Kaiwá (Guarani); Terena (Aruak), Kadiwéu (Mbayá-Guaikurú), Kadiwéu e Ofaié, e do Maranhão, entre os Urubu-Kaapor, neste último, onde esteve por maior tempo, registrou em vídeos e áudios inúmeras manifestações culturais. A partir de suas observações de campo e apoiado em fontes documentais do próprio SPI, já na década de 1950, Darcy Ribeiro publicou uma análise sobre as condições sanitárias das populações indígenas brasileiras. Sob uma metodologia de análise populacional comparativa, com o objetivo de demonstrar a articulação entre fatores socioeconômicos e o comportamento demográfico, como já salientou Coimbra3737 Beltrão JF. Povos Indígenas, Saúde e Ditadura. TEL 2019; 19(39):61-69., se estruturou o artigo: “Convívio e contaminação”. A primeira versão do estudo fez parte dos anais da IIª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em 1955, no ano seguinte foi publicada uma versão expandida na Revista Sociologia e, finalmente, em 1970, tornou-se capítulo do livro de Ribeiro: “Os índios e a Civilização”. As versões guardam poucas modificações entre elas. Em geral são adições ou supressões pontuais de palavras ao longo do texto. A maior alteração pode ser observada já na edição de 1956 e refere-se à apresentação dos dados estatísticos em gráficos, quadros e pirâmides etárias.
O texto de Ribeiro, apoiado em dados estatísticos formulados a partir da documentação reunida nos acervos do SPI e em suas experiências de campo, essencialmente coletadas entre os Urubu-Kaapor, apontava, de forma fatalista, para o desaparecimento de inúmeras sociedades indígenas (enquanto entidades socioculturais diferenciadas). A desestruturação social e questões como a desnutrição, a mortalidade infantil e as crescentes doenças do “contato” (com os não-indígenas), indicariam uma progressiva queda demográfica entre as populações atingidas por epidemias.
O futuro incerto das populações indígenas, tragicamente atingidas por doenças infecciosas como a gripe e o sarampo, retratadas por Darcy Ribeiro na década de 1950, pautou a política indigenista naquele contexto e nas décadas seguintes, como é possível observar no período de ditadura civil-militar (1964-1985). Se estariam fadadas ao desaparecimento, as ações e/ou as políticas públicas voltadas para a manutenção da vida (cultural e material) das populações indígenas, poderiam ser pontuais e transitórias.
A alegoria da invisibilidade indígena: saúde e demografia indígenas na ditadura militar
A década de 1960 marcou o fim das atividades do SPI que, combalido por inúmeras denúncias e acusações de corrupção e pela prática de inúmeras violências contra os indígenas, foi submetido a uma Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada pelo Ministério do Interior (Portaria 239/1967), já no contexto da ditadura civil-militar, que culminou na demissão de servidores e por fim, na extinção do órgão. Os levantamentos que embasaram a CPI foram coordenados pelo então Procurador da República Jáder Figueiredo Correia e o relatório, conhecido hoje pela historiografia e opinião pública como o Relatório Figueiredo, foi divulgado em 1967, revelando a violência, a corrupção e o descaso do Estado brasileiro em relação aos indígenas3838 Oliveira JP, Freire CAR. A presença Indígena na formação do Brasil. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, LACED/Museu Nacional; 2006..
O SPI foi então substituído pela Fundação nacional do Índio (FUNAI), criada em 1967 e regida sob a Lei nº 5.371, de 05/12/1967. O órgão indigenista foi desenvolvido no âmbito da nova estrutura organizacional do Estado brasileiro no pós-golpe de 1964. Sob a gestão de militares, a política indigenista da FUNAI, tal como era no SPI, seguiu sob uma orientação tutelar, fortemente voltada para a questão fundiária e com direcionamentos políticos para movimentos de integração e /ou de “estímulo à mudança (aculturação)”3939 Lima ACS. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes; 1995. (p.131). Naquele contexto, a estruturação da Funai e a política indigenista nacional poderiam ser percebidas como parte de um “movimento mais geral de redefinição da burocracia de Estado”4040 Selau MGG. A política indigenista governamental: aspectos ideológicos e administrativos da ação médico-sanitária entre as populações indígenas brasileiras, 1967-1988. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, editores. Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 167-201. (p.298).
Nesse sentido, é possível argumentar que os interesses políticos e econômicos que nortearam o período ditatorial brasileiro absorveram plenamente o argumento do desaparecimento das populações indígenas, seja pela absorção dessas populações pelo Estado Nacional, seja pela queda demográfica decorrente das epidemias, da violência fundiária, e/ou de outros determinantes.
Durante toda a década de 1970 e grande parte da década de 1980, a saúde indígena foi capitaneada pela FUNAI a partir de políticas de convênio, ações sanitárias pontuais e descontinuadas, a partir de um modelo assistencial constituído como válido para todas as tribos indígenas sem considerar os padrões e as particularidades culturais e ecológicas das etnias4141 Paiva CHA. A saúde pública em tempos de burocratização: o caso do médico Noel Nutels. Hist Cien Saude Manguinhos 2003; 10:827-852.. Nesse cenário foram estruturadas as Equipes volantes de saúde (EVS), com um modelo inspirado no Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), que sob a coordenação do médico sanitarista Noel Nutels, desenvolveu atividades sanitárias, especialmente, ações de diagnóstico e tratamento da tuberculose entre as décadas de 1950 e 196011 Costa DC. Política Indigenista e assistência à saúde Noel Nutels e o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. Cad Saude Publica 1987; 4(3):338-401.,3333 Oliveira PH. Vacinação grátis contra febre amarela e tuberculose. Extração de dentes grátis. Curativo e remédio grátis. Tudo por conta do Governo!!! In: Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. São Paulo: USP; 2008.,4242 Baruzzi RG, Marcopito LF, Iunes M. Programa médico preventivo da escola paulista de medicina no parque nacional do Xingu. Rev Antropol 1978; 21(2):155-170.. Tendo um apoio aéreo, equipes formadas, geralmente, por 1 médico, 1 profissional da enfermagem, outro de bioquímica e 1 dentista, prestavam assistência emergencial e/ou esporádica nos territórios indígenas sob o arranjo institucional da FUNAI11 Costa DC. Política Indigenista e assistência à saúde Noel Nutels e o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas. Cad Saude Publica 1987; 4(3):338-401..
Sob a política de convênios do órgão indigenista destaca-se o efetuado com a Escola Paulista de Medicina de São Paulo (EPM), hoje Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), no âmbito do “Projeto Xingú”. Coordenado pelo médico e professor Roberto Baruzzi, o projeto iniciou sua atuação no Parque Indígena do Xingú em 1965, a partir de atividades periódicas de vacinação e atendimentos médicos-sanitários e a estrutura do convênio firmado entre a Universidade e a FUNAI permaneceu praticamente inalterada até a década de 19804242 Baruzzi RG, Marcopito LF, Iunes M. Programa médico preventivo da escola paulista de medicina no parque nacional do Xingu. Rev Antropol 1978; 21(2):155-170..
Como já mencionado neste artigo, a saúde das populações indígenas foi tratada de forma ineficiente pelo SPI ao longo de sua atuação e permaneceu desestruturada no âmbito da FUNAI, especialmente durante as primeiras décadas de funcionamento do novo órgão. A irregularidade das atividades de atenção médico-sanitárias contribuía para o avanço de quadros graves de comorbidades variadas e, também, para a carência de dados populacionais e/ou epidemiológicos confiáveis, que permitissem a elaboração de planos, projetos e legislações sobre a saúde dos povos indígenas brasileiros.
A literatura que tem se dedicado ao tema da saúde dos povos indígenas em interfaces com a questão demográfica no Brasil, aponta a ausência de dados sistematizados acerca do quantitativo populacional indígena ao longo do tempo. Como articularam Simioni e Dagnino:
No país, apenas populações indígenas que fazem parte de algum programa, como o Projeto Xingu, realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), contam com uma série de dados confiáveis coletados anualmente. A situação dos povos do Parque Indígena do Xingu é, portanto, uma exceção entre os povos indígenas no Brasil4343 Simoni AT, Dagnino RS. Dinâmica demográfica da população indígena em áreas urbanas: o caso da cidade de Altamira, Pará. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(2):303-326. (p.311).
Neste sentido é possível inferir que mesmo com a transformação ocorrida nos órgãos indigenistas nacionais, com o fim do SPI e o advento da Funai, a percepção do destino das populações indígenas permanecia a mesma - nos termos do etnólogo Pierre Clastres, uma escolha entre o genocídio e o etnocídio, i.e., a destruição efetiva das sociedades indígenas em função de epidemias e massacres promovidos pelos agentes do progresso ou a destruição dessas sociedades enquanto indígenas em razão das políticas assimilacionistas, como disposto, aliás, nas finalidades da Funai, dentre as quais se encontra “o resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças brusca” (Lei 5.371, de 1967, Art. 1, “d”).
A política estatal seguia em consonância com a missão disposta pelo SPI desde o início do século. Beneficiava-se, contudo, do solapamento das bases do debate público com a limitação das atividades políticas e de imprensa em dissonância com os projetos das elites econômicas, para as quais os indígenas figuravam como entraves para o desenvolvimento do país. Os sertões palmilhados pela Comissão Rondon eram vistos como estratégicos pelo regime para a promoção do “Brasil Grande”, com a região Norte sendo percebida como a mais atrasada do país. Assim, dois anos após o golpe de 1964, o governo instituiu a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), transformou o Banco da Amazônia S.A. (BASA) na maior instituição de financiamento aos empreendimentos econômicos do norte brasileiro e, em 1967, criou a Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA). Os aportes federais eram consideravelmente superiores aos que até então eram destinados às atividades da região, em consonância com o discurso oficial de combate às desigualdades regionais no país e estabelecimento da infraestrutura para o desenvolvimento de suas regiões mais atrasadas. É em meio aos avanços patrocinados pelos militares sob os territórios indígenas - Transamazônica, Operação Amazônia, construção de grandes hidrelétricas e ampliação espacial da agroindústria - que o Congresso promulga o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973), ratificando a política indigenista que tem por objetivo “integrar, progressiva e harmoniosamente, [os indígenas] à comunhão nacional” (Art. 1).
As políticas de saúde para os povos indígenas, descritas anteriormente, se inseriam no horizonte de desaparecimento de seu público - a título de exemplo, em 1976, o Ministro do Interior, Rangel Reis, declarara ao Jornal do Brasil ter por missão a redução de 90% do contingente indígena brasileiro4444 Guimarães B, Santos RV. Estatísticas de Resistência e os Horizontes da Saúde Indígena na Ditadura Militar. In: Pontes A, Machado F, Santos RV, organizadores. Políticas antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021. p. 99-129.. Conquanto que as atividades promovidas pela Escola Paulista de Medicina dessem conta da situação sistêmica vivenciada pelos indígenas, com acompanhamentos permanentes e atenção especializada, ela era uma exceção localizada no interior do Parque Indígena do Xingu, com a ação das equipes volantes da Funai caracterizando a maior parte do território brasileiro com resultados desastrosos. A própria legislação indigenista previa a existência de dano aos indígenas em seu inevitável processo de assimilação à comunhão nacional, embora este dano nunca tivesse sido publicamente mensurado.
Saúde e demografia nos anos 1970: estratégias de visibilidade indígena
É no final dos anos 1970, em um cenário de adensamento de críticas à situação enfrentada pelos indígenas4545 Davis S. Vítimas do Milagre. O desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. que o governo anuncia sua primeira iniciativa formal para reconhecer a assimilação dos indígenas. Em 1978, o regime anunciou um projeto para estabelecer “critérios de indianidade”, elementos objetivos para medir o grau de integração de uma coletividade indígena à comunhão nacional, ocasionando, simultaneamente, na emancipação de um povo (da condição de indígena) e de suas terras (da condição de reservas indígenas). Essa proposta catalisou o movimento de apoio à causa indígena por membros diversos da sociedade civil, destacando-se acadêmicos localizados em São Paulo. Um evento marcante foi realizado no final do ano no CUFA, teatro universitário da PUC-SP, com a presença de intelectuais ilustres, como Roberto Cardoso de Oliveira e Lux Vidal. Em poucos meses, diferentes ONGs foram criadas, como o Centro de Trabalho Indigenista, coordenado pelo casal de antropólogos Maria Elisa Ladeira e Gilberto Azanha, e a Comissão Pró-Índio, reunindo apoiadores diversos em sua composição. Com propostas completamente dissidentes das do regime, tornaram-se um braço de atuação dos acadêmicos envolvidos com a causa indígena em resistência às políticas assimilacionistas. No mesmo período, lideranças indígenas ganharam as páginas da imprensa na denúncia dos atos governamentais, algo que se tornaria a tônica dos anos 1980, quando Raoni, Ailton Krenak, Marcos Terena, Álvaro Tukano, Tuíra, dentre outros nomes se tornaram conhecidos do grande público.
As mobilizações de 1978 marcaram um ponto de inflexão na oposição ao regime, com repercussões para os campos da saúde coletiva e da demografia indígena. Duas das organizações mais atuantes, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), ambas albergando antropólogos em seus quadros e vinculados a instituições eclesiásticas que lhes forneciam maior guarida frente às forças repressivas, iniciaram esforços para quantificar a população indígena no país e qualificar sua condição de vida. As publicações influenciaram os debates dos anos 1980 sobre o futuro dos povos originários no Brasil.
O CIMI, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fez sua contagem a partir dos dados das prelazias. Os editores do jornal Porantim, cuja publicação pelo CIMI se estende de maio de 1978 até o presente, reuniram as informações de padres e missionários católicos, com grande capilaridade no território brasileiro, divulgando quantitativos inéditos até então: a edição de setembro de 1979 anunciava um “dossiê sobre a situação” dos 210.000 indígenas no Brasil, caracterizado pela discussão sobre a situação fundiária nacional, as políticas indigenistas, os planos governamentais de desenvolvimento na Amazônia, os ataques contra aldeias a mando das elites agrárias. Em um formato de notícia-denúncia, o Porantim vinculava os desafios de bem-estar das populações indígenas e suas perspectivas de crescimento à ação intencional das forças econômicas e políticas, contribuindo para desnaturalizar o desaparecimento dos indígenas.
Consonante com a iniciativa do CIMI, o CEDI lançou uma série de publicações voltadas para a qualificação dos povos indígenas no país, com descrições detalhadas sobre o histórico do contato interétnico, a economia aldeã e regional, as línguas faladas pelos povos em questão e sua composição demográfica. Durante os anos 1970, o CEDI editou o Aconteceu, um clipping semanal resumindo o que os principais jornais do país noticiaram sobre “trabalhadores urbanos”, “trabalhadores rurais”, “índios”, dentre outros temas que marcavam a atuação do Centro na resistência intelectual contra a ditadura. A partir da década seguinte, o Aconteceu ganhou números especiais dedicados exclusivamente aos indígenas, seja no formato de uma grande reunião de notícias do que ocorrera em um determinado período em todo o território nacional (entre 1980 e 1984 publicados como anuários, a partir de 1985 compreendendo intervalos temporais mais extensos), seja sob a forma de fascículos sobre regiões específicas, como “Vale do Javari” ou “Sudeste do Pará”. Essas publicações, antecessoras do Povos Indígenas no Brasil, editado inda hoje pelo Instituto Socioambiental (ONG que surge com o fim do CEDI em meados da década de 1990), continham não apenas as estimativas de contingentes populacionais no país (por vezes empregando dados do CIMI), como os quantitativos específicos de diversas etnias e suas aldeias, acompanhadas das especificidades vivenciadas pela população local no acesso à saúde, à terra e à segurança contra ofensivas de potenciais agressores (como posseiros a garimpeiros). Essas informações, obtidas no bojo do Levantamento dos Povos Indígenas no Brasil junto a colaboradores que acompanhavam os indígenas in loco (antropólogos, missionários, linguistas, indigenistas, enfermeiros, e até mesmo lideranças indígenas) a partir de uma ficha completa enviada pelo CEDI para os parceiros em uma metodologia “bola de neve”, uniam interesse etnográfico, demográfico e da área da saúde, mantendo uma rede interdisciplinar engajada na defesa dos direitos dos povos originários através de “estatísticas de resistência”, i.e., quantitativos desenvolvidos com uma finalidade política em mente, qual seja, a de tornar legíveis as dinâmicas demográficas indígenas4444 Guimarães B, Santos RV. Estatísticas de Resistência e os Horizontes da Saúde Indígena na Ditadura Militar. In: Pontes A, Machado F, Santos RV, organizadores. Políticas antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021. p. 99-129.,4646 Santos RV, Guimarães B, Simoni A. The Quest for Visibility and Legibility: Quantifying the Indigenous Population in Brazil in the Late Twentieth Century. J Iberian Latin Am Res 2023; 29(1):33-54.,4747 Silva L, Antunes M, Souza Damasco F, Colman R, Azevedo M. The identification of the Indigenous population in Brazil's official statistics, with na emphasis on demographic censuses. Stat J IAOS 2019; 35(1):29-46.. Junto ao trabalho desenvolvido pelo CIMI, solidificaram no campo de apoio à causa indígena a percepção de que haveria um futuro indígena no Brasil, auxiliando - como propunha o CEDI em seu bordão à época - a “colocar os índios no mapa”.
Ao longo da década de 1980, algumas publicações do CEDI se tornaram menos frequentes e o lançamento de volumes sobre áreas etnográficas foi suspenso após somente três publicações. Isto se deu justamente pelo envolvimento dos editores (Fany e Beto Ricardo) nos debates da Assembleia Constituinte, no qual diversos colaboradores do Levantamento dos Povos Indígenas no Brasil também tomaram parte. Se o Porantim continuou sendo publicado ininterruptamente, mesmo com os integrantes do CIMI igualmente engajados na transformação da Carta Magna, coincidentemente ele deixou de atualizar os contingentes populacionais em meados dos anos 1980. A contribuição mais significativa dos processos de quantificação empreendidos pelas duas organizações não era o contingente populacional em si, mas a discussão feita acerca das causas dos números encontrados. Contextualizados, esses valores contestavam a ideia de que o destino dos indígenas seria o desaparecimento - seja cultural, seja material - e expandiam a discussão sobre as condições de possibilidade do bem viver indígena após a superação do regime e advento da Nova República. Anos depois, os primeiros estudos demonstrando a retomada demográfica indígena foram publicados a partir dos dados produzidos pelo Projeto Xingu, dando materialidade para a virada de horizontes da dinâmica populacional que se consolidara2121 Azevedo M. Demografia dos povos indígenas do Alto Rio Negro/AM: um estudo de caso de nupcialidade e reprodução [tese]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2003.,2222 Wong L, Morell M, Carvalho R. Notas sobre o comportamento reprodutivo dos povos indígenas no período de 1991-2000. Rev Bras Estud Pop 2009; 26(1):61-75..
Para este mesmo período, é central notar que os agentes aqui mencionados, em paralelo à divulgação de levantamentos populacionais, se engajaram em ações voltadas para a transformação do modelo de atendimento médico das populações indígenas, sobretudo, no que se referia às discussões sobre a territorialização das políticas de saúde que deveriam romper com o modelo das equipes volantes da Funai. Além disso, buscavam associar diretamente o bem viver indígena com as garantias fundiárias, que se consolidariam nas mudanças legislativas ocorridas anos mais tarde, no final da ditadura4848 Athila AR. A Emergência do Distrito Sanitário Yanomami: uma análise sociopolítica. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, editores. Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 231-276.
49 Magalhães A. O Direito à Terra, o Direito de Ir e Vir: Saúde e Movimento Indígena a partir da década de 1970. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, editores. Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 37-65.-5050 Welper E. Cinco Encontros e a Oitava: as ações de saúde do Conselho Indigenista Missionário no contexto da pré-Constituinte. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, editores. Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 67-98..
Considerações finais
Os levantamentos, as contagens populacionais e os dados demográficos acerca das populações indígenas em interface com a saúde dessas populações estiveram presentes nas mais diversas construções argumentativas sobre a presença desses povos no território brasileiro. Usos políticos, simbólicos e institucionais, escamoteados pela falta de clareza e precisão nos dados recolhidos pautaram o conceito de vazios demográficos, que embasaram políticas de desenvolvimento regional, povoamento e interiorização do poder estatal. Sob o vulto da invisibilidade ou do inevitável desaparecimento das populações indígenas foram estruturadas políticas públicas de saúde pontuais, afinal, a categoria “indígena” correspondia a uma condição, transitória em sua natureza e indesejada em um país economicamente avançado. A percepção de que os indígenas logo seriam absorvidos pela sociedade nacional dava causa à inexistência de uma política de saúde perene e galgada no respeito ao multiculturalismo.
Para além da mobilização social contrária às iniciativas ditatoriais, as quantificações dos contingentes indígenas e a qualificação das causas potenciais de suas tendências demográficas constituíram uma estratégia central para embasar a construção de uma visão de mundo alternativa, desnaturalizando o extermínio dos povos originários e iniciando um processo de accountability do governo brasileiro, em que os danos causados pelo projeto desenvolvimentista foram colocados em evidência, assim como ganhou destaque a pressão fundiária sofrida pelos indígenas e a ausência de ações adequadas de saúde para esses povos por parte do Estado. Essas transformações, que atravessaram os anos 1980, estão no cerne do Capítulo 8 da Constituição Federal de 1988, em que os direitos à terra, à própria cultura e a políticas culturalmente diferenciadas para saúde e educação são garantidos.
Representando a mudança do estatuto da indianidade no ordenamento jurídico brasileiro, e a nova posição ocupada pelos povos originários como sujeitos de políticas públicas, o primeiro Censo Demográfico Nacional da Nova República, realizado em 1991, incluiu “indígenas” como opção de resposta no quesito de “Cor ou Raça”, divulgando, de forma inédita, um número oficial de indígenas no país - um quantitativo que manteve sua tendência de crescimento desde então (saltando de 294.131 pessoas em 1991 para 1.693.535 em 2022). Esses dados passaram a fundamentar um conjunto variado de políticas públicas específicas para esse segmento.
Em termos de avanços no âmbito da saúde dos povos indígenas, é possível destacar a criação do Subsistema de saúde indígena (SasiSUS) a partir da instauração da Lei Arouca (Lei nº 9.836/1999), à qual se seguiram a formulação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI, em 2002) e a criação de Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI, em 2010). Contrastando com a atenção à saúde indígena conduzida pelo regime militar, calcada na atuação de equipes volantes da Funai, na ausência de dados demográficos e na não sistematização de estatísticas vitais, o modelo atual toma como ponto de partida da saúde as garantias à diferença sociocultural e a busca pelo respeito às definições nativas de bem-viver, compreendendo os povos indígenas como sujeitos de direitos como os demais cidadãos brasileiros. A lição deixada pela articulação contra o regime autoritário no campo da saúde indígena é que não se pode isolar a saúde de suas condições sociais ou ignorar seu contexto político. Em um cenário em que ataques contra minorias étnico-raciais não são exceção, e em que os territórios tradicionais seguem em risco, o direito à saúde desses povos seguirá dependendo do engajamento cotidiano de suas lideranças e seus aliados na construção de um futuro marcado pela visibilidade indígena.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Set 2024 - Data do Fascículo
Out 2024
Histórico
- Recebido
18 Fev 2024 - Aceito
27 Mar 2024 - Publicado
29 Mar 2024