Tendência de internações por condições sensíveis à atenção primária em Pelotas, Brasil, de 2000 a 2021

Tendencias en hospitalizaciones por afecciones sensibles a la atención primaria en Pelotas, Brasil, de 2000 a 2021

Douglas Nunes Stahnke Brunna Machado Medeiros Renata Breda Martins Juvenal Soares Dias da Costa Sobre os autores

Resumo

O objetivo do artigo é descrever as características das internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) no município de Pelotas quanto à ocorrência por sexo, faixa etária e por principais causas no período de 2000 a 2021. Adicionalmente, foi realizada a análise de tendência das ICSAP do município comparando-a com a do restante do Rio Grande do Sul, sua associação com o gasto público per capita em saúde e com a cobertura populacional de ESF. Estudo ecológico utilizando a Lista de CSAP do Ministério da Saúde disponível no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde. As informações sobre o gasto em saúde foram obtidas no Sistema de Informações sobre Orçamento Público em Saúde. A cobertura de ESF estava disponível no Departamento de Atenção Básica. Encontrou-se diminuição das ICSAP em Pelotas e no restante do Estado. As ICSAP foram mais frequentes nas pessoas de 60 anos ou mais. A principal causa de internação foi insuficiência cardíaca. Em Pelotas a cobertura de ESF e o gasto em saúde apresentaram associação com as ICSAP. Apesar das medidas aplicadas a partir de 2017, políticas implantadas anteriormente, o aumento do gasto em saúde e a ampliação da cobertura podem ter influenciado a diminuição das ICSAP.

Palavras-chave:
Hospitalização; Atenção primária à saúde; Gastos públicos com saúde; Cobertura de serviços Públicos de saúde; Indicadores de qualidade em assistência à saúde

Resumen

Este artículo tiene como objetivo describir las características de las hospitalizaciones por condiciones sensibles de atención primaria (HCSAP) en la ciudad de Pelotas, Brasil, en términos de ocurrencia por sexo, grupo etario y causas principales, de 2000 a 2021. Adicionalmente, se realizó un análisis de tendencias de las HCSAP en el municipio comparándolas con el del resto de Rio Grande do Sul, su asociación con el gasto público per cápita en salud y con la cobertura poblacional de ESF. Este estudio ecológico ha utilizado el Listado CSAP del Ministerio de Salud disponible en el Sistema de Información Hospitalaria del Sistema Único de Salud brasileño. La información sobre el gasto en salud se obtuvo del Sistema de Información del Presupuesto de Salud Pública. La cobertura de ESF estaba disponible en el Departamento de Atención Básica. Se constató una disminución de las HCSAP en Pelotas y el resto del Estado. Las HCSAP han sido más comunes en personas de 60 años o más y la principal causa de hospitalización fue la insuficiencia cardíaca. En Pelotas, la cobertura de ESF y el gasto en salud se asociaron con las HCSAP. A pesar de las medidas aplicadas desde 2017, las políticas implementadas anteriormente, el aumento del gasto en salud y la ampliación de la cobertura pueden haber influido en la disminución de las HCSAP.

Palabras clave:
Hospitalización; Atención primaria de salud; Gasto público en salud; Cobertura de servicios públicos de salud; Indicadores de calidad en la atención de salud

Introdução

A Política Nacional de Atenção Básica de 2017, embora tenha provocado retrocessos na organização e no financiamento11 Morosini MVGC, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o sistema único de saúde. Saude Debate 2018; 42(116):11-24.

2 Garcia FL, Socal M. Impacts of the 2017 Brazilian National Primary Care Policy on public primary health care in Rio de Janeiro, Brazil. Cad Saude Publica 2022; 38(5):e00219421.
-33 Giovanella L, Franco CM, Almeida PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1481., manteve o esforço de estimular estratégias de institucionalização da avaliação44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica, 2017. Brasília: MS; 2018.. O acompanhamento das internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde tem se mostrado um indicador reconhecido internacionalmente, disponível e de fácil operacionalização, permitindo a avaliação de sistemas de saúde55 Coldron BC, MacRury S, Coates V, Khamis A. Redefining avoidable and inappropriate admissions. Public Health 2022; 202:66-73.,66 Hodgson K, Deeny SR, Steventon A. Ambulatory care-sensitive conditions: their potential uses and limitations. BMJ Qual Saf 2019; 28(6):429-433..

No Brasil, após a disponibilização da Lista Brasileira de Condições Sensíveis à Atenção Básica, diversos estudos têm acompanhado o comportamento dessas internações nos mais diferentes recortes77 Rodrigues MM, Alvarez AM, Rauch KC. Tendência das internações e da mortalidade de idosos por condições sensíveis à atenção primária. Rev Bras Epidemiol 2019; 22:e190010.

8 Silva MVM, Oliveira VS, Pinto PMA, Razia PFS, Caixeta ACL, Aquino EC, Morais Neto OL. Tendências das internações por condições cardiovasculares sensíveis à atenção primária à saúde no município de Senador Canedo, Goiás, 2001-2016. Epidemiol Serv Saude 2019; 28(1):e2018110.

9 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012.
-1010 Rocha JVM, Sarmento J, Moita B, Marques AP, Santana R. Comparative research aspects on hospitalizations for ambulatory care sensitive conditions: the case of Brazil and Portugal. Cien Saude Colet 2020; 25(4):1375-1387.. No município de Pelotas-RS, as ICSAP têm sido estudadas desde 1995, mesmo antes do lançamento da Lista Brasileira, explorando tendências, características e custos, sendo que a última análise foi referente a 20121111 Costa JSD, Borba LG, Pinho MN, Chatkin M. Qualidade da atenção básica mediante internações evitáveis no Sul do Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(7):1699-1707.,1212 Dias da Costa JS, Teixeira AMFB, Moraes M, Strauch ES, Silveira DS, Carret MLV, Fantinel E. Hospitalizações por condições sensíveis à atenção primária em Pelotas: 1998 a 2012. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(2):345-354.. Desde então, diversas modificações foram introduzidas no sistema local, como a expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF), a criação de Unidade de Pronto Atendimento e a incorporação de teleconsultoria para a atenção primária, num cenário de retração de recursos financeiros e pandemia de COVID-19, instigando nova análise desse indicador.

As ICSAP têm apresentado variações de acordo com determinadas características dos municípios, como a cobertura da ESF e as condições econômicas1313 Mendonça CS, Leotti VB, Dias da Costa JS, Harzheim E. Hospitalizations for primary care sensitive conditions: association with socioeconomic status and quality of family health teams in Belo Horizonte, Brazil. Health Policy Plan 2017; 32(10):1368-1374.,1414 Castro DM, Oliveira VB, ACS Andrade, Cherchiglia ML, Santos AF. Impacto da qualidade da atenção primária à saúde na redução das internações por condições sensíveis. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00209819.. Porta de entrada dos usuários no Sistema Único de Saúde, a ESF tem influenciado indicadores de saúde, entre eles as ICSAP1515 Maia LG, Silva LA, Guimarães RA, Pelazza BB, Rafael Alves Guimarães; Pereira ACS, Rezende WL, Barbosa MA. Internações por condições sensíveis à atenção primária: um estudo ecológico. Rev Saude Publica 2018; 53:2.,1616 Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1903-1913..

O financiamento em saúde no Brasil ao longo de sua história tem sido reconhecidamente insuficiente para conferir a qualidade necessária em todos os níveis de atenção1717 Mendes A, Carnut L, Guerra LDS. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42(1):224-243.,1818 Funcia FR. Sistema Único de Saúde - 30 anos: do subfinanciamento crônico para o processo de desfinanciamento decorrente da emenda constitucional 95/2016. In: Borges AMM, organizadora. 30 Anos da Seguridade Social - avanços e retrocessos. Brasília: ANFIP; 2018.. No contexto atual, com as dificuldades financeiras impostas pelas restrições orçamentárias governamentais1919 Cunha JRA. O (Des) Financiamento do Direito à Saúde no Brasil: uma reflexão necessária. Re Direitos Soc Segur Prev Soc 2021; 7(1): 59-77. e pelo impacto da pandemia de COVID-192020 Fernandes GAAL, Leite B, Pereira S. Os desafios do financiamento do enfrentamento à COVID-19 no SUS dentro do pacto federativo. Rev Adm Publica 2020; 54(4):595-613. na economia, pretendeu-se verificar como o gasto público per capita em saúde impactou o comportamento das ICSAP em Pelotas.

O objetivo do estudo foi descrever as características das ICSAP no município de Pelotas quanto à ocorrência por sexo, faixa etária e por principais causas no período de 2000 a 2021. Adicionalmente, foi realizada a análise de tendência das ICSAP do município comparando-a com a do restante do Rio Grande do Sul, sua associação com o gasto público per capita em saúde e com a cobertura populacional de ESF.

Métodos

Trata-se de um estudo ecológico comparando a tendência das ICSAP no município de Pelotas com o restante do estado do Rio Grande do Sul no período de 2000 a 2021.

Pelotas é um município localizado na região Sul do Rio Grande do Sul, com área de 1.609 km2 e população estimada de 324.026 habitantes em 2022, sendo a quarta cidade mais populosa do estado. Em 2020, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal atingiu 0,739, o PIB per capita foi de R$ 27.671,06, colocando o município na 356ª posição no Rio Grande do Sul. Pelotas abriga três universidades, todas com atuação na área de saúde, dispondo de duas faculdades de medicina, quatro hospitais gerais vinculados ao SUS, um hospital psiquiátrico, uma UPA e 51 unidades básicas de saúde distribuídas nas áreas urbana e rural.

Foram incluídas na análise as condições sensíveis à atenção primária à saúde elencadas pelo Ministério da Saúde, disponíveis no DATASUS, captadas pelo TABWIN no Sistema de Internações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS).

Os dados da população residente em Pelotas para elaboração dos coeficientes estavam disponíveis no DATASUS e foram coletadas pelo TABNET, na seção de informações demográficas e socioeconômicas, com estimativas por sexo e idade de 2000 a 2021.

Coletaram-se informações sobre as internações por demais causas em Pelotas, excluídas as obstétricas. As internações por demais causas foram incluídas na análise porque fatores como número de leitos disponíveis, mudanças na tabela SUS e variações sazonais poderiam interferir ou mesmo influenciar no comportamento das ICSAP.

Os coeficientes brutos foram calculados a partir da razão entre o número de ICSAP e a população residente de acordo com faixa etária, sexo e ano por 1.000 habitantes. Sabe-se que a ocorrência das ICSAP tem variado de acordo com sexo99 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012. e faixa etária2121 Viacava F, Carvalho CC, Martins M, Oliveira RD. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP): análise descritiva por sexo e idade e diagnósticos principais [Internet]. 2022. [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Boletim_n9_PROADESS_ICSAP_out2022.pdf
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. Para controlar as diferenças de estrutura demográfica nas análises das tendências, os coeficientes foram padronizados diretamente tomando-se a população do Rio Grande do Sul em 2010.

A análise dos coeficientes de ICSAP por faixas etárias foi apresentada em gráfico por médias móveis a cada sete anos (2000-2007, 2008-2014 e 2015-2021), tomando-se como categorias: até nove anos, 10 a 19 anos, 20 a 39 anos, 40 a 59 anos e 60 anos ou mais.

Foram elencadas as cinco principais causas de ICSAP no período, demonstrando seu percentual em relação ao total.

A cobertura populacional de ESF estava disponível no site do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, sendo coletada em percentual, utilizando-se como referência o mês de dezembro de cada ano, exceto 2021, ainda indisponível.

O gasto público per capita em saúde em Pelotas e no restante do Rio Grande do Sul foi coletado a partir das informações disponíveis no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), obtido por despesa administrativa por subfunção direta. O gasto público per capita em saúde foi calculado pela seguinte fórmula: total de despesas liquidadas por ano/população residente em cada ano. Com o objetivo de reduzir as variações de preço devido à inflação, foi aplicado o recurso deflator. Dessa forma, os valores foram ajustados de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, usando-se a Calculadora do Cidadão disponível no site do Banco Central do Brasil. Foi utilizado o último dia do mês de dezembro de 2021 como referência para a correção.

A análise de tendência dos coeficientes de ICSAP tanto em Pelotas quanto no restante do Rio Grande do Sul utilizou a regressão generalizada de Prais-Winsten. Esse método corrige o erro de autocorrelação serial de primeira ordem (AR-1) comum em séries temporais, superestimando os resultados analisados. Os resultados foram interpretados da seguinte forma: tendência decrescente (valor de p < 0,05 e coeficiente negativo), tendência crescente (valor de p < 0,05 e coeficiente positivo) e tendência estável (valor de p > 0,05)2222 Antunes JLF, Cardoso MRA. Uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(3):565-576..

Para a análise de associação entre os coeficientes de ICSAP, gasto público per capita em saúde e cobertura populacional de ESF, foi utilizado o mesmo método, sendo interpretado como resultado estatisticamente significativo valor de p < 0,05. Deve-se ressaltar que a associação entre ICSAP e ESF em Pelotas considerou o período entre 2002 e 2020.

O presente estudo foi realizado com dados secundários disponíveis em sistemas de informações públicos, não permitindo a identificação dos indivíduos, eximindo a obrigatoriedade de aprovação do Conselho de Ética em Pesquisa, de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

No período entre 2000 e 2021, totalizando 22 anos, foram constatadas 71.973 ICSAP no município de Pelotas, sendo que os coeficientes de internação variaram de 21,2 por mil habitantes em 2000 a 3,6 por mil habitantes em 2021, evidenciando tendência de diminuição. A tendência de queda nos coeficientes das ICSAP revelada em Pelotas também foi constatada no restante do Rio Grande do Sul, apesar da súbita elevação em 2020. A análise no período mostrou que os coeficientes de ICSAP observados em Pelotas foram inferiores àqueles do restante do Rio Grande do Sul. Nos anos da pandemia, em Pelotas observaram-se os menores coeficientes de todo o período, enquanto no restante do Rio Grande do Sul, em 2020, constatou-se uma súbita acentuação da ocorrência de ICSAP, remetendo aos níveis encontrados em 2007 e 2008, voltando a diminuir no ano seguinte, alcançando o valor mais baixo. As internações por demais causas em Pelotas também diminuíram, se em 2000 o coeficiente alcançou 47,0 por mil habitantes, no último ano foi 33,9 (Tabela 1). A análise das ICSAP em Pelotas não encontrou diferenças entre os sexos, entretanto, no restante do Rio Grande do Sul, demonstrou-se predomínio das internações entre as mulheres (Tabela 1).

Tabela 1
Coeficientes de internações por condições sensíveis à atenção primária e por demais causas no município de Pelotas e no Rio Grande do Sul segundo sexo de 2000 a 2021.

A análise de tendência confirmou a constatada diminuição das ICSAP em Pelotas (-0,65; IC95% -0,86 a -0,44; valor de p < 0,001) e no restante do Rio Grande do Sul (-0,71; IC95% -0,91 a -0,51; valor de p < 0,001), apesar do pico de elevação em 2020, porém mostrou estabilidade nos coeficientes de internações por demais causas (-0,15; IC95% -0,57 a 0,26; valor de p = 0,440).

Na comparação das quedas das tendências dos coeficientes das ICSAP, evidenciou-se a menor ocorrência em Pelotas em relação ao restante do estado (Figura 1). Por sua vez, no município de Pelotas a comparação entre as curvas das tendências por ICSAP e pelas demais causas de hospitalizações apresentaram formatos diferentes (Figura 2).

Figura 1
Tendência do coeficiente de ICSAP por 1.000 habitantes em Pelotas e no Rio Grande do Sul de 2000 a 2021.

Figura 2
Tendência do coeficiente de internações por CSAP e por demais causas por 1.000 habitantes em Pelotas de 2000 a 2021

Em Pelotas, os maiores coeficientes de ICSAP foram verificados entre os indivíduos na faixa etária de 60 anos ou mais, seguidos do grupo até nove anos, enquanto os menores valores foram constatados na faixa etária de 10 a 19 anos. Ao se observar as médias móveis, constatou-se que cada período não se sobrepôs ao anterior, evidenciando novamente a queda nas ICSAP, com os coeficientes das faixas etárias diminuindo no decorrer dos períodos analisados (Figura 3).

Figura 3
Coeficiente de ICSAP por 1.000 habitantes por faixas etárias e períodos em Pelotas/RS.

As principais causas de internações por condições sensíveis à atenção primária no período analisado foram: insuficiência cardíaca (13,2%), angina (10,7%), doenças cerebrovasculares (9,8%), infecção do rim e do trato urinário (9,7%) e doenças pulmonares (9,3%).

A cobertura de ESF em Pelotas mostrou crescimento progressivo até 2017, atingindo 75,5%, a partir desse ano, observaram-se diminuições dos percentuais. No Rio Grande do Sul, destacaram-se três momentos. O primeiro até 2007, com aumento progressivo de cobertura até atingir 75,5%, seguido de queda para 34,2% no ano seguinte e gradativo crescimento até 2018 (Tabela 2). A análise de tendência da cobertura de ESF em Pelotas (2,84; IC95% 1,19 a 4,49; valor de p = 0,002) evidenciou aumento da cobertura entre 2002 e 2020. A cobertura de ESF no restante do Rio Grande do Sul mostrou-se estacionária (0,83; IC95% -1,03 a 2,70; valor de p = 0,363).

Tabela 2
Gasto público per capita em saúde e cobertura populacional de ESF em Pelotas e no Rio Grande do Sul, 2000 a 2021.

Quanto ao gasto público per capita em saúde, constatou-se evidente aumento tanto em Pelotas como no restante do Rio Grande do Sul ao longo do período, sendo três vezes maior do que o valor inicial em ambos os locais. Na comparação, os gastos em Pelotas foram superiores até 2005, depois constataram-se maiores valores no restante do Rio Grande do Sul (Tabela 2). A análise de tendência confirmou o crescimento do gasto público per capita em saúde tanto em Pelotas (29,89; IC95% 23,60 a 36,18; valor de p < 0,001), como no restante do Rio Grande do Sul (37,43; IC95% 31,71 a 43,15; valor de p < 0,001).

Em Pelotas, a análise revelou associação inversamente proporcional entre ICSAP e cobertura de ESF (-0,11; IC95% -0,15 a -0,07; valor de p < 0,001) e com o gasto público per capita em saúde (-0,02; IC95% -0,02 a -0,01; valor de p < 0,001). No restante do Rio Grande do Sul, os resultados da análise de associação mostraram que a cobertura de ESF (-0,06; IC95% -0,20 a 0,08; valor de p = 0,406) não estava associada com as ICSAP. No entanto, o aumento significativo do gasto público per capita em saúde (-0,02; IC95% -0,02 a -0,01; valor de p < 0,001) estava associado à diminuição das ICSAP.

Discussão

Os resultados mostraram queda das ICSAP no período estudado tanto em Pelotas, objeto deste estudo, como no restante do estado do Rio Grande do Sul. Essa tendência foi mais evidente na visualização das curvas a partir de 2011 e foi confirmada pela análise de regressão. Outros estudos com delineamento ecológico realizados recentemente no Brasil utilizaram diferentes períodos de tempo, métodos de análise de tendência e grupos populacionais, encontrando redução nos coeficientes de ICSAP. Investigação que analisou o Brasil e suas regiões utilizando taxas padronizadas segundo regressão linear simples e modelo linear generalizado gama também mostrou queda dos coeficientes das ICSAP no período de 2010 a 201999 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012.. Viacava et al. analisaram o período de 2000 a 2021 e evidenciaram que as ICSAP decresceram no Brasil e nas grandes regiões mediante a análise de seu percentual em relação ao total de internações2121 Viacava F, Carvalho CC, Martins M, Oliveira RD. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP): análise descritiva por sexo e idade e diagnósticos principais [Internet]. 2022. [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Boletim_n9_PROADESS_ICSAP_out2022.pdf
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. No estado de Goiás, de 2010 a 2015, a análise por regressão linear generalizada de Prais-Winsten encontrou tendência decrescente dos coeficientes de ICSAP na maioria das regiões de saúde1515 Maia LG, Silva LA, Guimarães RA, Pelazza BB, Rafael Alves Guimarães; Pereira ACS, Rezende WL, Barbosa MA. Internações por condições sensíveis à atenção primária: um estudo ecológico. Rev Saude Publica 2018; 53:2.. No Estado de Rondônia, entre 2012 e 2016, observou-se leve tendência de diminuição da frequência do percentual de ICSAP em relação a todas as hospitalizações2323 Santos BV, Lima DS, Fontes CJF. Internações por condições sensíveis à atenção primária no estado de Rondônia: estudo descritivo do período 2012-2016. Epidemiol Serv Saude 2019; 28(1):e2017497.. Estudo conduzido em Santa Catarina, no período de 2008 a 2015, avaliou os coeficientes de ICSAP em idosos mediante análise estratificada por sexo, com taxas padronizadas e por meio de regressão linear segmentada, demonstrando diminuição das internações, sendo que a variação maior foi entre as mulheres e os idosos com mais de 80 anos, especialmente a partir de 201277 Rodrigues MM, Alvarez AM, Rauch KC. Tendência das internações e da mortalidade de idosos por condições sensíveis à atenção primária. Rev Bras Epidemiol 2019; 22:e190010.. No Rio Grande do Norte, no período de 2008 a 2016, na população de 60 anos ou mais foi observada redução das ICSAP a partir de 20112424 Santos KMR, Oliveira LPBA, Fernandes FCGM, Santos EGO, Barbosa IR. Internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde em população idosa no estado do Rio Grande do Norte, Brasil, no período de 2008 a 2016. Rev Bras Geriatr Gerontol 2019; 22(4):e180204.. Em Senador Canedo-GO, de 2001 a 2016, mediante regressão de Prais-Winsten, foi encontrada tendência temporal decrescente das ICSAP no conjunto de doenças cardiocirculatórias e nas taxas de internação por insuficiência cardíaca88 Silva MVM, Oliveira VS, Pinto PMA, Razia PFS, Caixeta ACL, Aquino EC, Morais Neto OL. Tendências das internações por condições cardiovasculares sensíveis à atenção primária à saúde no município de Senador Canedo, Goiás, 2001-2016. Epidemiol Serv Saude 2019; 28(1):e2018110.. Esse conjunto de resultados positivos provavelmente está associado à melhora da qualidade da atenção primária. Estudo realizado com dados do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) mostrou que nos municípios com melhor avaliação o número de ICSAP foi menor1414 Castro DM, Oliveira VB, ACS Andrade, Cherchiglia ML, Santos AF. Impacto da qualidade da atenção primária à saúde na redução das internações por condições sensíveis. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00209819..

A queda dos coeficientes de ICSAP observadas em Pelotas durante a pandemia pode estar acompanhando tendências detectadas em outras pesquisas realizadas no Brasil. Estudo ecológico que incluiu todo o país e verificou internações por todas as causas de 2017 a 2021 revelou decréscimo do número de hospitalizações por doenças crônicas não transmissíveis, independentemente de sexo e faixa etária, constatando as maiores diminuições nas regiões Norte e Sul, como consequência do cenário de distanciamento social e da sobrecarga dos serviços de saúde2525 Guimarães RA, Policena GM, Paula HSC, Pedroso CF, Pinheiro RS, Itria A, Braga Neto OO, Teixeira AM, Silva IA, Oliveira GA, Batista KA. Analysis of the impact of coronavirus disease 19 on hospitalization rates for chronic non-communicable diseases in Brazil. PLoS One 2022; 24;17(3):e0265458.. Albuquerque et al. mostraram redução nas internações hospitalares por doenças respiratórias não-COVID, mostrando quedas em condições como asma, pneumonia, bronquite aguda, doença pulmonar obstrutiva crônica, bronquiectasia, todas incluídas na Lista Brasileira de Condições Sensíveis à Atenção Primária2626 Albuquerque DAR, Melo MDT, Sousa TLF, Normando PG, Fagundes JGM, Araujo-Filho JAB. Hospital admission and mortality rates for non-COVID-19 respiratory diseases in Brazil's public health system during the covid-19 pandemic: a nationwide observational study. J Bras Pneumol 2023; 49(1):e20220093..

A análise da ocorrência de ICSAP não evidenciou predomínio entre os sexos em Pelotas, embora no restante do Rio Grande do Sul os coeficientes tenham sido mais elevados entre as mulheres. Outros estudos conduzidos no Brasil também apontaram a ocorrência de ICSAP de acordo com o sexo em diferentes direções. Viacava et al. mostraram valores um pouco maiores nos residentes do sexo masculino2121 Viacava F, Carvalho CC, Martins M, Oliveira RD. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP): análise descritiva por sexo e idade e diagnósticos principais [Internet]. 2022. [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Boletim_n9_PROADESS_ICSAP_out2022.pdf
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. E o estudo de Santos et al. apresentou maiores taxas padronizadas no sexo masculino em quase todo o país, com exceção da região Sudeste99 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012.. Como esperado, encontrou-se maior ocorrência de ICSAP entre as pessoas com idade de 60 anos ou mais, seguidas das da faixa etária até nove anos. Outros estudos também demonstraram maiores coeficientes de internações nas faixas etárias extremas99 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012.,1414 Castro DM, Oliveira VB, ACS Andrade, Cherchiglia ML, Santos AF. Impacto da qualidade da atenção primária à saúde na redução das internações por condições sensíveis. Cad Saude Publica 2020; 36(11):e00209819..

Entre as principais causas de internações, constatou-se predomínio das doenças crônicas não transmissíveis no período, acompanhando a tendência de outros estudos realizados no Brasil. Viacava et al. analisaram as ICSAP em período semelhante ao do presente estudo e mostraram como causas mais frequentes na região Sul: acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca, infecção do trato urinário, angina instável e pneumonia bacteriana2121 Viacava F, Carvalho CC, Martins M, Oliveira RD. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP): análise descritiva por sexo e idade e diagnósticos principais [Internet]. 2022. [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Boletim_n9_PROADESS_ICSAP_out2022.pdf
https://www.proadess.icict.fiocruz.br/Bo...
. Já Santos et al. (2022) conduziram estudo ecológico abrangendo o período de 2010 a 2019 para analisar as principais causas de acordo com o sexo99 Santos FM, Macieira C, Machado ACG, Borde EMS, Santos AF. Internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP): uma análise segundo características sociodemográficas, Brasil e regiões, 2010 a 2019. Rev Bras Epidemiol 2022; 25:e220012.. Em 2019, os principais motivos de internações foram infecção de rins e trato urinário, gastroenterite infecciosa e complicações e doenças cerebrovasculares entre as mulheres. Entre os homens, as causas de internação mais elevadas foram doenças cerebrovasculares, gastroenterite infecciosa e complicações e insuficiência cardíaca, ou seja, uma relação de condições muito semelhante à de Pelotas, com predomínio das doenças crônicas não transmissíveis. Certamente programas como o HiperDia, Farmácia Popular e Telessaúde contribuíram para a diminuição das ICSAP.

Os resultados mostraram que o aumento da cobertura de ESF e do gasto público per capita em saúde estavam associados à diminuição das ICSAP em Pelotas, acompanhando os resultados de outras investigações1515 Maia LG, Silva LA, Guimarães RA, Pelazza BB, Rafael Alves Guimarães; Pereira ACS, Rezende WL, Barbosa MA. Internações por condições sensíveis à atenção primária: um estudo ecológico. Rev Saude Publica 2018; 53:2.,2727 Pinto Junior EP, Aquino R, Medina MG, Silva MGC. Efeito da Estratégia Saúde da Família nas internações por condições sensíveis à atenção primária em menores de um ano na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2018; 34(2):e00133816.. Estudos têm classificado a ESF como consolidada a partir de cobertura populacional de 70% e funcionamento há quatro anos2828 Aquino R, Oliveira NF, Barreto ML. Impact of the Family Health Program on infant mortality in Brazilian municipalities. Am J Public Health 2009; 99(1):87-93.. No presente estudo, a partir de 2018, verificaram-se diminuições das coberturas populacionais de ESF em Pelotas e no restante do Rio Grande do Sul, enquadrando-se na classificação intermediária (cobertura entre 30% e 69%). Esse resultado pode ter sido reflexo do término do Programa Mais Médicos2929 Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira LFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2021; 26(1):2543-2556. em 2019 e da implantação do Programa Previne Brasil3030 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos ALP. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Cien Saude Colet 2021; 26(Suppl. 2):3781-3786., nova forma de financiamento da atenção primária que instituiu a remuneração por captação de pacientes, entre outras medidas.

Apesar do aumento significativo do gasto público per capita em saúde constatado no presente estudo, vale dizer que os maiores valores atingidos em Pelotas e no Rio Grande do Sul em 2021 corresponderam à US$ 202,75 e US$ 223,26 respectivamente. Para comparação, o artigo emblemático de Macincko e Harris3131 Macinko J, Harris MJ. Brazil's family health strategy: delivering community-based primary care in a universal health system. N Engl J Med 2015; 372(23):2177-2181. em 2015 já tinha mostrado que o gasto per capita em saúde no Brasil atingia US$ 1.056,00, porém 57,8% deste valor era privado. Naquele momento, o gasto público per capita em saúde atingiu US$ 490,00, sendo classificado como insuficiente. Mais recentemente, após a introdução e definição de gastos nas esferas de governo e no financiamento da saúde, diversos autores têm indicado que no Brasil os percentuais do Produto Interno Bruto aplicados em saúde são comparáveis aos dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entretanto perdura o fato de que valores acima de 50% dos recursos aplicados são privados, sinalizando financiamento público ainda insuficiente3232 Rocha R, Furtado I, Spinola P. Financing needs, spending projection, and the future of health in Brazil. Health Econ 2021; 30(5):1082-1094.,3333 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Contas de saúde na perspectiva da contabilidade internacional: conta SHA para o Brasil, 2015 a 2019. Brasília: IPEA; 2022..

Estudos ecológicos apresentam limitações próprias pelo seu delineamento, como a falácia ecológica e pelo uso de dados secundários, propensos a problemas de sub-registro, de representatividade e de classificação. Entretanto, o SIH/SUS foi criado com intenção contábil, diminuindo a possibilidade desses erros. Quanto à representatividade, o SIH/SUS se restringe às informações sobre internações dos hospitais credenciados ao SUS, mas certamente é o sistema utilizado pela maioria da população de Pelotas. Outro problema diz respeito à possibilidade de ocorrência de casos de reinternações dos mesmos indivíduos, indetectáveis na coleta de dados, mas que na presente análise superestimariam os coeficientes, reforçando os resultados. Quanto à qualidade dos dados, sabe-se que os sistemas de informação têm cada vez mais sido utilizados, o que aprimora sua qualidade, além disso, as internações hospitalares têm sido submetidas a auditoria pela Secretaria Municipal de Saúde. Deve-se destacar que a análise foi conduzida com método robusto e adequado, a série histórica foi longa e a padronização dos coeficientes eliminou as diferenças de estrutura por sexo e idade, permitindo comparações.

O acompanhamento permanente das ICSAP deveria ser apoiado e praticado pelos municípios por se tratar de um indicador disponível, rápido e barato, fornecendo dados para o entendimento do sistema local de saúde, podendo instrumentalizar a gestão na relação com o setor hospitalar, além de qualificar a atenção primária. Apesar do evidente decréscimo das ICSAP apresentado no presente estudo, ainda é necessária a análise de aspectos que poderiam ser incorporados para estimular a diminuição desse indicador, como subsidiar a educação continuada e a adoção de protocolos clínicos a partir da observação das internações por grupos de causas mais prevalentes.

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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Nov 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br