O universo digital tecnocrático sem uma (bio)ética do cuidado: descuidos e desvinculações

The technocratic digital universe without a (bio)ethics of care: neglects and disconnections

Karla Patrícia Cardoso Amorim Sobre o autor
2024

A obra Tecnocracia y desvinculación: descuidos éticos del universo digital11 Domingo A. Tecnocracia y desvinculación: descuidos éticos del universo digital. Zaragoza: TEELL Editorial; 2024., de autoria de Agustín Domingo Moratalla, publicada em 2024 como continuidade das reflexões anteriores do autor22 Domingo A. Del hombre carnal al hombre digital: vitaminas para una ciudadanía digital. Zaragoza: TEELL Editorial; 2021.,33 Domingo A. Homo curans: el coraje de cuidar. Madrid: Ediciones Encuentro; 2022., aborda questões envolvendo ética, democracia e tecnologia relacionadas à digitalização e à inteligência artificial (IA) no mundo da vida, repensando seus alcances éticos e antropológicos. Escrita como um conjunto de ensaios articulados em 12 Capítulos em torno da ideia-chave de uma tecnocracia do universo digital como um poder que condiciona os valores da convivência social e política, afetando todos os contextos da vida, a obra destaca os descuidos éticos responsáveis por importantes desvinculações, interpelando a todos para que evitem tais descuidos.

No Capítulo 1 são apresentados os marcos interpretativos que conduzirão as reflexões sob a perspectiva de uma ética do cuidado personalista comunitária. Com foco antropológico, sem perder de vista aspectos políticos e organizacionais, aponta prioridades e poderes que capacitam e incapacitam a prevenção de descuidos éticos e desvinculação em todos os âmbitos, principalmente no educativo: revisão dos papéis da atenção, discernimento, desconexão e deliberação; consciência de vínculo; promoção da cultura do cuidado, em vez do descarte; responsabilidade solidária, entre outros. Esclarece o sentido hermenêutico dado ao termo “universo digital” como “cultura” ou “cidadania digital”, uma interpretação sociocultural “porque afeta os modos de imaginar, conhecer, sentir, atuar e, em definitivo, de intervir institucionalmente na história” (p. 16).

O Capítulo 2 aborda os descuidos no horizonte educativo e as mudanças importantes de participação juvenil, sobretudo a associação e o ativismo digital, destacando que essa socialização não está mais pautada nos parâmetros de “tecido social”, mas de “enxame digital”44 Han B-C. En el enjambre. Barcelona: Herder Editorial; 2014.. Conclui mostrando dez desafios importantes que a cultura digital apresenta às coordenadas ético-políticas de programas tradicionais de cidadania ativa.

No Capítulo 3, o cuidado é abordado como conceito fundamental e categoria ética da educação no universo digital. Reflete-se sobre a necessidade do cuidado integral com base em critérios como a atenção como urgência educativa, evitando sua captação e monopolização pelas máquinas e redes; a responsabilidade e excelência na missão educativa; liberdade como compromisso, entre outras necessidades. Isso requer uma pedagogia integral que transcenda uma pedagogia instrumental, promovendo uma razão cordial, aberta e ampliada.

O descuido das virtudes (definidas como caráter e qualidade humana para a operacionalização do bem) na educação moral e nas políticas educativas é tema do Capítulo 4. Destaca-se que a aprendizagem das virtudes é uma das tarefas mais negligenciada na educação humanista, por constituir reflexões incômodas, que abordam questões antropológicas e metafísicas em tempos indolores e pós-metafísicos. Aponta para uma atualização dos horizontes e a normalização do ensino das virtudes em um diálogo entre o personalismo comunitário e abordagens fecundas, como o enfoque das capacidades55 Nussbaum MC. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes; 2013.,66 Sen A. Escolha coletiva e bem-estar social. São Paulo: Almedina; 2018..

O Capítulo 5 é dedicado às reflexões sobre o vigor de uma hermenêutica entranhável defendida pelo filósofo Jesús Conill77 Conill J. Intimidad corporal y persona humana: de Nietzsche a Ortega y Zubiri. Madrid: Tecnos; 2019., frente ao descuido da alma (relacionada às partes mais intimas e essências das coisas) em sociedades que parecem condenadas à desvinculação. Traz reflexões importantes sobre recuperação da consciência, o significado ético de tempo e sua relação com o ser.

Continuando nessa mesma abordagem de aspectos essenciais para se evitar descuidos éticos, o Capítulo 6 recupera o significado complexo de intimidade, na busca de um reencantamento responsável e solidário.

Com o título “O descuido da capacidade de perguntar em uma cidadania digital”, o Capítulo 7, dialogando com as chaves filosóficas de uma pedagogia transformadora e radical proposta pelo Papa Francisco, analisa a reconstrução da razão prática na segunda metade do século XX e as transformações da filosofia em sentido amplo. Apresenta uma proposta pedagógica centrada na admiração, no assombro e na capacidade de fazer boas perguntas, em vez das certezas, da segurança e das respostas fechadas, assemelhando-se às ideias complexas defendidas por Morin88 Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.. Discorre sobre uma globalização solidária, responsável e esperançada; ou seja, uma ecologia integral promotora de um cuidado da casa comum, bem como um encontro produtivo entre os mínimos de justiça (ética mínima) na promoção de uma cidadania global com máximos de felicidade (ética máxima).

A proposta do Capítulo 8 é chamar a atenção para mitificação da IA e refletir sobre a necessidade de não se descuidar de categorias básicas em prol da construção de uma ética da cidadania digital: cuidado com o tempo (vivido e narrado), discernimento, apropriação e nossa responsabilidade.

O Capítulo 9 é inspirador, trata do descuido do amor. A filosofia do amor é abordada como religação necessária, alicerçada na compreensão dialógica, em valores em si e no bem, como vontade do espírito que move o ser. Nesse sentido, dialoga com os pensamentos de relevantes filósofos espanhóis: Antonio Torró, Lain Entralgo, Ortega y Gasset e Diego Gracia; bem como com sua trajetória pessoal de filósofo, professor, católico, pessoa convicta de responsabilidade cívica e da vivência da ética pensada no cotidiano da vida, denominada por ele de “bioeticamente mobilizada”.

No Capítulo 10, igualmente inspirador, o autor disserta sobre o descuido de um realismo esperançado, que metaforicamente intitula de “profetismo” no universo digital, frente aos acúmulos tecnológicos, à globalização da indiferença e aos desafios culturalmente urgentes: curar pessoas, sendo central a noção de pessoa, construir e cuidar de vínculos. O faz expondo toda a sua condição de cristão católico, presente em muitas outras partes do livro direta ou indiretamente, almejando não ser preciso ofuscar tal condição quando do exercício das múltiplas presenças na vida pública, por serem complementares à ética do cuidado e à promoção de uma responsabilidade solidária.

Dedicado a chamar atenção para os descuidos da ética cívica (potente conceito reelaborado pelo autor), o Capítulo 11 inicia interrogando o termo “batalha cultural”. Debate as relações entre cultura e política, convicções e responsabilidades, tradições culturais e reformas legislativas democráticas, reflete sobre a polarização induzida, o público e o político, a cultura do cancelamento e a liberdade de expressão, a desmoralização e o desfoque da ética civil, entre outras. Concebendo a cultura como fonte de sentido para o mundo da vida, traz reflexões pertinentes e profundas sobre a vitalidade e os dinamismos dos “conflitos de interpretações” culturais presentes nos espaços públicos de deliberações: liberdades e direitos frente a tendencias despóticas de governanças digitalizadas; colonização da vida cotidiana pela economia, pelo direito e pela política; esforço permanente para proteger a trama moral do mundo da vida da patrimonialização estatal, mercantil ou jurídica; e promoção de cuidado generativo.

O último capítulo, intitulado “O descuido da vinculação em uma governança digital e global”, remete ao título do livro. Desenvolve essa temática amparado na perspectiva de uma bioética como paradigma para as demais éticas aplicadas, questionadora de quase todos os saberes atuais, grande “salvadora” da ética como filosofia moral e política. Sinaliza seu potente caráter de ponte99 Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs/New Jersey: Hall/Prentice; 1971., buscando religar ciência e valores; racionalidade científica e suas consequências; razão instrumental e razão comunicativa; biografia e biologia. Adverte para a necessidade de ética com fundamentos, uma ética global pautada no princípio da corresponsabilidade solidária, um teste de coerência e integridade para o dinamismo do bom e do justo nas políticas públicas, que terão desafios complexos para a transformação da democracia em benefício do bem comum.

De modo conclusivo, fica evidente a importância e a urgência das múltiplas questões trazidas pela obra sobre os descuidos que devem ser evitados pelo “frenesi” digital, gerador de dependência, sofrimento, negligências e descuidos, diante do descompasso acelerado entre o universo digital e o tempo humano necessário para compreensão e reflexão, afetando o universo simbólico que nos proporciona sentido do viver e conviver. Traz à baila a potência da bioética na perspectiva original proposta por Potter99 Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs/New Jersey: Hall/Prentice; 1971.,1010 Potter VR. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Loyola; 2018. e uma ética do cuidado com fundamentos-chave da complexidade defendida por Morin, sem citá-los diretamente, como caminhos fecundos para religação e não desvinculação.

Referências

  • 1
    Domingo A. Tecnocracia y desvinculación: descuidos éticos del universo digital. Zaragoza: TEELL Editorial; 2024.
  • 2
    Domingo A. Del hombre carnal al hombre digital: vitaminas para una ciudadanía digital. Zaragoza: TEELL Editorial; 2021.
  • 3
    Domingo A. Homo curans: el coraje de cuidar. Madrid: Ediciones Encuentro; 2022.
  • 4
    Han B-C. En el enjambre. Barcelona: Herder Editorial; 2014.
  • 5
    Nussbaum MC. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: Martins Fontes; 2013.
  • 6
    Sen A. Escolha coletiva e bem-estar social. São Paulo: Almedina; 2018.
  • 7
    Conill J. Intimidad corporal y persona humana: de Nietzsche a Ortega y Zubiri. Madrid: Tecnos; 2019.
  • 8
    Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.
  • 9
    Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs/New Jersey: Hall/Prentice; 1971.
  • 10
    Potter VR. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Loyola; 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2024
  • Aceito
    04 Jul 2024
  • Publicado
    06 Jul 2024
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