Resumo
O estudo teve como objetivo identificar estratégias de proteção usadas por povos indígenas durante a pandemia da COVID-19. Analisando 56 artigos de 2020 a maio de 2021 em quatro áreas - organização comunitária, governança, comunicação e abordagens territoriais - descobriu-se que vulnerabilidades estruturais moldaram suas respostas. A disseminação do vírus foi influenciada por fatores ambientais, sociais e culturais. Grupos indígenas empregaram estratégias diversas, como tomada de decisão coletiva e conhecimento tradicional. Os desafios incluíram supressão de dados e barreiras à identificação étnica. O estudo enfatiza a necessidade de maior autonomia indígena no gerenciamento de dados e coordenação eficaz entre governo, sociedade civil e organizações indígenas.
Palavras-chave:
Povos indígenas; COVID-19; Vigilância em saúde pública
Introdução
A pandemia de COVID-19 foi um dos maiores desafios sanitários do século. Agravou o quadro social do planeta, produzindo maior impacto nos grupos mais vulneráveis e expondo a perversa desigualdade entre segmentos da sociedade11 Conde M. Brazil in the time of coronavirus. Geopolítica(s) 2020; 11(Esp.):239-249.. Na América Latina e no Caribe vivem 54,8 milhões de indígenas, e 7,6 milhões na América do Norte22 Dhir RK, Cattaneo U, Cabrera Ormaza MV, Coronado H, Oelz M. Aplicación del Convenio sobre pueblos indígenas y tribales núm. 169 de la OIT: hacia un futuro inclusivo, sostenible y justo. Ginebra: OIT; 2019., com uma rica diversidade de tradições e modos de vida. Por séculos, têm enfrentado genocídio, desigualdades e empobrecimento33 Pino SD, Camacho A. Considerações sobre povos indígenas, afrodescendentes e outros grupos étnicos durante a pandemia de COVID-19 [Internet]. 2020. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/52280
https://iris.paho.org/handle/10665.2/522... ,44 United Nations (UN). State of the world's indigenous peoples. Nova York: UM; 2009.. Fatores como pobreza, estigmatização, estresse, racismo, sexismo, ostracismo e violência estrutural influenciam mais na determinação das doenças do que a natureza dos patógenos ou a condição física dos indivíduos55 Bispo Júnior JP, Santos DBD. COVID-19 como sindemia: modelo teórico e fundamentos para a abordagem abrangente em saúde. Cad Saude Publica 2021; 37(10):e00119021..
Os povos indígenas têm se destacado por seu protagonismo na criação de estratégias próprias para o enfrentamento da COVID-19 em suas comunidades, além da incidência política por medidas mais adequadas e efetivas frente à emergência. Sabe-se o quanto “as visões dos povos indígenas são fundamentais para a sustentabilidade das políticas e programas que abordam os desafios locais e globais, incluindo pobreza, desigualdade, conflitos sociais e mudanças climáticas. Instituições e mecanismos para a participação dos povos indígenas têm se mostrado úteis ao contribuir com suas perspectivas e interesses para a formulação de políticas”2 (p. 23).
O presente estudo buscou identificar essas estratégias de proteção aos povos indígenas, desenvolvidas diante da COVID-19 para reduzir suas vulnerabilidades.
Metodologia
Trata-se de uma revisão de escopo visando explorar a amplitude da literatura sobre o tema, mapear evidências e informar pesquisas futuras66 Tricco AC, Lillie E, Zarin W, O'Brien K, Colquhoun H, Kastner M, Levac D, Ng C, Sharpe JP, Wilson K, Kenny M, Warren R, Wilson C, Stelfox HT, Straus SE. A scoping review on the conduct and reporting of scoping reviews. BMC Med Res Methodol 2016; 16(1):15, composta por sete etapas: definição da pergunta norteadora; busca em bases de dados; identificação dos artigos; triagem e leitura dos resumos; seleção dos artigos; análise e interpretação dos resultados.
Para elaboração da pergunta de pesquisa, foi adaptada a estratégia PICO - população/problema; intervenção; comparação e desfecho (outcomes)77 Santos CMDC, Pimenta CADM, Nobre MRC. The PICO strategy for the research question construction and evidence search. Rev Latino-Am Enfermagem. junho de 2007; 15(3):508-511.. O estudo teve como finalidade responder à seguinte questão: “Que estratégias de vigilância, prevenção e controle (I) foram desenvolvidas (C) para os povos indígenas (P) de modo a reduzir o seu risco/vulnerabilidade frente à COVID-19 (O)?’.
Consideramos que as estratégias de vigilância em saúde no âmbito da pandemia de COVID-19 incluem a identificação de fontes de infecção e modos de transmissão, monitoramento de casos e óbitos e diagnósticos laboratoriais, bem como condições relacionadas à propagação de doenças em grupos expostos a maiores riscos ou fatores de risco, reforçando a necessidade da produção de dados atualizados e fidedignos, de forma a proteger a população indígena vulnerável e preservar seus modos de vida88 Silva LLD, Nascimento PE, Araújo OCG, Pereira TMG. The Articulation of the Indigenous Peoples of Brazil in Facing the Covid-19 Pandemic. Front Sociol 2021; 6(61):13661.. Acrescenta-se, a utilização de um enfoque situacional, que incorpora como objeto de intervenção os problemas de saúde e seus determinantes99 Vilasbôas AL. Vigilância à saúde e distritalização: a experiência de Pau da Lima [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 1988..
A estratégia de busca ocorreu nas bases de dados, a partir do Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical Subject Headings (MeSH), combinando descritores controlados e não controlados, uso de termos alternativos, adaptados conforme cada base, separados pelos operadores booleanos and e or (Quadro 1). Os principais descritores foram vigilância em saúde, COVID-19, população indígena.
Na primeira busca, os artigos foram exportados para o aplicativo Rayyan (QCRI-http://rayyan.qcri.org/), ferramenta para organização e seleção de artigos. Excluídas as duplicatas e analisados títulos e resumos, uma dupla de pesquisadores, em avaliação duplo cego, selecionou os artigos segundo critérios de inclusão e exclusão (Quadro 2). Quando houve discordância, um terceiro avaliador decidiu.
Da amostra final, foram sumarizadas informações dos objetivos, estratégias, resultados e discussões extraídas para planilha no software Microsoft Excel com os seguintes dados: título; autores, ano e origem/país de publicação; origem/país onde a pesquisa foi conduzida; idioma; objetivos/propósito/fenômeno de interesse; população de estudo/participantes; metodologia; principais achados; recomendações; contexto (geográfico, cultural). A extração de dados caracterizou os aspectos gerais do estudo, bem como os resultados e sua contribuição para a discussão sobre as estratégias de vigilância, prevenção e controle da COVID-19 para os povos indígenas. A leitura integral dos artigos permitiu a sistematização do conhecimento produzido, conforme as seções apresentadas a seguir.
Resultados e discussão
Inicialmente foram encontrados 4.359 artigos, com 790 duplicados, restando então 3.569. Na etapa de triagem, de acordo com títulos e resumos, chegou-se a 108 artigos. Destes, 40 foram retirados por não serem relacionados à vigilância e/ou não estarem disponíveis gratuitamente na íntegra, totalizando ao final um número de 68 artigos. Após a leitura integral, mais oito artigos foram retirados considerando os critérios de exclusão, e quatro por serem duplicados, permanecendo na amostra final 56 artigos. O processo de seleção foi organizado visualmente com base no fluxograma PRISMA1010 Tricco AC, Lillie E, Zarin W, O'Brien KK, Colquhoun H, Levac D, Moher D, Peters MDJ, Horsley T, Weeks L, Hempel S, Akl EA, Chang C, McGowan J, Stewart L, Hartling L, Aldcroft A, Wilson MG, Garritty C, Lewin S, Godfrey CM, Macdonald MT, Langlois EV, Soares-Weiser K, Moriarty J, Clifford T, Tunçalp Ö, Straus SE. PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): Checklist and Explanation. Ann Intern Med 2018; 169(7):467-473. (Figura 1).
Os 56 artigos da amostra final foram organizados em eixos temáticos, não excludentes entre si, cuja definição conceitual e a relação dos artigos selecionados são apresentados no Quadro 3.
Entre os 56 artigos selecionados, 24 eram de autores do Brasil, 14 dos Estados Unidos, cinco da Austrália, quatro de países da América do Sul, três do Canadá, dois da Nova Zelândia, dois da Índia, um da África do Sul e um de Fiji. No Brasil, foram encontrados 13 artigos sobre povos indígenas de modo abrangente; cinco com recorte espacial - região do Xingu, do Alto Solimões, estados do Amazonas e Roraima; dois voltados para contexto urbano e quatro com foco em etnias - Yanomami, Karitiana, Terena, Korubo. Nos demais países, prevaleceram artigos sobre indígenas americanos, sendo três sobre nativos do Alasca e dois relativos à tribo Hopi, seguidos por cinco de a respeito de nativos australianos, dois sobre as primeiras nações do Canadá e dois referentes ao povo Maori.
Vigilância popular e organização comunitária
Diferentes iniciativas e modos de auto-organização dos povos indígenas foram encontradas. No Brasil, a participação das lideranças indígenas e grupos indigenistas organizados na conformação da política de combate à pandemia foi enfatizado1111 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130.,1717 Jardim PT, Dias IMAV, Grande AJ, O'keeffe M, Dazzan P, Harding S. COVID-19 experience among Brasil's indigenous people. Rev Assoc Med Bras 2020; 66(7):861-863.,2323 Silva WNT, Rosa MFP, Mendonça KS, Queiroz GA, Oliveira SV. Síndrome respiratória aguda grave em indígenas no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: uma análise sob a perspectiva da vigilância epidemiológica. Vigil Sanit Debate 2021; 9(1):2-11., mostrando a relevância das concepções e modos de viver dos povos tradicionais no enfrentamento das questões que os afetam, como a pandemia de COVID-19.
Na produção nacional, destacaram-se como vigilância popular: portal de monitoramento “Quarentena Indígena” (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)1111 Carneiro FF, Pessoa VM. Iniciativas de organização comunitária e Covid-19: esboços para uma vigilância popular da saúde e do ambiente. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00298130.; criação, por diversas etnias, de vídeos, uso de rede social e redes de apoio para divulgação de informações, inclusive em línguas indígenas; campanhas para provimento de alimentos e itens básicos; criação de barreiras físicas1212 Amado LHE, Ribeiro AM. Panorama e desafios dos povos indígenas no contexto da pandemia do Covid-19 no Brasil. Rev Interdis Sociol Direito 2020; 22(2):335-360,1717 Jardim PT, Dias IMAV, Grande AJ, O'keeffe M, Dazzan P, Harding S. COVID-19 experience among Brasil's indigenous people. Rev Assoc Med Bras 2020; 66(7):861-863.; parcerias entre órgãos da saúde e indígenas e criação do portal “Emergência Indígena”; articulações de associações indígenas com diversos atores, instituições e indigenistas; formação de rede nacional de solidariedade, formalização de denúncias de omissão do governo federal, com ações emergenciais e judiciais nacionais e internacionais; elaboração de plano de enfrentamento à COVID-19; criação de SOS nas redes sociais; publicação de brochuras informativas em suas línguas maternas88 Silva LLD, Nascimento PE, Araújo OCG, Pereira TMG. The Articulation of the Indigenous Peoples of Brazil in Facing the Covid-19 Pandemic. Front Sociol 2021; 6(61):13661.,1212 Amado LHE, Ribeiro AM. Panorama e desafios dos povos indígenas no contexto da pandemia do Covid-19 no Brasil. Rev Interdis Sociol Direito 2020; 22(2):335-360.
Gonçalves et al.5252 Gonçalves LDV, Sousa M, Lutaif T. Covid-19 na Terra Indígena Yanomami: um paralelo entre as regiões do alto rio Marauiá, Alto Rio Negro e Vale dos rios Ajarani e Apiaú. Mundo Amazon 2020; 11(2):211-222. apontam que as diferentes formas de acesso geográfico singularizam as estratégias nativas de combate à epidemia. Frente às poucas iniciativas adotadas para o controle da COVID-19 pelas autoridades oficiais, na terra indígena Yanomami esses povos buscaram sua autoproteção por meio de práticas da medicina tradicional, como banhos, chás de folhas/raízes e rituais de cura, partindo da noção de xawara, fumaça da epidemia relacionada ao contato com os não-indígenas.
Mondardo1919 Mondardo M. Povos indígenas e comunidades tradicionais em tempos de pandemia da Covid-19 no Brasil: estratégias de luta e resistência. Finisterra 2021; 55(115):81-88. destacou a capacidade de auto-organização indígena no fechamento de aldeias, por meio de barreiras sanitárias, uso de aplicativos para acompanhamento de casos, utilização de ervas pela medicina tradicional e manufatura de máscaras por mulheres indígenas.
No contexto internacional, observou-se semelhanças e diferenças em relação às experiências encontradas no Brasil. As comunidades indígenas americanas e nativas do Alasca trabalharam em parceria com o Centro Johns Hopkins para a Saúde do Indígena Americano, com quem já tinham relação prévia. Da colaboração com parceiros tribais e do diálogo com a comunidade, destacaram-se a formação de uma rede de promoção, vigilância e cuidado, a criação de uma caixa de bem-estar para apoio psicossocial, além da distribuição de alimentos e outros recursos2727 Aulandez KMW, Walls ML, Weiss NM, Sittner KJ, Gillson SL, Tennessen EN, Maudrie TL, Leppi AM, Rothwell EJ, Bolton-Steiner AR, Gonzalez MB. Cultural sources of strength and resilience: a case study of holistic wellness boxes for COVID-19 response in Indigenous communities. Front Sociol 2021; 6:612637.. Na Austrália1515 Crooks K, Casey D, Ward JS. First Nations peoples leading the way in COVID-19 pandemic planning, response and management. Med J Aust 2020; 213(4):151., lições aprendidas em outras experiências relacionadas a emergências sanitárias, como na pandemia de influenza H1N1 em 2009, fizeram o governo valorizar o engajamento das nações indígenas no enfrentamento conjunto da pandemia. Entre as estratégias, destacam-se: mudanças legislativas que regularam o acesso de visitantes; desenvolvimento de diretrizes nacionais sobre a COVID-19; planejamento de serviços de saúde, infraestrutura e força de trabalho; testagem rápida, com expansão dos locais de teste; materiais educativos; e rastreamento epidemiológico da COVID-191515 Crooks K, Casey D, Ward JS. First Nations peoples leading the way in COVID-19 pandemic planning, response and management. Med J Aust 2020; 213(4):151..
Na Nova Zelândia, os Maori tiveram uma taxa de infecção mais baixa do que os não Maori, atribuído ao movimento de autodeterminação indígena organizado de forma interativa antes do aparecimento da COVID-19, que conformou uma parceria composta e governada por nove povos denominada Te Pūtahitanga o Te Waipounamu1818 McMeeking S, Leahy H, Savage C. An Indigenous self-determination social movement response to COVID-19. AlterNative 2020; 16(4):395-398.. Um plano de resposta por parte dessa parceria foi colocado em prática. Entre as estratégias, postos de controle de entrada, distribuição de insumos (lenha, remédios), fornecimento de transporte e energia, produção de dados, planos de cuidados Whānau e práticas baseadas na tradição e coesão social1818 McMeeking S, Leahy H, Savage C. An Indigenous self-determination social movement response to COVID-19. AlterNative 2020; 16(4):395-398..
A organização comunitária dos povos indígenas remete à reflexão sobre a autonomia desses povos. Em uma experiência com nativos americanos, foram considerados três níveis de autonomia relevantes para as decisões de saúde - individual, tribal e profissional de saúde, tendo sido a do nível tribal testada por ocasião da COVID-19 e do estabelecimento de postos de controle por uma tribo americana. O “cuidar dos seus” corresponde ao terceiro nível, sendo uma expressão importante da autossuficiência e autonomia dos nativos na tomada de decisão na saúde indígena2626 Wescott S, Mittelstet B. Three levels of autonomy and one long-term solution for Native American health care. AMA J Ethics 2020; 22(10):856-861..
Um estudo de caso envolvendo Benin, Fiji, França, Gabão, Guiana, Guatemala, Índia e Madagascar destacou desafios e oportunidades na forma como os povos indígenas e comunidades locais (PICLs) responderam à COVID-19. O uso da medicina tradicional para os sintomas da COVID-19 foi percebido como alto nas práticas indígenas e locais. O estudo recomendou a realização de ações-chave para apoiar os povos indígenas e comunidades locais a enfrentar as futuras pandemias, protegendo suas terras e águas2525 Walters G, Pathak Broome N, Cracco M, Dash T, Dudley N, Elías S, Hymas O, Mangubhai S, Mohan V, Niederberger T, Nkollo-Kema CA, Oussou Lio A, Raveloson N, Rubis J, Mathieu Toviehou SAR, Van Vliet N. COVID-19, Indigenous peoples, local communities and natural resource governance. PARKS 2021; 27(Spe.):57-72..
No Peru, a experiência entre povos indígenas também assinalou a importância da questão intercultural e a capacidade desses povos implementarem iniciativas autônomas. Embora não faltem regulamentações quanto à abordagem intercultural na assistência, ainda é necessário reconhecer o conhecimento ancestral para atender às necessidades de saúde dos indígenas3636 Pesantes MA, Gianella C. What about intercultural health?: lessons from the pandemic that we should not forget. Mundo Amazon 2020; 11(2):93-110..
Governança e informação
Na categoria governança, os artigos centralizaram a discussão na falta de acesso a dados desagregados e/ou de identificação étnica, dificultando a compreensão do real impacto da COVID-19 entre os povos indígenas e, por conseguinte, a tomada de decisão melhor informada. Também foram encontrados artigos referentes a articulação entre setores - governo, institutos de pesquisa, lideranças/organizações indígenas - como melhor modo de responder à pandemia.
Carroll et al.2929 Carroll SR, Akee R, Chung P, Cormack D, Kukutai T, Lovett R, Suina M, Rowe RK. Indigenous peoples' data during COVID-19: from external to internal. Front Sociol 2021; 6:617895. problematizaram as políticas relacionadas a genocídio, racismo e marginalização histórica que contribuem para limitações na qualidade, quantidade, no acesso e uso dos dados da COVID-19, indicando que são necessários dados oportunos e de qualidade para que esses povos possam traçar suas próprias respostas à pandemia, com tomada de decisões para a redução de riscos e danos. Existem preocupações em relação à coleta e ao uso, tais como: privacidade, consentimento, vigilância racista e perfil algorítmico. Mencionam a experiência brasileira da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu, que criou um aplicativo de alerta indígena à COVID-19 como exemplo de um sistema de vigilância com dados de base comunitária. Acrescenta que governos, organizações e pesquisadores devem colaborar com os indígenas em seus próprios termos para melhorar o acesso e o uso de dados. Yellow Horse et al.4242 Yellow Horse AJ, Parkhurst NAD, Huyser R. COVID-19 in New Mexico tribal lands: understanding the role of social vulnerabilities and historical racisms. Front Sociol 2020; 5:22. também destacaram a compreensão imprecisa dos impactos da COVID-19 nos povos indígenas devido ao apagamento sistemático da representação indígena nos dados e classificação da raça antes da pandemia.
Entre os povos originários das Ilhas do Estreito de Torres, na Austrália, no que se refere ao controle da COVID-19, obteve-se como resultado uma ação rápida e eficaz por parte de líderes e organizações indígenas dessas ilhas. A governança se deu na interação entre governo e comunidade. No entanto, há lacunas de dados sobre situação de saúde, infraestrutura comunitária disponível para atendimento em saúde e acesso às ações em saúde, entre outros3131 Griffiths K, Ring I, Madden R, Pulver LJ. In the pursuit of equity: COVID-19, data and Aboriginal and Torres Strait Islander people in Australia. Stat J IAOS 2021; 37(1):37-45..
Na Índia foi destacada a importância do fortalecimento da atenção primária à saúde, a melhoria da capacidade e do desempenho hospitalar, o acesso a tecnologias de saúde e a inclusão da vigilância da COVID-19 no Programa Integrado de Vigilância de Doenças (IDSP) como requisitos cruciais para governar o sistema de saúde, considerando que, apesar de reformas no financiamento, o principal desafio consistia na organização dos serviços públicos4040 Sundararaman T. Health systems preparedness for COVID-19 pandemic. Indian J Public Health. 2020; 64(6):91.. Consideram que a melhor capacidade de resposta de países como Coréia, Austrália, Nova Zelândia e nações escandinavas foram resultantes de sistemas de saúde fortes e robustos4040 Sundararaman T. Health systems preparedness for COVID-19 pandemic. Indian J Public Health. 2020; 64(6):91..
Na Amazônia equatoriana, entre comunidades Waorani, as estratégias de auto isolamento falharam na contenção da disseminação da COVID-19, das áreas urbanas para comunidades remotas e isoladas, pois o rastreamento de contato e a notificação adequada em algumas dessas áreas pelo Ministério da Saúde foram atrasados, causando contágio maciço. “[...] a falta de resposta imediata por parte dos governos estaduais expôs os deficientes serviços de saúde existentes nos sectores rurais.” Lideranças comunitárias tomaram medidas preventivas - uso de máscaras, isolamento individual e comunitário -, reivindicando seus direitos legais devido ao evidente abandono das instâncias governamentais. A demora no acesso aos testes pode ter afetado a decisão de isolamento voluntário adotado por diferentes comunidades3535 Ortiz-Prado E, Rivera-Olivero IA, Freire-Paspuel B, Lowe R, Lozada T, Henriquez-Trujillo AR, Garcia-Bereguiain MA; UDLA COVID-19 Team. Testing for SARS-CoV-2 at the core of voluntary collective isolation: Lessons from the indigenous populations living in the Amazon region in Ecuador. Int J Infect Dis 2021; 105:234-235..
No Brasil, autores indicaram a necessidade de inquéritos soroepidemiológicos nas comunidades amazônicas para aumentar o nível de informação sobre a epidemia, ampliar a capacidade de persuasão da população na adesão às medidas de controle e estabelecer recomendações específicas na região, com vistas a uma governança em saúde baseada em evidências4141 Vallinoto ACR, Torres MKS, Vallinoto MC, Vallinoto IMVC. The challenges of COVID-19 in the Brazilian Amazonian communities and the importance of seroepidemiological surveillance studies. Int J Equity Health 2020; 19(1):140..
Damasco et al.3030 Damasco FS, Antunes M, Azevedo M. Deslocamentos da população indígena para acesso aos serviços de saúde: elementos para ações emergenciais de enfrentamento à COVID-19. GEOgraphia 2020; 22(48):1-32. avaliaram a presença e mobilidade da população residente em terras indígenas, assinalando o dimensionamento de municípios prioritários, a organização logística e de instalação de unidades adicionais de saúde em municípios com territórios indígenas, para reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde municipais que funcionam como centralidades e que, por conseguinte, atraem população de outras regiões. Canalez et al.2828 Canalez GD, Rapozo P, Coutinho T, Reis R. Dissemination of COVID-19 inside the Amazon territories: overview and reflections from the Alto Solimoes, Brazil. Mundo Amazon 2020; 11(2):111-144. sinalizam a necessidade de desmistificar “imagens” sobre a Amazônia - isolamento geográfico, dimensão territorial e densas áreas florestais - reproduzidas em narrativas governamentais, produzindo a falsa expectativa de que a COVID-19 não iria se interiorizar, sobretudo em territórios com comunidade rurais de difícil acesso, o que as tornariam “intocáveis”. A circulação de pessoas, informações e objetos entre as comunidades nas zonas rurais e centros urbanos, incluindo Manaus, ocorre pelos rios amazônicos e interflúvios, não sendo a escassez de estradas que ligam os municípios um empecilho. As conclusões deste artigo interagem com as de Damasco et al.3030 Damasco FS, Antunes M, Azevedo M. Deslocamentos da população indígena para acesso aos serviços de saúde: elementos para ações emergenciais de enfrentamento à COVID-19. GEOgraphia 2020; 22(48):1-32. ao apontar a fraca infraestrutura hospitalar e a existência de unidades de tratamento intensivo (UTI) apenas na capital do estado, o que aumenta as possibilidades de óbito. Tal situação é similar nos países da faixa de fronteira na microrregião analisada (Colômbia e Peru), em que os usuários também precisam se deslocar para suas respectivas centralidades3030 Damasco FS, Antunes M, Azevedo M. Deslocamentos da população indígena para acesso aos serviços de saúde: elementos para ações emergenciais de enfrentamento à COVID-19. GEOgraphia 2020; 22(48):1-32..
Destaca-se a limitação da atuação da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério de Saúde brasileiro, que não teve uma política para a proteção dos indígenas que vivem em contexto urbano, que se encontram numa espécie de vácuo jurídico e ainda mais vulnerabilizados6060 Nascimento LFM, Correa IZN, Nogueira CBC, Almeida RLP. O limbo jurídico do direito à saúde de indígenas residentes em contexto urbano e os reflexos no enfrentamento do COVID-19: uma análise a partir da cidade de Manaus, Amazonas. Direito Publico 2020; 17(94):250-277.. Eles sofrem preconceito e exclusão, vítimas de sua desterritorialização. Diante da ausência de planos de contingência considerando as necessidades dos povos isolados e de recente contato, como no caso dos Korubo na região do Vale do Javari, associações indígenas elaboraram seus próprios planos de emergência4747 Silva JO. A Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari: entraves e equívocos na comunicação com os Korubo. Mundo Amazon 2020; 11(2):145-168.. No Brasil, a demora de órgãos governamentais na resposta à pandemia para os povos indígenas implicou que as primeiras iniciativas - barreiras sanitárias e autoisolamento - tenham sido protagonizadas pelos próprios indígenas, apoiados por associações.
Hengel et al.3232 Hengel B, Causer L, Matthews S, Smith K, Andrewartha K, Badman S, Spaeth B, Tangey A, Cunningham P, Saha A, Phillips E, Ward J, Watts C, King J, Applegate T, Shephard M, Guy R. A decentralised point-of-care testing model to address inequities in the COVID-19 response. Lancet Infect Dis 2021; 21(7):e183-e190. mostram a necessidade de melhorar o acesso a resultados de testes rápidos, uma vez que em muitos países as pessoas vivem em comunidades rurais e remotas criando barreiras substanciais para resultados oportunos, propondo a implementação de testes PCR em pontos de atendimento descentralizados em comunidades aborígines no Estreito de Torres, Austrália, a partir de plataformas GeneXpert, com modelos de governança e financiamento pelo governo australiano. Maudrie et al.3434 Maudrie TL, Lessard KH, Dickerson J, Aulandez KMW, Barlow A, O'Keefe VM. Our collective needs and strengths: urban AI/ANs and the COVID-19 pandemic. Front Sociol 2021; 6:611775. apontam os desafios que os indígenas americanos/nativos do Alasca têm enfrentado para dar conta de suas necessidades e o papel de associações e organizações sociais no apoio a essas populações, com destaque para a Native American LifeLines (NAL), um centro de serviços de saúde que atende nas regiões do Meio Atlântico e Nordeste. No início da pandemia, a equipe do NAL telefonou para mais de 700 indígenas para fornecer educação em saúde sobre COVID-19, avaliar as necessidades dos membros da comunidade e suprir suas demandas, de alimentos e insumos de limpeza a auxílio financeiro e estratégias de bem-estar.
Ainda em relação aos povos do Alasca, Pratt et al.3737 Pratt CQ, Chard AN, LaPine R, Galbreath KW, Crawford C, Plant A, Stiffarm G, Rhodes NS, Hannon L, Dinh TH. Use of stay-at-home orders and mask mandates to control COVID-19 transmission - Blackfeet Tribal Reservation, Montana, June-December 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2021; 70(14):514-518. descreveram que a adoção de estratégias não farmacológicas, como o incentivo a “ficar em casa”, uso de máscaras e distanciamento social, repercutiram na redução do número de infectados por COVID-19 na reserva Tribal Blackfeet (EUA). O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) apoiou com orientações, testes gratuitos, além da atuação conjunta dos serviços locais de saúde indígena responsáveis por fornecer serviços médicos e de saúde pública aos membros das tribos nativas americanas para identificação, monitoramento e controle dos casos.
No âmbito da governança em saúde, a atuação dos governos nacionais não foi ágil o suficiente para garantir respostas rápidas às distintas necessidades dos povos indígenas3838 Santos FV. Mulheres indígenas contra o vírus: notas antropológicas sobre políticas públicas de saúde e os impactos da COVID-19 entre os povos indígenas em contexto urbano em Manaus, Brasil. Ponto Urbe 2020; 27:1-22.,4343 Araújo ISD, Cardoso JM. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.. Os problemas preexistentes à pandemia relacionados à organização dos serviços e à produção de dados dificultaram tomadas de decisão melhor informadas. Mas ficou evidente como a articulação entre diferentes atores, como institutos e pesquisadores, além do próprio governo, contribuiu de forma significativa para uma governança colaborativa para desenvolvimento de ações necessárias e culturalmente adaptadas.
Comunicação em saúde
Estratégias de comunicação durante crises em saúde pública devem disponibilizar evidências para o engajamento comunitário na construção de ações coletivas de enfrentamento e mitigação de danos3838 Santos FV. Mulheres indígenas contra o vírus: notas antropológicas sobre políticas públicas de saúde e os impactos da COVID-19 entre os povos indígenas em contexto urbano em Manaus, Brasil. Ponto Urbe 2020; 27:1-22.,6666 Santos MO, Peixinho BC, Cavalcanti AMC, Silva LGF, Silva LIM, Lins DOA, Gurgel AM. Estratégias de comunicação adotadas pela gestão do Sistema Único de Saúde durante a pandemia de COVID-19 - Brasil. Interface (Botucatu) 2021; 25(Supl. 1):e200785..
A diversidade linguística das populações indígenas representa um desafio maior para essas estratégias. Elas têm colocado produções comunicacionais no centro das estratégias voltadas ao enfrentamento da COVID-19, devido à falta de gestão da informação e transparência por parte dos serviços de vigilância oficiais sobre os casos e óbitos nas populações, resultando em subnotificação; e ao pouco ou nenhum amparo do governo federal ou das autoridades locais; à necessidade de uma comunicação que leve em consideração as especificidades culturais e singularidades do contexto dos povos indígenas, entre outros aspectos3838 Santos FV. Mulheres indígenas contra o vírus: notas antropológicas sobre políticas públicas de saúde e os impactos da COVID-19 entre os povos indígenas em contexto urbano em Manaus, Brasil. Ponto Urbe 2020; 27:1-22.,4343 Araújo ISD, Cardoso JM. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007..
Em Roraima foram constituídos espaços de debate e luta política pelos indígenas com uso de redes sociais, diante da crise no atendimento e da ocultação de informações pelos órgãos oficiais. Esses espaços foram utilizados para dar visibilidade às pautas indígenas; informar sobre medidas sanitárias; e divulgar campanhas para arrecadação de bens, incluindo auxílio aos indígenas que moram nas áreas urbanas1616 Guimarães LMA, Ferreira-Júnior A. Lutas políticas por populações indígenas em Roraima (Brasil) e o enfrentamento à pandemia Covid-19. Mundo Amazon 2020; 11(2):223-243.. Com destaque para o papel do Conselho Indígena de Roraima e da Hutukara Associação Yanomami com a publicização, em suas páginas nas redes sociais, de orientações de prevenção, valorização da memória de indígenas que vieram a óbito por COVID-19, combate às fake news, entre outras ações1616 Guimarães LMA, Ferreira-Júnior A. Lutas políticas por populações indígenas em Roraima (Brasil) e o enfrentamento à pandemia Covid-19. Mundo Amazon 2020; 11(2):223-243.. “Os recursos online são usados para romper o isolamento em que muitas comunidades vivem, e para vencer a barreira da falta de espaço que esses povos têm nas mídias tradicionais”6767 Bueno C. Comunidades indígenas usam internet e redes sociais para divulgar sua cultura. Cienc Cult 2013; 65(2):14-15..
Na Terra Indígena do Xingu foram utilizadas redes sociais, lives com especialistas, podcasts, materiais impressos para divulgação e orientação, com lançamento de uma cartilha em português e kayapó com orientações de prevenção da COVID-19 e para alcançar as populações sem acesso à internet, uma parceria com a rádio local para divulgação de informações, sobretudo para as comunidades indígenas afastadas4444 Carvalho LM, Nascimento FAA, Granato RR, Damasceno OC, Teixeira FB, Sato DA. e-COVID Xingu: mídias sociais e informação no combate à COVID-19 em Altamira, Pará. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):e142..
Os estudos1616 Guimarães LMA, Ferreira-Júnior A. Lutas políticas por populações indígenas em Roraima (Brasil) e o enfrentamento à pandemia Covid-19. Mundo Amazon 2020; 11(2):223-243.,4444 Carvalho LM, Nascimento FAA, Granato RR, Damasceno OC, Teixeira FB, Sato DA. e-COVID Xingu: mídias sociais e informação no combate à COVID-19 em Altamira, Pará. Rev Bras Educ Med 2020; 44(Supl. 1):e142.,66 Tricco AC, Lillie E, Zarin W, O'Brien K, Colquhoun H, Kastner M, Levac D, Ng C, Sharpe JP, Wilson K, Kenny M, Warren R, Wilson C, Stelfox HT, Straus SE. A scoping review on the conduct and reporting of scoping reviews. BMC Med Res Methodol 2016; 16(1):15 mostram que a difusão de informações no contexto da COVID-19 entre a população indígena assumiu uma concepção que dialoga com os pressupostos da promoção da saúde com a valorização e ressignificação de saberes e práticas, considerando a integralidade e os contextos singulares em que essas populações se inserem para o enfrentamento da doença.
O diálogo de culturas e saberes também é destacado no Vale do Javari, com ênfase na situação dos Korubo de recente contato4747 Silva JO. A Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari: entraves e equívocos na comunicação com os Korubo. Mundo Amazon 2020; 11(2):145-168.,4848 Silva JO. O isolamento é possível? O caso de um povo de recente contato do Vale do Javari. Cad Campo 2020; 29(Supl.):244-254.. Por não contarem com agente indígena de saúde Korubo e haver aldeias sem energia elétrica e radiofonia, o principal meio de comunicação é via equipe multiprofissional de saúde indígena, que precisa percorrer longas distâncias para chegar às aldeias. Entre os desafios na comunicação entre os profissionais de saúde e os Korubo, destaca-se a importância de reconhecer a cultura desses povos, criando alternativas viáveis e consensuais para o enfrentamento da pandemia. De acordo com El Kadri et al.6868 El Kadri MR, Silva SESE, Pereira AS, Lima RTS, organizadores. Bem viver: saúde mental indígena. Porto Alegre: Rede Unida; 2021., é fundamental “a construção de um diálogo intercultural capaz de propor um posicionamento político alternativo a práticas hegemônicas geopolíticas, culturais, sociais, de construção do conhecimento e de distribuição do poder”.
No Equador, no Peru e na Bolívia, a importância da comunicação e do diálogo que leve em conta as especificidades culturais para o enfrentamento à COVID-19 foi abordado por García et al.4545 García GM, Haboud M, Howard R, Manresa A, Zurita J. Miscommunication in the COVID-19 Era. Bull Lat Am Res 2020; 39(Suppl. 1):39-46., que sugerem que uma comunicação linguística e intercultural inadequada pode comprometer o entendimento de informações importantes, agravando a vulnerabilidade dos povos indígenas diante da crise. Um exemplo foi o uso, em bairros de classe média no Equador, de imagens de residências de estilo urbano para “ficar em casa”, bem diferentes das características das casas em comunidades rurais, circundadas por espaços abertos. O conceito de casa na maioria das comunidades indígenas inclui famílias extensas e parentes. Situações similares, com mensagens importantes para a prevenção e o controle da doença descontextualizadas em relação à realidade indígena, foram observadas em outros países e etnias do estudo, reforçando a importância da difusão de mensagens e recomendações preventivas de saúde levando em consideração suas especificidades.
Entre os povos originários e das ilhas do Estreito de Torres foram utilizados vídeos curtos compartilhados em plataformas de mídia social destacando a importância da língua4646 Kerrigan V, Lee AM, Ralph AP, Lawton PD. Stay Strong: Aboriginal leaders deliver COVID-19 health messages. Health Promot J Austr 2021; 32(Suppl. 1):203-204.. Para disseminação rápida das mensagens relacionadas à prevenção da doença, vídeos foram compartilhados por organizações indígenas de saúde, usando redes locais de rádio, TV, além de redes sociais, incluindo grupos de profissionais de saúde no WhatsApp, encorajando os médicos a mostrar vídeos aos pacientes. Mensagens transmitidas por membros de confiança da comunidade que atuaram como intermediários culturais entre o conselho médico e sua comunidade se mostraram mais eficazes.
Os estudos analisados nesse eixo demonstraram que a conscientização e o combate à disseminação da COVID-19 têm ocorrido pela iniciativa de tradução para as línguas nativas, com diferentes estratégias de divulgação para garantir informações atualizadas e acessíveis, exigindo intervenções adequadas ao contexto sociocultural específico. O acesso e o uso de tecnologias de comunicação devem ter como base a adoção de estratégias interculturais para a proteção e o cuidado integral à saúde dos povos indígenas3333 Hiraldo J, James K, Carroll SR. Case report: Indigenous sovereignty in a pandemic: tribal codes in the United States as preparedness. Front Sociol 2021; 6:617995.,6868 El Kadri MR, Silva SESE, Pereira AS, Lima RTS, organizadores. Bem viver: saúde mental indígena. Porto Alegre: Rede Unida; 2021..
Abordagem territorial
O território deve ser entendido como produto de relações de poder que permeiam a vida social5050 Garnelo L, Sampaio SS, Pontes AL. Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde do Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019., superando a concepção político-administrativa de áreas delimitadas por alguma instância de poder. Dessa forma é possível abordar a complexidade que envolve o manejo da pandemia e os conflitos subjacentes à implementação de medidas de vigilância, prevenção e controle.
No Vale do Javari, povos de recente contato, como os Korubo, fugiram das aldeias para as florestas, ao mesmo tempo em que foram criadas barreiras sanitárias4747 Silva JO. A Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari: entraves e equívocos na comunicação com os Korubo. Mundo Amazon 2020; 11(2):145-168.,4848 Silva JO. O isolamento é possível? O caso de um povo de recente contato do Vale do Javari. Cad Campo 2020; 29(Supl.):244-254., mas o isolamento social não impediu que essas atividades fossem interrompidas1414 Cupertino GA, Cupertino MDC, Gomes AP, Braga LM, Siqueira-Batista R. COVID-19 and Brazilian Indigenous Populations. Am J Trop Med Hyg 2020; 103(2):609-612.. Entre os Yanomami, a invasão das terras por garimpeiros se intensificou na pandemia, sendo um dos principais vetores de transmissão da doença, além de constituir uma ameaça constante ao direito territorial dessa população1616 Guimarães LMA, Ferreira-Júnior A. Lutas políticas por populações indígenas em Roraima (Brasil) e o enfrentamento à pandemia Covid-19. Mundo Amazon 2020; 11(2):223-243..
No Brasil, grupos hegemônicos do poder econômico, como os ligados ao agronegócio e à mineração, têm fortes interesses na propriedade da terra. Assim, a questão da terra é fundamental para compreender a formação social brasileira, originando processos de exclusão e desigualdade que se mantêm até hoje6262 Polidoro M, Mendonça FA, Meneghel SN, Alves-Brito A, Gonçalves M, Bairros F, Canaves D. Territories under siege: risks of the decimation of Indigenous and Quilombolas peoples in the context of COVID-19 in South Brazil. J Racial Ethn Health Disparities 2021; 8(5):1119-1129..
Por mais afastadas que estejam das sociedades envolventes (não-indígenas), a maioria das populações indígenas estão expostas à difusão de patógenos que circulam no território nacional, bem como nos países vizinhos, dado que existem várias formas de conexão com as aldeias, seja com profissionais de saúde, circulação de indígenas entre aldeias e cidades ou contato com eventuais invasores de suas terras5858 Matos BA, Pereira B, Santana CR, Amorin F, Lenin L, Oliveria LC. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de covid-19 no Brasil. Mundo Amazon 2021; 12(1):106-138..
Em uma sociedade de economia globalizada, fundamentada justamente na hipercirculação de pessoas e mercadorias, medidas de restrição à circulação, como as recomendadas para o controle da COVID-19, têm impacto elevado no cotidiano das pessoas, sendo as populações mais vulneráveis as que mais sofrem seus efeitos.
Os pontos que se destacam nos artigos examinados em relação ao território e à COVID-19 são: manejo dos territórios indígenas em meio à pandemia, tendo a restrição de acesso às populações não-indígenas a essas terras como um ponto importante5252 Gonçalves LDV, Sousa M, Lutaif T. Covid-19 na Terra Indígena Yanomami: um paralelo entre as regiões do alto rio Marauiá, Alto Rio Negro e Vale dos rios Ajarani e Apiaú. Mundo Amazon 2020; 11(2):211-222.; controle de fluxo entre aldeias e cidades onde buscam aprovisionamento e venda de seus produtos para garantia de subsistência2828 Canalez GD, Rapozo P, Coutinho T, Reis R. Dissemination of COVID-19 inside the Amazon territories: overview and reflections from the Alto Solimoes, Brazil. Mundo Amazon 2020; 11(2):111-144.; direito à terra e ao controle dos fluxos de entrada e saída em momento epidêmico, mesmo contrariando interesses de outros grupos não indígenas com quem compartilham o território; pressão sobre essas populações e terras em contextos políticos antagônicos à identidade indígena e seus direitos constitucionais, com vistas à liberação das terras para exploração econômica por grupos de interesse não indígena e as diversas tentativas de instituição de uma necropolítica em relação às minorias étnico-culturais1212 Amado LHE, Ribeiro AM. Panorama e desafios dos povos indígenas no contexto da pandemia do Covid-19 no Brasil. Rev Interdis Sociol Direito 2020; 22(2):335-360,2222 Ribeiro AA, Rossi LA. Covid-19 pandemic and the motivations for demanding health service in indigenous villages. Rev Bras Enferm 2020; 73(Supl. 2):e20200312.,5252 Gonçalves LDV, Sousa M, Lutaif T. Covid-19 na Terra Indígena Yanomami: um paralelo entre as regiões do alto rio Marauiá, Alto Rio Negro e Vale dos rios Ajarani e Apiaú. Mundo Amazon 2020; 11(2):211-222.,5656 Leonard K. Medicine lines and COVID-19: Indigenous geographies of imagined bordering. Dialogues Human Geography 2020; 10(2):164-168.; entrada em territórios indígenas e o risco de disseminação da COVID-19 por grupos de fazendeiros, madeireiros, mineradores, turistas e veranistas, entre outros5252 Gonçalves LDV, Sousa M, Lutaif T. Covid-19 na Terra Indígena Yanomami: um paralelo entre as regiões do alto rio Marauiá, Alto Rio Negro e Vale dos rios Ajarani e Apiaú. Mundo Amazon 2020; 11(2):211-222.,5656 Leonard K. Medicine lines and COVID-19: Indigenous geographies of imagined bordering. Dialogues Human Geography 2020; 10(2):164-168..
São apontadas medidas tomadas principalmente por iniciativa dos próprios indígenas logo no início da pandemia, como o aumento do controle ou a interdição de entrada e saída das aldeias pela criação de barreiras sanitárias, o controle dos contactantes externos através da testagem e quarentena antes da entrada em área indígena e o controle de entradas de indígenas em seu retorno às aldeias vindos de outras áreas2222 Ribeiro AA, Rossi LA. Covid-19 pandemic and the motivations for demanding health service in indigenous villages. Rev Bras Enferm 2020; 73(Supl. 2):e20200312.,5151 Ewuoso C, Cordeiro-Rodrigues L. Khoikhoi perspectives on public health: Indigenous values for a COVID-19 response in South Africa. J Glob Health 2021; 11:03032.,5353 Humeyestewa D, Burke RM, Kaur H, Vicenti D, Jenkins R, Yatabe G, Hirschman J, Hamilton J, Fazekas K, Leslie G, Sehongva G, Honanie K, Tu'tsi E, Mayer O, Rose MA, Diallo Y, Damon S, Zilversmit Pao L, McCraw HM, Talawyma B, Herne M, Nuvangyaoma TL, Welch S, Balajee SA. COVID-19 response by the Hopi Tribe: impact of systems improvement during the first wave on the second wave of the pandemic. BMJ Glob Health 2021; 6(5):e005150.,5454 Jenkins R, Burke RM, Hamilton J, Fazekas K, Humeyestewa D, Kaur H, et al. Notes from the Field: Development of an Enhanced Community-Focused COVID-19 Surveillance Program - Hopi Tribe, June-July 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2020; 69(44):1660-1661.,5858 Matos BA, Pereira B, Santana CR, Amorin F, Lenin L, Oliveria LC. Violações dos direitos à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato no contexto da pandemia de covid-19 no Brasil. Mundo Amazon 2021; 12(1):106-138.,5959 Mendes MF, Rogini LP, Lima TM, Melani1 VF, Palamim1 CVC, Boschiero MN, Marson FAL. COVID-19 pandemic evolution in the Brazilian Indigenous population. J Racial Ethn Health Disparities 2022; 9(3):921-937.,6161 Palamim CVC, Ortega MM, Marson FAL. COVID-19 in the Indigenous population of Brazil. J Racial Ethn Health Disparities 2020; 7(6):1053-1058.,6565 Vave R. Urban-rural compliance variability to COVID-19 restrictions of Indigenous Fijian funerals in Fiji. Asia Pac J Public Health 2021; 33(6-7):767-774.. Outro ponto destacado é que, no Brasil, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), órgão governamental responsável pelo controle das terras indígenas, teve atitude displicente com relação à entrada de missionários religiosos e outros atores, como madeireiros e garimpeiros, que podiam ser eventualmente portadores do Sars-Cov-22222 Ribeiro AA, Rossi LA. Covid-19 pandemic and the motivations for demanding health service in indigenous villages. Rev Bras Enferm 2020; 73(Supl. 2):e20200312.,2626 Wescott S, Mittelstet B. Three levels of autonomy and one long-term solution for Native American health care. AMA J Ethics 2020; 22(10):856-861.,5252 Gonçalves LDV, Sousa M, Lutaif T. Covid-19 na Terra Indígena Yanomami: um paralelo entre as regiões do alto rio Marauiá, Alto Rio Negro e Vale dos rios Ajarani e Apiaú. Mundo Amazon 2020; 11(2):211-222.,5555 Kaplan HS, Trumble BC, Stieglitz J, Mamany RM, Cayuba MG, Moye LM, Hirschman J, Honanie K, Herne M, Mayer O, Yatabe G, Balajee SA. Voluntary collective isolation as a best response to COVID-19 for indigenous populations? A case study and protocol from the Bolivian Amazon. Lancet 2020; 395(10238):1727-1734.,5656 Leonard K. Medicine lines and COVID-19: Indigenous geographies of imagined bordering. Dialogues Human Geography 2020; 10(2):164-168..
Algumas das principais recomendações identificadas no conjunto dos artigos analisados foram sistematizadas no Quadro 4.
Considerações finais
A produção científica sobre estratégias de vigilância desenvolvidas para a proteção dos povos indígenas diante da COVID-19 permitiu compreender os diferentes contextos em que se deu a luta pela sobrevivência dessas populações, mostrando um espaço de disputas que não dependeu apenas do coronavírus no território, mas de diferentes vulnerabilidades estruturais secularmente existentes6060 Nascimento LFM, Correa IZN, Nogueira CBC, Almeida RLP. O limbo jurídico do direito à saúde de indígenas residentes em contexto urbano e os reflexos no enfrentamento do COVID-19: uma análise a partir da cidade de Manaus, Amazonas. Direito Publico 2020; 17(94):250-277.,6464 Rodrigues EPS, Abreu IN, Lima CNC, Fonseca DLM, Pereira SFG, Reis LC, Vallinoto IMVC, Guerreiro JF, Vallinoto ACR. High prevalence of anti-SARS-CoV-2 IgG antibody in the Xikrin of Bacajá (Kayapó) indigenous population in the Brazilian Amazon. Int J Equity Health 2021; 20(1):50.. Essas vulnerabilidades estão presentes nos povos originários independentemente do nível de desenvolvimento socioeconômico do país, sendo observadas em nações de baixa ou alta renda5757 Mallard A, Pesantes MA, Zavaleta-Cortijo C, Ward J. An urgent call to collect data related to COVID-19 and Indigenous populations globally. BMJ Glob Health 2021; 6(3):e004655.,6363 Reinders S, Alva A, Huicho L, Blas MM. Indigenous communities' responses to the COVID-19 pandemic and consequences for maternal and neonatal health in remote Peruvian Amazon: a qualitative study based on routine programme supervision. BMJ Open 2020; 10(12):e044197.. Um limite deste estudo foi não poder analisar a relação entre o desenho das políticas públicas e as estratégias de vigilância, tendo em vista o escopo da revisão. Além disso, o período da busca se concentrou nos primeiros anos da pandemia, quando muitas evidências e artigos ainda estavam em elaboração.
Esta revisão mostrou que, apesar de a susceptibilidade à COVID-19 ser geral, sua difusão é mediada por fatores ambientais, sociais e culturais, revelando aspectos da estruturação e organização da sociedade. Observa-se que a pandemia evolui de forma distinta em cada país, região, lugar e estrato social, o que resultou numa epidemia com distintas dinâmicas regionais e sociais. Apesar disso, povos indígenas em todo o mundo demonstraram capacidade de organização, mobilização e resistência, encontrando formas de cuidar uns dos outros, desenvolvendo múltiplas estratégias de luta em diversas escalas espaciais.
Conhecer as estratégias e o conhecimento produzido nacional e internacionalmente no enfrentamento da pandemia entre povos indígenas foi importante para a sistematização de aprendizados e recomendações, com vistas a qualificar políticas públicas voltadas para os povos indígenas e fortalecer ainda mais a participação e autonomia indígena.
As experiências em que instituições governamentais e não governamentais atuaram de forma coordenada e integrada com os povos indígenas, englobando sua própria experiência e conhecimento, constituíram exemplos de ações em saúde interculturais e mais potentes na proteção desses povos.
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Financiamento
Programa Inova Fiocruz - Inova COVID-19 - Geração de Conhecimento.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Dez 2024 - Data do Fascículo
Dez 2024
Histórico
- Recebido
15 Set 2023 - Aceito
29 Fev 2024 - Publicado
03 Jun 2024