Comunicação em casos de near miss materno: uma análise a partir de Habermas

Aline Veras Moraes Brilhante July Grassiely de Oliveira Branco Monalisa Silva Fontenele Colares Luciana Andrade da Mota Sampaio Sobre os autores

Resumo

O estudo buscou compreender a rede de significados construídos intersubjetivamente por mulheres sobreviventes ao near miss materno sobre os lapsos na assistência à gestação, ao parto e ao nascimento, partindo da teoria da comunicação de Habermas. Optou-se pela metodologia qualitativa, com participação de 14 mulheres sobreviventes ao near miss materno por meio da entrevista narrativa autobiográfica proposta por Schutze, partindo da teoria do agir comunicativo de Jurgen Habermas. A partir da análise, emergiram duas categorias: “escuta seletiva, embates e negligência” e “culpabilização da paciente e a comunicação violenta”. As narrativas descortinam que a relação interpessoal não foi dialógica, e sim pautada em um saber superior em contraposição ao reconhecimento do outro, refletindo nos profissionais uma postura autoritária, não reflexiva e sem a autocrítica ou liberdade crítica genuína, com importantes repercussões na atenção ao usuário. A primazia da racionalidade estratégica e a defesa de um êxito técnico verticalizado contribuíram para importantes lapsos de comunicação na assistência a mulheres que evoluíram para near miss materno.

Palavras-chave:
Comunicação em saúde; Saúde da mulher; Near miss

Introdução

O cuidado centrado na pessoa, incluindo uma comunicação efetiva entre profissional e paciente, constitui uma estratégia importante na redução da morbimortalidade materna11 Bellenzani R, Nemes MIB, Paiva V. Health professional-patient communication and care: evaluation of an intervention for HIV/AIDS treatment adherence. Interface (Botucatu) 2013; 17(47):803-834.,22 Howell EA. Reducing disparities in severe maternal morbidity and mortality. Clin Obstetr Gynecol 2018; 61(2):387.. No extremo oposto, experiências de comunicação ineficazes e/ou violentas são frequentes em narrativas de puérperas que evoluíram para desfechos negativos, como nos casos de near miss materno33 Attanasio L, Kozhimannil KB. Patient-reported communication quality and perceived discrimination in maternity care. Med Care 2015; 53(10):863.,44 Domingues RMSM, Dias MAB, Schilithz AOC, Leal MDC. Factors associated with maternal near miss in childbirth and the postpartum period: findings from the birth in Brazil National Survey, 2011-2012. Reprod Health 2016; 13(3):187-197..

Define-se near miss materno como situações em que a mulher sobrevive após ocorrência de complicações clínicas graves que colocaram em risco sua vida durante a gravidez, parto ou puerpério. A maioria das gestações termina sem intercorrências, mas uma parcela pequena apresenta complicações e a morte materna é a última etapa de uma sequência de eventos em cadeia que iniciam com desordens hipertensivas e hemorrágicas graves, sendo classificadas como condições potencialmente ameaçadoras da vida55 Pattinson RC, Hall M. Near misses: a useful adjunct to maternal death enquiries. Brit Med Bull 2003; 67(1):231-243..

Uma fração das mulheres com condições potencialmente ameaçadoras da vida evoluirá com deterioração clínica, piora de parâmetros laboratoriais e/ou necessidade de cuidados intensivos devido à disfunção ou à falência orgânica. Essas mulheres integram os casos de near miss materno, segundo os critérios estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS)44 Domingues RMSM, Dias MAB, Schilithz AOC, Leal MDC. Factors associated with maternal near miss in childbirth and the postpartum period: findings from the birth in Brazil National Survey, 2011-2012. Reprod Health 2016; 13(3):187-197.

5 Pattinson RC, Hall M. Near misses: a useful adjunct to maternal death enquiries. Brit Med Bull 2003; 67(1):231-243.
-66 Hinton L, Locock L, Knight M. Maternal critical care: what can we learn from patient experience? A qualitative study. BMJ Open 2015; 5(4):e006676, e dessas, uma parcela evoluirá para o óbito.

Por terem sobrevivido e apresentarem perfil semelhante ao das que morreram, as narrativas dessas sobreviventes ao near miss materno contêm informações relevantes sobre quais aspectos do atendimento precisam ser melhorados66 Hinton L, Locock L, Knight M. Maternal critical care: what can we learn from patient experience? A qualitative study. BMJ Open 2015; 5(4):e006676, incluindo os que se referem à comunicação entre profissionais e mulheres44 Domingues RMSM, Dias MAB, Schilithz AOC, Leal MDC. Factors associated with maternal near miss in childbirth and the postpartum period: findings from the birth in Brazil National Survey, 2011-2012. Reprod Health 2016; 13(3):187-197..

Apesar dos estudos que evidenciam o papel das interrelações na continuidade da atenção e qualidade do cuidado77 Almeida HB, Vanderlei LCM, Mendes MFM, Frias PG. As relações comunicacionais entre os profissionais de saúde e sua influência na coordenação da atenção. Cad Saude Publica 2021; 37(2):e00022020.,88 Jesus RPFS, Espírito Santo ACG, Mendes MFM, Samico IC. Health care professionals perceptions of coordination between levels of care in two large municipalities in the State of Pernambuco, Brazil. Interface (Botucatu) 2018; 22(65):423-434., problemas na comunicação são reportados frequentemente na literatura, chegando a valores entre 40% e 66% dos relatos na assistência pré-natal33 Attanasio L, Kozhimannil KB. Patient-reported communication quality and perceived discrimination in maternity care. Med Care 2015; 53(10):863.,44 Domingues RMSM, Dias MAB, Schilithz AOC, Leal MDC. Factors associated with maternal near miss in childbirth and the postpartum period: findings from the birth in Brazil National Survey, 2011-2012. Reprod Health 2016; 13(3):187-197.. Destacamos que falhas na comunicação podem ainda ensejar episódios de violência obstétrica diretamente relacionados à ocorrência de near miss materno99 Lansky S, Souza KV, Peixoto ERM, Oliveira BJ, Diniz CSG, Vieira NF, Cunha RO, Friche AAL. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Cien Saude Colet 2019; 24(8):2811-2824..

Nesse contexto, emerge o questionamento: por que lapsos de comunicação ainda são frequentes na assistência à saúde, particularmente no cuidado à gestação, ao parto e ao nascimento? Quais os lapsos de comunicação comuns às narrativas de mulheres que evoluíram para desfechos negativos? Como esses lapsos de comunicação se relacionam com lapsos atitudinais nos processos de assistência?

Visando responder a esses questionamentos, partiremos do paradigma da comunicação de Jürgen Habermas1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989., para quem os modos de comunicação intersubjetiva diferenciam os tipos de ação social. Habermas apresenta sua teoria como um modo de compreender o conjunto de regras morais que estruturam tanto a linguagem como o agir humano.

Para tanto, o agir comunicativo corresponde às ações orientadas para o entendimento mútuo, em que o ator social tanto inicia o processo circular da comunicação como é produto dos processos de socialização que o formam, partindo de processos de compreensão mútua e consensual. Em contrapartida, o agir estratégico compreende ações orientadas pelo interesse individual para o sucesso como finalidade da interação1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1212 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 2 - sobre a critica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes; 2019..

Assim, definiu-se como objetivo compreender a rede de significados construídos intersubjetivamente por mulheres sobreviventes ao near miss materno sobre os lapsos na assistência à gestação, ao parto e ao nascimento, partindo da teoria da comunicação de Habermas.

Percurso metodológico

Tipo de estudo e participantes

Trata-se de um estudo qualitativo, baseado na técnica de entrevista narrativa autobiográfica proposta por Schütze1313 Schütze F. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Pfaff N, Weller W, organizadores. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes; 1983. p. 210-222., partindo da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.,1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1212 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 2 - sobre a critica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1414 Habermas J. Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70; 1996. como referencial teórico.

Foram convidadas a participar da pesquisa mulheres que estiveram internadas durante a gestação ou o puerpério, no período entre janeiro de julho de 2020, em unidade de terapia intensiva de uma das três maternidades terciárias do município de Fortaleza e que preenchiam critérios para quadro de near miss materno1515 World Health Organization (WHO). Evaluating the quality of care for severe pregnancy complications: the WHO near-miss approach for maternal health. Geneva: WHO; 2011.. O primeiro contato com cada participante ocorreu por telefone, sendo explicados os objetivos da pesquisa e o caráter voluntário da participação. A partir do aceite, os contatos presenciais para leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e agendamento da entrevista ocorreram nas maternidades durante a espera da consulta puerperal. Vinte participantes foram contactadas. Seis pacientes recusaram a participação, não tendo sido inqueridas sobre o motivo da recusa. Participaram da pesquisa 14 mulheres com idades entre 15 e 41 anos, residentes em municípios da Zona Metropolitana de Fortaleza, sendo cinco moradoras da capital. Oito eram casadas e seis solteiras, seis auto-identificadas como brancas, seis como negras e duas como indígenas. O número de consultas pré-natal variou de 3 a 9 (Quadro 1). A duração somada das entrevistas totalizou 780 minutos.

Quadro 1
Caracterização demográfica de uma amostra de mulheres com NNM no estado do Ceará em 2020.

Essas mulheres foram identificadas e recrutadas durante uma pesquisa quantitativa preliminar realizada nas três maternidades terciárias vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Fortaleza. As entrevistas ocorreram entre janeiro e setembro de 2020.

Obtenção dos dados

As entrevistas foram realizadas por médica obstetra com experiência em entrevistas qualitativas e que não participou da assistência a nenhuma das participantes, sendo estruturadas em três etapas (Figura 1). Na primeira foi solicitado à participante um relato espontâneo a partir de uma pergunta gerativa1616 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista Narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes; 2002., a saber: “Estou pesquisando histórias de vida de mulheres que apresentaram complicações graves durante a gravidez, o parto ou após o parto. Para isso peço que você conte a sua história do modo que achar conveniente. Me conte todo o percurso desde o seu pré-natal até a sua internação da UTI e o que aconteceu depois da sua alta. Você pode levar o tempo que quiser, começar e terminar sua história como desejar, contando sua vida de modo que eu compreenda quem você é. Para que você conte sua história livremente, eu não vou interrompê-la. Você deve me dizer quando a história acabou e somente depois eu farei algumas perguntas para esclarecer o que não entendi bem. Certo?”

Figura 1
Etapas da coleta de dados.

Na sequência foram realizadas perguntas imanentes que visavam esclarecer ambiguidades, dúvidas e lapsos narrativos. Na terceira etapa foram realizadas perguntas exmanentes que demandassem da informante racionalizações e teorizações acerca do evento em questão1313 Schütze F. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Pfaff N, Weller W, organizadores. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes; 1983. p. 210-222.,1616 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista Narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.. Os áudios foram transcritos após cada entrevista, agregando-se ao material as notas obtidas com as perguntas exmanentes e com as observações da entrevistadora.

Estruturação das narrativas e análise de conteúdo

O processo analítico baseou-se na proposta de Schütze1313 Schütze F. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Pfaff N, Weller W, organizadores. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes; 1983. p. 210-222., em triangulação com a análise de conteúdo temática-categorial1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015..

Iniciou-se com a construção dos textos narrativos de cada participante, com posterior separação do material indexado (conteúdo racional e concreto) e do material não indexado (conteúdos subjetivos como juízos de valor, sentimentos e reflexões)1313 Schütze F. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Pfaff N, Weller W, organizadores. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes; 1983. p. 210-222.,1616 Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista Narrativa. In: Bauer MW, Gaskell G, organizadores. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Editora Vozes; 2002.. O material indexado foi então ordenado sequencialmente e, para cada evento biográfico elencado, foram desenvolvidas hipóteses e contra-hipóteses sobre o que poderia ter influenciado o contexto, as ações e o desfecho estudado, considerando-se as possíveis consequências dos eventos objetivos. A partir dessa estrutura é produzido o primeiro texto narrativo, unindo dados objetivos situados pelos aspectos contextuais. Esse primeiro texto foi reapresentado às participantes para fins de validação e ajustes de eventuais pontos dúbios sobre os fatos objetivos.

Na sequência houve a primeira interseção com a análise de conteúdo temática. As gravações foram ouvidas diversas vezes e o texto transcrito foi lido de modo flutuante, caracterizando a pré-análise1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015.. Durante essa etapa, além do retorno às hipóteses iniciais, foram identificadas hipóteses emergentes. Os seguimentos foram então classificados segundo o tipo textual em argumentação, descrição e narração, como proposto por Schultze1313 Schütze F. Pesquisa biográfica e entrevista narrativa. In: Pfaff N, Weller W, organizadores. Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes; 1983. p. 210-222.. Em seguida, realizou-se a exploração do material com a identificação de núcleos temáticos1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2015., tendo por base tanto aspectos relacionados à assistência obstétrica e às redes de atenção como a teoria da comunicação de Habermas1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.

11 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.
-1212 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 2 - sobre a critica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1414 Habermas J. Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70; 1996..

Na etapa de construção das narrativas, visou-se evidenciar os processos de racionalização que nortearam discursos e ações, na perspectiva das entrevistadas (como foi dito e porque foi dito daquela forma), e a ligação temporal, causal e temática entre os seguimentos do texto1818 Rosenthal G. Biographical research. In: Seale C, Gobo G, Gubrium JF, Silverman D, editors. Qualitative research practice. London: Sage; 2004. p. 46-64.. Esses eixos temáticos e os fragmentos de textos representativos foram então organizados de modo sequencial, produzindo a narrativa de experiência vivida. A biografia vivida foi então confrontada com a primeira narrativa e com as hipóteses aventadas, a fim de evidenciar similitudes e discrepâncias, fazendo emergir sentidos e significados dos processos biográficos. Após a análise contrastiva, foi construído o texto final de cada narrativa (Figura 2).

Figura 2
Triangulação da análise de dados.

Tendo sido realizado este processo em todas as entrevistas, cada narrativa, a partir da segunda, foi contrastada com as antecedentes, a fim de identificar semelhanças e contrastes, possibilitando identificar o momento de saturação dos dados. Consideramos a saturação dos dados a partir do momento que não surgiram novos eixos temáticos1919 Saunders B, Sim J, Kingstone T, Baker S, Waterfield J, Bartlam B, Burroughs H, Jinks C. Saturation in qualitative research: exploring its conceptualization and operationalization. Qual Quant 2018; 52(4):1893-1907.. A saturação foi alcançada na 12ª entrevista, tendo sido realizadas duas entrevistas adicionais. A análise contrastiva também possibilitou a ordenação categorial dos núcleos temáticos e sua interpretação final com base na lente teórica norteadora deste estudo.

A fim de manter o anonimato, as participantes foram identificadas pela letra M seguida do número que representa sua sequência nas entrevistas. Ressalta-se a aprovação desta pesquisa pelo Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza com o parecer 1.865.363, CAAE 60900216.9.0000.5052, tendo como patrocinadora a FUNCAP, por meio do Programa Pesquisa para o SUS, chamada 01/2017.

Resultados e discussão

A partir da análise, emergiram duas categorias: “Escuta seletiva, embates e negligência” e “Culpabilização da paciente e a Comunicação Violenta”. A adoção da teoria da comunicação de Habermas como lente teórica possibilitou a compreensão das narrativas, a partir das diferentes racionalidades que balizaram argumentações, antagonismos e posturas assumidas.

Escuta seletiva, embates e negligência

As narrativas evidenciaram lapsos de comunicação que comprometeram o entendimento mútuo por meio de uma escuta limitada e a desvalorização das falas das pacientes. Tomemos como exemplo M1, 37 anos, que evoluiu para near miss materno na terceira gestação, mas com história de complicações por desordens hipertensivas na segunda gravidez. Segundo sua narrativa, percebeu-se pouca disponibilidade ao diálogo por parte da profissional:

Ela só respondia que tudo era normal, que era da gravidez. Eu dizia que minhas outras não foram assim e ela respondia “nem toda gravidez é igual” (M1).

O estabelecimento de uma situação comunicativa demanda simetria de participação, com direitos iguais de fala e ausência de coação, existindo diálogo quando há uma troca mútua de perguntas e respostas1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1212 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 2 - sobre a critica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes; 2019.. Para que o princípio da reciprocidade seja atendido, atores devem poder atuar ativamente - falando, agindo, intervindo - com liberdade de comunicação. Esse tipo de construção, identificada por Habermas1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989. como ética discursiva, foi constantemente tolhida na relação de M1 com a profissional.

A ausência de entendimento mútuo, contudo, não deve ser entendida aqui como aceitação passiva por parte de M1. Tendo experenciado complicações hipertensivas graves no final da gestação anterior, conhecia os sinais de alerta, mas tinha dúvidas quanto ao seu quadro atual e sobre a relação dos sintomas recentes com um possível novo caso de agravamento. Por não se sentir contemplada em seus questionamentos, a paciente buscou informações em outras fontes, o que aumentou o atrito com a profissional.

Na outra gravidez, minha pressão foi sempre baixa e só subiu no final mesmo. Nessa agora, a pressão ficava entre 130x90 e 140x100. Nunca foi menos que isso. Eu sentia dor de cabeça e enjoava muito a gravidez inteira. Na consulta de 20 semanas, eu perguntei se esses sintomas não eram da pressão porque foram esses os sintomas que eu senti quando a pressão subiu da outra vez. Ela dizia que não era da pressão, que era da gravidez. Mas eu procurei na internet e conversei com outras pessoas e não entendia por que não podia ser da pressão. Ela ficou com raiva quando eu insisti e nem me deixou terminar. Me interrompeu, entregou a receita e encerrou a consulta. [...] Fui na emergência e também me disseram que era da gravidez. Então desisti de perguntar pros médicos. Ficava controlando com meus chás mesmo (M1).

Tecnicamente, a pré-eclâmpsia (PE) - complicação hipertensiva com potencial de evoluir com critérios de gravidade - apenas se instala após as 24 semanas2020 Montenegro CAB, Filho JDR. Rezende obstetrícia fundamental. Barueri: Grupo GEN; 2017. e provavelmente os sintomas de M1 no início da gestação decorressem de outras causas. A dúvida de M1, contudo, tinha um contexto que foi ignorado pelos profissionais (se esses sintomas estavam associados da desordem hipertensiva na gestação anterior, por que nessa era diferente?). Além disso, na medida em que argumenta contra uma comunicação impositiva, M1 traz sua própria racionalidade para o processo de comunicação1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.,2121 Cittadino G. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris; 2004..

Ao tentar sobrepor sua racionalidade sobre a de M1, as ações da profissional evidenciam o agir de um sobre o outro - e não com o outro -, com o intuito de subjugá-lo com vistas a um fim específico. A resposta simplista (“não é da pressão”) não visava o entendimento mútuo, mas o mero cumprimento operacional de uma função que culminaria em “êxito técnico”2222 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2009..

Para Habermas1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989., a ação no mundo social pode ser estratégica ou comunicativa. A ação estratégica reconhece a possibilidade de decisões de oponentes racionais, mas trata o mundo social e a comunicação de forma utilitarista, estando a ação focada no sucesso como fim. O sucesso nessa forma de condução assistencial seria alcançado pela aceitação por parte do outro de uma razão científica de modo impositivo, por meio do exercício ético e estético da autoridade, caracterizando um modo de agir estratégico1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1212 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 2 - sobre a critica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes; 2019..

Já no agir comunicativo, os atores constroem um entendimento mútuo e harmonizam seus planos de ação. Durante o manejo perinatal, quando predomina o agir comunicativo, um ator é motivado racionalmente pelo outro para uma ação e adesão, consolidando o processo de corresponsabilidade e contribuindo para a redução de riscos e de mortalidade materna desde o pré-parto até o fim do puerpério2323 Korpela M, Fawcus S, M'Rithaa DK, De la Harpe R. The expected and actual communication of health care workers during the management of intrapartum: an interpretive multiple case study. Afr J Prim Health Care Fam Med 2015; 7(1):911., o que não aconteceu no caso de M1. Ao contrário, a invalidação sistemática de suas colocações e a falta de reciprocidade levaram-na a não procurar a emergência quando os sinais de alerta surgiram em etapas mais avançadas da gestação, quando já poderiam estar associados à PE.

Perto da última consulta, comecei a ficar tonta, com muita dor de cabeça e vontade de vomitar. Não era direto, ia e vinha. Eu não fui antes pra emergência de tanto me dizerem que era normal dessa gravidez. Eu media a pressão e dava 150x90. Mas disseram que eu só me preocupasse se desse mais de 160. Aí eu tava tomando dipirona e chá de cidreira pra dor de cabeça [...]. Até o dia em que eu tive uma convulsão e me levaram pro hospital (M1).

Embora no caso de M1 a racionalidade assumida no processo de comunicação tenha contribuído para a identificação tardia da desordem hipertensiva, não é possível caracterizar uma negligência propriamente dita, mas ressalta-se que a qualidade da atenção ao pré-natal e a presença de intercorrências que cursam com acesso tardio ao serviço de saúde emergem como importantes fatores associados à mortalidade materna grave (MMG)2424 Brilhante AVM, Vieira LJES, Branco JGO, Castro AL, Catunda AV, Ribeiro SB, Dias TC, Lima ACMP. Near miss materno como indicador de atenção à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Promoc Saude 2017; 30(4):1-9.. Risco iminente percebido na narrativa de M9, 23 anos, em sua primeira gestação, proveniente de outro município, também com complicações hipertensivas:

[...] toda vez dizia que tava tudo bem. Escutava o coração, media a barriga e tava tudo bem. Com seis meses eu tava muito inchada e perguntei. Disseram que era normal. Eu perguntei de novo, porque a pressão tava 130x80 e antes era 90x70 e minhas pernas estavam muito inchadas. Foi só aí que ele olhou minhas pernas. Mesmo assim, disse que a pressão era porque eu estava nervosa e que eu colocasse as pernas pra cima pra desinchar. Um dia eu tive muita dor de cabeça e fui pro hospital. A Pressão estava 180 (M9).

Embora o edema de membros inferiores e a elevação da pressão sistólica para 130 não sejam critérios diagnósticos, são fatores de suspeição, que foram ignorados pelo profissional2020 Montenegro CAB, Filho JDR. Rezende obstetrícia fundamental. Barueri: Grupo GEN; 2017.. Neste caso, para além do agir estratégico, as ações conduziram para uma prática assistencial negligente.

Negligência e banalização dos relatos das mulheres também estiveram presentes nas narrativas sobre o puerpério, ainda durante a internação, como observamos nas falas de M8, de 15 anos, na primeira gravidez, e M12, de 20 anos, na segunda gravidez, assistidas em instituições e municípios distintos, que apresentaram quadros de near miss materno associados a hemorragia genital:

Eu tava sangrando muito. Minha mãe avisou um monte de vezes. Mas disseram que era normal. Veio uma enfermeira olhar meu absorvente, mas disse que tava normal. De madrugada, eu tava branca. Minha mãe gritou que eu tava sangrando e ninguém fez nada. [...] Eu desmaiei quando tentei me levantar (M8).

Minha filha nasceu bem, só que eu fiquei sangrando. Eu dizia pra enfermeira, mas ela dizia que era normal. De madrugada eu comecei a sangrar mais. Fui me levantar pra ir no banheiro e desmaiei (M12).

No agir comunicativo, a racionalidade se refere à capacidade dos sujeitos de adotar uma atitude reflexiva e crítica2121 Cittadino G. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris; 2004.. A racionalidade estratégica, por outro lado, tem foco definido no sucesso1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.. Considerando que as duas principais causas de morte materna no Brasil são exatamente complicações relacionadas a síndromes hipertensivas e a hemorragias2525 Dias MAB, Domingues RMSM, Schilithz AOC, Nakamura-Pereira M, Diniz CSG, Brum IR, Martins AL, Theme Filha MM, Gama SGN, Leal MC. Incidencia del near miss materno en el parto y posparto durante la hospitalización: datos de la investigación Nacer en Brasil. Cad Saude Publica 2014; 30(Supl. 1):S169-S181., chama atenção a negligência de profissionais quanto aos sinais relatados de condições potencialmente ameaçadoras da vida. Qual o sucesso possível com esse tipo de negligência recorrente nas narrativas?

Para essa interpretação, recorremos a um curto fragmento de texto que se repetiu, com palavras iguais ou equivalentes, em 11 das 14 narrativas:

Ele/ela disse que ele/ela era o/a profissional, que tinha estudado pra isso.

Na sequência dessa afirmação, em todos os casos seguiu-se uma tentativa de invalidação, exemplificada pelo segmento da narrativa de M12, de 20 anos, com complicações hemorrágicas:

[...] disse que eu parasse de perguntar por que o que precisava ser feito já tinha sido feito. Eu perguntei o que foi feito e ela saiu fingindo que não escutou (M12).

Ocorre que toda ação visa gerir fragmentos de mundo de acordo com um tema ou situação, que emerge, por sua vez, dos interesses dos atores1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.,1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.. Desse modo, as situações de fala e os planos de ação retratados nas narrativas sugerem que profissionais e mulheres, nesses casos, apresentavam temas (objetivos) diferentes. Essa inferência é aparentemente paradoxal, considerando que ambos deveriam objetivar o melhor desfecho terapêutico. Nesse ponto vale questionar então qual seria o foco principal para cada um dos atores.

No agir comunicativo, os planos de ação demandam a apreensão do mundo do objeto, do mundo social e do mundo subjetivo, permitindo a diferenciação entre o que é intersubjetivo e o que é construído por conteúdo da comunicação e validado racionalmente1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.. Em contrapartida, na racionalidade estratégica, o mundo é interpretado partindo de uma perspectiva específica. Ao não admitir criticidade, no agir estratégico, justifica-se quaisquer meios para atingir um fim. Nesse sentido M1 e M8 argumentam:

É como se nada do que a gente dissesse tivesse valor. Só tem valor se vem de outro médico ou enfermeiro. A gente é o mesmo que nada (M1).

Bastou eu dizer que minha experiência era diferente pra postura dele mudar da água pro vinho. Minha sensação é que ele estava mais preocupado em estar certo do que em entender o que eu estava querendo dizer (M8).

As falas sugerem que, conforme o modo de atuação é questionado - considerando que a racionalidade estratégica não admite críticas -, a defesa desse meio o torna um fim em si mesmo, justificando inclusive a negligência1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.,1111 Habermas J. Teoria do agir comunicativo 1 - racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes; 2019.,1414 Habermas J. Racionalidade e comunicação. Lisboa: Edições 70; 1996., como um mecanismo de retaliação, como argumentou M8:

Se você chama, reclama ou questiona alguma coisa que eles fazem ou o modo como fazem, você é considerada implicante e eles começam simplesmente a ignorar você. Eu fiquei internada muitos dias e vi isso acontecer com várias mulheres. Quando a mulher ou a acompanhante é considerada implicante tudo atrasa, de medicação até comida (M8).

A insistência das mulheres em trazer à tona suas racionalidades, apesar das tentativas de sobreposição da razão dos profissionais, nos leva a um olhar histórico para a humanização do cuidado, que segue em construção. Em que uma obstetrícia hegemônica, consolidada no modelo biomédico, vem a ser contraposta por um modelo de cuidado com foco no ciclo gravídico-puerperal, com mulheres participando com autonomia e protagonismo de seu processo de gestação, parto e puerpério2626 Santos MPS, Capelanes BCS, Rezende KTA, Chirelli MQ. Humanização do parto: desafios do Projeto Apice On. Cien Saude Colet 2022; 27(5):1793-1802..

Culpabilização da paciente e a comunicação violenta

Outro fenômeno presente nas narrativas foi a transferência da responsabilidade de eventuais falhas exclusivamente para a paciente, como nos relata M2, que apresentou complicações relacionadas a um quadro de diabetes de difícil controle no período gestacional, que evoluiu com complicações metabólicas graves e óbito fetal:

Eu sabia que tinha diabetes e que ela estava descompensada. Eu pedi pra me mandarem pro endocrinologista, mas tava na fila de espera e o médico disse que era pra ir pro Pré-Natal de Alto Risco. Eu pedi pra ajustarem medicação, mas de novo disse que era no Pré-Natal de Alto Risco. Só que me mandaram pra muito longe. Eu não tive condições de ir no dia da consulta. Quando eu voltei no posto, a enfermeira disse que se meu bebê morresse a culpa era minha, que era irresponsável. [...] Quando eu me dei conta que meu bebê tinha morrido, eu me lembrava dessa frase, e, pra ser sincera, acho que foi minha culpa mesmo [disse chorando] (M2).

Não se questiona a importância do pré-natal de alto risco em casos como o de M2. Contudo, o teor acusatório da declaração ignorou os inúmeros lapsos do sistema, desde a dificuldade de agendamento com endocrinologista até falhas no sistema de regionalização, com encaminhamento para assistência em local distante para a paciente.

A responsabilização da paciente por potenciais desfechos negativos, como nesse caso, não poderão alcançar uma racionalidade comunicativa, já que não preza pelo entendimento mútuo. Ao contrário, ao culpabilizar exclusivamente a paciente, retirando do serviço qualquer responsabilidade, a culpabilização atua na defesa de um êxito técnico e, consequentemente, do agir estratégico1010 Habermas J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1989.,2727 Jalles MP, Santos VSJ, Santos Reinaldo AM. Análise da produção científica sobre comunicação terapêutica no campo da saúde, saúde mental e álcool e outras drogas. Rev Med 2017; 96(4):232-240.. Nesse sentido, a comunicação violenta pode apresentar uma intenção protetiva do emitente, como argumentou M10:

Eu sinto que eles transferem a responsabilidade pra você. Tipo dizendo que eles mandaram e se a gente não faz é culpa nossa. [...] Mas eu não acho que me explicaram direito e acho que a culpa toda maior é disso, de eu não ter entendido (M10).

Essa transferência de responsabilidade também se constitui em estratégia coercitiva de convencimento, tratando-se, portanto, de comunicação violenta e, como evidenciam as narrativas, ineficaz. Observamos, portanto, que a busca pela sobreposição de uma razão sobre outra como um fim pode culminar em formas agressivas de comunicação. Essa violência pode se manifestar tanto na escolha das palavras como nas atitudes que compõem performances comunicativas, como podemos observar na fala de M3, que também apresentou um quadro de diabetes gestacional:

Quando eu voltei com os primeiros exames, meu açúcar estava mais alto que o normal, mas não era nível de diabetes. Ela me mandou fazer dieta. Eu estava fazendo, mas continuava engordando e a doutora começou a ser muito grosseira. [...] A consulta era assim: eu chegava na sala com o peso e a pressão no papelzinho, ela olhava e dizia, “Quer morrer? Se quiser, fica com esse peso. Você está sendo irresponsável com seu filho” [...]. Eu estava fazendo o que eu podia (M3).

Segundo M3, não houve encaminhamento para profissional nutricionista, tampouco foi questionada sobre seus modos de alimentação. Ao contrário, a postura era sempre acusatória.

Eu disse que estava cortando tudo e ela respondeu caçoando assim: “Todo gordo diz que passa fome. É impressionante” (M3).

Ressalte-se que, ao contrário do observado em alguns casos anteriores, não houve negligência na assistência a M2 e M3. Ao contrário, as condutas inferidas pelas narrativas e pelas análises dos cartões de pré-natal foram tecnicamente adequadas, o que não as exime de violência. O termo violência admite múltiplas interpretações, mas de modo geral se refere a uma ação coercitiva e intencional, que perturba uma ordem natural, causando danos ou sofrimento2828 Michaud Y. A violência. São Paulo: Editora Ática; 2001..

A suposta falta de intencionalidade é frequentemente utilizada para descaracterizar uma violência como tal. Cabe, contudo, destacar que a intenção no caso se refere ao uso de força ou coerção, e não necessariamente de causar o dano em si2929 Dahlberg LL, Krug EG. Violência: um problema global de saúde pública. Cien Saude Colet 2006; 11(Supl.):1163-1178.. Portanto, na medida em que há intenção de coerção em detrimento ao entendimento mútuo, e que desta resulta dano ou sofrimento, há violência.

O sujeito de ações utilitaristas parte dos meios possíveis para impor sua perspectiva, seja pela ameaça de sanções, seja pela persuasão ou por uma manipulação hábil das alternativas de ação, admitindo o consenso apenas quando este é obtido de forma verticalizada. Ocorre que o entendimento, buscado de forma unilateral sob a reserva da instrumentalização para o êxito, não preenche as condições de um consenso alcançado de forma não-coercitiva2222 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2009..

A recorrência de comunicações ineficazes e frequentemente violentas em relatos de mulheres assistidas por equipes distintas evidencia que o hábito da comunicação terapêutica, embora de grande relevância, não é uma conduta confortável para muitos profissionais3030 Hilder J, Stubbe M, Macdonald L, Abels P, Dowell AC. Communication in high risk ante-natal consultations: a direct observational study of interactions between patients and obstetricians. BMC Pregnancy Childbirth 2020; 20(1):493.. Essa inferência encontra respaldo na ideia de que a violência é normalmente instrumentalizada e frequentemente executada em prol de objetivos coletivos de um grupo3131 Habermas J. O conceito de poder de Hannah Arendt. In: Rouanet SP, Freitag B, organizadores. Habermas: sociologia. São Paulo: Ática; 1980. p. 109-124..

No caso dos profissionais de saúde, alinha-se ao objetivo de manter uma ilusão de poder. Digo ilusão porque, como nos lembra Arendt3232 Arendt H. Poder e violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2001. (p. 44), “Poder e violência são opostos. Onde um governa absoluto, o outro está ausente. A violência aparece quando o poder está em perigo, mas entregue à sua própria sorte”. Desse modo, a crença irrefletida sobre a primazia do discurso do profissional e a ilusão de poder que a acompanha culminam em ações estratégicas que, em última análise, objetivam desqualificar a necessidade do entendimento mútuo, com uma pretensa superioridade do saber técnico.

A corresponsabilidade desenvolvida entre profissional e paciente torna-se parte da terapêutica e fomenta uma posição simétrica no diálogo. Essa postura em nada direciona poder em demasia para o paciente. Ao contrário, o agir comunicativo reduz desigualdades, humaniza a conduta e promove saúde. Essa postura consolida a adesão terapêutica e tem muitos benefícios, como a melhor identificação de agravos, fortalecendo o diagnóstico e a indicação médica. Também facilita a compreensão da paciente acerca da conduta e do tratamento, promovendo a adesão e fortalecendo a relação profissional-paciente3333 Popa-Velea O, Purcarea VL. Issues of therapeutic communication relevant for improving quality of care. J Med Life 2014; 7(Spe. 4):39..

Considerações finais

Os achados desta pesquisa nos mostram como a primazia da racionalidade estratégica e a defesa de um êxito técnico verticalizado contribuíram para importantes lapsos de comunicação na assistência a mulheres que evoluíram para near miss materno.

A falta de reflexão atitudinal e a construção de uma assistência verticalizada estabelece uma situação comunicativa assimétrica, que busca se sustentar na unilateralidade do discurso e na passividade dos pacientes. Embora todas as pessoas sejam dotadas de racionalidade, quando elas não assumem uma atitude de passividade e quebram a ilusão de um entendimento por essas vias, a defesa dos meios os torna um fim em si mesmo, podendo culminar em comunicações coercitivas.

Essas formas violentas de comunicar e agir se aliam à tentativa de restaurar uma ilusão de poder. Dizemos ilusão porque o poder e a autoridade reais não demandariam coerção. A defesa irrestrita do discurso do profissional culmina, desse modo, em ações que, em última análise, visam desqualificar a necessidade do entendimento mútuo. A falta desse alinhamento, contudo, culmina em comunicação ineficaz, associando-se a piores desfechos, como os encontrados nas narrativas.

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  • Financiamento

    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
  • Publicado
    05 Out 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br