Trabalhadores, vulnerabilidades e futebol: evidências para ações políticas

Workers, vulnerabilities and soccer: evidence for political actions

Trabajadores, vulnerabilidades y fútbol: evidencia para acciones políticas

Juliana Trajano dos Santos Joviana Quintes Avanci Sobre os autores
2022

O livro Campo da vida: alternativas de resistência negra e o Negritude Futebol Clube, de Roberta Pereira da Silva, traz à tona o debate do racismo como estrutura ideológica do futebol brasileiro, mostrando o movimento de resistência negra dentro dos campos de várzea. É pioneiro na área de serviço social e abre espaço para o debate na saúde coletiva, uma vez que aborda a promoção de ações voltadas para a saúde e a importância de desenvolver políticas públicas articuladas com o futebol. Parte da história de vida da autora e sua relação com o futebol, explicita o debate sobre o racismo e o capitalismo, como uma denúncia à desumanização dos corpos negros e às diferentes violências sofridas pelos jovens na trajetória futebolística. A obra traz a problematização do racismo no futebol desde a sua profissionalização, que se deu pela entrada dos negros que eram impedidos de praticar o esporte11 Silva CAF, Votre SJ. Racismo no futebol. Rio de Janeiro: HP Comunicação; 2006.,22 Vieira JJ. As relações étnico raciais e o futebol do Rio de Janeiro: mitos, discriminação e mobilidade social. Rio de Janeiro: Mauad; 2018.. A autora aborda a hegemonia branca no meio futebolístico, a influência do capitalismo no esporte, o futebol como um campo mercadológico e a falsa ascensão social proporcionada.

Antes de tudo, cabe destacar que a Editora Dandara privilegia obras com debate racial, que é a linha condutora do livro de Roberta Pereira da Silva. O livro se apresenta em três capítulos, trazendo dialeticamente autores consagrados no debate do negro no futebol, como Mario Filho e Gilberto Freyre, além de Frantz Fanon, Angela Davis, Silvio Almeida, Clovis Moura e Anibal Quijano, que se apresentam como referências consistentes do debate sociopolítico na reflexão racial. Karl Marx é lembrado com robustez na reflexão do capitalismo na interface com o futebol. O primeiro capítulo, denominado “Da terra à grama sintética e o retorno ao barro: reflexões e resistências no futebol brasileiro” traz diversas críticas ao viés futebolístico/mercadológico/capitalista, explicando de forma gradual as ideias em uma configuração histórico-política do futebol. Como a autora promove o diálogo trabalho x futebol, ela materializa a importância do movimento dos trabalhadores em prol de conquistas para a categoria. Assim, o Sistema Único de Saúde (SUS) é apresentado como exemplo de conquista histórica da classe trabalhadora. Durante tal debate, ela critica o quanto as políticas econômicas vão contra as políticas públicas, de forma a precarizar o trabalho e colaborar para o desmonte dos direitos trabalhistas, em um cenário de promoção do mercado informal, atrelado a uma governabilidade ultraliberal³.

Ainda no capítulo 1 é apresentado o Negritude Futebol Clube (NFC) como símbolo de resistência ao futebol mercadológico. A criação de um time-identidade traz a ideia da luta contra o racismo e a desassistência da população local, sobretudo referente ao trabalho. O livro aborda o tema do trabalho, porém não contextualiza o futebol como um campo trabalhista, tampouco trata os atletas como trabalhadores, deixando tais ideias subentendidas e cabendo ao leitor interpretá-las. O racismo é tratado sob o enfoque da historicidade, das transformações, do estilo recreativo e da crítica por ser inerente ao futebol. Discute também a política de branqueamento, sendo uma das representações de racismo no Brasil, que surgiu como uma forma de “higienização” da população negra brasileira promovida pelas elites da época44 Almeida MM. A redenção de Cam: imagem-despertador e ideologia do branqueamento. REFIR 2024; 7(1):194-207.,55 Garcez GS, Lodi MSL. A tese de branqueamento racial e o racismo estrutural no Brasil. Rev Eletr Leopoldianum 2024; 50(140):69-85.. Pontua que o atleta detentor do corpo negro tem muito da sua desumanidade reafirmada pela torcida, que é geradora de violências na arquibancada77 Gonzales L. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Hollanda HB organizadora. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 42-56..

O capítulo 2, “O avesso do avesso, a várzea como possibilidade democratizante”, fala do campo da várzea como ferramenta de democratização do futebol, devido à sua baixa manutenção e a seu estilo próprio de sociabilidade, configurando um terreno fértil para análises históricas, sendo visto como um espaço negativo pelos burgueses da elite futebolística da época. Esse ponto do texto traz um olhar inédito para a configuração desse espaço como um local de lutas sociais. Outro ponto relevante é o protagonismo feminino dentro do NFC, em um esporte tão hostil para as mulheres, já que no ideário social “futebol é coisa de homem”66 Santos JT. Violências nos esportes: reflexões específicas objetivando uma visão global [dissertação]. Niterói: Universidade Salgado de Oliveira; 2021.. Tal fato influencia na objetificação do corpo feminino no futebol, materializado pela autora com matérias jornalísticas, destacando o fato de serem mulheres brancas, pois características de feminilidade não são atribuídas às mulheres negras77 Gonzales L. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Hollanda HB organizadora. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 42-56.. A questão do desempenho da mulher relacionado ao seu corpo no meio futebolístico já foi problematizada tendo o habitus de Bourdieu como direcionador88 Salvini L, Souza J, Marchi Junior W. A violência simbólica e a dominação masculina no campo esportivo: algumas notas e digressões teóricas. Rev Bras Educ Fisica Esporte 2012; 26(3):401-410..

O capítulo 3 tem o título “Continuidade? A categoria de base e os possíveis impactos sobre a infância” e traz como tema central a categoria de base (faixa etária de 12 a 17 anos). Nessa parte, há apontamentos importantes para embasar o debate do trabalho infantil, o mercado do futebol e as instituições legais que garantem os direitos básicos desse público, que sofre com diversas vulnerabilidades, como mazelas sociais da família, alimentação de má qualidade, abusos sexuais e até homicídio. Estudos já apontam crianças e adolescentes como um grupo muito vulnerável, principalmente aqueles que se encontram em situação de pobreza99 Assis SG, Avanci JQ, Santos NC, Malaquias JV, Oliveira RVC. Violência e representação social na adolescência no Brasil. Revista Panamericana de Salud Publica 2004; 16(1):43-51.,1010 Almeida GB, Ferrari CERA, Mendonça GPS, Osborne R, Santos RF. Tráfico de crianças no futebol brasileiro: o lado obscuro do esporte-rei. Perspect Contemp 2024; 19:e02407.. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aparece no texto como dispositivo ancorado em uma perspectiva eugenista, apesar de ter sido criado em uma tentativa de reduzir preconceitos contra crianças pretas e pobres, assegurando seus direitos1111 Taquette SR, Vilhena MM, Silva MM, Vale MP. Conflitos éticos no atendimento à saúde de adolescentes. Cad Saude Publica 2005; 21(6):1717-1725.,1212 Gonçalves HS, Garcia J. Juventude e sistema de direitos no Brasil. Psicol Cienc Prof 2007; 27(3):538-553..

Apesar de a Lei Pelé legitimar a profissionalização de atletas brasileiros1313 Brasil. Presidência da República. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências (Lei Pelé). Diário Oficial da União 1998; 25 mar., ainda há lacunas quando se refere à categoria de base e à seguridade de direitos1414 Rogel L, Bernardo G, Murad M, Santos RF. Educação física escolar e práticas de violência no futebol: o tráfico de menores e a infiltração do "crime organizado" nas torcidas - prevenção e reeducação. In: Murad M, Santos RF, Silva CAF, organizadores. Escolas, violências e educação física. Rio de Janeiro: Jaguatirica; 2018. p. 173-192.. A autora ainda aponta a incompatibilidade entre o futebol, como profissionalização precoce, e o ECA, além das questões interseccionais que atravessam esses jovens - negros, pobres e filhos da classe trabalhadora. Nesse ponto, poderiam ter sido tecidas diferentes críticas à Lei Pelé, um dos poucos dispositivos legais que amparam o atleta, porém tão ineficiente.

A autora deixa de discutir o conceito de mercado dentro do futebol sob o viés do capitalismo, por exemplo: baixos salários, poucos investimentos nos postos de trabalho e a ideia da meritocracia1515 Wallerstein I. As tensões ideológicas do capitalismo: universalismo versus racismo e sexismo. In: Wallerstein I, Balibar E, organizadores. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo; 2021. p. 65-74.. Apesar de determinadas vulnerabilidades serem apontadas no decorrer do livro e suas correlações diretas com violências, essa linha de debate não foi explorada, a exemplo da atuação das torcidas. Além disso, pouquíssimos atletas ganham salários milionários e tal problematização poderia ter sido mais explícita no texto, trazendo o enfoque da grande mídia e da responsabilização da família. Por fim, apesar da existência das políticas públicas voltadas para a saúde dos negros e dos trabalhadores, poucas são aplicadas ao futebol, por não o considerar como trabalho. Elencando o futebol de alto rendimento como um posto de trabalho, que por vezes é precarizado1616 Rodrigues AFA, Barbosa LNF, Gomes PCS, Nóbrega FAF. Evaluation of anxiety and depression symptoms among u-20 soccer athletes in Recife-PE: a cross-sectional study. Rev Bras Med Esporte 2022; 29:e2021_0385. e sofre com vulnerabilidades diversas, há a necessidade de estudar a relação entre saúde-doença e futebol/trabalho, de forma a desenvolver ações interdisciplinares voltadas para este grupo.

Referências

  • 1
    Silva CAF, Votre SJ. Racismo no futebol. Rio de Janeiro: HP Comunicação; 2006.
  • 2
    Vieira JJ. As relações étnico raciais e o futebol do Rio de Janeiro: mitos, discriminação e mobilidade social. Rio de Janeiro: Mauad; 2018.
  • 3
    Lanzara AP. O desmonte das políticas de emprego no Brasil: a empregabilidade sem direitos. In: Fleury S, organizadora. Cidadania em perigo - o desmonte da políticas sociais e desdemocratização no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Livres/Cebes; 2024. p. 124-149.
  • 4
    Almeida MM. A redenção de Cam: imagem-despertador e ideologia do branqueamento. REFIR 2024; 7(1):194-207.
  • 5
    Garcez GS, Lodi MSL. A tese de branqueamento racial e o racismo estrutural no Brasil. Rev Eletr Leopoldianum 2024; 50(140):69-85.
  • 6
    Santos JT. Violências nos esportes: reflexões específicas objetivando uma visão global [dissertação]. Niterói: Universidade Salgado de Oliveira; 2021.
  • 7
    Gonzales L. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Hollanda HB organizadora. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 42-56.
  • 8
    Salvini L, Souza J, Marchi Junior W. A violência simbólica e a dominação masculina no campo esportivo: algumas notas e digressões teóricas. Rev Bras Educ Fisica Esporte 2012; 26(3):401-410.
  • 9
    Assis SG, Avanci JQ, Santos NC, Malaquias JV, Oliveira RVC. Violência e representação social na adolescência no Brasil. Revista Panamericana de Salud Publica 2004; 16(1):43-51.
  • 10
    Almeida GB, Ferrari CERA, Mendonça GPS, Osborne R, Santos RF. Tráfico de crianças no futebol brasileiro: o lado obscuro do esporte-rei. Perspect Contemp 2024; 19:e02407.
  • 11
    Taquette SR, Vilhena MM, Silva MM, Vale MP. Conflitos éticos no atendimento à saúde de adolescentes. Cad Saude Publica 2005; 21(6):1717-1725.
  • 12
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  • 13
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  • 14
    Rogel L, Bernardo G, Murad M, Santos RF. Educação física escolar e práticas de violência no futebol: o tráfico de menores e a infiltração do "crime organizado" nas torcidas - prevenção e reeducação. In: Murad M, Santos RF, Silva CAF, organizadores. Escolas, violências e educação física. Rio de Janeiro: Jaguatirica; 2018. p. 173-192.
  • 15
    Wallerstein I. As tensões ideológicas do capitalismo: universalismo versus racismo e sexismo. In: Wallerstein I, Balibar E, organizadores. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo; 2021. p. 65-74.
  • 16
    Rodrigues AFA, Barbosa LNF, Gomes PCS, Nóbrega FAF. Evaluation of anxiety and depression symptoms among u-20 soccer athletes in Recife-PE: a cross-sectional study. Rev Bras Med Esporte 2022; 29:e2021_0385.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2024
  • Aceito
    08 Ago 2024
  • Publicado
    10 Ago 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br