Pressão arterial em mulheres no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas no Brasil

Felipe Guimarães Tavares Aline Araújo Nobre Bernardo Lessa Horta Gerson Luiz Marinho Andrey Moreira Cardoso Sobre os autores

Resumo

Estimar os níveis tensionais médios e as prevalências de hipertensão arterial (HA) e fatores associados é fundamental para o monitoramento da saúde e o planejamento de ações para o enfrentamento das doenças e agravos não transmissíveis em povos indígenas no Brasil. Estudo transversal que investigou níveis tensionais médios e prevalência de hipertensão arterial em 4.680 mulheres indígenas (18-49 anos) usando dados do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (2008-2009) e fatores associados, por meio de regressão gama e logística multinível. A prevalência de hipertensão foi 10,7%, variando nas macrorregiões: Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul/Sudeste. Mulheres que residiam em aldeias sem coleta doméstica de lixo e em domicílios desprovidos de renda estável apresentaram maiores chances de terem HA. O aumento do IMC e da idade associou-se positivamente às chances de desenvolver hipertensão arterial. No modelo para a pressão arterial diastólica, ao contrário da escolaridade, as variáveis renda estável domiciliar, IMC e idade associaram-se positivamente. No modelo para a pressão arterial sistólica, houve associação negativa com a escolaridade, nos estratos médio e alto do índice de bens domésticos e em domicílios sem renda estável, e associação positiva com indicador de habitação, IMC e idade.

Palavras-chave:
Saúde dos povos indígenas; Inquérito de saúde; Saúde da mulher; Hipertensão arterial

Introdução

O perfil de saúde dos povos indígenas no Brasil ainda é parcialmente conhecido, sendo caracterizado por grande heterogeneidade derivada da diversidade sociocultural desses povos, da exposição a distintos determinantes sociais e ambientais nas diferentes regiões em que habitam, bem como das limitações no acesso e da qualidade da vigilância e da atenção à saúde11 Chagas CA, Castro TG, Leite MS, Viana MACBM, Beinner MA, Pimenta AM. Estimated prevalence of hypertension and associated factors in Krenak indigenous adults in the state of Minas Gerais, Brazil. Cad Saude Publica 2019; 36(1):e00206818.. Apesar disso, nacional e internacionalmente, é possível reconhecer um padrão de saúde geral nesses povos, marcado pela elevada carga de morbidade e mortalidade por doenças infecciosas e carenciais, particularmente na infância, concomitante à emergência, tanto em crianças quanto em adultos, das causas relacionadas à contaminação e à degradação ambiental, ao uso abusivo de álcool e outras drogas, às violências e às doenças e agravos não transmissíveis (DANT), como a hipertensão arterial (HA)22 Ferreira AA, Souza-Filho ZA, Gonçalves MJF, Santos J, Pierin AMG. Relationship between alcohol drinking and arterial hypertension in indigenous people of the Mura ethnics, Brazil. PLoS One 2017; 12(8):e0182352.

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-77 Raza Q, Doak CM, Khan A, Nicolaou M, Seidell JC. Obesity and cardiovascular disease risk factors among the indigenous and immigrant Pakistani population: a systematic review. Obes Facts 2013; 6(6):523-535..

A HA constitui uma das principais causas de morbidade e mortalidade em escala global. É responsável por 8,5 milhões de mortes por acidente vascular cerebral, doença cardíaca isquêmica, outras doenças vasculares e doenças renais em todo o mundo. Em 2019, a prevalência global de hipertensão padronizada por idade em adultos com idade entre 30 e 79 anos foi de 32% (IC95%: 30-34) em mulheres e 34% (IC95%: 32-37) em homens88 Almeida JB, Kian KO, Lima RC, Souza MCC. Total and abdominal adiposity and hypertension in Indigenous women in Midwest Brazil. PLoS One 2016; 11(6):e0155528.. No Brasil, cerca de 24% da população feminina e 17% da população masculina tinham o diagnóstico dessa condição em 201199 Carvalho Vidigal F, Bressan J, Babio N, Salas-Salvadó J. Prevalence of metabolic syndrome in Brazilian adults: a systematic review. BMC Public Health 2013; 13:1198., mas esses valores foram crescentes ao longo dos anos, com as estimativas para 2023 sendo de 26,4% e 29,3%, para homens e mulheres, respectivamente1010 Souza Filho ZA, Ferreira AA, Dos Santos J, Meira KC, Pierin AMG. Cardiovascular risk factors with an emphasis on hypertension in the Mura Indians from Amazonia. BMC Public Health 2018; 18(1):1251..

Estudos têm apontado que a HA é uma condição de saúde emergente entre povos indígenas em diferentes regiões do globo55 Schmidt MI, Duncan BB, Silva GA, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.. Nos Estados Unidos, por exemplo, após os anos 1980, houve incremento progressivo e heterogêneo nas médias de pressão arterial sistólica (PAS) e diastólica (PAD) e nas prevalências de HA em diversos grupos indígenas, superando, em alguns casos, os valores correspondentes nas populações não indígenas do entorno1111 Mancilha-Carvalho JJ, Silva NAS. The Yanomami indians in the INTERSALT study. Arq Bras Cardiol 2003; 80(3):295-300.,1212 Oliveira GF, Oliveira TRR, Ikejiri AT, Andraus MP, Galvao TF, Silva MT, Pereira MG. Prevalence of hypertension and associated factors in an indigenous community of central Brazil: a population-based study. PLoS One 2014; 9(1):e86278..

Estudos que investigaram níveis tensionais e prevalência de HA em povos indígenas no Brasil indicam, de maneira similar, níveis tensionais baixos e ausência de HA em diversos povos indígenas na década de 197077 Raza Q, Doak CM, Khan A, Nicolaou M, Seidell JC. Obesity and cardiovascular disease risk factors among the indigenous and immigrant Pakistani population: a systematic review. Obes Facts 2013; 6(6):523-535., enquanto os estudos mais recentes indicam incremento desses eventos em diversas comunidades, com prevalências de HA superando 60% em algumas delas1313 Rocha AKS, Bós AJG, Huttner E, Machado DC. Prevalência da síndrome metabólica em indígenas com mais de 40 anos no Rio Grande do Sul, Brasil. Rev Panam Salud Publica 2011; 29(1):41-45.

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16 Coimbra Jr CE, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.

17 Gimeno SGA, Rodrigues D, Canó EN, Lima EES, Schaper M, Pagliaro H, Lafer MM, Baruzzi RG. Cardiovascular risk factors among Brazilian Karib indigenous peoples: Upper Xingu, Central Brazil, 2000-3. J Epidemiol Community Health 2009; 63(4):299-304.
-1818 Coimbra Jr CEA. Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena. Cad Saude Publica 2014; 30(4):855-859.. As mudanças observadas no perfil de saúde indígena nas últimas décadas têm sido atribuídas aos processos históricos de contato com a sociedade, impulsionados pela abertura de fronteiras demográficas, atreladas às transformações socioeconômicas e ambientais locais, aos conflitos e à perda de territórios tradicionais, com transformações socioculturais e do estilo de vida, dependência do mercado regional, insegurança alimentar, maior consumo de alimentos industrializados e barreiras no acesso à saúde1919 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Foller Maj-Lis, Horta B. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13:52.

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https://www.who.int/publications/i/item/...

22 Chobanian AV, Bakris GL, Black HR, Cushman WC, Green LA, Izzo JL, Jones DW, Materson BJ, Oparil S, Wright Jr JT, Roccella EJ, Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure, National Heart, Lung, and Blood Institute & National High Blood Pressure Education Program Coordinating Committee. The Seventh Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure: the JNC 7 report. JAMA 2003; 289(19):2560-2572.
-2323 Anderson I, Robson B, Connolly M, Al-Yaman F, Bjertness E, King A, Tynan M, Madden R, Bang A, Coimbra Jr CEA, Pesantes MA, Amigo H, Andronov S, Armien B, Obando DA, Axelsson P, Bhatti ZS, Bhutta ZA, Bjerregaard P, Bjertness MB, Briceno-Leon R, Broderstad AR, Bustos P, Chongsuvivatwong V, Chu J, Deji, Gouda J, Harikumar R, Htay TT, Htet AS, Izugbara C, Kamaka M, King M, Kodavanti MR, Lara M, Laxmaiah A, Lema C, Taborda AML, LiabsuetrakulT, Lobanov A, Melhus M, Meshram I, Miranda JJ, Mu TT, Nagalla B, Nimmathota A, Popov AI, Poveda AMP, Ram F, Reich H, Santos RV, Sein AA, Shekhar C, Sherpa LY, Skold P, Tano S, Tanywe A, Ugwu C, Ugwu F, Vapattanawong P, Wan X, Welch JR, Yang G, Yang Z, Yap L. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet 2016; 388(10040):131-157..

Até a realização do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (1º INSNPI), em 2008-2009, uma demanda do Ministério da Saúde financiada pelo Banco Mundial e capitaneada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva2424 Biswas T, Tran N, Thi My Hanh H, Van Hien P, Thi Thu Cuc N, Hong Van P, Tuan KA, Oanh TTM, Mamun A. Type 2 diabetes and hypertension in Vietnam: a systematic review and meta-analysis of studies between 2000 and 2020. BMJ Open 2022; 12(8):e052725., não havia, e ainda não há, outras estimativas nacionais da prevalência de diversas doenças e agravos em escala nacional e regional para a saúde indígena. Estimar os níveis pressóricos, a prevalência de HA e fatores associados em indígenas é uma condição necessária para a melhor caracterização do perfil de saúde dessa população e para acompanhar sua tendência ao longo das próximas décadas, bem como para o planejamento da atenção à saúde e a formulação de estratégias de prevenção e promoção da saúde2525 Chua EY, Zalilah MS, Haemamalar K, Norhasmah S, Geeta A. Obesity indices predict hypertension among indigenous adults in Krau Wildlife Reserve, Peninsular Malaysia. J Health Popul Nutr 2017; 36(1):24.,2626 Orellana-Barrios MA, Nuggent KM, Sanchez-Barrientos H, Lopez-Gutierrez JR. Prevalence of hypertension and associated anthropometric risk factors in indigenous adults of Guatemala. J Prim Care Community Health 2015; 6(1):16-20..

O presente artigo teve como objetivo analisar os níveis de PAS e PAD, a prevalência de HA e os fatores associados em uma amostra probabilística representativa das mulheres indígenas adultas (18 a 49 anos) residentes em aldeias indígenas no Brasil e em quatro macrorregiões - Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul/Sudeste, a partir dos dados coletados no 1º INSNPI2424 Biswas T, Tran N, Thi My Hanh H, Van Hien P, Thi Thu Cuc N, Hong Van P, Tuan KA, Oanh TTM, Mamun A. Type 2 diabetes and hypertension in Vietnam: a systematic review and meta-analysis of studies between 2000 and 2020. BMJ Open 2022; 12(8):e052725., gerando informações inéditas de abrangência nacional e regional sobre a saúde cardiovascular das mulheres indígenas no país.

Metodologia

O estudo se baseou nos dados coletados entre os anos de 2008 e 2009 durante o 1º INSNPI, que teve uma amostra probabilística complexa representativa das mulheres indígenas adultas em idade fértil (14 a 49 anos) residentes em aldeias indígenas do país e de quatro macrorregiões. Mais detalhes sobre a metodologia do 1º INSNPI foram publicados previamente2424 Biswas T, Tran N, Thi My Hanh H, Van Hien P, Thi Thu Cuc N, Hong Van P, Tuan KA, Oanh TTM, Mamun A. Type 2 diabetes and hypertension in Vietnam: a systematic review and meta-analysis of studies between 2000 and 2020. BMJ Open 2022; 12(8):e052725..

A pressão arterial (PA) das mulheres adultas (18 a 49 anos) foi medida de acordo com The Seventh Report of the Joint Committee (JNC 7)2727 Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Tendências na prevalência de hipertensão arterial sistêmica e na utilização de serviços de saúde no Brasil ao longo de uma década (2008-2019). Cien Saude Colet 2021; 26(9):4007-4019., seguindo protocolos para garantir a acurácia da medida, como repouso relativo de dez minutos, abstenção de fumo ou café por pelo menos 30 minutos e redução de estímulos externos, como conversas e brincadeiras, antes das aferições; e colocação do participante na posição sentada, fixação do tensiômetro no pulso esquerdo e seu posicionamento ao nível do coração. Sempre que necessário e viável, foram removidas roupas, pulseiras ou outros acessórios que pudessem interferir na precisão das leituras. No caso de impedimento para a medição no pulso esquerdo, as medições foram feitas no pulso direito. Essa circunstância foi registrada em apenas 1,1% das medições efetuadas, sem divergências entre as diferentes macrorregiões.

Foram realizadas duas aferições da PA: a primeira obtida após as sete perguntas iniciais da entrevista, e a segunda, no fim da entrevista, assegurando um intervalo mínimo de dez minutos entre as medições. O valor da PA do indivíduo foi definido como a média das duas aferições. Os valores médios foram classificados a partir dos critérios para hipertensão arterial do JNC 72727 Julião NA, Souza A, Guimarães RRM. Tendências na prevalência de hipertensão arterial sistêmica e na utilização de serviços de saúde no Brasil ao longo de uma década (2008-2019). Cien Saude Colet 2021; 26(9):4007-4019.. Assim, os valores para classificar como normal a pressão arterial sistólica e diastólica foram: PAS < 140 mmHg e PAD < 80 mmHg. Foi classificado como HA a PAS ≥ 140 mmHg e/ou PAD ≥ 90 mmHg. Tendo em vista a possibilidade da existência de indivíduos já com diagnóstico de HA, em uso de medicação anti-hipertensiva e níveis de PAS e PAD normais no momento da entrevista, considerou-se como HA o relato de uso de mediação anti-hipertensiva, independentemente dos níveis tensionais aferidos. A proporção de informação faltante sobre o uso de anti-hipertensivo foi de 0,4% para o conjunto das macrorregiões, verificando-se maior proporção na Norte (1,4%), seguida da Centro-Oeste (0,3%) e da Sul/Sudeste (0,2%). Essa situação não foi observada no Nordeste.

Uma análise de componentes principais (PCA) foi utilizada para criar as seguintes variáveis ​​socioeconômicas e de condições de vida: (a) índice de bens de consumo, baseado nas quantidades de bens duráveis ​​industrializados em cada domicílio (primeiro componente explicou 19% da variância, autovalor 3,56); (b) índice de condições de habitação, baseado no tipo de piso, paredes, cobertura, presença de eletricidade e combustível utilizado para cozinhar (primeira componente explica 48,0% da variância, autovalor 1,44); e (c) índice de saneamento, baseado no local principal para defecar, destino do lixo, fonte principal de água para consumo humano e disponibilidade de água filtrada para beber na casa (primeiro componente explicou 56,5% da variância, autovalor 0,63). Os domicílios receberam escores baseados na soma da contribuição de cada item, multiplicado pela quantidade de cada item existente no domicílio, antes destes serem classificados segundo os tercis da distribuição geral, considerando as quatro macrorregiões juntas. Em cada caso, o primeiro tercil indica uma pontuação de índice mais baixa, que representa menos bens industrializados duráveis, menos acesso a materiais e recursos habitacionais provenientes do mercado e condições de saneamento de qualidade inferior2020 Montenegro RA, Stephens C. Indigenous health in Latin America and the Caribbean. Lancet 2006; 367(9525):1859-1869..

As variáveis ​​individuais das mulheres incluíram faixa etária e anos de estudo. Demais variáveis analisadas no estudo são autoexplicativas e estão apresentadas nas tabelas.

Análises estatísticas

Inicialmente, foi feita a análise estatística descritiva de PAS e PAD e da prevalência de HA, estratificada por macrorregiões e para o país como um todo. Posteriormente, empregamos modelos multiníveis com dois níveis, aldeia e região, seguindo um processo de seleção de variáveis com abordagem hierarquizada para investigar associações entre esses desfechos e variáveis de exposição das dimensões individual, domiciliar e aldeia.

Para analisar os fatores associados à PAS e à PAD, cujas distribuições apresentaram assimetria positiva, optamos pela regressão gama multinível com função de ligação identidade. Para analisar os fatores associados à HA, utilizamos a regressão logística multinível. A etapa de seleção de variáveis retidas no modelo final ajustado foi realizada de maneira criteriosa, iniciada por meio de uma análise bruta para as diferentes dimensões variáveis - aldeia, domicílio e mulher. Variáveis com p-valor inferior a 0,20 foram incluídas nas análises múltiplas, ficando retidas no modelo final aquelas com nível de significância (p-valor) inferior a 0,05.

Construímos três modelos múltiplos para cada desfecho do estudo, sendo o Modelo 1 composto exclusivamente pelas variáveis relacionadas à aldeia (distal) e o Modelo 2 pelas variáveis relacionadas à aldeia e ao domicílio (intermediário), com o Modelo 3 incorporando ao Modelo 2 as variáveis relacionadas às características da mulher (proximal). É importante mencionar que, nos modelos que envolveram a PAS e a PAD, excluímos as mulheres em uso de medicação anti-hipertensiva. A abordagem multinível visou a realização de uma análise abrangente das associações entre os desfechos cardiovasculares e diferentes variáveis demográficas, socioeconômicas, alimentares e nutricionais, levando em consideração os contextos de vida nas aldeias e nos domicílios.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP) e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em cada comunidade visitada, a equipe de pesquisadores fez reuniões com líderes e outros membros da comunidade para apresentar e explicar os objetivos e procedimentos do estudo. Na ocasião, foi explicitado que a participação de comunidades, domicílios e indivíduos era voluntária. Os termos de consentimento coletivo livre e esclarecido foram obtidos mediante a assinatura de lideranças e/ou de outros representantes da comunidade das aldeias que optaram por participar da investigação.

Resultados

Participaram do estudo 4.680 mulheres indígenas com idade entre 18 e 49 anos, que foram avaliadas em relação aos desfechos cardiovasculares de interesse. Os valores de mediana de PAS e PAD foram de 111,5 mmHg e de 71,0 mmHg, respectivamente, no conjunto das mulheres indígenas da faixa etária alvo da pesquisa no Brasil. Tanto para a PAS quanto para a PAD, observa-se que somente os valores relativos às mulheres da macrorregião Norte (PAS: 108,0 mmHg; PAD: 67,5 mmHg) estavam abaixo das medianas nacionais indígenas correspondentes. As maiores medianas de PAS e PAD foram observadas no Sul/Sudeste (PAS: 115,5 mmHg; PAD:74,0 mmHg) e no Centro-Oeste (PAS: 115,0 mmHg; PAD: 74,5 mmHg), seguidos do Nordeste (PAS: 111,5 mmHg; PAD: 72,0 mmHg). As distribuições de PAS e PAD segundo macrorregiões são apresentadas na Figura 1. Observam-se diferenças significativas nas distribuições dos valores de PAS e PAD, com medianas mais elevadas nas macrorregiões Centro-Oeste e Sul/Sudeste, que se destacam pela maior variação entre os valores medidos. Foram identificados outliers em todas as macrorregiões.

Figura 1
Distribuição da pressão diastólica e sistólica segundo macrorregião. I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, Brasil, 2008-2009.

A prevalência de HA nas mulheres indígenas adultas em idade fértil no Brasil foi de 10,7%. Observou-se heterogeneidade nessas prevalências segundo macrorregiões, sendo a menor no Norte (4,0%), e as maiores no Centro-Oeste e Sul/Sudeste, que foram semelhantes entre si e superaram em cerca de 4,5 vezes a prevalência na região Norte (Tabela 1).

Tabela 1
Prevalência de hipertensão arterial segunda faixa etária e macrorregião. I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígenas, Brasil, 2008-2009.

A análise das prevalências de HA por faixa etária evidencia incremento consistente da proporção de mulheres com HA conforme aumenta a idade, sendo essa tendência observada em todas as macrorregiões, ainda que com menor magnitude na região Norte. As maiores prevalências foram encontradas na faixa etária de 45 a 49 anos, com variações macrorregionais, que vão de 11,3% no Norte a 52,9% no Sul/Sudeste. Destaca-se que as macrorregiões Centro-Oeste e Sul/Sudeste apresentaram elevadas prevalências (> 20%) já a partir da faixa etária entre 30 e 34 anos (Tabela 1).

Na análise bruta foram verificadas as seguintes associações com os desfechos do estudo, com nível de significância (p-valor) menor que 0,20: a prevalência de HA se associou negativamente a prática de pesca e coleta domésticas, escolaridade, renda estável e presença de doações externas, e positivamente com IMC e idade. A PAS e a PAD se associaram negativamente com a produção pecuária coletiva, índices de posse de bens, de condições de habitação e de saneamento, renda estável no domicilio e escolaridade, e positivamente com IMC e idade. A PAS ainda se associou positivamente com presença de doações externas (Tabela 2).

Tabela 2
Prevalências de hipertensão arterial, odds ratios e coeficientes β brutos da associação de HA, PAS e PAD com as características da aldeia, domicílio e indivíduo. I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígenas, Brasil, 2008-2009.

Na análise ajustada, permaneceram negativamente associadas à prevalência de HA a coleta doméstica de alimentos, a renda estável domiciliar e a escolaridade, e positivamente associados o IMC e a idade. Notavelmente, mulheres indígenas residentes em aldeias onde a coleta doméstica não era praticada e em domicílios desprovidos de renda estável apresentaram chances de ter HA 1,77 e 1,25 vez maior do que as mulheres residentes em aldeias onde a coleta doméstica era praticada e em domicílios com renda estável, respectivamente. O incremento de uma unidade nos valores de IMC e idade corresponderam a um aumento de 9% e 11% nas chances de apresentar HA, respectivamente. Por outro lado, à medida que houve incremento nos anos de estudo, notou-se um gradiente de redução nas chances de ter HA da ordem de 24%, 31% e 68%, respectivamente, para os estratos de 1 a 4, 5 a 9 e 10 ou mais anos de estudo, quando comparados à categoria ausência de escolaridade (Tabela 3).

Tabela 3
Odds ratios e coeficientes β ajustados da associação de HA, PAS e PAD com características da aldeia, domicílio e indivíduo. I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígenas, Brasil, 2008-2009.

Na análise ajustada, permaneceram negativamente associadas à PAS os índices de posse de bens e de condições de habitação, a renda estável domiciliar e a escolaridade, e positivamente associadas o IMC e a idade, mas o índice de condições de habitação e a renda estável perdem significância estatística no Modelo 3 (Tabela 3).

Observou-se uma diminuição média de 1,31 mmHg e 1,94 mmHg, respectivamente, no segundo e terceiro tercis do índice de posse de bens domésticos, em comparação ao primeiro tercil, com menor posse de bens. De modo similar, verificou-se redução da PAS da ordem de 2,19 mmHg, 3,45 mmHg e 4,37 mmHg, respectivamente, nos estratos de 1 a 4, 5 a 9 e 10 ou mais anos de estudo, quando comparados à categoria ausência de escolaridade. Por outro lado, verificou-se incremento de 0,62 mmHg e 0,29 mmHg à medida que aumentam em uma unidade o IMC e a idade, respectivamente.

A PAD manteve-se, nessa mesma análise, associada negativamente à escolaridade e positivamente à renda estável domiciliar, ao IMC e à idade, mas a renda estável perdeu significância estatística no Modelo 3 (Tabela 3). Verificou-se redução da PAD da ordem de 1,19 mmHg, 2,31 mmHg e 2,96 mmHg, respectivamente, nos estratos de 1 a 4, 5 a 9 e 10 ou mais anos de escolaridade, quando comparados à categoria ausência de escolaridade. Por outro lado, verificou-se incremento de 0,38 mmHg e 0,17mmHg à medida que aumentam em uma unidade o IMC e a idade, respectivamente.

Discussão

Os resultados deste estudo são representativos da população de mulheres indígenas adultas (18 a 49 anos) no Brasil e em quatro macrorregiões, sendo uma iniciativa singular para estimar magnitude da HA nessa população, evidenciar as desigualdades regionais nos níveis pressóricos e nas prevalências de HA e identificar fatores associados à elevação dos níveis pressóricos e da prevalência de HA. O estudo oferece, portanto, uma visão abrangente e inédita sobre as DANT, com foco na HA, em povos indígenas no Brasil. Mundialmente, a literatura científica tem destacado a vulnerabilidade em saúde dos povos indígenas decorrente de condições socioeconômicas, demográficas, sanitárias, ambientais e territoriais desfavoráveis55 Schmidt MI, Duncan BB, Silva GA, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.,2525 Chua EY, Zalilah MS, Haemamalar K, Norhasmah S, Geeta A. Obesity indices predict hypertension among indigenous adults in Krau Wildlife Reserve, Peninsular Malaysia. J Health Popul Nutr 2017; 36(1):24., bem como a emergência das DANT nessas populações, incluindo a HA em mulheres indígenas1111 Mancilha-Carvalho JJ, Silva NAS. The Yanomami indians in the INTERSALT study. Arq Bras Cardiol 2003; 80(3):295-300.,1313 Rocha AKS, Bós AJG, Huttner E, Machado DC. Prevalência da síndrome metabólica em indígenas com mais de 40 anos no Rio Grande do Sul, Brasil. Rev Panam Salud Publica 2011; 29(1):41-45.,1717 Gimeno SGA, Rodrigues D, Canó EN, Lima EES, Schaper M, Pagliaro H, Lafer MM, Baruzzi RG. Cardiovascular risk factors among Brazilian Karib indigenous peoples: Upper Xingu, Central Brazil, 2000-3. J Epidemiol Community Health 2009; 63(4):299-304.,2828 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2021 - estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas [Internet]. 2021. [acessado 2023 ago 23]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/vigitel/vigitel-brasil-2021-estimativas-sobre-frequencia-e-distribuicao-sociodemografica-de-fatores-de-risco-e-protecao-para-doencas-cronicas/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-...
. Esses padrões encontram ressonância em nossos resultados, em que a HA demonstra ser um problema de saúde emergente entre os povos indígenas no Brasil.

Em revisão sistemática sobre níveis pressóricos e HA em populações indígenas na América do Norte, publicada em 2014, Foulds e Warburton1111 Mancilha-Carvalho JJ, Silva NAS. The Yanomami indians in the INTERSALT study. Arq Bras Cardiol 2003; 80(3):295-300. constataram que, após o ano de 1980, houve incremento progressivo nas prevalências de HA ao longo das décadas, o que não se verificava no período pré-1980, abrangendo distintas populações nativas, como as Primeiras Nações/Índios Americanos e os Inuit/Nativos do Alasca. Os indígenas Inuit/Alasca apresentavam prevalência elevada de HA, atingindo a magnitude de 55,1% ainda antes da década de 1980. Posteriormente a 1980, essas proporções mantiveram-se estáveis, ao passo que as médias de PAS e PAD apresentaram contínua elevação. Essas flutuações nos valores pressóricos destacam mudanças notáveis na saúde cardiovascular das populações indígenas Inuit/Alasca ao longo do tempo. Nesse cenário de saúde heterogêneo e em transição em comunidades indígenas em nível global, emerge a questão premente da HA. Ainda que haja comunidades com baixas ou mesmo inexistentes prevalências de hipertensão, registros apontam para prevalências superiores a 50% em algumas delas1111 Mancilha-Carvalho JJ, Silva NAS. The Yanomami indians in the INTERSALT study. Arq Bras Cardiol 2003; 80(3):295-300.,1616 Coimbra Jr CE, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.,2929 Kramer CK, Leitão CB, Viana LV. The impact of urbanisation on the cardiometabolic health of Indigenous Brazilian peoples: a systematic review and meta-analysis, and data from the Brazilian Health registry. Lancet 2022; 400(10368):2074-2083.,3030 Bloch KV, Coutinho ESF, Lôbo MSC, Oliveira JEP, Milech A. Pressão arterial, glicemia capilar e medidas antropométricas em uma população Yanomâmi. Cad Saude Publica 1993; 9(4):428-438..

Nosso estudo estimou prevalência média nacional de HA de 10,7% em mulheres indígenas adultas em idade fértil, com expressivas variações entre as macrorregiões. A região Norte exibiu a menor prevalência e as macrorregiões Sul/Sudeste e Centro-Oeste apresentaram as maiores prevalências, superando em cerca de 4,5 vezes a prevalência no Norte. Ao comparar a prevalência da hipertensão arterial entre mulheres indígenas encontrada neste estudo e a população feminina brasileira maior de 18 anos, verifica-se que as indígenas apresentaram uma prevalência equivalente à metade dos 23,0% registrados entre as mulheres brasileiras no ano inicial desta pesquisa, 20083131 Cardoso AM, Mattos IE, Koifman RJ. Prevalence of risk factors for cardiovascular disease in the Guaraní-Mbyá population of the State of Rio de Janeiro. Cad Saude Publica 2001; 17(2):345-354.,3232 Salvo VLMA, Rodrigues D, Baruzzi RG, Pagliaro H, Gimeno SGA. Perfil metabólico e antropométrico dos Suyá: Parque Indígena do Xingu, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(3):458-468..

A magnitude das prevalências encontradas em nosso estudo se assemelha aos resultados reportados de 11% em uma revisão sistemática e metanálise voltada à saúde metabólica de adultos indígenas no Brasil3333 Bresan D, Bastos JL, Leite MS. Epidemiology of high blood pressure among the Kaingang people on the Xapecó Indigenous Land in Santa Catarina State, Brazil, 2013. Cad Saude Publica 2015; 31(2):331-344.. Entretanto, essa similaridade deve ser vista com cautela, na medida em que a referida revisão estima a prevalência para ambos os sexos, todas as idades e independentemente da residência em aldeia, enquanto nossas estimativas se restringem às mulheres indígenas adultas em idade fértil aldeadas. Além disso, a revisão parte dos estudos realizados em um número relativamente restrito de comunidades indígenas no Brasil, já que no país há uma das maiores sociodiversidades indígenas do planeta, e demonstra expressiva heterogeneidade nas prevalências de HA entre comunidades e regiões, com valores que variam de 30%, no Sul, a valores tão discretos quanto 1%, identificados entre indígenas residentes da região Norte. Estudos mais antigos apontavam para a ausência de hipertensão nessas populações, um fenômeno possivelmente vinculado ao aprimoramento dos diagnósticos e à emergência das DANT no decorrer do tempo3333 Bresan D, Bastos JL, Leite MS. Epidemiology of high blood pressure among the Kaingang people on the Xapecó Indigenous Land in Santa Catarina State, Brazil, 2013. Cad Saude Publica 2015; 31(2):331-344.. Outros estudos reportaram prevalências de HA entre os indígenas inferiores às verificadas em nosso estudo1616 Coimbra Jr CE, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.,3434 Meyerfreund D, Goncalves C, Cunha R, Pereira AC, Krieger JE, Mill JG. Age-dependent increase in blood pressure in two different Native American communities in Brazil. J Hypertens 2009; 27(9):1753-1760.

35 Carvalho JJ, Baruzzi RG, Howard PF, Poulter N, Alpers MP, Franco LJ, Marcopito LF, Colher VJ Ar T, Elliott P. Blood pressure in four remote populations in the INTERSALT Study. Hypertension 1989; 14(3):238-246.

36 Popkin BM, Adair LS, Ng SW. Global nutrition transition and the pandemic of obesity in developing countries. Nutr Rev 2012; 70(1):3-21.
-3737 Coimbra CE, Chor D, Santos RV, Salzano FM. Blood pressure levels in Xavánte adults from the Pimentel Barbosa Indian Reservation, Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2001; 11(2):232-240., enquanto outros estudos exibiram prevalências mais elevadas, como os conduzidos nos Mura da região amazônica (27,8%)1515 Basta PC, Orellana JDY, Arantes R. Perfil epidemiológico dos povos indígenas no Brasil: notas sobre agravos selecionados [Internet]. 2012. [acessado 2023 out 13]. Disponível em: http://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br/handle/bvs/4456
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, nos Krenak (27,6%)38, nos Kaingang de Santa Catarina (40,7%)39 e nos Tupinikin do Espírito Santo (20,8%) (ambos os sexos)40.

Portanto, nossas médias de PAS e PAD e prevalências de HA devem ser vistas como estimativas restritas às mulheres indígenas adultas em idade fértil, mas representativa da diversidade de populações indígenas aldeadas, pois foi realizada em uma amostra probabilística dessa população nas quatro macrorregiões analisadas. Esse recorte populacional resulta na estimativa de prevalências relativamente baixas de HA arterial, quando comparadas às encontradas em outras pesquisas com populações indígenas que consideraram ambos os sexos, faixas etárias mais elevadas e populações residentes fora de aldeias e terras indígenas1515 Basta PC, Orellana JDY, Arantes R. Perfil epidemiológico dos povos indígenas no Brasil: notas sobre agravos selecionados [Internet]. 2012. [acessado 2023 out 13]. Disponível em: http://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br/handle/bvs/4456
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,3333 Bresan D, Bastos JL, Leite MS. Epidemiology of high blood pressure among the Kaingang people on the Xapecó Indigenous Land in Santa Catarina State, Brazil, 2013. Cad Saude Publica 2015; 31(2):331-344.,38. Visto que a associação entre HA e idade, sexo e residência em zonas urbanas são amplamente reconhecidas, a inclusão desses segmentos no estudo resultaria em prevalências bastante superiores de HA em comparação com as que verificamos2626 Orellana-Barrios MA, Nuggent KM, Sanchez-Barrientos H, Lopez-Gutierrez JR. Prevalence of hypertension and associated anthropometric risk factors in indigenous adults of Guatemala. J Prim Care Community Health 2015; 6(1):16-20.,3434 Meyerfreund D, Goncalves C, Cunha R, Pereira AC, Krieger JE, Mill JG. Age-dependent increase in blood pressure in two different Native American communities in Brazil. J Hypertens 2009; 27(9):1753-1760.,3636 Popkin BM, Adair LS, Ng SW. Global nutrition transition and the pandemic of obesity in developing countries. Nutr Rev 2012; 70(1):3-21.,39.

Nossos achados revelam distintos fatores associados aos níveis pressóricos e à HA em mulheres indígenas adultas em idade fértil no Brasil. A ausência de renda familiar estável, juntamente com a condição de residir em aldeias onde o padrão de consumo alimentar proveniente de caça, pesca e coleta é inexistente, emergem como um contexto favorável à maior chance de apresentar HA. Essa relação sugere conexão entre condições adversas de subsistência e insegurança alimentar, resultando na escassez de alimentos em quantidade e qualidade satisfatórias, e no consequente consumo de alimentos industrializados e ultraprocessados, resultando em incremento do excesso de peso e obesidade e piora da saúde cardiovascular, como o aumento dos níveis pressóricos e da prevalência de HA. Ao mesmo tempo, é intrigante observar que a escolaridade emerge como um fator de proteção contra a HA, enfatizando a importância do acesso à educação em relação à promoção da saúde e à prevenção das DANT.

Outros estudos com povos indígenas ganharam destaque por investigarem a relação entre o modo de vida dessas populações e a pressão arterial, tal como o estudo internacional INTERSALT41. Conduzido no final da década de 1980, teve como objetivo explorar de forma sistemática as relações entre a ingestão de sódio (Na+) e potássio (K+) com a pressão arterial, assim como outras variáveis, em 52 populações de 32 países. Este estudo incluiu em sua amostra grupos indígenas, como os Yanomámi na Amazônia, que se destacaram naquele cenário por terem apresentado médias de pressão arterial excepcionalmente baixas e ausência de diagnóstico de HA. Além disso, chamou a atenção a associação positiva identificada entre a ingestão de sódio e os níveis de pressão arterial, um achado que divergiu de padrões observados em outras populações1616 Coimbra Jr CE, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.. Esses achados não apenas ressaltam a importância de considerar fatores culturais e ambientais na determinação da pressão arterial, também evidenciam a necessidade de abordagens individualizadas ao se investigar a saúde cardiovascular em diferentes grupos populacionais, a fim de compreender de forma mais completa sua determinação.

Nesse contexto, vale destacar as repercussões negativas sobre a saúde cardiovascular atreladas às mudanças substanciais nos padrões alimentares e de estilo de vida, que têm sido associados a um aumento alarmante nas prevalências de obesidade e sobrepeso42. Resultados desse mesmo inquérito nacional já publicados anteriormente evidenciaram elevadas prevalências de obesidade e sobrepeso entre as mulheres indígenas do nosso estudo2020 Montenegro RA, Stephens C. Indigenous health in Latin America and the Caribbean. Lancet 2006; 367(9525):1859-1869.. Esse fato se reveste de especial relevância, na medida em que verificamos incremento da prevalência de HA e dos níveis pressóricos com o aumento do IMC, tal como evidenciado em outros estudos com povos indígenas66 Foulds HJA, Warburton DER. The blood pressure and hypertension experience among North American Indigenous populations. J Hypertens 2014; 32(4):724-734.,1313 Rocha AKS, Bós AJG, Huttner E, Machado DC. Prevalência da síndrome metabólica em indígenas com mais de 40 anos no Rio Grande do Sul, Brasil. Rev Panam Salud Publica 2011; 29(1):41-45.,1515 Basta PC, Orellana JDY, Arantes R. Perfil epidemiológico dos povos indígenas no Brasil: notas sobre agravos selecionados [Internet]. 2012. [acessado 2023 out 13]. Disponível em: http://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br/handle/bvs/4456
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,38. Em outras palavras, a associação entre obesidade e HA observada neste estudo provavelmente reflete mudanças nos padrões alimentares, de atividade física e nas condições ambientais, as quais fazem parte do processo de transição nutricional e epidemiológica vivenciado por esses povos a partir do contato com as sociedades envolventes.

Ao discutimos as limitações deste estudo, faz-se necessário destacar que a abordagem transversal adotada impossibilita a atribuição de causalidade às relações investigadas. Além disso, merece destaque o foco do I INSNPI na investigação da saúde materno infantil da população indígena brasileira, deixando de abranger homens adultos e mulheres acima de 50 anos e indígenas residentes fora de aldeias e terras indígenas, restringindo-se às mulheres residentes nas reservas indígenas oficialmente reconhecidas pelo governo federal e que faziam parte do Subsistema de Saúde Indígena (SASI-SUS).

Quanto às fortalezas do estudo, destacamos que ele foi desenvolvido com o objetivo de gerar evidências para apoiar a atenção à saúde dos povos indígenas atendidos no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, em particular a saúde materno-infantil e a vigilância alimentar e nutricional. Por isso os achados são aplicáveis ao planejamento da atenção e promoção da saúde nesse segmento de particular interesse, por sua vulnerabilidade de saúde. O estudo teve abrangência nacional e se baseou em uma amostra probabilística da população de mulheres aldeadas, representativa das quatro macrorregiões, sem perda de precisão, incluindo populações nunca antes estudadas. Dessa forma, as estimativas geradas são robustas e generalizáveis para as populações indígenas das macrorregiões e do país, servindo de parâmetros para comparações futuras da tendência da HA nessas populações e para o planejamento da atenção e promoção da saúde.

Estudos futuros devem considerar a inclusão de outras faixas etárias, o sexo masculino e populações residentes fora das aldeias e terras indígenas, a fim de proporcionar uma compreensão mais completa da carga de HA e dos fatores que influenciam a saúde cardiovascular das populações indígenas no Brasil. A realização de investigações em comunidades específicas reforça a necessidade de contextualização cultural e geográfica para uma compreensão mais precisa e sensível dos determinantes de saúde nessas comunidades historicamente marginalizadas. A reprodução de pesquisas como essa em diferentes contextos e escalas é fundamental para monitorar a tendência das DANT em povos indígenas e orientar políticas e estratégias de saúde que visem a redução das desigualdades e o aprimoramento da saúde e do bem-estar dessas populações, respeitando suas particularidades culturais, socioeconômicas e seus direitos constitucionais territoriais e de acesso à saúde.

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio e a assistência oferecidos pelos líderes indígenas e membros da comunidade em todas as aldeias pesquisadas, bem como pelos funcionários locais da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). O apoio administrativo prestado pela equipe da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) facilitou muito as viagens e a logística financeira.

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  • Financiamento

    O apoio financeiro foi fornecido pelo Ministério da Saúde do Brasil e pelo Banco Mundial através de uma doação concedida à Abrasco. Os financiadores não tiveram nenhum papel na concepção, análise ou redação deste artigo. Agradecemos a confiança e o apoio de Carlos E.A. Coimbra Jr. e James R. Welch, pesquisadores da ENSP/Fiocruz que foram coordenadores da pesquisa que gerou os dados analisados no presente texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    19 Jun 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br