Ditadura Militar e a Faculdade de Medicina-USP: o Curso Experimental de Medicina, 1967-1982

André Mota Lilia Blima Schraiber Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é estudar historicamente o impacto sofrido pela Faculdade de Medicina-USP quando ela apoiou formalmente o regime militar que se estabelecia no Brasil a partir de 1964 e os reflexos desse apoio em seu cotidiano. Outro objetivo é apresentar como esse contexto, vivido entre perseguições, prisões e torturas, interveio também em ações de ordem didático-pedagógica, como na criação de um novo modelo de ensino médico no ano de 1967, conhecido como Curso Experimental. Esse curso seria imediatamente atacado por grupos que o viam como um reduto comunista e uma ameaça à tradição da chamada “Casa de Arnaldo”, logrando o encerramento de suas atividades no ano de 1974.

Palavras-chave:
Ditadura Militar; Violência Institucional; Faculdade de Medicina-USP; Curso Experimental

O direito à verdade recebeu atenção, ainda, do Alto Comissariado para Direitos Humanos a partir de 2006, quando foi publicado o estudo sobre o direito à verdade, que define o direito de saber a “íntegra e completa verdade” sobre as causas que levaram à vitimização, as causas

e condições para as graves violações de direitos humanos e de direito humanitário, o progresso e os resultados de investigações, as circunstâncias

e razões para o cometimento

de crimes internacionais, as circunstâncias

em que as violações ocorreram e, finalmente,

a identidade dos perpetradores11 Brasil. Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório: textos temáticos. Volume II. Brasília: CNV; 2014..

Os tempos sombrios [...] não só não são novos, como não representam uma raridade histórica [...]. Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz22 Arendt H. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio D'Água; 1991..

Introdução

Gestada ao longo da segunda metade dos anos 197033 Vieira-da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O que é Saúde Coletiva. In: Paim JS, Almeida Filho N, organizadores. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook; 2014. p. 3-12., a Saúde Coletiva, como uma nova área no campo da Saúde, é nessa origem atravessada por questões ético-políticas e institucionais do regime ditatorial instalado no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1960. Área comprometida com a relação entre saúde e sociedade, encontrou solo fértil nos departamentos criados nas escolas médicas entre os anos 1950-60, no interior do movimento preventivista. No entanto, logo se viu inserida num contexto politicamente sombrio, quando as próprias escolas médicas foram partícipes, e em muitos casos bastante envolvidas, no fortalecimento desse regime ditatorial. O presente estudo examina uma dessas situações: a que ocorreu na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Num manifesto publicado na imprensa em 1964, parte da corporação médica se posiciona contra o comunismo que estaria ameaçando o Brasil, por estar vivendo a população de uma “nitridização mental”, o que queria dizer segundo o grupo, “um sistema que leva ao embotamento da percepção, à justificação do comodismo, à instalação do conformismo e até da cooperação inocente de muitos através de método reflexivo condicionados”44 O Estado de S. Paulo. Médicos e democracia. 1964 mar 8. p. 7. (p.7). Essa menção deixava claro que a corporação estaria ligada a outras movimentações que acabariam desaguando no golpe de Estado de 1964, ganhando nesse grupo apoiadores ou opositores ferrenhos:

A extensão e a profundidade do envolvimento de médicos brasileiros com as lutas políticas do país durante os 21 anos do regime podem ser medidas tanto pela aproximação e prestação de serviços de médicos à ditadura quanto pela oposição, organizada ou não, de médicos ou estudantes de medicina ao arbítrio. Na vivência das lutas políticas de sua época, individual e coletivamente, médicos apoiaram ou combateram a ditadura, sendo, inclusive, afetados em suas práticas e no desenvolvimento de suas carreiras profissionais, seja por algum tipo de benefício, seja por algum tipo de perseguição55 Chevrand CG. Doutores da ditadura: médicos, repressão política e violações de direitos humanos no Brasil (1964-1985) [dissertação]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz; 2021. (p.31).

No caso paulista, não há dúvida sobre sua contribuição na consolidação da estratégia de repressão sistêmica, chegando em muitos casos à eliminação de opositores, exemplarmente indicado no caso da participação dos médicos legistas na adulteração de documentos sobre mortos e desaparecidos pelo regime, apresentado em Relatório da Comissão da Verdade, demonstrando que entre 1969 e 1976:

[...] foram descritos 51 casos de opositores assassinados, a maioria absoluta sob tortura. Trinta e três legistas assinaram laudos necroscópicos falsos [...] Isaac Abramovich, Orlando José Bastos Brandão e Abeylard Queiróz Orsini - concentram 44 laudos cadavéricos. Harry Shibata, o mais famoso dos legistas fraudadores, pelo caso Wladimir Herzog, assinou oito laudos falsos66 Botazzo C. Percursos da memória, da verdade e da (improvável) reparação, ou justiça de transição inacabada. In: Mota A, Marinho MGSMC, Nemi A, organizadores. Medicina em contexto de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: UFABC; 2017. p. 13-38. (p.31-32).

Formada pelos médicos Elzira Vilela, Eva Teresa Skazufka e Pedro Paulo Chieffi, e pela cientista social Emilia Emiko Kita Lopes, a Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública - Núcleo da Comissão Nacional da Verdade da Reforma Sanitária, apresentada no ano de 2014, trouxe um documento dos mais importantes, que “aponta o nome dos médicos legistas do IML de São Paulo que assinaram laudos necroscópicos de presos políticos mortos no Estado de São Paulo, no período de 1969 a 1976, quando estavam em poder dos órgãos de segurança”77 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva. Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública. Núcleo da Comissão Nacional da Verdade da Reforma Sanitária. Assassinatos de Opositores Políticos no Brasil: laudos falsos e fraudes praticadas por legistas no Instituto Médico Legal de São Paulo durante a ditadura civil-militar, 1946-1985. São Paulo: Alesp; 2014. (p.5). Foram apresentados nesse levantamento 51 casos de presos políticos desaparecidos e com laudos comprovadamente falsos, demonstrando a ligação estabelecida entre os órgãos repressores e médicos legistas do Instituto Médico Legal de São Paulo:

Segundo versão oficial em 15-03-1973, três militantes (Arnaldo Cardoso Rocha, Francisco Emanoel Penteado e Francisco Seiko Okama) teriam sido localizados à rua Caquito, Penha, SP, e, após tiroteio, dois teriam sido mortos no local e o terceiro, após tentativa de fuga, morto nas proximidades [...] a mesma versão consta das requisições dos exames necroscópicos encaminhadas pelo DOPS-SP ao IML-SP e nos laudos necroscópicos assinados pelos legistas Isaac Abramovitc e Orlando Brandão. Em depoimento à comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, o professor universitário baiano Amilcar Baiardi, preso no DOI/CODI na época, declarou que viu, pela janela, dois jovens feridos jogados na quadra de esportes e, aparentemente sendo interrogados, em meio a regozijos e comemorações ruidosas dos agentes. Um tinha traços orientais e era chamado pelos agentes de “japonês”. Foram deixados ali por mais de uma hora, até serem recolhidos por um rabecão do IML. O outro jovem era Arnaldo Cardoso Rocha77 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva. Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública. Núcleo da Comissão Nacional da Verdade da Reforma Sanitária. Assassinatos de Opositores Políticos no Brasil: laudos falsos e fraudes praticadas por legistas no Instituto Médico Legal de São Paulo durante a ditadura civil-militar, 1946-1985. São Paulo: Alesp; 2014. (p.28-29).

Essa articulação entre os médicos legistas e o centro de tortura em São Paulo indica ramificações mais complexas, para além do universo policial do período, ganhando espaços e interlocução em outras esferas, como do mundo médico, entre elas, o da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, centro formador médico mais importante do país. Nesse sentido, este estudo busca ampliar o olhar para esse período de tensão atentando para o dia a dia da faculdade, acompanhando os conflitos que eclodiram com o estabelecimento de um regime de exceção entre professores, alunos e funcionários, um período de radicalização da atuação da censura e de recrudescimento do regime político em termos repressivos88 Aquino MA. Censura, imprensa e estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência, O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: EDUSC; 1999. (p.212). Além disso, também atenta para o fato paradoxal de que, no mesmo período, há a formulação, a aprovação institucional e a implantação de um curso experimental, expressando uma reforma do ensino de graduação que estimulava uma pedagogia reflexiva e crítica, com incentivo à maior participação do alunado, além de inovar na leitura biomédica relativamente ao social.

Pretende investigar ainda a presença simultânea de blocos em disputa, como oposição ao pensamento conservador alinhado ao novo regime político no país e hegemônico na instituição, por um tipo de ensino médico capaz de representá-los. De um lado, o currículo tradicional, calcado em especialidades médicas e tecnologias de ponta e, de outro, um currículo experimental que esperava um profissional de caráter generalista e preocupado com dimensões mais profundas do que seria definido por social. Assim, o que se resumia a questões de ordem didática, pedagógica e de formação, logo se transformou numa luta política. Mas esta, examinada mais a fundo, mostra-se como ação também ainda, em grande parte, comprometida com aquela ordem tradicional, ganhando contornos de uma ação instrumental que procurava, de certa forma, impor novas relações institucionais, numa mudança pouco derivada de trocas interativas para a constituição de acordos, num agir político resultante de um coletivo em concerto, como define Arendt ao distinguir poder de violência22 Arendt H. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio D'Água; 1991.,99 Arendt H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva; 2011.. Do ponto de vista metodológico, o presente estudo apoia-se centralmente em documentos institucionais, grande parte inéditos e outros publicados, embora pouco examinados no debate historiográfico, estando o conjunto deles no acervo do Museu Carlos da Silva Lacaz da FMUSP, na forma de documentos públicos disponíveis para pesquisa1010 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz. Guia do acervo [Internet]. [acessado 2024 jan 29]. Disponível em: https://www.fm.usp.br/museu/acervo-e-pesquisa /guia-do-acervo.
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. Da análise dos dados encontrados, resultaram dois momentos.

A Faculdade de Medicina e os ecos da repressão: um cotidiano entre a “família” e o “imigrante”

No dia 3 de abril de 1964, a Congregação da Faculdade de Medicina se reuniu para redigir uma moção de apoio ao golpe militar recém-desfechado:

[...] vem deixar claro diante de todos os colegas da universidade, corpo docente e discente, bem como ao povo deste grande Estado de São Paulo a comunhão total de suas ideias e ideais consubstanciados em: (1) total e irrestrito apoio à total obediência à ordem, à disciplina, à hierarquia, e às liberdades democráticas dentro da constituição vigente, tanto dentro da Universidade como ambiente social [...]1111 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Ata da Congregação. São Paulo: FMUSP; 1964. [manuscrito]. (p.22-23).

Diante dessa posição e de ações como a proposta pela mesma Congregação - que se doasse um dia dos vencimentos dos professores para a “causa” -, foi rápida a movimentação de denúncia e perseguição a professores já no ano de 1964, inicialmente em torno do Departamento de Parasitologia:

[...] pela presença de militantes e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e em torno da liderança científica e política de Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976), catedrático de parasitologia médica [...] a denúncia foi encaminhada pelo governador às autoridades militares e policiais para providências. E essa mesma lista de denunciados foi reproduzida no pedido de informações ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) feito em julho pelo tenente-coronel Enio dos Santos Pinheiro que fora encarregado do Inquérito Policial-Militar (IPM) que investigaria “atividades subversivas na Faculdade de Medicina da USP1212 Hochman G. Vigiar e, depois de 1964, punir: sobre Samuel Pessoa e o Departamento Vermelho da USP. Cien Cult 2014; 66(4):26-31. (p.26).

Sem dúvida, considerando os nomes arrolados, a caça ao “departamento vermelho” foi implacável:

[...] Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Thomas Maack e mais quatro professores foram demitidos pelo mesmo decreto, assinado pelo então governador Adhemar de Barros: Erney Felício Plesmann de Camargo, Luiz Rey, Pedro Henrique Saldanha e Reynaldo Chiaverini. Além dos professores da Faculdade de Medicina, médicos e professores do Hospital das Clínicas também foram atingidos. Entre eles, encontram-se: Antônio Dácio Franco do Amaral, Leônidas de Mello Deane, Maria José Deane e Victor Nussenzveig, Michel Rabinovich, J. M. Taques Bittencourt Julio Puddles, Nelson Rodrigues dos Santos e Israel Nussenzveig1313 Marinho MGSMC, Mota A. Trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: aspectos históricos da Casa de Arnaldo. São Paulo: FMUSP; 2012. (p.140-141).

O jornal Folha de S. Paulo informava, que três professores dos denunciados deveriam ter sua prisão preventiva decretada de imediato: Thomas Maack seria “um súdito alemão e confesso marxista, diretor do jornal O Bisturi, jornal esquerdista e veículo de propaganda subversiva da Faculdade de Medicina da USP”1414 Folha de S. Paulo. IPM da medicina: prisão preventiva para três. 1964 dez 31.; Michael Rabinovitch seria “um comunista notório de grande cultura científica”1414 Folha de S. Paulo. IPM da medicina: prisão preventiva para três. 1964 dez 31. e Luis Hildebrando Pereira da Silva, “um líder incontestável do marxismo na Faculdade de Medicina”1414 Folha de S. Paulo. IPM da medicina: prisão preventiva para três. 1964 dez 31.. Segundo o argumento do juiz Delmo de Godoi, da 2ª Auditoria Militar:

[...] chega-se à conclusão de que são de maior evidência as atividades postas em prática pelos referidos denunciados, que, valendo-se de sua elevada posição no magistério superior e inegável prestígio de que desfrutam nos meios científicos e universitários, concorrem fielmente para a subversão, ora veiculando ou difundindo pregações trotskistas-marxistas, ora se omitindo pela tolerância dolosa para que atividades desse jaez encontrassem campo propício e fértil à infiltração deletéria de comprometimentos às instituições democráticas vigentes na República1414 Folha de S. Paulo. IPM da medicina: prisão preventiva para três. 1964 dez 31. (p.7).

Nas memórias do parasitologista e professor Luis Rey, esse ato correspondia a um plano maior em torno do nome dos professores presos na Universidade de São Paulo:

[...] soube que todos os antigos cassados da Universidade seriam presos para constituírem um pool de trocas, a usar quando embaixadores estrangeiros fossem raptados pela guerrilha. Eu estava na lista [...]1515 Rey L. Um médico e dois exílios: memórias. Rio de Janeiro: Anthares; 2005. (p.94).

A Congregação da Faculdade de Medicina não deixou em seus registros muitos pontos de tensão, pelo menos naquele momento inicial, exceto em casos pontuais, como um aparte do professor Antonio Dácio do Amaral, do Departamento de Parasitologia, relatando uma notícia de jornal sobre a divulgação do relatório policial do tenente-coronel Enio dos Santos sobre possíveis atividades subversivas ocorridas pelos parasitologistas na instituição. Disse o professor que estava sendo “indiciado e acusado de falta de energia por não ter agido contra elementos esquerdistas de meu departamento, permitindo-lhes ampla liberdade de movimento”1616 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Ata da Congregação. São Paulo: FMUSP; 1964. [manuscrito]. (p.56).

Entre os perseguidos e presos da Faculdade de Medicina, nem todos eram ligados à área de Parasitologia, havendo testemunhos particulares sobre o tratamento recebido - caso de Isaias Raw, à época presidente da Fundação Carlos Chagas e professor catedrático de Bioquímica, que foi preso, torturado e transferido para um quartel do Exército, com repercussão imediata no meio científico nacional e internacional. Em sua defesa, foi enviado às pressas por diversos cientistas mundialmente renomados um telegrama ao presidente da República, General Castello Branco:

Prezado presidente, reunidos no Sexto Congresso Internacional de Bioquímica, nós ouvimos chocados a notícia de que o prof. Isaias Raw da Universidade de São Paulo foi preso. O prof. Raw é conhecido por sua personalidade e por ser um homem de grande integridade e é um dos mais importantes cientistas brasileiros. A comunidade científica internacional apela para que se olhe a essa personalidade e que esse professor possa ser solto para que continue desempenhando seu trabalho na ciência e educação brasileira1717 Kormberg A, Lipmann F, Theorell H, Colowick S, Chance B, Green D. Telegrama ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, General Humberto de Alencar Castello Branco. Nova York: Western Union Telegram; 1964..

Indo além, o regime que se implantava dependia da adesão de segmentos capazes de dar suporte ao cotidiano institucional. Assim, consta que havia uma fração de professores, alunos e funcionários que, além de apoiar o golpe militar, colaboraram, por meio de denúncias, muitas delas infundadas, para que se cumprissem os objetivos da máquina repressiva contra supostos subversivos1818 Rezende MJ. Ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade - 1964-1984. Londrina: EdUEL; 2001. (p.50). Em seu estudo sobre as universidades no regime militar, Rodrigo Motta lança a hipótese de que a perseguição a alguns professores da FMUSP logo em 1964 se deveria ao fato de:

[...] a tradicional instituição teve de conviver com personagens estranhos aos princípios conservadores a partir do fim dos anos 1950, quando começou a admissão de professores não pertencentes às famílias “quatrocentonas” e também de jovens ligados à esquerda. Na Faculdade de Medicina da USP, como em outras, a polarização política em 1964 era também interna, e alguns professores tornaram-se suspeitos por sua origem social ou por questionarem as tradições. Com as mudanças políticas de 1964, a direita da Faculdade achou que era a hora de livrar-se do “corpo estranho1919 Motta RPS. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar; 2014. (p.54).

Em sua carta “Casa de Arnaldo, circa”, escrita em 1964 e publicada pela Revista da USP em 1991, o professor Thomas Maack já identificava tal estrutura dentro da Faculdade. Segundo seu depoimento, havia um grupo formado por médicos e professores tradicionalistas que se diziam descendentes de uma elite de escola paulista e autodesignavam “família” e um grupo docente cada vez mais expressivo oriundo de uma classe média ascendente, intitulado pela “família” como “imigrante”:

[...] “família” sabia que estava à beira de perder para sempre seu domínio na FMUSP - 31 de março propiciou-lhe o último sopro de vida. Aproveitando-se do golpe militar, deslanchou uma intensa e, infelizmente, bem-sucedida campanha de repressão e intimidação interna cuja extensão, ao que eu saiba, não teve paralelo nas demais escolas da universidade brasileira2020 Maack T. Casa de Arnaldo, circa 1964. 1991; 10:121-134. (p.124).

Em 1966, o Relatório do Conselho Permanente de Justiça analisou a sentença do inquérito policial-militar contra um grupo de professores da FMUSP, um aluno, um médico e um funcionário do Hospital das Clínicas indiciados pelo tenente-coronel Enio dos Santos Pinheiro devido a uma denúncia anônima. O teor dos argumentos do juiz revelava parte do conteúdo das acusações, mas também a fragilidade dos argumentos acusatórios, a ponto de se haverem refutado todos, com a consequente absolvição dos acusados. Em matéria intitulada “Absolvidos os professores”, O Bisturi repercutiu a notícia:

Em relação a outro acusado, o professor Luís Hildebrando Pereira da Silva, a sentença revela outro aspecto interessante da acusação: uma das testemunhas arroladas pela Promotoria tomou a defesa do acusado com tal impetuosidade que acabou sendo presa em flagrante por desacato ao juiz auditor. Outro réu, prof. Michael Rabinovitch, foi acusado de subversão, principalmente por ter participado de um congresso científico, realizado em Ribeirão Preto. Sobre esse fato, diz a sentença: “A participação do acusado no congresso de Ribeirão Preto como atividade subversiva é digna de riso”2121 Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC). Absolvidos os professores. O Bisturi. São Paulo; 1966. (p.9).

Os anos seguintes continuavam reverberando as tensões estabelecidas, mas:

[...] não era necessário eliminar todos os “imigrantes”, muitos permaneceram depois de 1964. Afinal de contas, alguém tinha que ensinar medicina na FMUSP. Bastavam a intimidação, o isolamento, a desmoralização para neutralizá-los como força política interna. A demissão dos sete docentes pelo decreto de Adhemar de Barros, o indiciamento de dezesseis no processo policial-militar e as listas de delação tiveram essa função primária2020 Maack T. Casa de Arnaldo, circa 1964. 1991; 10:121-134. (p.9).

O clima institucional reinante, repleto de insinuações e delações, atingiu frontalmente a vida estudantil da Faculdade de Medicina. Proibida sua publicação, o jornal O Bisturi caiu na clandestinidade. Alunos e alunas foram presos, torturados e alguns mortos e/ou desaparecidos. Em outubro de 1964, a Feira do Livro realizada pelo Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) foi acusada, dentro da própria escola, de venda de obras consideradas subversivas. A polícia civil e o Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) foram chamados e apreenderam 18 volumes da Feira e dois da biblioteca. Durante essa ação da polícia, houve nova denúncia, agora dizendo que o investigador do DOPS teria sido sequestrado pelos alunos. O próprio O Bisturi relata:

Com sirene e tudo, fomos levados para lá; no DOPS notamos ao chegar, uma apreensão por parte do pessoal, com relação ao colega seqüestrado. O delegado viu os livros, liberou-os, dizendo que alguns deles eram de sua leitura particular [...]2222 Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC). O Bisturi. São Paulo; 1964. p. 4. (p.4).

Em 1966, o aluno Reinaldo Morano Filho, presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (1969), foi preso pela primeira vez. Gelson Reicher e Antonio Carlos Nogueira Cabral foram presos e mortos pelos órgãos de repressão em 19722323 Câmara Municipal de São Paulo. Registro taquigráfico da sessão Desaparecidos. São Paulo; 1991. p. 63-72. [mimeo].. Fausto Figueira de Mello Junior, aluno da quinquagésima turma da FMUSP, relata a chegada de Luiz Hirata, aluno da Escola Superior de Agricultura Luís de Queirós, torturado e levado para o Hospital das Clínicas: “ali estava com marcas de pau-de-arara nas pernas e pulsos. Seu corpo era uma pasta escura por destruição maciça dos músculos, ocasionadas pelas torturas que havia”2424 Mello Junior FF. Anos de chumbo. In: Goto H, Lemos RC, Labonia Filho W, organizadores. Turma 55 da Faculdade de medicina - USP. São Paulo: RG Editores; 2022. p. 181-182. (p.181).

Caso da invasão policial no campus da Universidade de São Paulo em 1977, sob o argumento de que haveria movimentação estudantil subversiva em torno do Congresso da UNE. Durante um ato público estudantil, a Faculdade de Medicina teve seu prédio invadido em 20 de setembro, sob a condução do então secretário da Segurança Pública Erasmo Dias, redundando em autuações e fichamentos no DOPS-SP: ao todo foram 45 alunos do curso de medicina, quatro de fisioterapia, três de fonoaudiologia e uma aluna de pós-graduação em medicina2525 Divisão de Ordem Política (DOPS). Polícia Civil de São Paulo. Registro de autuação e lista dos alunos presos e fichados da Universidade de São Paulo. São Paulo; 1977. [mimeo]..

O Hospital das Clínicas tornou-se “área de segurança nacional”, funcionando como retaguarda para encaminhamento de presos políticos feridos no momento da prisão, em tortura (quando não havia intenção de eliminação física) ou de presos sub judice e também de policiais. Há relatos de práticas de tortura (ameaças, dores prolongadas e mantidas sem analgesia, protelação de atendimento mesmo em caso de traumatismos graves)66 Botazzo C. Percursos da memória, da verdade e da (improvável) reparação, ou justiça de transição inacabada. In: Mota A, Marinho MGSMC, Nemi A, organizadores. Medicina em contexto de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: UFABC; 2017. p. 13-38. (p.31).

[...] O que ficou marcante por essa trajetória pelo Hospital das Clínicas é que tinha um colega, que eu conhecia do movimento estudantil, que chega para um tira - na época, ele era um residente - e fala assim: “Ela está bem. Ela aguenta mais tortura2626 Verdade 12.528. Direção e produção: Paula Sacchetta e Peu Robles. Realização: João e Maria.doc. Youtube [internet]. 2015 [acessado 2017 mar 13]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7l9OJOGfOc0.
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Ainda que tais ações envolvendo médicos não foram investigadas depois pelo Estado brasileiro, mesmo quando já havia provas irrefutáveis e pormenorizadamente descritas nos relatórios da Comissão da Verdade e divulgadas em encontros e seminários2727 Centro Universitário Maria Antonia da USP. SEMINÁRIO Tortura Nunca Mais! - Comissões da Verdade e a pós-verdade na ditadura. São Paulo: Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP/Faculdade de Saúde Pública-USP/Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP (PRCEU); 2022 ago 19.. Conforme Maria Amélia Teles, “a luta pela punição aos médicos, travada ao longo dos anos, por grupos de familiares e direitos humanos, é um verdadeiro malabarismo, cheia de labirintos e empecilhos, com difícil continuidade”2828 Teles MAA, Teles JA. A participação de médicos na repressão política. In: Mota A, Marinho MGSMC, Nemi A, organizadores. Medicina em contexto de exceção: histórias, tensões e continuidades. São Paulo: UFABC; 2017. p. 87-114. (p.110-111).

Não obstante, foi nesse contexto que emergiu uma proposta curricular reformadora, com caráter de experimento, em termos da formação de futuros médicos. De curtíssima duração, o chamado Curso Experimental nasceu em 1967 e morreu em 1976. Ainda assim, permitiu que se conhecessem também, não sem conflitos internos à própria instituição, novas interações entre professores e entre professores e alunos. Apesar disso, suas efetivas contribuições humanística e tecnicamente inovadoras não ficaram suficientemente claras nem foram apresentadas publicamente. Pelo contrário, também esse experimento acabou sendo envolvido entre os discursos do pensamento institucionalmente hegemônico que, “a pretexto de defender velhas verdades, degradam toda a verdade”22 Arendt H. Homens em tempos sombrios. Lisboa: Relógio D'Água; 1991. (p.8), tendo, então, merecido, neste estudo histórico, alguma luz.

O Curso Experimental de Medicina: um projeto subversivo?

Em plena vigência do regime ditatorial e bastante motivado pelo movimento dos chamados “excedentes” - movimento dos anos 1960 que envolveu alunos secundaristas aprovados no vestibular, mas sem vagas para entrar nas faculdades existentes -, uma intensa discussão sobre a reforma universitária e seus mecanismos estruturantes, como o sistema de cátedras e de núcleos formadores, redundou na elaboração de um novo projeto curricular para a FMUSP denominado Curso Experimental (CEM). Nascido da pressão do governador do estado, Abreu Sodré, exigiu da Faculdade mais vagas na graduação. Esse pedido implicou:

[...] reuniões informais que se realizaram no ano de 1966 no anfiteatro da Clínica Médica, por convite do professor Alípio Correa Netto, que em dado momento, solicitou ao professor Isaias Raw e Eduardo Marcondes que apresentasse uma ideia básica esquemática para a criação do curso médico experimental para 50 alunos. A ideia apresentada foi discutida e aprovada pelos presentes e constituiu-se numa solicitação ao Sr. Diretor, subscrita por nove professores2929 Machado EM. O Curso Experimental de Medicina da Universidade de São Paulo. Edu Med Salud 1975; 2(9):172-195. (p.173).

Em 28 de março de 1967, João Alves Meira, Diretor da Faculdade de Medicina (1963-1970) e Catedrático de doenças tropicais e infecciosas, aprovava a formação de uma Comissão de Orientação Didática do Curso Experimental de Medicina (CODCEM) e, em 5 de janeiro de 1968, seu memorial foi encaminhado ao governador do estado pedindo a liberação de verbas especiais para a instalação do primeiro ano de suas atividades, além da construção de um hospital universitário. As referências internacionais no projeto aproximavam o CEM de experiências consideradas exitosas:

[...] se pensava em propor uma estrutura de ensino mais atualizada, baseada no modelo integrado de ensino por blocos, que a Universidade de Western Reserv, em Cleveland, Estados Unidos, vinha experimentando há muitos anos, com divulgação internacional grande através de vários trabalhos em revistas especializadas. Assim, nasceu a proposta com dois objetivos: integração com a universidade e modernização do currículo3030 Silva GR. Entrevista. In: Chassot WCF, organizadora. Memórias de origens: Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, 20 anos. São Paulo: Hospital Universitário-USP; 2001. p. 13-18. (p.15).

Também havia na proposta duas tendências fundamentais na orientação dos currículos médicos: “o preparo do profissional para atuar em hospitais e seu preparo para atuar na comunidade, entendida esta como um agrupamento social, de diferentes faixas socioeconômicas, capaz de apresentar problemas de saúde em nível tanto individual como coletivo”2929 Machado EM. O Curso Experimental de Medicina da Universidade de São Paulo. Edu Med Salud 1975; 2(9):172-195. (p.175). Uma das características fundamentais do CEM era a proximidade entre professores e alunos, com alta participação discente nos encaminhamentos do curso nos chamados “fóruns”:

Os Fóruns reuniam os alunos e professores que se encontraram nesse período para discutir as matérias, os conteúdos, os métodos, as relações, com participação intensa dos alunos. Ainda que os Fóruns fossem locais de discussão e sem poder deliberativo, eles poderiam influenciar a CODCEM a tomar decisões e encetar mudanças no Curso, e ainda influenciar os professores a propor modificações em suas próprias práticas e conteúdos3131 Tavano PT. Tramas da tessitura curricular: o Curso Experimental de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1968-1975) [tese]. São Paulo: Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo; 2015. (p.245).

O Curso sistematizou pouco material didático voltado aos alunos, a ponto de se acompanharem pari passu todas as aulas e leituras. Isso porque as aulas iam sendo definidas no próprio processo de formação. Os conteúdos didáticos se traduziram nas contribuições de seus professores, por meio de textos indicados e mimeografados, do trabalho pedagógico proposto e de alguns exercícios para os graduandos. Além das aulas teóricas, os alunos deveriam desenvolver projetos de pesquisa, 40 horas por aluno em quatro semanas, sobre os seguintes temas:

(a) Profissão médica (expectativas antes e depois da formação, estudo comparativo entre alunos do 1º ano do curso e médicos residentes); (b) Indicativos de saúde (taxas de morbidade de doenças de maior prevalência, estudo comparativo entre instituição hospitalar governamental e instituição hospitalar particular); (c) Demografia (levantamento de dados de políticas populacionais, estudo comparativo entre teorias malthusianas e anti-malthusianas)3232 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Departamento de Medicina Preventiva. Curso de Ciências Sociais e Planejamento. São Paulo: FMUSP; 1972. p. 1-7 [mimeo]. (p.1).

Esse material defendia o fim do regime asilar e denunciava a inadequação dos serviços prestados à população, indicando a falência do sistema psiquiátrico brasileiro e paulista, ao mesmo tempo em que ensaiava os primeiros movimentos de reforma psiquiátrica, a exemplo dos que se desenvolviam na Europa e na América Latina. Sobre o Hospital do Juqueri, dizia:

[...] em 31/2/1964, possuía 13.345 doentes. Em 1970, chegou a ter 17.000 doentes. Em 1965, um dos tristes recordes do Hospital do Juqueri era seu tempo médio de permanência, estimado em 1.863 dias. A taxa de óbitos naquela instituição tem sido, em anos consecutivos, muito mais alta do que a expectativa compatível com hospitais psiquiátricos. Parece que ¼ das altas ali saem num caixão3232 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Departamento de Medicina Preventiva. Curso de Ciências Sociais e Planejamento. São Paulo: FMUSP; 1972. p. 1-7 [mimeo]. (p.4).

Em 30 de agosto de 1974, Carlos da Silva Lacaz, um dos signatários da criação do CEM-USP em 1966 e paradoxalmente seu maior líder oponente, foi conduzido à diretoria da FMUSP (1974-1978) e, em seu discurso de posse, anunciou sua primeira medida: o fechamento do Curso Experimental. Uma avaliação mais profunda do que se passou nesse curso revela uma série de questões imbricadas e que podem explicar esse fechamento3333 Mota A. Tempos cruzados: a Saúde Coletiva no estado de São Paulo, 1920-1980. São Paulo: Hucitec; 2020.. Inicialmente, cabe apontar o novo cenário que a política educacional do ensino superior imprimiu na FMUSP com a Lei nº 5.540/1968, reorganizando as áreas de ensino e pesquisa, criando institutos de ciências básicas, alocando professores em departamentos e fixando as Diretrizes e Bases da Educação Nacional das matérias em ciclo básico e profissionalizante com matrícula semestral e introdução do sistema de créditos.

Esse contexto implicou um imenso desconforto na FMUSP, que assistiu a uma mudança inesperada e abrupta de suas atividades, além de ter perdido um poder que se concentrava nas mãos de um grupo preciso de professores. Com tal mudança, a FMUSP foi:

[...] obrigada a ceder suas cadeiras básicas para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que não apenas era organização onde se aglomerariam todos os professores dos diversos cursos da Universidade, mas também geograficamente posicionado distante da sede da Faculdade, pois localizado na Cidade Universitária. Além disso, os catedráticos são destituídos de seu cargo e vitaliciedade e, ao lado de seus assistentes, são colocados nos departamentos3434 Favaretto PMS. Os Laboratórios de Investigação Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina USP: processo histórico de criação e trajetória institucional, 1968-1977 [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2017. (p.93).

A subida de Carlos da Silva Lacaz ao poder - quer como secretário da Saúde do Município de São Paulo na gestão de Paulo Salim Maluf em 1970, quer como diretor da FMUSP em 1974 - teria provocado a crise no Experimental. Segundo Guilherme Rodrigues da Silva, ele estaria interessado em cargos mais altos, o que o teria levado a se opor ao curso:

[...] era diretor da unidade o professor Carlos da Silva Lacaz, que resolveu candidatar-se junto ao governo militar para o Ministério da Saúde. Ele decidiu abrir um processo político que garantiria - pelo menos ele pensou assim, mas os militares pensaram o contrário - sua indicação ao Ministério. Lacaz resolveu, como diretor, propor a extinção do curso com o argumento que se tratava de um grupo de comunistas. Por que esse argumento tão esdrúxulo foi usado? Chamar Isaias Raw de comunista é uma coisa fantástica. Chamar a mim, ainda bem, mas o Isaias e o Eduardo Marcondes, chamá-los de comunistas era uma coisa incompreensível, não estivesse por trás esse tipo de coisa3030 Silva GR. Entrevista. In: Chassot WCF, organizadora. Memórias de origens: Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, 20 anos. São Paulo: Hospital Universitário-USP; 2001. p. 13-18. (p.16-17).

Foi nesse enquadramento e com o apoio da Congregação da Faculdade, que, já em seu discurso de posse, Carlos da Silva Lacaz pedia a constituição de uma Comissão para proceder ao encerramento do projeto do CEM-USP e sua incorporação ao curso tradicional, por um projeto chamado de fusão curricular, a partir do ano de 1976. Em carta enviada aos alunos, Carlos Lacaz fez uma longa crítica à conjuntura vivida e, nas entrelinhas, se manifestou sobre como entendia a proposta do CEM-USP:

A Congregação da Faculdade de Medicina constituída por professores da estatura moral e científica de um Décourt, de um Zerbini e a de seu decano, professor Cintra, desejou salvaguardar o nome da grande instituição, já tão sacrificada pela reforma universitária, esvaindo-a de suas cadeiras pré-clínicas. Era urgente a reformulação do currículo da Faculdade de Medicina, cujo ensino vinha sendo prejudicado nesses últimos anos, desmotivando alunos, fazendo-os até abandonar o curso médico3535 Lacaz CS. Carta a Antônio Guimarães Ferri, coordenador da Câmara de Graduação. São Paulo; 1976. p. 1-3 [mimeo]. (p.1).

Diante dessa posição, em que já estava implícita uma crítica à divisão das cadeiras entre as clínicas e as básicas, com a Reforma de 1968, o Curso Experimental não foi poupado. Presidida pelo professor João Alves Meira, formou-se uma Comissão responsável pela elaboração de um programa único, prevendo que em 1979 todos os alunos estariam unificados por um único currículo, como de fato aconteceu.

A figura de Guilherme Rodrigues da Silva ganhou centralidade no encaminhamento da participação do Departamento de Medicina Preventiva no CEM-USP. Quando chegou como professor catedrático, em 1967, o curso já havia sido criado, mas ele logo foi colocado como um dos articuladores a acompanhar cotidianamente seu andamento. À ideia de que ele seria mais um “imigrante” somaram-se sua origem “mulata” e suas convicções “comunistas”, atributos que o colocavam sob mais suspeição e perseguição3131 Tavano PT. Tramas da tessitura curricular: o Curso Experimental de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (1968-1975) [tese]. São Paulo: Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo; 2015. (p.112). Na interpretação de Moisés Goldbaum sobre essa presença:

[...] o professor Guilherme se incorporou (esse grupo de professores, em sua maioria foram cassados e aposentados compulsoriamente, senão presos, pela ditadura civil-militar; o professor Guilherme escapou dessa infeliz e desastrosa degola por ser pouco conhecido seu engajamento político em São Paulo, lembrando de sua recente incorporação aos quadros da USP)3636 Goldbaum M. Guilherme Rodrigues da Silva: a formação do campo da Saúde Coletiva no Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(7):2129-2134. (p.2131).

Quanto à abordagem de questões da saúde por meio das ciências sociais, ponto central da própria definição do que se chamaria de Saúde Coletiva e o que se viria a caracterizar como uma sociologia da saúde, em consonância com a perspectiva mais prática e de ensino integral do CEM-USP, a opção recaiu numa disciplina para o 1o ano que, para discutir as teorias sociais, valia-se de pesquisas operacionais e de campo com temas médicos, ministrada pela socióloga e professora Maria Cecília Ferro Donnangelo, do Departamento de Medicina Preventiva. A FMUSP usou de um artifício anterior para superar essa questão: indicou o Departamento de Medicina Legal como oficialmente responsável por essa disciplina e uma ação aberta ligada à disciplina de Ciências Sociais, pondo fim a essa experiência formativa na graduação. Indo além, alguns professores passaram a denunciar professores do departamento como membros politicamente subversivos, principalmente aqueles ligados à saúde mental, no Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa.

Foi assim que, logo no começo das aulas, em 1976, houve uma ação aberta ligada à disciplina de Ciências Sociais, pondo fim a essa experiência formativa na graduação. Isso porque, junto com o projeto de fusão curricular, enviou-se ao então coordenador da Câmara de Graduação da USP um arrazoado sobre o fato de se terem permitido:

[...] distorções evidentes da atual estrutura curricular que não vêm atendendo às necessidades de ensino, cujo padrão, segundo os docentes, vem caindo assustadoramente. Disciplinas não pertinentes à formação do médico, como “Ciências Sociais”, têm sido ministradas [...] [e se pedia a urgente] supressão da disciplina de Ciências Sociais, cujo conteúdo ministrado identifica-se ao ministrado em departamento da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas3535 Lacaz CS. Carta a Antônio Guimarães Ferri, coordenador da Câmara de Graduação. São Paulo; 1976. p. 1-3 [mimeo]. (p.1).

Em carta enviada ao coordenador da Câmara de Graduação da Faculdade em 1 de outubro de 1976, um grupo de 36 professores sugeriu mudanças curriculares frente aos desdobramentos da fusão entre o Experimental e o Tradicional. Propunham colocar “o curso de Ciências Sociais integrado às disciplinas de Medicina Legal e Problemas Brasileiros”3535 Lacaz CS. Carta a Antônio Guimarães Ferri, coordenador da Câmara de Graduação. São Paulo; 1976. p. 1-3 [mimeo]. (p.1). Lendo essa proposta, o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz e a representação discente da FMUSP na Congregação convocaram uma assembleia e distribuíram um material com o título: A mais nova ameaça ao curso médico da FMUSP. O texto tratava da extinção do sistema de blocos, da redução da carga horária de matemática e estatística, da rapidez da resolução, que entraria em vigor já em 1977, e, finalmente, “da virtual extinção do Curso de Ciências Sociais, com eventual transferência para o Departamento de Medicina Legal”3535 Lacaz CS. Carta a Antônio Guimarães Ferri, coordenador da Câmara de Graduação. São Paulo; 1976. p. 1-3 [mimeo]. (p.1).

Considerações finais

Esta análise traz novas perspectivas ao estudo da ditadura militar em sua relação com instituições acadêmicas, mostrando os impactos dessa nova relação na estrutura dos departamentos e na relação estabelecida com professores, alunos e funcionários. As duas partes deste estudo procuram justamente apresentar aquilo que estaria na memória de alguns, mas sem as limitações metodológicas que a História impõe, conferindo um sentido histórico aos dados.

A oposição nascida com a experiência do novo curso implantado e a pecha de que havia um movimento subversivo em andamento, se, de um lado, não tinha sentido ao se verificar a proposta dos professores na formulação do Curso Experimental, de outro, com suas inovações pedagógicas, desafiava o conservadorismo e o autoritarismo que se pretendia manter e aprofundar. O caso do Departamento de Medicina Preventiva deixava claro: o Curso Experimental foi uma experiência que buscava um novo olhar para a formação médica, mais amplo, conectado com a vida social, exigindo um raciocínio inovador e criativo. É importante dizer que experiências inovadoras não eram desconhecidas da instituição. Basta lembrar dos anos 1950, quando a Faculdade estava em seu auge, inclusive pela existência do Departamento de Parasitologia, com a influência de Samuel Pessoa. O discurso da tradição que fez oposição ao Experimental foi invenção de momento, reconvocando o conservadorismo da instituição.

Passadas algumas décadas, numa atitude definida pelo então diretor da Faculdade de Medicina, Marcos Boulos, como uma repactuação histórica, em sessão especial da Congregação, em 18 de setembro de 2008, os professores Erney Felício Plessmann de Camargo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Luiz Rey, Michel Pinkus Rabinovitch, Pedro Henrique Saldanha e Thomaz Maack tornaram-se professores eméritos. Isaias Raw, que já possuía o título, recebeu a medalha “Arnaldo Vieira de Carvalho”. A ideia era fazer um movimento inicial para uma nova constituição de memória, diante de tantos outros vividos posteriormente pela instituição no intuito de recompor vozes, personagens e experiências vividas pela e na escola médica. Podemos dizer, que a ditadura militar não acabou e continuará existindo, pois há uma história em aberto, uma conta que não fecha, enquanto não tivermos nossas instituições públicas abertas para estudos históricos sobre o período em pauta.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Out 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2023
  • Aceito
    16 Fev 2024
  • Publicado
    18 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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