Saúde e Ciência na ditadura militar brasileira (1964-1985)

Gilberto Hochman Sobre o autor

O regime autoritário inaugurado pelo golpe civil-militar de 1964, sua ideologia, políticas e programas tiveram profundas consequências para a sociedade brasileira. Foram tempos de “milagre econômico”, mas também de crises e aprofundamento das desigualdades, de criação e destruição de instituições, de censura e violação dos direitos humanos e de resistência e pensamento crítico. A saúde e a assistência médica no regime militar foram objeto de intensa reflexão da saúde coletiva, entre fins dos anos de 1970 e a primeira década da redemocratização do país, trabalhos importantes foram publicados sobre o tema. Essas análises, fundamentais na construção da própria saúde coletiva e na luta pela democracia e pela reforma sanitária, deixou de frequentar a agenda intelectual e política do campo. Este passou a focalizar o Sistema Único de Saúde, sua implantação, avanços, percalços e desafios. Historiadores e cientistas sociais têm se dedicado a compreender as múltiplas faces e facetas da ditadura militar, produzindo um conjunto amplo de obras e de interpretações incontornáveis para pensar o Brasil, ontem e hoje. Contudo, ainda há poucos estudos mais recentes, livros em particular, sobre saúde, assistência médica e sobre ciência e tecnologia durante o regime autocrático. Alguns importantes livros apontaram caminhos de pesquisa que começam a ser trilhados e ampliados11 Menicucci TMG. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.

2 Mota RPS. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar Editora; 2014.
-33 Santos DGE. Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970). São Paulo: Hucitec Editora; 2020..

Este número temático, composto por oito artigos de historiadores e cientistas políticos, tem como objetivo revisitar temas como a política de assistência médica e a saúde indígena e discutir programas da ditadura militar ainda pouco examinados. Os artigos analisam o Programa Integrado de Doenças Endêmicas (PIDE) e as relações entre o regime e a comunidade científica no campo da pesquisa biomédica, as campanhas publicitárias do então recém-criado Programa Nacional de Imunizações (PNI) e as relações entre militares e política de assistência farmacêutica a partir da Central de Medicamentos (CEME). A dimensão repressiva do regime está presente no exame das marcas da ditadura em instituições científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz, que estão inscritas em arquivos pessoais e institucionais. A participação de médicos nos aparatos repressivos e as perseguições e resistências no âmbito das faculdades de medicina, no caso da Universidade de São Paulo, são temas ainda sensíveis e pouco discutidos, mas enfrentados nesse dossiê.

Passados 60 anos do golpe militar e quatro décadas de vida democrática, estamos experimentando um período de negacionismo científico e histórico, e de ataques à democracia, à Constituição de 1988, aos direitos nela consagrados e às políticas sociais. Torna-se, portanto, fundamental analisar, a partir de novos temas e objetos, e com novas perspectivas, a ciência e a saúde durante essa “página infeliz da nossa história”. Conhecer essa história, debater os diferentes impactos do regime militar, suas muitas contradições e os seus legados indeléveis na ciência e na saúde, é parte indissociável da defesa dos avanços institucionais e políticos alcançados a partir de 1985 e da possibilidade de imaginar e conquistar novos futuros. Esse conhecimento é necessário à promoção de políticas de memória, verdade e justiça, ainda tímida no campo da saúde coletiva, e para atualizarmos o sentido da conferência de Sérgio Arouca em março de 1986 na VIII Conferência Nacional de Saúde, um ano após o fim da ditadura militar: “Saúde é Democracia”.

Referências

  • 1
    Menicucci TMG. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.
  • 2
    Mota RPS. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar Editora; 2014.
  • 3
    Santos DGE. Massacre de Manguinhos: a ciência brasileira e o regime militar (1964-1970). São Paulo: Hucitec Editora; 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2024
  • Publicado
    10 Jul 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br