Agrotóxicos e violações nos direitos à saúde e à soberania alimentar em comunidades Guarani Kaiowá de MS, Brasil

Alexandra De Pinho Débora F. Calheiros Fernanda S. Almeida Patrícia Zerlotti Mariana Cereali Alberto Feiden Franciele F. Machado Renato Zanella Sobre os autores

Resumo

O Brasil, um dos maiores produtores agrícolas e consumidores de agrotóxicos do mundo, expandiu sua área agrícola no sul do Mato Grosso do Sul, intensificando a contaminação ambiental e a vulnerabilidade das populações indígenas. Esta pesquisa avaliou a presença de agrotóxicos nas águas de duas comunidades indígenas de MS, Retomada Guyraroká e Aldeia Jaguapiru. Entre 2021 e 2022 foram realizadas três campanhas de amostragem de água superficial, de abastecimento e da chuva, considerando o calendário agrícola. O estudo seguiu o protocolo do Laboratório de Análises de Resíduos de Pesticidas, da Universidade Federal de Santa Maria. Ao todo foram encontrados 22 ingredientes ativos (IAs), destes, 41% causam efeitos graves à saúde e 68% são proibidos na União Europeia. O Fipronil, 2,4-D e Atrazina, alguns dos mais frequentes. Os resultados revelam que essas comunidades estão expostas aos agrotóxicos, violando seus direitos à saúde e à soberania alimentar.

Palavras-chave:
Agroquímicos; Povos indígenas; Saúde pública; Qualidade da água; Poluição ambiental

Introdução

No mundo, o Brasil é um dos maiores produtores de commodities agrícolas, que são dependentes de agrotóxicos para a sua produção11 Carneiro FF, Agusto LGS, Rigotto RM, Friedrich K, Búrigo AC, organizadores. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV, Expressão Popular; 2015.. Em 2021 o país foi o maior exportador mundial de soja do planeta, com 91 milhões de toneladas22 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Ciência e tecnologia tornaram o Brasil um dos maiores produtores mundiais de alimentos [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 28].Disponível em: https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/75085849/ciencia-e-tecnologia-tornaram-o-brasil-um-dos-maiores-produtores-mundiais-de-alimentos
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De acordo com Hess e Nodari33 Hess SC, Nodari RO, Soares MR, Lima FANS, Pignati WA. Cenário agrícola brasileiro: monoculturas e silvicultura, agrotóxicos e incidência de câncer, suicídio e anomalias congênitas. In: Roccon PC, Del Bel H, Costa AAS, Pignati WA, organizadores. Ambiente, saúde e agrotóxicos: desafios e perspectivas na defesa da saúde humana, ambiental e do(a) trabalhador(a). São Carlos: Pedro & João Editores; 2023. p. 149-175., a área cultivada entre 2010 e 2020 cresceu 27,6%, enquanto a quantidade de agrotóxicos comercializados aumentou 78,3%, evidenciando o aumento mais expressivo no uso de agrotóxicos. Em 2020 o volume de agrotóxicos comercializados no Brasil foi de 685.746 toneladas. No período entre 2013 e 202044 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ibama apreende agrotóxicos ilegais em propriedades rurais no Mato Grosso do Sul [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 23]. Disponível em: https://www.gov.br/ibama/pt-br/assuntos/noticias/2022/ibama-apreende-agrotoxicos-ilegais-em-propriedades-rurais-no-mato-grosso-do-sul
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, os estados com as maiores quantidades de agrotóxicos comercializados foram: MT (18,5%), SP (14,2%), RS (11,5%), PR (11,3%), GO (8,5%), MG (7,0%) e MS (6,2%).

A soja é a commodity mais cultivada no Brasil e, segundo estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a safra de 2022/2023, a área plantada de soja foi superior a 43 milhões de hectares. É a cultura que mais utiliza agrotóxicos - mais de 63% do total aplicado no país, seguida pelo milho (13%) e a cana-de-açúcar (5%)55 Lopes HR, Aline MG, Luiza CM. Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas de cerrado [Internet]. 2023. [acessado 2023 ago 20]. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/2023-05/dossie-agrotoxicos-aguas-cerrado.pdf
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. Em 2022, o total de agrotóxicos comercializados em MS foi superior a 48 mil toneladas66 Mondardo M. O governo bio/necropolítico do agronegócio e os impactos dos agrotóxicos sobre os territórios de vida Guarani e Kaiowá. Rev Geogr Ecol Politica 2019; 1(2):155-187.. Para deixar a situação mais crítica, nas áreas de fronteira com o Paraguai e a Bolívia há muitos casos de contrabando de agrotóxicos proibidos no Brasil77 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Painéis de informações de agrotóxicos [Internet]. 2023. [acessado 2023 ago 22]. Disponível em: https://www.gov.br/ibama/pt-br/assuntos/quimicos-e-biologicos/agrotoxicos/paineis-de-informacoes-de-agrotoxicos
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O avanço da produção de commodities e o desmatamento exercem forte pressão nos territórios indígenas88 Ribeiro HM, Sá Neto CE. Meios de extermínio na sociedade de risco: a pulverização de agrotóxicos em terras indígenas brasileiras. Rev Juridica Luso Bras 2019; 5(3):727-751.. Lavouras adjacentes às terras indígenas (TIs) resultam na exposição das comunidades, seus rios e córregos, causada pela deriva dos agrotóxicos que transpassam os limites dos latifúndios99 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA. Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos. Saude Debate 2022; 46(2):28-44.. Esses impactos violam os direitos humanos, à terra, à saúde e à soberania e à segurança alimentar e nutricional. Além disso, a pulverização de agrotóxicos tem sido usada sobre as terras e os corpos indígenas como forma de exterminá-los, pois lutam pela demarcação dos seus territórios e são um empecilho para a expansão do agronegócio99 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA. Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos. Saude Debate 2022; 46(2):28-44.. Contudo, os estudos sobre contaminação por agrotóxicos em TIs são escassos no país99 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA. Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos. Saude Debate 2022; 46(2):28-44..

Segundo Bombardi1010 Bombardi LM. Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexão com a EU. São Paulo: FFLCH-USP; 2017., o MS é o 3º estado com maior número de casos (12) de contaminação indígena por agrotóxicos entre 2007 e 2014. Porém, ressalte-se que a vigilância toxicológica do MS é pouco estruturada, com alta possibilidade de subnotificações.

O Mato Grosso do Sul é o estado com a terceira maior população indígena do Brasil, correspondendo, em 2022, a 116 mil pessoas1111 Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Dados do Censo 2022 revelam que o Brasil tem 1,7 milhão de indígenas [internet]. 2023. [acessado 2024 mar 9]. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dados-do-censo-2022-revelam-que-o-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas
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. As comunidades indígenas no estado foram cercadas pelas grandes lavouras. Por isso, o cotidiano dos Guarani e Kaiowá tem sido marcado, histórica e geograficamente, pela desterritorialização e precarização imposta pelo “colonialismo interno”88 Ribeiro HM, Sá Neto CE. Meios de extermínio na sociedade de risco: a pulverização de agrotóxicos em terras indígenas brasileiras. Rev Juridica Luso Bras 2019; 5(3):727-751. em frentes do agronegócio. Esses povos lutam há anos pela retomada de seus territórios de vida, os tekoha, e contra a contaminação por agrotóxicos.

A deriva de agrotóxicos em TI já foi reportada no MS. Em maio de 2019, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), um trator aplicou veneno em plantio de soja adjacente à Retomada Guyraroká, atingindo notadamente a comunidade, registrado com fotos e vídeos1212 Brasil de Fato. Indígenas guarani kaiowá denunciam pulverização de veneno ao lado de escola [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 2]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/06/indigenas-guarani-kaiowa-denunciam-pulverizacao-de-veneno-ao-lado-de-escola
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. Posteriormente, foi relatado que crianças e jovens apresentaram asma, tosse seca, falta de ar, vômito e dores no tórax, no estômago e na cabeça1212 Brasil de Fato. Indígenas guarani kaiowá denunciam pulverização de veneno ao lado de escola [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 2]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/06/indigenas-guarani-kaiowa-denunciam-pulverizacao-de-veneno-ao-lado-de-escola
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Em 2015, a retomada Guyra Kambi’y (Dourados), com cerca de 150 indígenas Guarani Kaiowá, sofreu um ataque químico de um avião que pulverizava uma lavoura a 15 m da comunidade. Esta situação é proibida pela Instrução Normativa nº 02/20081313 Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Instrução Normativa nº 2. Dispõe de aprovar as normas de trabalho da aviação agrícola, em conformidade com os padrões técnicos operacionais e de segurança para aeronaves agrícolas, pistas de pouso, equipamentos, produtos químicos, operadores aeroagrícolas e entidades de ensino, objetivando a proteção às pessoas, bens e ao meio ambiente, por meio da redução de riscos oriundos do emprego de produtos de defesa agropecuária. Diário Oficial da União 2008; 3 jan., do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, vedando a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de 500 m de povoações, cidades, vilas e bairros, ou a uma distância mínima de 250 m de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais. Laudo pericial da Polícia Federal constatou que, nesse caso, a aplicação ocorreu fora dos parâmetros legais. Após o fato, crianças e adultos da comunidade apresentaram dores de cabeça e garganta, diarreia, febre e irritação na pele e nos olhos1414 Ministério Público Federal. MPF/MS pede na Justiça indenização de R$ 286 mil para aldeia pulverizada com agrotóxicos [Internet]. 2017. [acessado 2023 ago 21]. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-pede-na-justica-indenizacao-de-r-286-mil-para-aldeia-pulverizada-com-agrotoxicos
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. Moradores alegam que as aplicações ocorrem nas mesmas circunstâncias desde 20131515 Repórter Brasil [Internet]. Agrotóxico foi usado como arma química contra os indígenas, diz procurador [Internet]. 2019. [acessado 2023 ago 25]. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2019/08/agrotoxico-foi-usado-como-arma-quimica-contra-os-indigenas-diz-procurador/
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Diante do uso massivo de agrotóxicos na produção de commodities e da situação vulnerável dos povos Guarani Kaiowá, este trabalho avaliou a presença e a concentração de agrotóxicos em água de nascentes, rios, abastecimento e chuva em duas comunidades indígenas circundadas por lavouras no Mato Grosso do Sul. É fundamental monitorar a qualidade de água nas comunidades afetadas e informá-las sobre seus direitos à saúde e à soberania alimentar, como direito humano, promovendo uma vigilância crítica e participativa em saúde.

Método

A escolha das comunidades teve como critério ter grandes lavouras no seu entorno. A Retomada Guyraroká e a Aldeia Jaguapiru se enquadram nesse cenário, localizadas na região Sul do MS (Figura 1), onde estão as maiores áreas de produção agrícola.

Figura 1
Localização das comunidades estudadas.

A Retomada Guyraroká, município de Caarapó, ocupa uma área de 58 ha, na qual residem cerca de 100 indígenas Guarani Kaiowá. Já a Aldeia Jaguapiru está localizada na Reserva Indígena de Dourados (RID), município de Dourados. Conforme os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)1616 Instituto Socioambiental. Indígenas estão ameaçados de despejo em Dourados (MS) [Internet]. 2017. [acessado 2023 ago 23]. Disponível em: https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/indigenas-estao-ameacados-de-despejo-em-dourados-ms
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, em 2014 residiam nos 3.539 ha da reserva cerca de 15 mil pessoas. As etnias que prevalecem nas aldeias são: Kaiowá, Ñandeva e Terena.

As duas comunidades apresentam realidades semelhantes: ambas sobrevivem da agricultura, utilizando técnicas tradicionais e sem uso de insumos industrializados. Se encontram em vulnerabilidade social, contudo, a Retomada Guyraroká está numa condição de maior fragilidade, uma vez que seu território não está demarcado.

Ambas têm água encanada para consumo, oriunda de poços artesianos que foram analisados neste trabalho. Entretanto, na Retomada Guyraroká um casal de anciões utiliza para consumo apenas a água da nascente Ypytã, também analisada pelo estudo.

O estudo foi conduzido entre 2021 e 2022, quando foram realizadas, em cada comunidade, coletas de água superficial, de abastecimento e da chuva em três períodos diferentes, seguindo o calendário agrícola para o cultivo de soja. A primeira coleta ocorreu em novembro/dezembro de 2021, no início do plantio, a segunda em fevereiro/março de 2022, período da colheita, e a terceira, em agosto de 2022, época do vazio sanitário da soja, quando não é permitido o plantio do grão no MS. Para avaliar a exposição aos agrotóxicos pela água, foram coletadas amostras de água de abastecimento (torneira), superficial (rios e nascentes) e chuva. As coletas de água da chuva foram feitas conforme Beserra1717 Beserra L. Agrotóxicos, vulnerabilidades socioambientais e saúde: uma avaliação participativa em municípios da bacia do rio Juruena, Mato Grosso [dissertação]. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso; 2017..

As amostras foram enviadas e analisadas pelo Laboratório de Análise de Resíduos de Pesticidas (LARP) do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Aplicou-se o método desenvolvido por Donato et al.1818 Donato FF, Martins M, Munaretto JS, Prestes O. Development of a multiresidue method for pesticide analysis in drinking water by solid phase extraction and determination by gas and liquid chromatography with triple quadrupole tandem mass spectrometry. J Braz Chem Soc 2015; 26(10):2077-2087. para determinação multirresíduo de 70 agrotóxicos com diferentes propriedades. A determinação de glifosato e seu principal metabólito (ácido aminometilfosfônico, AMPA) empregou método dedicado por injeção direta e sistema UHPLC-MS/MS1818 Donato FF, Martins M, Munaretto JS, Prestes O. Development of a multiresidue method for pesticide analysis in drinking water by solid phase extraction and determination by gas and liquid chromatography with triple quadrupole tandem mass spectrometry. J Braz Chem Soc 2015; 26(10):2077-2087..

Resultados

De acordo com os resultados, verificou-se que as populações estudadas estão expostas a diferentes ingredientes ativos (IAs) de agrotóxicos presentes na água. Ao todo, nas duas comunidades, foram detectados 22 IAs diferentes nas amostras no período de um ano. Nas amostras de água superficial foram encontrados 16 IAs, nas amostras de água de abastecimento, 12 IAs, enquanto na água da chuva foram encontrados 17 IAs.

Os IAs mais frequentes foram: Fipronil, detectado em 68,8% das amostras, 2,4-D (62,5%), Clomazona (56,3%), Atrazina (50,0%) e Diuron e Simazina (43,8%).

Nos resultados referentes à Retomada Guyraroká (Tabela 1) foram encontrados 20 IAs diferentes. Os ingredientes ativos foram detectados em 75% das amostras analisadas, sendo que em 45% foi possível quantificar a concentração. Os IAs mais frequentes foram o 2,4-D e o Fipronil, ambos detectados em 50% das amostras, seguidos por Atrazina, Clomazona e Tebuconazol (encontrados em 41,7% das amostras). Todas as concentrações quantificadas estão abaixo dos valores máximos indicados na Resolução do Conama nº 357/20051919 Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 357. Dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2005; 25 mar..

Tabela 1
Ingredientes ativos, concentrações e datas de coletas das amostras da Retomada Guyraroká.

Conforme a Tabela 1, verifica-se que nas amostras de água superficial coletadas nas duas nascentes cujas águas são usadas pela comunidade foram encontrados 14 IAs diferentes. O mais frequente foi o Fipronil, detectado em 50% das amostras de água superficial, seguido pelo fungicida Propiconazol, detectado em 33,3% das amostras.

Quanto às análises da água de abastecimento (Tabela 1), foram detectados 11 IAs, sendo que três deles (Azoxistrobina, Clomazona e Propiconazol) não estão incluídos na Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 888. Altera o Anexo XX da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União 2021; 4 maio., que rege os poluentes a serem monitorados pelo Programa Vigiágua. Somente 36,6% das detecções puderam ser quantificadas e as concentrações encontradas estão abaixo dos valores máximos permitidos (VMP) pela referida portaria.

As amostras de água da chuva apresentaram a maior quantidade de IAs diferentes (16), com 6 na primeira coleta, 11 na segunda e 8 na terceira.

Ainda, de acordo com a Tabela 1, nas amostras de água das nascentes e de abastecimento pode-se observar que as maiores quantidades de IAs foram encontradas na terceira coleta, referente ao vazio sanitário, em agosto de 2022, tanto nas de água superficial, com 11 IAs em cada amostra das nascentes, quanto nas de abastecimento, com e 10 IAs, respectivamente, em uma única amostra.

Os resultados encontrados referentes à Aldeia Jaguapiru estão na Tabela 2. Devido a um novo crescimento de casos de COVID-19 no segundo semestre de 2021 no referido território, a equipe decidiu não realizar a primeira campanha, com a finalidade de evitar situações de contágio nessa comunidade.

Tabela 2
Ingredientes ativos, concentrações e datas de coletas das amostras da Aldeia Jaguapiru.

Nas amostras coletadas na Aldeia Jaguapiru foram detectados 12 IAs diferentes e houve detecção de agrotóxicos em 100% das amostras. Os IAs mais frequentes foram: Fipronil, detectado em 71,4% das amostras, seguido de 2,4-D e Clomazona, em 57,1% cada, e Atrazina, Diuron e Simazina estavam presentes em 42,9% das amostras.

A amostra com maior quantidade de IAs foi a da água da chuva, coletada em fevereiro de 2022, contendo oito IAs, mas somente a Atrazina foi quantificada. A quantificação só foi possível em 17,2% das amostras, portanto, a maioria das análises (82,8%) resultou apenas na confirmação da presença dos ingredientes ativos devido à baixa concentração.

Nas amostras de água superficial foram detectados oito IAs ao todo, sendo que o mais frequente foi o Fipronil, identificado em 75% das amostras. Apenas três IAs (2,4-D, Atrazina e Simazina) estão elencados na Resolução 357/2005 do Conama1919 Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 357. Dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2005; 25 mar., todos com as concentrações abaixo dos VMP.

Nas amostras de água de abastecimento foram detectados oito IAs diferentes e apenas dois (Clomazona e Propiconazol) não fazem parte da Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 888. Altera o Anexo XX da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União 2021; 4 maio.. Aqueles que estão na referida portaria não apresentaram concentrações acima do VMP.

Além da COVID-19, outras situações ocorreram na Aldeia Jaguapiru, portanto só foi possível realizar uma coleta de água de chuva.

Discussão

Conforme verificado nos resultados, a quantidade de IAs encontrados nas amostras de água foi significativa. Em 82,2% das amostras foram detectados pelo menos um agrotóxico. Isso quer dizer que as comunidades estão expostas aos agrotóxicos por várias vias de acesso a água, seja das nascentes, pelo abastecimento público ou pela água da chuva, que, com tantos IAs presentes, contamina as hortas e os sistemas aquáticos, os animais e as pessoas. Além disso, a não constatação de determinado agrotóxico não conclui a sua inexistência no ambiente.

No Brasil, a regulamentação dos valores máximos em água superficial são estabelecidos pela Resolução 357/20051919 Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 357. Dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2005; 25 mar. do Conama, para água de Rios Classe I. Já os valores máximos permitidos em água potável para abastecimento humano são estabelecidos pela Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 888. Altera o Anexo XX da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União 2021; 4 maio.. Embora as concentrações de todos os IAs quantificados nas duas comunidades (36,2% das amostras) estejam abaixo dos valores restabelecidos nessas duas regulamentações (VM e VMP), podem resultar em efeitos crônicos a todos os seres vivos.

A legislação de agrotóxicos na União Europeia (UE), estabelece que o VMP de qualquer IA na água para consumo humano é de 0,1 µg/L, portanto, mais restritivo do que a maioria dos VMPs brasileiros. Um exemplo é o do 2,4-D, um dos IAs que mais apareceu nas amostras, cujo VMP no Brasil é de 300 µg/L, o que representa 300 vezes mais do que na UE. Se fôssemos considerar o VMP da UE neste trabalho, 45,5% de todas as quantificações estariam acima do limite máximo permitido.

Outro resultado preocupante é a grande quantidade de ingredientes ativos encontrados em algumas amostras. A legislação da UE também regulamenta o somatório das concentrações de IAs encontradas por amostra, em que o VMP é 0,5 µg/L. O somatório das concentrações encontrado em 56,6% das amostras da Retomada Guyraroká é maior do que este valor. Na amostra de água de abastecimento foram encontrados dez IAs e o somatório das concentrações foi de 2,0 µg/L, quatro vezes maior do que a permitida pela UE, o que representa risco à saúde e ao meio ambiente.

As avaliações de risco de agrotóxicos para o ambiente e para organismos vivos são realizados por ingrediente ativo e na sua forma mais pura. Estudos sobre os efeitos sinérgicos de dois ou mais IAs atuando juntos no ambiente são quase inexistentes, porém as evidências científicas encontradas afirmam que essa mistura é mais tóxica do que cada agrotóxico separadamente2121 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS. Toxicologia aplicada aos agrotóxicos - perspectivas em defesa da vida. Saude Debate 2022; 2(46):293-315.. Os produtos comerciais são compostos pelo IA, acrescido de outros produtos químicos chamados de inertes, mas que também podem ser tóxicos quando interagem com outras substâncias ou liberados no ambiente, e não são considerados nas avaliações.

Para agravar, no Brasil, 36,8% (146 IAs) dos agrotóxicos com registro para uso não são permitidos na UE. Dos 22 IAs encontrados nas duas comunidades, 15 tem seus usos proibidos na UE (Ametrina, Atrazina, Carbendazim, Carbofurano, Ciproconazol, Diuron, Epoxiconazol, Fipronil, Imidacloprido, Metomil, Profenofós, Propiconazol, Propoxur, Simazina e Tiametoxam). A razão da proibição do uso destes agrotóxicos na UE está associada a efeitos adversos em seres vivos a eles expostos33 Hess SC, Nodari RO, Soares MR, Lima FANS, Pignati WA. Cenário agrícola brasileiro: monoculturas e silvicultura, agrotóxicos e incidência de câncer, suicídio e anomalias congênitas. In: Roccon PC, Del Bel H, Costa AAS, Pignati WA, organizadores. Ambiente, saúde e agrotóxicos: desafios e perspectivas na defesa da saúde humana, ambiental e do(a) trabalhador(a). São Carlos: Pedro & João Editores; 2023. p. 149-175..

Nas amostras de água superficial (córregos e nascentes) coletadas nas duas comunidades foram detectados 16 IAs, sendo nove proibidos na UE e apenas quatro constam na Resolução do Conama1919 Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução nº 357. Dispõe sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2005; 25 mar.. Portanto, apesar de as concentrações não estarem acima dos VMP, há grande quantidade de agrotóxicos, com alto poder tóxico nas nascentes dessas comunidades, podendo causar séria exposição crônica, sem que haja nenhuma forma legal de acompanhamento pelo estado. As nascentes não são apenas fonte de água para os Guarani Kaiowá, elas têm valor cultural. As famílias utilizam as águas superficiais para tomar banho (lazer), pesca de subsistência, oferta à criação animal e aos animais silvestres, além de serem locais sagrados. Logo, o impacto da exposição é amplificado.

Em relação às amostras de água de abastecimento das comunidades, ou seja, a água que as pessoas bebem, cozinham, se higienizam, entre outras atividades, foram encontrados 12 IAs. Destes, sete são proibidos na EU e três não constam da Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde2121 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS. Toxicologia aplicada aos agrotóxicos - perspectivas em defesa da vida. Saude Debate 2022; 2(46):293-315., portanto não são monitorados (Azoxistrobina, Clomazona e Propiconazol). Esse último, um dos IAs mais frequentes, é um herbicida com efeitos mutagênicos, teratogênicos e endócrinos reconhecidos em pesquisas2222 Ferreira MJM, Viana Júnior MM, Pontes AGV, Rigotto RM, Gadelha D. Gestão e uso dos recursos hídricos e a expansão do agronegócio: água para quê e para quem? Cien Saude Colet 2016; 21(3):743-752.. Isso demonstra a urgência de rever as legislações e procedimentos relacionados à qualidade da água. Uma regulamentação que não garante a proteção sanitária da população em relação ao acesso à água é uma regulamentação que precisa ser revista imediatamente. Além da necessidade de revisões periódicas das portarias, que considerem a entrada de novos produtos registrados, é preciso incluir métodos e técnicas de detecção mais acurados, novas informações sobre aspectos toxicológicos dos agrotóxicos, bem como especificidades agropecuárias regionais.

Outra preocupação com Portaria 888/2021 do MS2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 888. Altera o Anexo XX da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União 2021; 4 maio. é que a quantidade de agrotóxicos monitorados (40 IAs) é ínfima em comparação à quantidade de produtos usados no Brasil, que somam mais de 3.000 produtos autorizados pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Meio Ambiente e registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

A maior quantidade de IAs diferentes (16) foi encontrada nas amostras de água da chuva, dentre estes, 12 deles proibido na UE. Também foi detectado o Carbofurano, que tem o uso proibido no Brasil e, segundo os critérios da Anvisa, é mutagênico, teratogênico, provoca danos ao aparelho reprodutor e é mais perigoso ao humano do que os testes laboratoriais demonstraram2323 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Voto nº 69/2017/DIREG/ANVISA. Avaliação Toxicológica do Ingrediente Ativo Carbofurano [Internet]. 2017. [acessado 2024 jun 11]. Disponível em: https://sinitox.icict.fiocruz.br/sites/sinitox.icict.fiocruz.br/files/Relat%C3%B3rio%20GGTOX%20Carbofurano.pdf
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A chuva com agrotóxicos é uma situação muito grave, pois indica que há contaminação em todos os ambientes, podendo alcançar locais onde não há aplicação direta, especialmente no Mato Grosso do Sul, onde as barreiras biogeográficas são poucas e distantes. Os ventos e as chuvas têm fluxo livre na região, potencializando a dispersão da chuva tóxica. Além disso, foram detectados o 2,4-D e a Atrazina, que apresentam alta capacidade de infiltração e alcance de águas subterrâneas2424 Coelho ERC, Leal WP, Souza KB, Rozário A, Antunes PWP. Desenvolvimento e validação de método analítico para análise de 2,4-D, 2,4-DCP e 2,4,5-T para monitoramento em água de abastecimento público. Rev Engen Sanit Ambiental 2018; 6(23):1043-1051.,2525 Dias ACL, Santos JMB, Santos ASP, Bottrel SEC, Pereira RO. Ocorrência de Atrazina em águas no Brasil e remoção no tratamento da água: revisão sistemática. Rev Int Cienc 2018; 8(2):234-253..

Mesmo que haja respeito às normas vigentes de aplicação de agrotóxico e barreiras que mitigam a deriva, não há alternativa para o controle dessa exposição pela água da chuva. Como consequências, há contaminação de outros mananciais e microbacias e suas fases no ciclo hidrológico, afetando a fauna silvestre, no contato com a chuva e no consumo da água contaminada, perda de polinizadores, comprometimento da biodiversidade, da regeneração e manutenção de áreas preservadas, fundamentais para a conservação de espécies.

Não existe no Brasil regulamentação para os VMPs de agrotóxicos na água da chuva, portanto não há programas de monitoramento para essa exposição na saúde humana, nem no ambiente.

De maneira geral, os IAs encontrados estão classificados nas classes toxicológicas com maiores riscos sobre a saúde humana. É imprescindível ressaltar as informações encontradas nas amostras sobre os IAs comprovadamente ou possivelmente cancerígenos e/ou desreguladores endócrinos. Há inúmeras evidências científicas recentes1212 Brasil de Fato. Indígenas guarani kaiowá denunciam pulverização de veneno ao lado de escola [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 2]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/06/indigenas-guarani-kaiowa-denunciam-pulverizacao-de-veneno-ao-lado-de-escola
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afirmando não haver dose segura para exposição a produtos que provocam tais enfermidades. Ou seja, o menor traço de IA que provoca câncer ou é desregulador endócrino pode expor a população a riscos, mesmo que estejam abaixo do VMP. Nessa condição enquadram-se o 2,4-D e a Atrazina. Esta última, já proibida na UE por sua condição de desreguladora endócrina, responsável por alterações nos ciclos menstruais de mulheres e hipotireoidismo, por exemplo, além de comprovadamente cancerígena em testes laboratoriais. O 2,4-D não é proibido mas passa por um rigoroso controle de uso, também desregulador endócrino e possivelmente cancerígeno em humanos2828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigiagua: programa nacional de vigilância da qualidade da água para consumo humano [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 26]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-ambiental/vigiagua/vigiagua
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Alguns dos agrotóxicos presentes nas amostras de água de ambas as comunidades, como o Fipronil, que teve a maior quantidade de detecções por amostra (frequente em quase 70%) e os neonicotinóides Imidacloprido e Tiametoxam (detectados em 18,8% das amostras) são considerados pouco tóxicos sob a perspectiva da saúde humana. Contudo, são os maiores responsáveis pelo desaparecimento das abelhas em âmbito mundial2929 Rossi, EM, Melgarejo L, Souza MMO, Ferrer G, Talga DO, Barcelos RO, Cabaleiro F. Abelhas e agrotóxicos: compilação sobre as evidências científicas dos impactos dos agrotóxicos sobre as abelhas - Petição perante a Relatoria DESCA da Comissão Interamericana de Direitos Humanos [Internet]. 2020. [acessado 2023 ago 23]. Disponível em: https://navdanyainternational.org/wp-content/uploads/2020/11/abelhas2020.pdf
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. Portanto, nossos resultados indicam que há risco à soberania e à segurança alimentar e nutricional, pois impede a produção de alimentos livres de agrotóxicos, bem como a produção de alimentos dependentes de polinizadores, o que pode interferir diretamente na cultura alimentar, especialmente dos povos originários, que têm a base alimentar calcada em alimentos da biodiversidade local, comprometida pela presença dos agrotóxicos no ambiente. Isso sem considerar o recurso melífero, tanto para autoconsumo quanto para renda.

Alguns agrotóxicos encontrados são estáveis em meio aquático e incorporados na ictiofauna. Dessa forma, passam a transitar na cadeia trófica, por sua capacidade bioacumulativa, causando o fenômeno de biomagnificação, que se refere à exposição exponencial ao contaminante à medida em que ele passa para um nível maior dessa cadeia3030 Santana LMBM, Cavalcante RM. Transformações metabólicas de agrotóxicos em peixes: uma revisão. Orbital 2016; 8(4):257-268.. Os principais agrotóxicos vinculados a esse fenômeno são os inseticidas organofosforados e piretróides3030 Santana LMBM, Cavalcante RM. Transformações metabólicas de agrotóxicos em peixes: uma revisão. Orbital 2016; 8(4):257-268.. Ao se biomagnificarem ao longo da cadeia trófica, tornam-se potenciais causadores de intoxicações agudas e crônicas para os predadores, como os humanos. Lembrando que os peixes são uma das principais fontes de proteína animal para as populações indígenas, e com os Guarani Kaiowá não é diferente. Nas amostras de água superficial e da chuva também foi detectado o organofosforado profenofós, que, por ter mobilidade ambiental, apresenta grande risco de disseminação.

Na Guyraroká, indígenas relatam a dificuldade de produzir alimentos devido à deriva dos agrotóxicos aplicados no entorno. Algumas famílias já não plantam certos cultivos porque é frequente a perda da produção, optam por produzir apenas tubérculos e raízes, restringindo significativamente a segurança alimentar e nutricional e impactando a cultura alimentar da comunidade.

É importante ressaltar que pela insuficiente capacidade de determinar os riscos reais da exposição ambiental de diversas classes e grupos químicos de agrotóxicos de maneira permanente e crescente, há probabilidade de que muitos dos IAs ainda não caracterizados como bioacumulativos e biomagnificadores passem a ser enquadrados como tal, à medida em que os métodos e a avaliação à exposição sejam aprimorados. As limitações da toxicologia que embasa as avaliações dos riscos à saúde pela exposição aos agrotóxicos estão muito bem detalhadas no artigo publicado por Friedrich et al.2121 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS. Toxicologia aplicada aos agrotóxicos - perspectivas em defesa da vida. Saude Debate 2022; 2(46):293-315.

Outra questão fundamental se refere ao consumo da água propriamente dita. Mesmo que haja condições de as comunidades acessarem água para beber de outras fontes, o contato com as águas contaminadas para higiene pessoal, lazer e limpeza, entre outros usos, continua sendo veículo de exposição e risco de intoxicação aguda e crônica, pois a via de absorção de todos os agrotóxicos descritos acima não é unicamente oral. Os agrotóxicos apresentam absorção dérmica, respiratória e ocular. O simples ato de banhar-se já é um meio de exposição.

As manifestações sintomáticas das intoxicações podem ser imediatas, mistas ou tardias - intoxicações agudas, subagudas e crônicas. Os principais sintomas e sinais de intoxicação aguda são irritações dérmicas, oculares e do trato respiratório superior e inferior, respostas alérgicas, sintomas gastrintestinais e manifestações neurológicas. As intoxicações agudas também podem ser classificadas em virtude de sua gravidade. Sintomas que foram relatados pelas comunidades logo após episódios de deriva dos agrotóxicos aplicados nas lavouras do entorno, assim como relatado por Mondardo3131 Mondardo M. O governo bio/necropolítico do agronegócio e os impactos dos agrotóxicos sobre os territórios de vida Guarani e Kaiowá. AMBIENTES Rev Geog Ecol Pol 2019; 1(2):155.. Moradores da Retomada Guyraroká relataram mal-estar e sintomas como dores de cabeça, diarreia, dor de estômago, tonturas, mal-estar e problemas de pele. Na Aldeia Jaguapiru, 90% das famílias já sentiram mal-estar devido ao agrotóxico pulverizado nas lavouras adjacentes e relataram sintomas como ardência na boca, tontura, diarreia, vômito e dor de cabeça. Moradores da Guyraroká afirmam que não entram mais em alguns rios devido aos problemas de pele que ocorrem posteriormente. Situações que corroboram com o evidenciado por Gonçalves et al.3232 Gonçalves GMS, Gurgel IGD, Costa AM, Almeida LR, Lima TFP, Silva E. Uso de agrotóxicos e a relação com a saúde na etnia Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil. Saude Soc 2012; 21(4):1001-1012..

Avaliações que correlacionem dados de saúde das comunidades com os sintomas agudos e crônicos associados aos IAs identificados precisam ser realizadas, como forma de subsidiar as equipes de saúde do subsistema indígena do SUS e assim ofertar um serviço de saúde muito mais efetivo, inclusive para as comunidades de áreas não demarcadas e indígenas urbanos.

É importante destacar que todas as informações encontradas sobre a ação dos IAs na saúde humana se referem a generalizações, normalmente baseadas em parâmetros da população adulta média e saudável. Contudo, ao abordar diferentes categorias populacionais, como crianças e idosos e/ou condições específicas populacionais, como gestantes, lactantes, pessoas com comorbidades, em insegurança nutricional, entre outros fatores, os impactos tendem a ser mais diversos e severos.

Considerações finais

Ressalta-se que esse trabalho é um recorte da pesquisa, pois mais amostras foram coletadas e não analisadas ainda, portanto, os dados não são conclusivos. Contudo, nossos dados servem de alerta e, inicialmente, sugerem como os impactos decorrentes do uso excessivo dos agrotóxicos em commodities vulnerabilizam a saúde e a soberania alimentar das populações indígenas. Essa é uma realidade muito presente na região sul do Mato Grosso do Sul e que se repete em outros estados brasileiros.

A pesquisa está no seu segundo ano de coletas e os resultados encontrados trarão mais subsídios para aprofundar as discussões. Fato que traz à luz a necessidade de pesquisas de longo prazo que considerem atividades de monitoramento da saúde das populações e do ambiente. Embora seja possível analisar o contexto com o resultado de um ano agrícola, é imprescindível poder comparar os dados, monitorar as mudanças ambientais e na saúde das populações expostas, construir um banco de dados robusto que possa colaborar assertivamente com estratégias de enfrentamento e mitigação dos danos, bem como com a proposição de políticas públicas adequadas para garantir a salvaguarda dessas populações.

Corroborando Lima et al.99 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA. Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos. Saude Debate 2022; 46(2):28-44., essa salvaguarda por parte dos povos originários expostos aos agrotóxicos só se dará se houver: a) políticas públicas de vigilância de base territorial e participativa, o que temos chamado na área de saúde e ambiente de vigilância popular da saúde e do ambiente11 Carneiro FF, Agusto LGS, Rigotto RM, Friedrich K, Búrigo AC, organizadores. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro, São Paulo: EPSJV, Expressão Popular; 2015.; b) implementação efetiva da Vigilância em Saúde das Populações Expostas aos Agrotóxicos (VSPEA); c) ações intersetoriais de combate à pulverização aérea, definição de territórios livres de agrotóxicos; d) demarcação de terras indígenas e reforma agrária; e) incentivo à autonomia e à efetiva participação dos povos originários nos processos decisórios. Todas essas ações devem ocorrer de forma intersetorial e participativa, e devem ter a agroecologia como premissa epistemológica, de matriz produtiva e tecnológica e orientadora dos processos de tomada de decisão, formulação, gestão e monitoramento das políticas públicas.

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  • Financiamento

    Henrich Boll, OAK Foundation e Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    18 Abr 2024
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