Excesso de peso e fatores associados entre adultos indígenas Xavante, Brasil Central

Felipe Guimarães Tavares José Rodolfo Mendonça de Lucena Andrey Moreira Cardoso Sobre os autores

Resumo

Considerada um importante problema de saúde pública entre os povos indígenas no Brasil, a obesidade constitui um fator de risco para doenças e agravos não transmissíveis. Objetivou-se descrever a ocorrência de excesso de peso e obesidade e fatores associados em adultos indígenas Xavante, por meio de um inquérito nutricional realizado na população ≥ 15 anos residente nas terras indígenas Pimentel Barbosa e Wedezé, Mato Grosso, Brasil Central, no período de junho a agosto de 2011. Foram investigadas oito das dez aldeias existentes no território. Coletaram-se dados antropométricos, de bioimpedância e socioeconômicos. Participaram do estudo 495 indivíduos, correspondendo a 94,1% da população-alvo. As prevalências de excesso de peso e obesidade foram de 65,9% (masc: 63,2%; fem: 68,6%) e 19,8% (masc: 21,3%; fem: 18,2%), respectivamente. No modelo de regressão múltipla, as prevalências de excesso de peso foram maiores nas mulheres, nas faixas etárias e nível de escolaridade superiores, nos indivíduos residentes no segundo grupo de aldeias e nos domicílios com baixo de consumo de alimentos de cultivo e criação. Houve aumento na faixa etária de 20 a 49 anos e nos indivíduos residentes em domicílios com baixo consumo de alimentos oriundos da caça, pesca e coleta apresentaram as maiores prevalências de obesidade.

Palavras-chave:
Saúde dos povos indígenas; Obesidade; Epidemiologia; Xavante

Introdução

Nas últimas décadas, vem sendo reportadas globalmente mudanças nos padrões de saúde das populações, caracterizadas pelo expressivo incremento das doenças e agravos não transmissíveis (DANT) e seus fatores de risco, em grande medida atribuídas aos processos de industrialização, urbanização, envelhecimento populacional e mudanças no comportamento e nos meios de subsistência. Essas transformações se manifestam de formas variadas, sendo comum, nos países em desenvolvimento e nas populações em condições socioeconômicas desfavoráveis, a coexistência de uma dupla carga de doença, representada pela persistência das doenças infecciosas, parasitárias e carenciais, em paralelo à emergência das DANT11 Omran AR. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. Milbank Q 2005; 83(4):731-757.,22 Popkin BM, Adair LS, Ng SW. Global nutrition transition and the pandemic of obesity in developing countries. Nutr Rev 2012; 70(1):3-21.. Entre as DANT, o excesso de peso e a obesidade emergem como importantes problemas de saúde pública, sendo considerados fatores de risco para outros agravos não transmissíveis, como diabetes, hipertensão e alguns tipos de câncer33 Calle EE, Kaaks R. Overweight, obesity and cancer: epidemiological evidence and proposed mechanisms. Nat Rev Cancer 2004; 4(8):579-591.

4 Powell-Wiley TM, Poirier P, Burke LE, Després JP, Gordon-Larsen P, Lavie CJ, Lear SA , Ndumele CE, Neeland IJ, Sanders P, St-Onge MP, American Heart Association Council on Lifestyle and Cardiometabolic Health; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Clinical Cardiology; Council on Epidemiology and Prevention; and Stroke Council. Obesity and cardiovascular disease: a scientific statement from the American Heart Association. Circulation 2021; 143(21):e984-e1010.
-55 Savva SC, Lamnisos D, Kafatos AG. Predicting cardiometabolic risk: waist-to-height ratio or BMI. A meta-analysis. Diabetes Metab Syndr Obes 2013; 6:403-419..

No Brasil, estudos evidenciam disparidades na distribuição do excesso de peso e da obesidade e outras DANT, que vêm sendo associadas a marcadores de desigualdades sociais, como níveis de renda, educação e raça e etnia, por exemplo66 Monteiro CA, D'A Benicio MH, Conde WL, Popkin BM. Shifting obesity trends in Brazil. Eur J Clin Nutr 2000; 54(4):342-346.. Entre povos indígenas, tanto no Brasil como internacionalmente, o excesso de peso e a obesidade são agravos emergentes. Esse perfil é modulado pelas histórias de contato dos povos indígenas com a sociedade envolvente e pela intrusão e perda de territórios, atreladas às transformações nos modos de subsistência e à dependência do mercado regional77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.

8 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.

9 Lourenco AEP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra CEAJ. Nutrition transition in Amazonia: obesity and socioeconomic change in the Surui Indians from Brazil. Am J Hum Biol 2008; 20(5):564-571.

10 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.

11 Santos RV, Welch JR, Pontes AL, Garnelo L, Moreira Cardoso A, Coimbra Jr CEA. Health of Indigenous peoples in Brazil: inequities and the uneven trajectory of public policies. In: Oxford Research Encyclopedia of Global Public Health. Oxford: Oxford University Press; 2022. p. 1-33.
-1212 Cardoso AM, Tavares IN, Werneck GL. Indigenous health in Brazil: from vulnerable to protagonists. Lancet 2022; 400(10368):2011-2014.,

O impacto dessa interação se manifesta por meio de mudanças no estilo de vida das populações indígenas, tais como modificações nos padrões de consumo alimentar, aumento na ingestão de alimentos ultraprocessados e ricos em sódio e redução nas práticas de atividade física. Nacionalmente, esses padrões foram documentados no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (INSNPI), no qual foram estimadas prevalências de excesso de peso de 46,2% e de obesidade de 15,8% em mulheres indígenas em idade fértil, com expressivas desigualdades regionais77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951., destacando-se as elevadas prevalências nas regiões Centro-Oeste (excesso de peso: 52,8%; obesidade: 17,2%) e Sul/Sudeste, (excesso de peso: 54,7%; obesidade: 22,6%), bem como as baixas prevalências na região Norte (excesso de peso: 31,2%; obesidade: 6,1%)77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.. Diversos estudos com comunidades indígenas específicas reforçam as prevalências elevadas de excesso de peso e obesidade em populações indígenas no país1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.,1313 Baldoni NR, Aquino JA, Alves GCS, Sartorelli DS, Franco LJ, Madeira SP, Dal Fabbro AL. Prevalence of overweight and obesity in the adult indigenous population in Brazil: a systematic review with meta-analysis. Diabetes Metab Syndr 2019; 13(3):1705-1715.

14 Fávaro TR, Ferreira AA, Cunha GM, Coimbra CEA. Excess weight in Xukuru indigenous children in Ororubá, Pernambuco State, Brazil: magnitude and associated factors. Cad Saude Publica 2019; 35 (Suppl. 3):e00056619.
-1515 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697..

O povo indígena Xavante, que habita territórios no estado do Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil, é uma das populações indígenas em que estudos vêm documentando os efeitos na saúde decorrentes do avanço das fronteiras demográficas sobre seus territórios desde meados do último século. Pesquisas que documentaram essas transformações evidenciam o surgimento das DANT88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.,1616 Carneiro O, Jardim PC. Blood pressure in a Xavante tribe. Comparison after 15 years. Arq Bras Cardiol 1993; 61(5):279-282.

17 Dal Fabbro AL, Franco LJ, Silva AS, Sartorelli DS, Soares LP, Franco LF, Kuhn PC, Moisés RS, Vieira-Filho JPB. High prevalence of type 2 diabetes mellitus in Xavante Indians from Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2014; 24(1):35-40.
-1818 Welch JR, Ferreira AA, Tavares FG, Lucena JRM, Gomes de Oliveira MV, Santos RV, Coimbra Jr CEA. The Xavante Longitudinal Health Study in Brazil: objectives, design, and key results. Am J Hum Biol 2019; 32(2):e23339.. Frente ao contexto de transformações nos padrões de saúde Xavante, o presente estudo investigou as prevalências de excesso de peso e obesidade entre indivíduos com 15 anos ou mais de idade residentes nas terras indígenas Pimentel Barbosa e Wedezé, trazendo evidências acerca dos fatores socioeconômicos e demográficos associados a essas condições nas populações em questão.

População e métodos

Este estudo é parte de um inquérito sobre as condições de saúde e nutrição realizado na população Xavante das terras indígenas (TI) Pimentel Barbosa e Wedezé, estado de Mato Grosso, Brasil Central, no período de junho a agosto de 2011. A presente análise enfoca o segmento da população ≥ 15 anos de idade residente em oito de dez aldeias elegíveis - Pimentel Barbosa, Eténhiritipá, Caçula, Wedezé, Asereré, Canoa, Reata e Tanguro, que reúnem 82,4% da população residente nas TI estudadas. As lideranças de duas aldeias recusaram a participação de suas comunidades no inquérito.

A amostra considerou inicialmente 559 indígenas na faixa etária alvo do estudo. Destes, 33 mulheres (7,8%) encontravam-se grávidas ou não sabiam informar sobre tal condição, sendo, portanto, excluídas das análises. Isso resultou em um contingente de 526 indígenas que atendiam aos critérios de inclusão no estudo.

A equipe de pesquisadores de campo foi composta por profissionais de enfermagem, nutrição e antropologia, treinados e capacitados para a aplicação do questionário e o manuseio dos instrumentos de pesquisa. Os questionários de pesquisa foram baseados naqueles utilizados no INSNPI1919 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13:52., adaptados às especificidades culturais Xavante e complementados com temas adicionais de interesse, como saúde bucal. Para tanto, foram conduzidas entrevistas domiciliares com chefes de família ou outro representante adulto da família, abordando as condições de saneamento e moradia, padrões de aquisição de alimentos e perfil socioeconômico. As entrevistas individuais abordaram nível de escolaridade, histórico reprodutivo e de saúde, acesso a serviços de saúde e estado atual de saúde, além de medida direta de dados antropométricos, pressão arterial, glicemia casual e nível de hemoglobina.

Dados antropométricos e socioeconômicos

A estatura foi mensurada em posição ereta com um antropômetro portátil modelo 216 da marca Seca (Hamburgo, Alemanha) e registrada com precisão de 0,1 cm. O peso corporal foi medido com uma balança digital portátil modelo 770 da marca Seca (Hamburgo, Alemanha), com capacidade máxima de 150 kg e precisão de 100g. Tanto as medidas de estatura quanto de peso foram obtidas de todos os participantes que estavam fisicamente aptos, de acordo com as recomendações de Lohman et al.2020 Lohman TG, Roche AF, Martorell R. Anthropometric standartization reference manual. Champaign: Human Kinetics Books; 1988. Para a aferição das medidas antropométricas, os participantes foram instruídos a usarem roupas leves e estarem descalços.

O índice de massa corporal (IMC) foi calculado a partir das variáveis de peso e estatura, pela fórmula peso/altura ao quadrado, e os pontos de corte para peso normal, sobrepeso e obesidade seguiram as diretrizes da Organização Mundial da Saúde2121 World Health Organization (WHO). Obesity: preventing and managing the global epidemic - Report of a WHO consultation. World Health Organ Tech Rep Ser 2000; 894:i-xii, 1-253.. Para participantes com idade entre 14 e 19 anos, foram adotados os pontos de corte propostos por de Onis2222 Onis M, Onyango AW, Borghi E, Siyam A, Nishida C, Siekmann J. Development of a WHO growth reference for school-aged children and adolescents. Bull World Health Organ 2007; 85(9):660-667..

Indicadores socioeconômicos

Foram usados os seguintes indicadores demográficos e socioeconômicos: sexo, idade (faixa etária), renda per capita domiciliar (calculada dividindo a renda total pelo número de residentes no domicílio), escolaridade, bens no domicílio e consumo alimentar.

A escolaridade referida foi medida em anos de estudo completos com aprovação, distribuídos da seguinte forma: nenhum ano de estudo (não frequentou a escola), 1 a 8 anos do ensino fundamental, 1 a 3 anos do ensino médio e/ou 1 a 5 períodos do projeto Haiyô (formação de professores indígenas no ensino médio, uma parceria entre Secretaria Estadual de Educação, Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai e Fundação Nacional de Saúde - Funasa. No entanto, os períodos estudados neste projeto foram calculados com equivalência de dois períodos do projeto Hayô para um ano de ensino médio, já que o ano letivo nesse projeto dura em média de dois a três meses. Para fins de análise, utilizamos o indicador de forma categorizada (sem escolaridade, 1ª a 4ª série, 5ª a 8ª série e ensino médio e Haiyô).

Um indicador de posse de bens no domicílio (bens de casa) foi calculado a partir de relato do número de bens duráveis existentes no domicílio, a partir de uma lista elaborada com base em estudos anteriores1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.. A análise de componentes principais foi feita com 20 bens para se obter um índice de posse de bens capaz de discriminar o poder aquisitivo das famílias2323 Vyas S, Kumaranayake L. Constructing socio-economic status indices: how to use principal components analysis. Health Policy Plan 2006; 21(6):459-468.. Os valores da matriz de correlação entre as variáveis oscilaram entre -0,133, para a correlação entre automóvel e fogão a gás e 0,896 para a correlação entre televisão e DVD player. A medida de Kaiser-Meyer-Olkin chegou a 0,644, excedendo o valor mínimo de 0,60 recomendado para prosseguir com este tipo de análise. O eingenvalue do primeiro componente de análise multivariada foi de 4,316, o que representa 21,6% da variabilidade total do conjunto de dados. O segunda componente mostrou um eingenvalue 54,0% menor do que o da primeira (11,8% da variabilidade total).

Os itens que se destacaram no primeiro componente foram televisão, DVD, antena parabólica, câmera digital, motor gerador e caixa de som. Apenas esse componente foi usado na definição do indicador socioeconômico, pois apresentou o maior poder de explicação da variabilidade. O valor do indicador de bens para cada família é o resultado da soma da contribuição de cada item (gerada a partir da análise de componentes principais) multiplicado pela quantidade de itens que o domicílio possui. Em seguida, o indicador foi dividido em tercis, baseados na distribuição de valores entre domicílios, sendo estes os níveis a serem considerados para classificar cada domicílio em três níveis subsequentes: baixo, médio e alto. Os valores desse indicador variaram entre -1,084 e 4,417, tendo como pontos de corte os valores -0,683 e 0,302, respectivamente.

A variável número de moradores no domicílio foi usada para representar a característica do domicílio, classificada em três categorias, 1 a 9 moradores, 10 a 19 moradores e 20 a 28 moradores, já que 28 foi a maior quantidade encontrada.

Padrão de consumo alimentar domiciliar

Para estimar a frequência alimentar domiciliar, foi investigada a frequência de consumo de alimentos adquiridos pelas seguintes categorias de produção: cultivo e criação domiciliar; coleta, caça e pesca; e compra na cidade. Para cada uma das categorias perguntou-se acerca da frequência típica de consumo pelos residentes do domicílio ao longo do ano. Essa variável foi utilizada para caracterizar a inserção econômica do domicílio no que se refere à obtenção de alimentos, não enfocando a quantificação do consumo alimentar ou a nutrição individual. Os alimentos detalhados no instrumento contemplaram todos os alimentos e categorias de alimentos tipicamente consumidos pelos Xavante das aldeias que participaram da pesquisa. Incluíram 15 itens provenientes de cultivo ou criação, tais como arroz da roça e milho Xavante; 11 itens provenientes de caça ou coleta, como frutas do mato, peixe e tartaruga; e 17 itens industrializados, adquiridos por meio da compra, como arroz, café, açúcar e óleo de cozinha. Foi indagada a frequência de consumo no domicílio para cada um dos alimentos, sendo classificados em “nunca ou raramente”, “só às vezes ou só em uma época” e “frequentemente ou todo dia”. A análise de componentes principais foi feita para cada um dos grupos de frequência alimentar, sendo denominados de “cultivo ou criação”, “caça ou coleta” e “compra”.

A variável “grupo de aldeias” categoriza as aldeias participantes em três grupos, considerando suas histórias territoriais, de acordo com critérios propostos por Arantes et al.2424 Arantes R, Welch JR, Tavares FG, Ferreira AA, Vettore MV, Coimbra CEA. Human ecological and social determinants of dental caries among the Xavante Indigenous people in Central Brazil. PLoS One 2018; 13(12):e0208312. O primeiro incluiu Pimentel Barbosa e Etênhiritipá, fundadas em 1970 e 2006, respectivamente. Esse grupo estava mais isolado e situado em cerrado preservado. O segundo abrangeu Caçula, originada da aldeia Pimentel Barbosa nos anos 1980, com duas aldeias menores oriundas de Caçula nos anos 2000 (Canoa e Wedezé). Esse grupo ocupava uma área alagada próxima ao Rio das Mortes. O terceiro grupo compreendia Tanguro, separada da aldeia Pimentel Barbosa nos anos 1980, e duas aldeias menores provenientes de Tanguro nos anos 2000 (Asereré e Reata). Esse grupo estava próximo de uma cidade, de uma rodovia interestadual e de fazendas. Para preservar a confidencialidade, não fornecemos resultados específicos para aldeias individuais.

Análise estatística

A análise descritiva foi feita por meio do cálculo de médias, desvio-padrão, valores mínimos e máximos para as variáveis antropométricas, scores socioeconômicos, scores de consumo alimentar, segundo faixa etária, sexo e grupo de aldeias. A fim de avaliar a diferença entre proporções, foi utilizado o teste qui-quadrado. Para verificar diferenças nas médias das variáveis antropométricas entre os sexos, aplicou-se o teste t de Student.

A correlação entre as variáveis foi analisada por meio do coeficiente de correlação de Pearson, em análises bivariadas, testando-se a significância estatística por meio do teste t bicaudal. Também foram calculadas as prevalências de excesso de peso e obesidade, segundo sexo, idade e estrato socioeconômico e de acordo com os indicadores de IMC.

Em seguida foram analisadas as medidas de associação entre cada variável de interesse e os desfechos excesso de peso e obesidade, por meio de razões de prevalência brutas, considerando um intervalo de confiança de 95%. Foram feitos testes qui-quadrado de tendência linear para avaliar as diferenças entre as proporções entre categorias das variáveis de interesse. As prevalências de excesso de peso e obesidade foram calculadas por agrupamentos de aldeias, sexo, faixa etária, quantidade de moradores no domicílio, bens de consumo e frequências de consumo alimentar domiciliar.

A análise multivariada seguiu uma regressão logística com ajuste robusto da variância para desfechos dicotômicos (sim e não) para excesso de peso e obesidade. O passo inicial da análise foi selecionar variáveis para inclusão na regressão multivariada. Para tal, foi feita regressão univariada para cada variável investigada separadamente com uma das variáveis dependentes (excesso de peso ou obesidade) considerando p-valor de 0,20 para seleção das variáveis a serem incluídas na etapa subsequente. Em seguida, todas as variáveis selecionadas na etapa anterior foram incluídas na regressão logística multivariada, selecionado novamente aquelas que permaneceram com nível de significância estatística p < 0,20 pelo ajuste mútuo. As variáveis selecionadas na etapa anterior fizeram parte do procedimento de regressão logística, utilizando o método stepwise backward para seleção das variáveis no modelo final, em que permaneceram apenas aquelas com OR ajustadas e respectivos IC95% com nível de significância p < 0,05.

As análises estatísticas foram feitas no programa IBM SPSS Statistics for Windows, versão 20.0. (Armonk, NY, USA).

Considerações éticas

O Estudo Xavante seguiu as normas de pesquisa estabelecidas pela Declaração de Helsinque e pelas Diretrizes Éticas Internacionais do CIOMS. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (protocolo nº 2500.202987/2010-14). A Fundação Nacional do Índio concedeu permissão para a realização do trabalho de campo em terras indígenas federais. Todas as pessoas ou seus responsáveis adultos puderam consentir ou retirar a participação a qualquer momento. As análises aqui apresentadas compõem a tese de doutorado do autor principal do artigo.

Resultados

Dos 526 indígenas elegíveis para o estudo, 31 estavam ausentes das aldeias no momento da aferição das medidas de peso e estatura. Dessa forma, fizeram parte da nossa análise os dados referentes a 495 indivíduos (masc: 253, 51,1%; fem.: 242, 48,9%), o que corresponde a 94,1% da população ≥ 15 anos e de ambos os sexos.

A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas das variáveis antropométricas e dos indicadores socioeconômicos. A média de idade da população foi de 34,3 anos (DP: 18,8), sendo de 33,1 anos (DP: 18,1) para homens e 35,5 anos (DP: 19,5) para mulheres, sem diferença estatisticamente significativa entre os sexos. As médias de peso e estatura apresentaram significância estatística para o teste t de diferença de médias entre os sexos, com peso e estatura médios mais elevados nos homens.

Tabela 1
Estatísticas descritivas para idade, variáveis antropométricas, renda per capita e indicadores de consumo para indígenas Xavante com idade maior ou igual a 15 anos, Brasil Central, 2011.

Entre as aldeias que participaram do estudo, as que apresentaram maior número de indivíduos foram Pimentel Barbosa (30,5%), Etênhiritipá (26,1%) e Caçula (21,0%). Há maior proporção de indivíduos do sexo feminino nos estratos sem escolaridade (39,3%) e de 1ª a 4ª série (36,0%), enquanto a frequência de homens é maior nos estratos de escolaridade de 5º a 8º ano (50,0%). Em relação à renda per capita domiciliar, a maior parte dos indivíduos recebe entre R$55,00 e R$109,99 (45,9%), com valores similares entre os sexos (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição global e por sexo de indivíduos segundo grupos de aldeias, variáveis sociodemográficas e econômicas para indígenas Xavante com idade maior ou igual a 15 anos, Brasil Central, 2011.

A Tabela 3 apresenta as prevalências de excesso de peso e de obesidade segundo variáveis sociodemográficas e econômicas. Verificaram-se diferenças estatisticamente significativas nas prevalências de excesso de peso entre as categorias das variáveis faixa etária e frequências de consumo de alimentos provenientes de caça/coleta e de cultivo e criação, sendo maiores as prevalências na faixa etária intermediária e nos menores níveis de consumo de alimentos nesses padrões alimentares. Verificaram-se diferenças estatisticamente significativas nas prevalências de obesidade entre as categorias das variáveis faixa etária, escolaridade, índice de bens de casa e frequência de consumo de alimentos provenientes de caça/coleta, sendo maiores as prevalências na faixa etária intermediária, nos níveis mais elevados de escolaridade, índices mais elevados de posse de bens de casa e nível baixo de consumo de alimentos provenientes de caça/coleta.

Tabela 3
Prevalências de excesso de peso e obesidade de adultos Xavante segundo frequência de variáveis sociodemográficas e econômicas para indígenas Xavante com idade maior ou igual a 15 anos, Brasil Central, 2011.

No modelo final de regressão múltipla, o excesso de peso permaneceu associado de forma estatisticamente significativa com sexo, grupo de aldeias, faixa etária, escolaridade e cultivo/criação. A chance de ter excesso de peso foi 63% maior nas mulheres em comparação com os homens. As faixas etárias de 20 e 49 anos e 50 anos ou mais apresentaram chances de ter excesso de peso 4,9 vezes e 2,7 vezes maiores do que a faixa etária de 15 a 19 anos, assim como as categorias de escolaridade de 1ª a 4ª séries e ensino médio ou Haiyô apresentaram OR ajustadas de 2,63 e 3,15, respectivamente, em comparação com os indivíduos sem escolaridade. Residir no segundo grupo de aldeias conferiu chance 42% menor de ter excesso de peso quando comparado a morar no primeiro grupo de aldeias.

No modelo final de regressão múltipla, a obesidade permaneceu associada de forma estatisticamente significativa apenas às variáveis faixa etária e caça/coleta. Ter idade entre 20 e 49 anos correspondeu a uma chance de ter obesidade 11,1 vezes maior do que indivíduos com idade entre 15 e 20 anos, e morar em domicílios onde a frequência de caça/coleta de alimentos foi média apresentou chance 52% menor de ter obesidade, em comparação com os indivíduos com nível baixo de consumo de alimentos prevenientes de caça/coleta (Tabela 4).

Tabela 4
Modelos de regressão para excesso de peso e obesidade em indígenas Xavante maiores de 15 anos, Mato Grosso, 2011.

Discussão

A saúde dos Xavante tem sido objeto de investigações desde os anos 1960, visando a caracterização do panorama de saúde e morbimortalidade desse povo. Estudos têm abordado diversos aspectos ligados direta ou indiretamente à saúde, como análises de natureza genética, demográfica, antropológica e epidemiológica88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,1616 Carneiro O, Jardim PC. Blood pressure in a Xavante tribe. Comparison after 15 years. Arq Bras Cardiol 1993; 61(5):279-282.

17 Dal Fabbro AL, Franco LJ, Silva AS, Sartorelli DS, Soares LP, Franco LF, Kuhn PC, Moisés RS, Vieira-Filho JPB. High prevalence of type 2 diabetes mellitus in Xavante Indians from Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2014; 24(1):35-40.
-1818 Welch JR, Ferreira AA, Tavares FG, Lucena JRM, Gomes de Oliveira MV, Santos RV, Coimbra Jr CEA. The Xavante Longitudinal Health Study in Brazil: objectives, design, and key results. Am J Hum Biol 2019; 32(2):e23339.,2525 Arantes R, Santos RV, Coimbra Jr CEA. Saúde bucal na população indígena Xavánte de Pimentel Barbosa, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):375-384.

26 Flowers N. Demographic crisis and recovery: a case study of the Xavante of Pimentel Barbosa. South Am Indian Stud 1994; 4:18-36.

27 Gugelmin SA, Santos RV. Human ecology and nutritional anthropometry of adult Xavánte Indians in Mato Grosso, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):313-322.

28 Neel JV, Salzano FM, Junqueira PC, Keiter F, Maybury-Lewis D. Studies on the Xavante Indians of the Brazilian Mato Grosso. Am J Hum Genet 1964; 16(1):52-140.
-2929 Neel JV, Ward RH. The genetic structure of a tribal population, the Yanomama Indians. VI. Analysis by F-statistics (including a comparison with the Makiritare and Xavante). Genetics 1972; 72(4):639-666.. As aldeias de Pimentel Barbosa e Etênhiritipá foram destaque em grande parte dessas pesquisas88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,1818 Welch JR, Ferreira AA, Tavares FG, Lucena JRM, Gomes de Oliveira MV, Santos RV, Coimbra Jr CEA. The Xavante Longitudinal Health Study in Brazil: objectives, design, and key results. Am J Hum Biol 2019; 32(2):e23339., porém as demais pertencentes à TI Pimentel Barbosa raramente foram investigadas. Nosso estudo foi o primeiro a reportar dados epidemiológicos relativos à saúde da quase totalidade dos indivíduos residentes nas TI Pimentel Barbosa e Wedezé, esta última recentemente demarcada3030 Welch JR, Santos RV, Flowers NM, Coimbra Jr CEA. Na primeira margem do rio: território e ecologia humana do povo Xavante de Wedezé. Rio de Janeiro: Museu do Índio; 2013..

As médias de estatura e peso obtidas neste trabalho mostraram-se comparáveis às registradas no último levantamento com os Xavante das aldeias de Pimentel Barbosa e Etênhiritipá, em 2006. Similar constatação foi feita em relação aos valores de IMC, cujas médias em homens e mulheres corresponderam a 27,8 kg/m² e 27,9 kg/m², respectivamente, em 20061010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.. Nesse estudo, Welch e colaboradores conduziram uma análise temporal do estado nutricional dos Xavante, revelando ganho ponderal médio ao comparar os primeiros estudos realizados na década de 1960 por Neel2828 Neel JV, Salzano FM, Junqueira PC, Keiter F, Maybury-Lewis D. Studies on the Xavante Indians of the Brazilian Mato Grosso. Am J Hum Genet 1964; 16(1):52-140. e Niswander3131 Niswander JD, Keiter F, Neel JV. Further studies on the Xavante Indians. II. Some anthropometric, dermatoglyphic, and nonquantitative morphological traits of the Xavantes of Simões Lopes. Am J Hum Genet 1967; 19(4):490-501. com pesquisas mais recentes. Os inquéritos antropométricos realizados entre os Xavante de São Domingos e Simões Lopes na década de 1960 revelaram médias de peso de 67,2 kg para homens e 54,0 kg para mulheres em São Domingos, e de 69,8 kg para homens e 57,9 kg para mulheres em Simões Lopes. As médias de estatura foram 168,1 cm e 170,2 cm para homens e de 154,7 cm e 156,3 cm para mulheres, respectivamente, nas mesmas aldeias.

Observa-se tendência de aumento das médias de peso entre os Xavante ao comparar os resultados de pesquisas conduzidas em 19773232 Flowers NM. Forager-farmers: the Xavante Indians of Central Brazil. New York: City University of New York; 1983. e o estudo realizado na década de 19902727 Gugelmin SA, Santos RV. Human ecology and nutritional anthropometry of adult Xavánte Indians in Mato Grosso, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):313-322.. Nesse caso, os autores documentam um incremento nas médias de peso de 4,4 kg entre os homens e 1,3 kg entre as mulheres. Além de médias elevadas de IMC, nosso estudo também revelou alta prevalência de sobrepeso e obesidade, da ordem de 46,1% e 19,8%, respectivamente, sendo de 50,4% e 18,2% para mulheres e de 41,9% e 21,3% para homens, respectivamente. Isso revela que apenas 34,1% da população Xavante (36,8% para homens e 31,4% para mulheres) com idade maior ou igual a 15 anos residente nas TI estudadas apresentam IMC dentro dos padrões de normalidade indicados pela OMS3333 World Health Organization (WHO). A global brief on hypertension: silent killer, global public health crisis. Geneva: WHO; 2013.. Na população geral do Brasil, durante o período 2008-2009, prevalências de excesso de peso corresponderam a 50,1% e a 48,0% em homens e mulheres adultos, respectivamente3434 Conde WL, Monteiro CA. Nutrition transition and double burden of undernutrition and excess of weight in Brazil. Am J Clin Nutr 2014; 100(6):1617S-1622S..

Ao confrontarmos os resultados deste estudo com os achados do INSNPI, conduzido entre 2008-2009, abrangendo uma amostra representativa de mulheres indígenas residentes em aldeias em todo o território nacional com idades entre 14 e 49 anos1919 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Health 2013; 13:52., evidenciamos que os valores identificados entre as mulheres Xavante ultrapassam as proporções observadas em âmbito nacional para excesso de peso e obesidade, registrando 46,2% e 15,8%, respectivamente. O mesmo pode ser verificado na comparação com as prevalências reportadas para o conjunto das mulheres indígenas da região Centro-Oeste, onde reside a população deste estudo (52,8% e 17,2%)77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.. Ao aplicarmos a mesma faixa etária do inquérito nacional na delimitação das prevalências, os níveis de excesso de peso e obesidade entre as mulheres Xavante se apresentaram ainda mais substanciais, alcançando 69,9% e 20,4%, respectivamente.

Lamentavelmente, a ocorrência desse tipo de resultado tem se tornado cada vez mais frequente no contexto indígena brasileiro. Prevalências elevadas de sobrepeso e obesidade parecem ser um achado recorrente em numerosos estudos conduzidos no país. Em grande parte dessas investigações, tais prevalências ultrapassaram a marca de 60%, como verificado nos estudos com os indígenas Parkatêjê, em que foram observadas prevalências de 62,5% de excesso de peso entre as mulheres3535 Capelli JCS, Koifman S. Evaluation of the nutritional status of the Parkatêjê indigenous community in Bom Jesus do Tocantins, Pará, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):433-437. e 67,8% e 14,4% para excesso de peso e obesidade para ambos os sexos, respectivamente3636 Tavares EF, Vieira-Filho JPB, Andriolo A, Sañudo A, Gimeno SGA, Franco LJ. Metabolic profile and cardiovascular risk patterns of an Indian tribe living in the Amazon Region of Brazil. Hum Biol 2003; 75(1):31-46.. Na região amazônica, estudo conduzido por Lourenço e colaboradores99 Lourenco AEP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra CEAJ. Nutrition transition in Amazonia: obesity and socioeconomic change in the Surui Indians from Brazil. Am J Hum Biol 2008; 20(5):564-571. também revelou prevalências expressivas, atingindo 42,3% para sobrepeso e 18,2% para obesidade para ambos os sexos. Além desses, outras investigações enfocando populações indígenas específicas em diferentes regiões também encontraram elevadas prevalências de sobrepeso e obesidade1313 Baldoni NR, Aquino JA, Alves GCS, Sartorelli DS, Franco LJ, Madeira SP, Dal Fabbro AL. Prevalence of overweight and obesity in the adult indigenous population in Brazil: a systematic review with meta-analysis. Diabetes Metab Syndr 2019; 13(3):1705-1715.,1515 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697.,2727 Gugelmin SA, Santos RV. Human ecology and nutritional anthropometry of adult Xavánte Indians in Mato Grosso, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):313-322.,3737 Cardoso AM, Mattos IE, Koifman RJ. Prevalence of risk factors for cardiovascular disease in the Guaraní-Mbyá population of the State of Rio de Janeiro. Cad Saude Publica 2001; 17(2):345-354.

38 Leite MS, Santos RV, Coimbra CEA. Seasonality and nutritional status of indigenous peoples: the case of Wari' in Rondônia State, Brazil. Cad Saude Publica 2007; 23(11):2631-2642.
-3939 Oliveira GF, Oliveira TRR, Ikejiri AT, Galvao TF, Silva MT, Pereira MG. Prevalence of obesity and overweight in an Indigenous population in Central Brazil: a population-based cross-sectional study. Obes Facts 2015; 8(5):302-310..

Ao comparar os resultados do presente estudo com os de outras pesquisas em comunidades indígenas Xavante, algumas diferenças merecem destaque. Quando contrastamos as prevalências de excesso de peso e obesidade deste estudo com as obtidas no estudo dos Xavante de Pimentel Barbosa/Etênhiritipá (66,7% e 20,8% para homens e 55,6% e 17,3% para mulheres, respectivamente), constatamos uma similaridade, ressalvando uma menor diferença na prevalência de excesso de peso em mulheres no trabalho de Welch et al.1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26. Comparativamente aos resultados de obesidade encontrados no estudo com os Xavante de Sangradouro-Volta Grande e Pimentel Barbosa (24,6% nos homens e 41,3% nas mulheres), ambas as prevalências deste estudo se mostraram inferiores2727 Gugelmin SA, Santos RV. Human ecology and nutritional anthropometry of adult Xavánte Indians in Mato Grosso, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):313-322..

Neste cenário, a contínua investigação sobre a saúde de comunidades indígenas específicas, com a análise do perfil antropométrico em momentos distintos, desempenha papel fundamental na verificação da tendência secular das prevalências de desvios nutricionais. Além disso, tal abordagem permite a observação de associações entre o estado nutricional e as mudanças socioeconômicas que essas populações têm experimentado, como a monetarização da economia indígena e a redução da frequência de atividade física88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,99 Lourenco AEP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra CEAJ. Nutrition transition in Amazonia: obesity and socioeconomic change in the Surui Indians from Brazil. Am J Hum Biol 2008; 20(5):564-571.,2727 Gugelmin SA, Santos RV. Human ecology and nutritional anthropometry of adult Xavánte Indians in Mato Grosso, Brazil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):313-322.,4040 Sampei MA, Canó EN, Fagundes U, Lima EES, Rodrigues D, Sigulem DM, Baruzzi RG. Anthropometric assessment of Kamayurá adolescents in the Upper Xingu, Central Brazil (2000-2001). Cad Saude Publica 2007; 23(6):1443-1453..

No contexto dos Xavante, a expansão das frentes demográficas e econômicas historicamente impactou os territórios, resultando em expropriação de terras, degradação ambiental e introdução de novas relações econômicas88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,2828 Neel JV, Salzano FM, Junqueira PC, Keiter F, Maybury-Lewis D. Studies on the Xavante Indians of the Brazilian Mato Grosso. Am J Hum Genet 1964; 16(1):52-140.. A economia tradicional, baseada na agricultura de subsistência, caça, pesca e coleta, foi substituída por práticas econômicas externas, comprometendo sua autonomia e sustentabilidade alimentar e levando à dependência de alimentos industrializados88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002..

Esses alimentos, ricos em carboidratos e gorduras, contribuíram para um aumento da ingestão calórica, enquanto a inatividade física, resultante de fatores como a diminuição de práticas tradicionais que exigiam mais esforço, a mecanização de atividades agrícolas e a adoção de um estilo de vida mais sedentário (aumento do tempo de tela e outras atividades de lazer), reduziu o gasto energético1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.,4141 Lucena JRM, Coimbra CEA, Silva CMFP, Welch JR. Prevalence of physical inactivity and associated socioeconomic indicators in indigenous Xavante communities in Central Brazil. BMC Nutrition 2016; 2(1):37.,4242 Welch JR. Xavante ritual hunting: anthropogenic fire, reciprocity, and collective landscape management in the Brazilian Cerrado. Hum Ecol 2014; 42(1):47-59.. Isso ilustra como os determinantes históricos e socioeconômicos têm moldado padrões alimentares e de atividade física, contribuindo para a crescente prevalência de excesso de peso e obesidade, além de outros problemas de saúde, como diabetes e hipertensão1717 Dal Fabbro AL, Franco LJ, Silva AS, Sartorelli DS, Soares LP, Franco LF, Kuhn PC, Moisés RS, Vieira-Filho JPB. High prevalence of type 2 diabetes mellitus in Xavante Indians from Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2014; 24(1):35-40..

Ao examinarmos a distribuição das prevalências de excesso de peso e obesidade em relação aos indicadores de padrões de consumo alimentar, observamos que as maiores prevalências ocorreram no nível baixo de frequência de consumo de alimentos provenientes da caça, pesca ou coleta e de cultivo e criação. Para esta última categoria, a diferença observada foi estatisticamente significativa apenas para o desfecho de excesso de peso (p < 0,05). Esse padrão sugere que os indígenas que residiam em domicílios com menor prática de modos tradicionais de subsistência apresentaram maior frequência de excesso de peso e obesidade, alinhando-se aos resultados encontrados em populações indígenas de todo o país77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951..

Uma relação comparável com a encontrada Inquérito Nacional diz respeito ao indicador socioeconômico “bens de casa”, com as maiores prevalências de obesidade sendo observadas nos estratos médio e superior. Esses resultados concordam com os achados do INSNPI, em que o índice de bens domésticos e a presença de renda familiar regular exibiram associações positivas com excesso de peso e obesidade em análises univariadas77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951.. Além disso, essa associação reflete similaridades com os resultados identificados entre os Suruí, com o estrato socioeconômico mais elevado aresentando as prevalências mais altas de obesidade99 Lourenco AEP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra CEAJ. Nutrition transition in Amazonia: obesity and socioeconomic change in the Surui Indians from Brazil. Am J Hum Biol 2008; 20(5):564-571..

Ao serem ajustadas em análises multivariadas, as variáveis de sexo, grupos de aldeia, faixa etária, escolaridade e padrão de aquisição de alimentos por meio de cultivo ou criação demonstraram associações significativas com o desfecho de excesso de peso. Por outro lado, no modelo associado à obesidade, apenas as variáveis faixa etária e padrão de aquisição de alimentos por meio de caça, pesca ou coleta permaneceram no modelo final. As associações encontradas em nosso estudo convergem com aquelas verificadas em diferentes populações indígenas no Brasil1515 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697.,3939 Oliveira GF, Oliveira TRR, Ikejiri AT, Galvao TF, Silva MT, Pereira MG. Prevalence of obesity and overweight in an Indigenous population in Central Brazil: a population-based cross-sectional study. Obes Facts 2015; 8(5):302-310.. Por exemplo, ao examinar os Xukuru de Ororubá, observou-se que as prevalências mais elevadas de excesso de peso e obesidade foram associadas ao sexo feminino e às faixas etárias mais avançadas1515 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697..

A associação positiva entre idade e excesso de peso é um achado recorrente na literatura científica e muitas vezes é mais acentuada entre as mulheres. A relação entre elevação da idade e maior predisposição ao excesso de peso pode ser atribuída a mudanças na taxa metabólica basal e a modificações no estilo de vida, incluindo redução na atividade física habitualmente praticada. Pode-se aventar que a associação do excesso de peso com o sexo feminino pode refletir dinâmicas culturais e de gênero que influenciam os padrões de alimentação e atividade física. É plausível considerar que fatores socioculturais, incluindo papéis tradicionais de gênero, possam contribuir para o padrão observado. Além disso, aspectos relacionados às tarefas domésticas e ao cuidado com a família podem afetar o tempo disponível para atividades físicas regulares.

A associação identificada entre a diminuição da frequência de práticas tradicionais de aquisição de alimentos, como cultivo, criação e atividades de caça, pesca ou coleta, e a ocorrência de excesso de peso e obesidade sinaliza a possibilidade de adoção de padrões alimentares dependentes do mercado regional e do consumo de alimentos industrializados. A redução da atividade física também se correlacionou com uma maior dependência de produtos industrializados na dieta dos Xavante88 Coimbra Jr CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavante in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.,1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.. Esses achados apontam para uma potencial modificação nas condições de subsistência e padrões alimentares nessas aldeias1010 Welch JR, Ferreira AA, Santos RV, Gugelmin SA, Werneck G, Coimbra CEA. Nutrition transition, socioeconomic differentiation, and gender among adult Xavante Indians, Brazilian Amazon. Hum Ecol 2009; 37(1):13-26.,1515 Fávaro TR, Santos RV, Cunha GM, Leite IC, Coimbra Jr CEA. Obesidade e excesso de peso em adultos indígenas Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil: magnitude, fatores socioeconômicos e demográficos associados. Cad Saude Publica 2015; 31(8):1685-1697.,1818 Welch JR, Ferreira AA, Tavares FG, Lucena JRM, Gomes de Oliveira MV, Santos RV, Coimbra Jr CEA. The Xavante Longitudinal Health Study in Brazil: objectives, design, and key results. Am J Hum Biol 2019; 32(2):e23339..

Quanto à escolaridade, foi identificada tendência positiva de associação com a ocorrência de excesso de peso. No entanto, essa observação contradiz os resultados de estudos com a população em geral no Brasil, que evidenciam relação inversa entre escolaridade e os desfechos de excesso de peso e obesidade4343 Monteiro CA, Conde WL, Popkin BM. Independent effects of income and education on the risk of obesity in the Brazilian adult population. J Nutr 2001; 131(3):881S-886S.. Os resultados encontrados entre os Xavante também divergem dos encontrados no Inquérito Nacional de Saúde Indígena, em que a escolaridade foi identificada como fator protetor contra excesso de peso e obesidade77 Coimbra Jr CEA, Tavares FG, Ferreira AA, Welch JR, Horta BL, Cardoso AM, Santos RV. Socioeconomic determinants of excess weight and obesity among Indigenous women: findings from the First National Survey of Indigenous People's Health and Nutrition in Brazil. Public Health Nutr 2021; 24(7):1941-1951..

As prevalências crescentes de excesso de peso e obesidade entre os Xavante alertam para as transformações socioculturais, econômicas e ambientais em curso nessas aldeias e suas repercussões sobre a saúde e a segurança alimentar e nutricional dessas populações. A proteção territorial é fundamental para garantir acesso a alimentos tradicionais e saudáveis. A segurança alimentar e nutricional é essencial, exigindo políticas que promovam a autonomia dos povos indígenas na gestão de seus recursos naturais e na preservação de práticas alimentares sustentáveis. Nossos achados destacam a necessidade de políticas de saúde que considerem as necessidades específicas dos povos indígenas, respeitando suas tradições e cosmovisões.

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio e a assistência oferecidos pelos líderes indígenas e membros da comunidade pesquisada, bem como pelos funcionários locais da Fundação Nacional do Índio e da Fundação Nacional de Saúde. Agradecemos a confiança e o apoio de Carlos E.A. Coimbra Jr e James R. Welch, pesquisadores da ENSP/Fiocruz que foram coordenadores da pesquisa que gerou os dados analisados no presente texto (projeto CNPq 475674/2008-1 e 307624/2017-0 e Fiocruz/Inova-ENSP).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    27 Jun 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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