Perfis sociodemográficos de domicílios indígenas nos censos 1991, 2000 e 2010

Leandro Okamoto da Silva Cleber Nascimento do Carmo Ricardo Ventura Santos Sobre os autores

Resumo

O artigo analisa a composição sociodemográfica dos indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010, além de investigar desigualdades no acesso a saneamento básico e energia elétrica com base no Censo de 2010. É proposta uma metodologia que classifica domicílios com indígenas em homogêneos, mistos com responsável indígena e mistos com responsável não indígena. Verificou-se desigualdade significativa no acesso a infraestruturas e serviços, com piores condições em domicílios homogêneos e com responsável indígena. As diferenças regionais e por situação se sobrepuseram às diferenças por tipo de domicílio e localização, com melhores condições em áreas urbanas do que em rurais, e nas regiões Sudeste e Sul, sendo o Norte a região com menor acesso em geral. Diferenças regionais e entre áreas urbana/rural foram observadas, destacando-se melhores condições urbanas e nas regiões Sudeste e Sul. Essas desigualdades refletem políticas públicas fragmentadas, pressões econômicas e processos de desterritorialização, entre outros fatores. O desenvolvimento de novas técnicas e o debate crítico são essenciais para compreender e abordar as desigualdades raciais no país e promover políticas públicas adequadas aos povos indígenas.

Palavras-chave:
Povos indígenas; Censo demográfico; Análise demográfica; Política pública

Introdução

Os censos demográficos conduzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são reconhecidos como fontes de dados fundamentais sobre as características sociodemográficas da população indígena no Brasil, tanto pela cobertura como pela possibilidade de investigação de um amplo leque de temas11 Campos MB, Estanislau BR. Demografia dos povos indígenas: os censos demográficos como ponto de vista. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(2):441-449.

2 Silva LO. Domicílios com indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 no Brasil: composição e análises de inter-relações entre composição segundo cor ou raça e condições socioeconômicas e sanitárias [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021.

3 Silva LO, Antunes MO, Damasco F. Povos indígenas nas estatísticas oficiais: identificação étnica, recomendações internacionais e a experiência brasileira [Internet]. 2018. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: https://api.saudeindigena.icict.fiocruz.br/api/core/bitstreams/1382140a-839b-47b5-a364-cb2764eba37f/content
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4 Raupp L, Fávaro TR, Cunha GM, Santos RV. Condições de saneamento e desigualdades de cor/raça no Brasil urbano: uma análise com foco na população indígena com base no Censo Demográfico de 2010. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(1):1-15.

5 Santos RV, Guimarães BN, Simoni ATS, LO Silva, Antunes MO, Damasco FS, Colman RS, Azevedo MMA. The identification of the Indigenous population in Brazil's official statistics, with an emphasis on demographic censuses. Statistical J IAOS 2023; 35(1)29-46.
-66 Santos RV, Guimarães BN, Simoni AT. Cor ou raça: indígena? Contextos e recepções da inclusão de uma categoria no Censo Demográfico 1991. Rev Fr-Bras Geogr 2023; 59. DOI: 10.4000/confins.51565
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. Trata-se de um “mosaico de microssociedades com populações de pequeno ou médio porte, com dinâmicas demográficas distintas, revelando não só autonomias culturais como também estados epidemiológicos ou de qualidade de vida muito diferentes”77 Azevedo MM. Os povos indígenas e os censos demográficos no Brasil. In: Berquó E, organizadore. Demografia na Unicamp: um olhar sobre a produção do Nepo. Campinas: Unicamp; 2017. p. 551-564.. Ainda que os censos não sejam capazes de retratar as especificidades de cada povo, sua importância para fins de políticas públicas é inegável66 Santos RV, Guimarães BN, Simoni AT. Cor ou raça: indígena? Contextos e recepções da inclusão de uma categoria no Censo Demográfico 1991. Rev Fr-Bras Geogr 2023; 59. DOI: 10.4000/confins.51565
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7 Azevedo MM. Os povos indígenas e os censos demográficos no Brasil. In: Berquó E, organizadore. Demografia na Unicamp: um olhar sobre a produção do Nepo. Campinas: Unicamp; 2017. p. 551-564.

8 Anderson I, Robson B, Connolly M, Al-Yaman F, Bjertness E, King A, Tynan M, Madden R, Bang A, Coimbra CE Jr, Pesantes MA, Amigo H, Andronov S, Armien B, Obando DA, Axelsson P, Bhatti ZS, Bhutta ZA, Bjerregaard P, Bjertness MB, Briceno-Leon R, Broderstad AR, Bustos P, Chongsuvivatwong V, Chu J, Deji, Gouda J, Harikumar R, Htay TT, Htet AS, Izugbara C, Kamaka M, King M, Kodavanti MR, Lara M, Laxmaiah A, Lema C, Taborda AM, Liabsuetrakul T, Lobanov A, Melhus M, Meshram I, Miranda JJ, Mu TT, Nagalla B, Nimmathota A, Popov AI, Poveda AM, Ram F, Reich H, Santos RV, Sein AA, Shekhar C, Sherpa LY, Skold P, Tano S, Tanywe A, Ugwu C, Ugwu F, Vapattanawong P, Wan X, Welch JR, Yang G, Yang Z, Yap L. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet 2016; 388(10040):131-157.
-99 Pagliaro H, Azevedo MM, Santos RV. Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.. Os contingentes populacionais enumerados pelos recenseamentos nacionais são comumente utilizados no cálculo (em geral como denominadores) de inúmeros indicadores de saúde1010 Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Araújo TM, Dias AB, Oliveira LOA. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface (Botucatu) 2009; 13(31):383-394.

11 Campos MB, Borges GM, Queiroz BL, Santos RV. Diferenciais de mortalidade entre indígenas e não indígenas no Brasil com base no Censo Demográfico de 2010. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00015017.
-1212 Coimbra EA. Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena. Cad Saude Publica 2014; 30(4):855-859..

Desde a mudança do quesito cor para cor ou raça no Censo 1991, quando ocorreu a introdução da categoria “indígena”, iniciou-se uma série histórica que tem servido de referência para diversos estudos sobre a demografia dos povos indígenas e de análises sobre padrões de desigualdades com foco nesse segmento da sociedade brasileira22 Silva LO. Domicílios com indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 no Brasil: composição e análises de inter-relações entre composição segundo cor ou raça e condições socioeconômicas e sanitárias [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021.,33 Silva LO, Antunes MO, Damasco F. Povos indígenas nas estatísticas oficiais: identificação étnica, recomendações internacionais e a experiência brasileira [Internet]. 2018. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: https://api.saudeindigena.icict.fiocruz.br/api/core/bitstreams/1382140a-839b-47b5-a364-cb2764eba37f/content
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,55 Santos RV, Guimarães BN, Simoni ATS, LO Silva, Antunes MO, Damasco FS, Colman RS, Azevedo MMA. The identification of the Indigenous population in Brazil's official statistics, with an emphasis on demographic censuses. Statistical J IAOS 2023; 35(1)29-46.,99 Pagliaro H, Azevedo MM, Santos RV. Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.,1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Tábua completa de mortalidade para o Brasil - 2015: breve análise da evolução da mortalidade no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2015.,1414 Wong LLR. Tendências da fecundidade dos povos indígenas nos Censos Demográficos brasileiros de 1991 a 2010. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(2):399-421.. O quesito cor, aplicado entre os censos 1940 e 1980, exceto por 1970, oferecia as opções “branca”, “preta”, “amarela” e “parda”, e os indígenas eram classificadas como “pardos” pelo IBGE22 Silva LO. Domicílios com indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 no Brasil: composição e análises de inter-relações entre composição segundo cor ou raça e condições socioeconômicas e sanitárias [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021.. A língua falada (inclusive a indígena) foi investigada em 1950 e 1960. As outras duas ocasiões em que a população indígena foi recenseada ocorreram em 1872 e 18901515 Petruccelli JL, Sabóia AL. Características étnicos-raciais da população: classificações e identidades. v. 2. Rio de Janeiro: IBGE; 2013.,1616 Dias Júnior CS, Verona AP. Os indígenas nos Censos demográficos brasileiros pré-1991. Rev Bras Estud Popul 2018; 35(3):e0058.. A coleta de informações sobre língua indígena falada no domicílio e de pertencimento étnico específico (ou seja, etnias indígenas) foram introduzidas no Censo 2010.

O IBGE coletou dados sobre a população indígena nos últimos quatro censos demográficos realizados no país, em 1991, 2000, 2010 e, mais recentemente, em 2022. Esse segmento populacional encontra-se distribuído por todas as unidades da federação e na maioria dos municípios brasileiros, com padrões de distribuição espacial distintos da população brasileira em geral. Segundo o Censo 2022, dos 5.568 municípios existentes no país, 4.832 (87,8%) apresentaram ao menos uma declaração indígena1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indígenas: primeiros resultados do universo [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 7]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html
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. A sociodiversidade desses povos foi evidenciada a partir dos resultados do Censo 2010: 305 etnias e 275 línguas indígenas faladas no país1818 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010: características gerais dos indígenas (resultados do universo). Rio de Janeiro: IBGE; 2012.. A captação de indígenas apresentou um crescimento progressivo ao longo dos censos, com diferenciais significativos entre os censos 1991 e 2000, de 294.131 para 734.128 indivíduos; e, entre os censos 2010 e 2022, de 896.917 para 1.693.535 indígenas declarados. O Censo 2000, por sua vez, destacou a presença de pessoas indígenas em contexto urbano, identificando um quantitativo 5,4 vezes maior nessas áreas e, em áreas rurais, 1,5 vez maior que no Censo 1991. Nos censos 1991 e 2010, a maior parte da população considerada residia em áreas rurais.

Oliveira destaca, no que diz respeito às possíveis razões para o aumento da população indígena nas estatísticas oficiais a partir da década de 1990, as inter-relações entre a temática indígena e a pauta ambiental; as diretrizes internacionais relativas à participação da sociedade civil no planejamento e nas decisões sobre políticas públicas; a intensificação da agenda internacional para a discussão e o estabelecimento de acordos e convenções relativas aos direitos dos povos indígenas; e a crescente valorização de identidades e patrimônios culturais dessas populações, tanto por parte do governo brasileiro como pelas tendências percebidas no mundo globalizado1919 Oliveira JP. Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas. Dados 2012; 55(4):1055-1088.. Outros fatores que de algum modo dialogam com as razões apresentadas por Oliveira incluem a adoção do quesito cor ou raça em outros sistemas de informações e em estudos sobre desigualdade, a “volatilidade” de classificação no quesito de cor ou raça e também as inovações metodológicas para a investigação dos povos indígenas nos censos demográficos, entre outros fatores66 Santos RV, Guimarães BN, Simoni AT. Cor ou raça: indígena? Contextos e recepções da inclusão de uma categoria no Censo Demográfico 1991. Rev Fr-Bras Geogr 2023; 59. DOI: 10.4000/confins.51565
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7 Azevedo MM. Os povos indígenas e os censos demográficos no Brasil. In: Berquó E, organizadore. Demografia na Unicamp: um olhar sobre a produção do Nepo. Campinas: Unicamp; 2017. p. 551-564.

8 Anderson I, Robson B, Connolly M, Al-Yaman F, Bjertness E, King A, Tynan M, Madden R, Bang A, Coimbra CE Jr, Pesantes MA, Amigo H, Andronov S, Armien B, Obando DA, Axelsson P, Bhatti ZS, Bhutta ZA, Bjerregaard P, Bjertness MB, Briceno-Leon R, Broderstad AR, Bustos P, Chongsuvivatwong V, Chu J, Deji, Gouda J, Harikumar R, Htay TT, Htet AS, Izugbara C, Kamaka M, King M, Kodavanti MR, Lara M, Laxmaiah A, Lema C, Taborda AM, Liabsuetrakul T, Lobanov A, Melhus M, Meshram I, Miranda JJ, Mu TT, Nagalla B, Nimmathota A, Popov AI, Poveda AM, Ram F, Reich H, Santos RV, Sein AA, Shekhar C, Sherpa LY, Skold P, Tano S, Tanywe A, Ugwu C, Ugwu F, Vapattanawong P, Wan X, Welch JR, Yang G, Yang Z, Yap L. Indigenous and tribal peoples' health (The Lancet-Lowitja Institute Global Collaboration): a population study. Lancet 2016; 388(10040):131-157.

9 Pagliaro H, Azevedo MM, Santos RV. Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005.

10 Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Araújo TM, Dias AB, Oliveira LOA. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface (Botucatu) 2009; 13(31):383-394.

11 Campos MB, Borges GM, Queiroz BL, Santos RV. Diferenciais de mortalidade entre indígenas e não indígenas no Brasil com base no Censo Demográfico de 2010. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00015017.

12 Coimbra EA. Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena. Cad Saude Publica 2014; 30(4):855-859.

13 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Tábua completa de mortalidade para o Brasil - 2015: breve análise da evolução da mortalidade no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2015.

14 Wong LLR. Tendências da fecundidade dos povos indígenas nos Censos Demográficos brasileiros de 1991 a 2010. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(2):399-421.

15 Petruccelli JL, Sabóia AL. Características étnicos-raciais da população: classificações e identidades. v. 2. Rio de Janeiro: IBGE; 2013.

16 Dias Júnior CS, Verona AP. Os indígenas nos Censos demográficos brasileiros pré-1991. Rev Bras Estud Popul 2018; 35(3):e0058.

17 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indígenas: primeiros resultados do universo [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 7]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html
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18 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010: características gerais dos indígenas (resultados do universo). Rio de Janeiro: IBGE; 2012.

19 Oliveira JP. Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas. Dados 2012; 55(4):1055-1088.
-2020 Muniz JO, Bastos JL. Volatilidade classificatória e a (in)consistência da desigualdade racial. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1):e00082816..

O objetivo deste artigo é analisar a composição por cor ou raça em domicílios com declaração indígena, por meio de uma tipologia de domicílios, e dimensionar a desigualdade existente entre os tipos propostos no acesso a serviços básicos, visando investigar diferenciais entre os subgrupos populacionais observados. A análise sociodemográfica dos indígenas declarados utiliza dados da amostra dos censos 1991, 2000 e 2010, com o intuito de caracterizar em termos sociodemográficos e identificar padrões e diferenciais significativos entre os tipos de domicílios. A análise do acesso a serviços segundo o tipo de residência, por sua vez, recorre aos dados do universo do Censo 2010, pois permitem uma maior desagregação espacial na estimação dos valores, enfatizando desigualdades não observáveis nos dados da amostra, como entre indígenas dentro e fora de terras indígenas, por exemplo. A utilização dos dados do universo também possibilitou a utilização de pergunta de cobertura para a identificação indígena, o que aumentou o total de indivíduos considerados em 8,8%.

Trata-se de uma abordagem inédita nas pesquisas com dados censitários por abarcar três censos nacionais recentes e por se empregar uma nova tipologia de domicílios segundo composição pelos diferentes arranjos por cor ou raça dos moradores, extrapolando as categorias indígenas e não indígenas44 Raupp L, Fávaro TR, Cunha GM, Santos RV. Condições de saneamento e desigualdades de cor/raça no Brasil urbano: uma análise com foco na população indígena com base no Censo Demográfico de 2010. Rev Bras Epidemiol 2017; 20(1):1-15.,1111 Campos MB, Borges GM, Queiroz BL, Santos RV. Diferenciais de mortalidade entre indígenas e não indígenas no Brasil com base no Censo Demográfico de 2010. Cad Saude Publica 2017; 33(5):e00015017.. O estudo tem, nesse sentido, uma dimensão de proposição metodológica ao indicar uma tipologia para domicílios com presença indígena para a análise de desigualdades por cor ou raça, lembrando que outros autores também fizeram uso de arranjos por cor ou raça para a análise de dados censitários direcionado às populações indígenas2121 Marinho GL, Caldas ADR, Santos RV. Indígenas residentes em domicílios "improvisados" segundo o Censo Demográfico 2010. Physis 2017; 27(1):79-102.

22 Marinho GL, Bastos JL, Longo LAFDB, Tavares FG. Classificação de cor/raça de filhos em domicílios indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 3):e00006119.
-2323 Marinho GL, Santos RV, Simoni AT. "Você se considera indígena?": características da população residente em terras indígenas investigadas pelo Censo Demográfico de 2010. In: Santos RV, Guimarães BN, Campos MB, Azevedo MMA, organizadores. Entre demografia e antropologia: povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019. p. 179-200. .

Métodos

A dimensão domicílio é central na construção e análise de indicadores na área da saúde, como é o caso de infraestrutura de saneamento e de outros serviços públicos. Os domicílios podem ser classificados, segundo a metodologia do IBGE, em particulares (permanentes ou improvisados) ou coletivos. Os domicílios particulares permanentes são aqueles que servem exclusivamente de moradia; já os improvisados são localizados em edificação sem dependência destinada exclusivamente à moradia, como lojas, fábricas e outros. Em ambos as relações são regidas por “laços de parentesco”, “laços de dependência doméstica” ou por “normas de convivência”, segundo as terminologias do IBGE2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios - resultados do universo [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=793
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. Os domicílios coletivos são representados por hotéis, motéis, campings, pensões, penitenciárias, presídios, casas de detenção, entre outros. Nesses locais, as relações se dão com base em “normas de subordinação administrativa”2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios - resultados do universo [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=793
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. Nesse estudo foram considerados apenas indivíduos residentes em domicílios particulares permanentes e improvisados.

Considerando as variações observadas nos três censos quanto à população indígena, tanto no que diz respeito ao volume quanto à distribuição urbano-rural, entre outras dimensões, a presente pesquisa compara, num primeiro momento, composição étnico-racial, estrutura por sexo e idade, relação entre os moradores, quantidade de moradores e distribuição espacial de indígenas declarados segundo a tipologia de domicílios proposta, visando evidenciar padrões e diferenciais significativos entre os subgrupos populacionais observados. Para essa análise, utilizamos os microdados da amostra dos censos de 1991, 2000 e 2010, uma vez que aqueles referentes a 2022 ainda não se encontram disponíveis para fins de pesquisas.

Em um segundo momento, procedemos à classificação dos dados do universo do Censo 2010 utilizando os mesmos critérios adotados para os dados da amostra e adicionando as variáveis “se considera” indígena (sim ou não) e localização em relação às terras indígenas (dentro ou fora), não disponíveis nos dados da amostra, e aquelas relacionadas à presença de infraestruturas de saneamento básico e eletricidade. Para a caracterização e análise do acesso a serviços, foram considerados apenas os domicílios permanentes, pois para os improvisados essas informações não são coletadas pelo IBGE. A partir dessa base, fizemos a caracterização e dimensionamento do acesso aos serviços e condições observadas das pessoas indígenas declaradas no Censo 2010 por meio do uso de modelagem estatística multivariada.

A escolha por apenas um período para a análise das condições de saneamento e eletricidade (2010) se deu pelas possibilidades analíticas potenciais decorrentes da desagregação e pelo acréscimo de população a partir da pergunta “se considera”. Cabe indicar que, nos censos anteriores, o quesito cor ou raça pertencia ao questionário da amostra e as variáveis “se considera” indígena e localização em relação às terras indígenas não faziam parte dos recenseamentos.

Variáveis de trabalho e tipologia de domicílios com indígenas

As variáveis consideradas neste estudo foram sexo, idade, condição no domicílio, cor ou raça, total de moradores no domicílio, e acesso a energia elétrica, água, coleta de lixo, além da existência de banheiro no domicílio. As dimensões espaciais analisadas foram Brasil, grandes regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul ou Centro-Oeste), situação (urbana ou rural) e localização (dentro ou fora de terra indígena).

A cor ou raça é aquela declarada pelo informante ao recenseador2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: manual do recenseador [Internet]. 2010. [acessado 2023 ago 22]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?id=52601&view=detalhes
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para a pergunta “qual sua cor ou raça?”, cujas possibilidades de resposta são “branca”, “preta”, “amarela”, “parda” e “indígena”. A pergunta “você se considera indígena?” foi acionada, no Censo 2010, apenas dentro de terras indígenas, quando outra opção de cor ou raça era fornecida2525 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: manual do recenseador [Internet]. 2010. [acessado 2023 ago 22]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?id=52601&view=detalhes
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A condição no domicílio caracteriza a “relação existente entre a pessoa responsável pela unidade do miciliar [...] e cada um dos demais moradores”1818 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010: características gerais dos indígenas (resultados do universo). Rio de Janeiro: IBGE; 2012., na qual a pessoal responsável pelo domicílio é aquela com “10 anos ou mais de idade, reconhecida pelos moradores como responsável pela unidade domiciliar”2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios - resultados do universo [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=793
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. Essa variável também foi usada para a caracterização das relações de parentesco e/ou de convivência existentes entre os moradores na análise da composição domiciliar dos tipos criados.

As variáveis relativas aos serviços focam a forma de acesso a energia elétrica e água no domicílio, assim como a destinação do esgotamento sanitário e do lixo residencial, além da quantidade de banheiros na moradia.

Para a classificação dos indivíduos, procedemos ao pareamento dos bancos de pessoas e domicílios dos microdados, de modo a “reconstituir” os domicílios e moradores recenseados. Foram considerados apenas os domicílios com ao menos uma declaração indígena. Em seguida, cada pessoa indígena declarada foi classificada como moradora de um dos seguintes tipos de domicílios: (a) homogêneo, aqueles nos quais todos os moradores foram declarados indígenas; (b) misto com responsável indígena, aqueles com moradores com declaração indígena e também de outras opções de cor ou raça, sendo que o responsável pelo domicílio foi declarado indígena; e (c) mistos com responsável não indígena, aqueles com moradores com declaração indígena e também de outras opções de cor ou raça, sendo que o responsável pelo domicílio não foi declarado indígena. O quesito “se considera” indígena também foi utilizado na classificação dos dados do universo de 2010 para fins da identificação de pessoas indígenas.

Expansão da amostra

A variável área de ponderação, usualmente recomendada como estrato para a expansão dos dados, não foi disponibilizada nos microdados do Censo 1991. Por essa razão, adotou-se, como estrato do Censo 1991, a variável município. Para os censos 2000 e 2010, a área de ponderação foi utilizada como estrato para a expansão da amostra2626 Dias AJR, Albieri S. As implicações do uso de calibração no procedimento de expansão da amostra do Censo Demográfico 2000. In: Anais do XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP; 2004.. Os resultados relativos a 1991 apresentaram maior variabilidade do que aqueles de 2000 e 2010, como esperado. As desagregações por unidades da federação apresentaram elevada variabilidade, e por isso limitamos as agregações para Brasil e grandes regiões. As frequências e os respectivos intervalos de todas as variáveis apresentadas nesse artigo podem ser consultados na tese de doutorado que o originou22 Silva LO. Domicílios com indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 no Brasil: composição e análises de inter-relações entre composição segundo cor ou raça e condições socioeconômicas e sanitárias [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021..

Ranking de acesso a serviços e infraestrutura de saneamento básico e energia elétrica

Empregou-se a análise de componentes principais (principal component analysis - PCA) para a seleção e redução de variáveis, e a construção de um indicador-síntese para o dimensionamento do acesso a serviços e infraestruturas por indígenas, recurso comumente utilizado em estudos sobre desigualdade que envolvem um grande número de variáveis2727 Caldas ADR, Nobre AA, Brickley E, Alexander N, Werneck GL, Farias YN, Garcia Barreto Ferrão CT, Tavares FG, Pantoja LN, Duarte MCDL, Cardoso AM. How, what, and why: housing, water & sanitation and wealth patterns in a cross-sectional study of the Guarani Birth Cohort, the first Indigenous birth cohort in Brazil. Lancet Reg Health Am 2023; 21:100496.

28 Hongyu K, Sandanielo VLM, Junior GJ de O. Análise de componentes principais: resumo teórico, aplicação e interpretação. ES Eng Sci 2016; 5(1):83-90.
-2929 Szwarcwald CL, Leal MC, Castilho EA, Andrade CLT. Mortalidade infantil no Brasil: Belíndia ou Bulgária? Cad Saude Publica 1997; 13(3):503-516..

A PCA auxiliou no processo de seleção, adaptação e redução de variáveis desta pesquisa. As variáveis observadas inicialmente foram o total de moradores, a quantidade de banheiros existentes, as fontes de energia elétrica e de acesso a água utilizadas e o destino do esgotamento sanitário e do lixo dos domicílios. Para cada variável foi atribuída a classificação “sim” quando o indivíduo declarado era morador de domicílio com as seguintes características: (a) com até três moradores; (b) com acesso a eletricidade fornecida por companhia distribuidora de energia; (c) cujo destino do esgotamento sanitário é a rede geral de esgoto (ou pluvial) ou fossa séptica; (d) com ao menos um banheiro; e (e) cuja água consumida é proveniente da rede geral de distribuição. Aos casos que não atendiam a essas condições foi atribuída a classificação “não”. Os casos “sim” para cada variável foram totalizados para aplicação do método, assim, as variáveis do modelo foram: percentual de pessoas (indígenas e não indígenas) em domicílios com até três moradores; percentual de indígenas com acesso a eletricidade por companhia distribuidora de energia; percentual de indígenas que residem em domicílios cujo destino do esgotamento sanitário é a rede geral ou a fossa séptica percentual de indígenas; percentual de indígenas cujo fornecimento de água domiciliar se dá por rede de abastecimento; percentual de indígenas com lixo coletado por serviço especializado; e percentual de indígenas que vivem em domicílios com ao menos um banheiro.

O poder explicativo encontrado para a primeira componente principal da PCA, isto é, quanto o modelo foi capaz de explicar sobre a variância total dos dados, foi de 83,1% e está em consonância com outros estudos que também utilizaram esse instrumento para construção de indicadores de desigualdade2727 Caldas ADR, Nobre AA, Brickley E, Alexander N, Werneck GL, Farias YN, Garcia Barreto Ferrão CT, Tavares FG, Pantoja LN, Duarte MCDL, Cardoso AM. How, what, and why: housing, water & sanitation and wealth patterns in a cross-sectional study of the Guarani Birth Cohort, the first Indigenous birth cohort in Brazil. Lancet Reg Health Am 2023; 21:100496.

28 Hongyu K, Sandanielo VLM, Junior GJ de O. Análise de componentes principais: resumo teórico, aplicação e interpretação. ES Eng Sci 2016; 5(1):83-90.
-2929 Szwarcwald CL, Leal MC, Castilho EA, Andrade CLT. Mortalidade infantil no Brasil: Belíndia ou Bulgária? Cad Saude Publica 1997; 13(3):503-516.. Foram gerados 60 valores (referentes a 3 x 5 x 2 x 2 estratos), dados pela combinação do tipo de domicílio (três estratos: homogêneos, misto com responsável indígena ou misto com responsável não indígena), grande região (cinco estratos: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul ou Centro-Oeste), situação (dois estratos: urbana ou rural) e localização (dois estratos: dentro ou fora de terra indígena). Os valores de cada subgrupo foram dispostos em ordem decrescente, em que maiores escores expressam níveis mais satisfatórios de acesso. A importância da utilização desse recurso de modelagem de dados está mais na possibilidade de dimensionar a desigualdade existente entre diferentes grupos populacionais, ou seja, de sua perspectiva relacional, do que nos valores obtidos propriamente2727 Caldas ADR, Nobre AA, Brickley E, Alexander N, Werneck GL, Farias YN, Garcia Barreto Ferrão CT, Tavares FG, Pantoja LN, Duarte MCDL, Cardoso AM. How, what, and why: housing, water & sanitation and wealth patterns in a cross-sectional study of the Guarani Birth Cohort, the first Indigenous birth cohort in Brazil. Lancet Reg Health Am 2023; 21:100496.

28 Hongyu K, Sandanielo VLM, Junior GJ de O. Análise de componentes principais: resumo teórico, aplicação e interpretação. ES Eng Sci 2016; 5(1):83-90.
-2929 Szwarcwald CL, Leal MC, Castilho EA, Andrade CLT. Mortalidade infantil no Brasil: Belíndia ou Bulgária? Cad Saude Publica 1997; 13(3):503-516..

Para o processamento dos microdados, utilizamos o pacote estatístico SAS Enterprise Guide 8.1, e para as análises estatísticas multivariadas, a biblioteca FactoMiner, em ambiente R Studio (versão 3.6.3). A autorização de acesso aos microdados do universo foi obtida junto ao IBGE, respeitando-se todas as limitações impostas pelo instituto para a preservação do sigilo estatístico dos respondentes3030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Confidencialidade no IBGE: procedimentos adotados na preservação do sigilo das informações individuais nas divulgações de resultados das operações estatísticas. Rio de Janeiro: IBGE; 2018.. Os microdados da amostra dos censos demográficos são de acesso público e podem ser consultadas no sítio eletrônico do IBGE.

Resultados

Os totais de pessoas que se declararam indígenas a responder sobre cor ou raça nos censos 1991, 2000 e 2010, em domicílios particulares permanentes e improvisados, foram de 288.101, 718.310 e 818.632 indivíduos, respectivamente, englobando 98% do total de indígenas enumerados nos censos 1991 e 2000, e 91% do total observado no Censo 2010.

Esses quantitativos foram mais expressivos em áreas rurais nos censos 1991 e 2010, correspondendo a 76% e 61%, respectivamente, do total de declarações indígenas. No Censo 2000, mais da metade (53%) da população indígena encontrava-se em contexto urbano (Tabela 1).

Tabela 1
Total de declarações indígenas (N) e intervalo de confiança (IC) nos censos demográficos 1991, 2000 e 2010, segundo situação por tipo de domicílio com indígenas. Brasil e grandes regiões.

A agregação por tipo de domicílio indicou padrões distintos para os totais de indígenas em domicílios homogêneos e mistos. O total de declarações indígenas em domicílios homogêneos foi crescente, à mesma razão de 1,7, nos períodos 1991/2000 e 2000/2010. Em relação aos indígenas em domicílios mistos com responsável indígena e não indígena, houve aumento considerável no período 1991/2000, seguido de diminuição no período seguinte (2000/2010), em níveis menos pronunciados.

O principal diferencial observado entre os censos 2000 e 2010 ocorreu no contexto urbano, inclusive em termos absolutos, com redução na captação de indígenas de 380.877 para 320.334 pessoas.

As maiores concentrações de indígenas foram encontradas nos seguintes recortes: em domicílios de áreas rurais em que todos os moradores foram declarados indígenas (homogêneos), principalmente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste; em domicílios mistos de áreas urbanas do Sudeste e Nordeste; e em domicílios homogêneos localizados em áreas urbanas da região Norte. Os quantitativos de indígenas que viviam em domicílios mistos com responsável indígena e não indígena se mostraram pouco pronunciados em contexto rural em todas as regiões e com frequências relativas similares.

Perfis sociodemográficos em domicílios com indígenas declarados

O Gráfico 1 apresenta a estrutura, por sexo e idade, dos indígenas em 1991, 2000 e 2010, segundo o tipo de domicílio de residência. Observa-se, nos domicílios homogêneos, uma população jovem se comparada à população geral do país, com elevada proporção de crianças e jovens. As pirâmides etárias dessa população indicam uma contínua diminuição desses grupos mais jovens e aumento progressivo da proporção de grupos etários mais velhos. Não foram encontradas diferenças significativas nas proporções entre homens e mulheres indígenas em domicílios homogêneos. As razões de sexo estimadas foram de 108 homens para cada 100 mulheres no Censo 1991 e 105 homens para cada 100 mulheres nos censos 2000 e 2010.

Gráfico 1
Pirâmides etárias de indígenas declarados nos censos 1991, 2000 e 2010, segundo o tipo de domicílio de residência, Brasil.

Domicílios mistos apresentaram menor proporção de declarações indígenas para crianças e jovens, sugerindo tendência de declaração de outras opções de cor ou raça para moradores mais jovens, principalmente as opções “branca” e “parda”, em particular nas moradias cujo responsável foi declarado indígena.

Essa possibilidade é reforçada pela análise da variável condição no domicílio, para a qual se verificou que a maioria das declarações para esse quesito foram pessoas declaradas como responsável, cônjuge, filhos, filhas, enteados ou enteadas do(a) responsável. Os percentuais de indígenas sem relação de parentesco com o responsável foram residuais para os três tipos de domicílio em todas as agregações analisadas, e com elevados coeficientes de variação.

Em domicílios mistos com responsável indígena, a maior parte dos indígenas foi identificado como responsável, e nos domicílios mistos com responsável não indígena os indígenas residentes eram, em sua maioria, compostos por cônjuges, filhos, filhas, enteados ou enteadas do responsável declarado. Observou-se maior proporção de homens do que de mulheres indígenas em residências onde o responsável foi declarado indígena; e maior proporção de mulheres do que de homens indígenas naquelas onde a declaração do responsável não foi indígena.

As razões de sexo estimadas para indígenas em domicílios mistos com responsável indígena foram de 206, 163 e 117 homens para cada 100 mulheres indígenas, e para indígenas em domicílios mistos com responsável não indígena, de 47, 48 e 60 homens para cada 100 mulheres indígenas nos censos 1991, 2000 e 2010, respectivamente.

Domicílios mistos: tamanho e composição por cor ou raça

No caso dos domicílios mistos, com relação ao tamanho, dois pontos podem ser destacados. O primeiro diz respeito à concentração de indígenas em domicílios com 4 ou mais moradores, nos quais outras declarações de cor ou raça são predominantes; o segundo se refere à tendência de diminuição do número de moradores por domicílio, fato também observado no cenário nacional nas últimas décadas3131 Cavenaghi SM, Alves JED. Domicilios y familias en la experiencia censal del Brasil: cambios y propuesta para identificar arreglos familiares [Internet]. 2011. [acessado 2023 jun 26]. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/handle/11362/12879
https://repositorio.cepal.org/handle/113...
.

Segundo o Censo 1991, 73% dos domicílios mistos com responsável indígena, e 82% dos domicílios com responsável não indígena, tinham apenas um morador indígena declarado, dos quais 45% habitavam moradias com quatro ou mais moradores. No Censo 2000, os percentuais de domicílios mistos com apenas uma declaração indígena foram de 72% em domicílios com responsável indígena e 77% em domicílios com responsável não indígena, como no censo anterior, e os domicílios com quatro ou mais moradores foram os mais representativos, assim como aqueles com 2 ou 3 moradores. No Censo 2010, 72% dos domicílios mistos com responsável indígena tinham um indígena declarado; em domicílios com responsável não indígena a porcentagem foi de 75%. Observou-se uma distribuição mais equilibrada entre os tamanhos de domicílios, ainda que com uma concentração na faixa de quatro ou mais moradores (Tabela 2).

Tabela 2
Percentual de declarações indígenas pelo quesito cor ou raça em domicílios mistos, em situação urbana, com responsável indígena e não indígena, segundo a quantidade de moradores no domicílio, nos censos 1991, 2000 e 2010, Brasil.

Domicílios com responsável indígena apresentaram número superior de declarações indígenas a partir das idades adultas (25 anos em 1991 e 2000; e 35 anos em 2010), com predominância de outras opções de cor ou raça para crianças e jovens. Nas moradias onde o responsável não era indígena, declarações não indígenas foram mais frequentes em todos os grupos etários nos três censos analisados22 Silva LO. Domicílios com indígenas nos censos demográficos de 1991, 2000 e 2010 no Brasil: composição e análises de inter-relações entre composição segundo cor ou raça e condições socioeconômicas e sanitárias [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021..

As principais opções de cor ou raça acionadas foram “indígena”, “branca” e “parda”. Nos domicílios mistos com responsável indígena, a opção “indígena” respondeu por 36% do total nos censos 1991 e 2000 e 39% no Censo 2010. A segunda opção mais acionada foi “parda”, com 35% no Censo 1991 e 29% nos censos 2000 e 2010. A opção “branca”, por sua vez, representou 25%, 28% e 25%, respectivamente, como terceira opção de cor ou raça mais acionada nesses domicílios. Nos domicílios com responsável não indígena, as opções de cor ou raça mais declaradas foram: 27% “indígena”, 28% “branca” e 40% “parda” no Censo 1991; 30% “indígena” e “branca” e 32% “parda” no Censo 2000; e 34% “indígena”, 31% “parda” e 26% “branca” no Censo 2010.

Acesso a serviços de saneamento e energia elétrica

Os maiores contingentes de indígenas enumerados em 2010 se concentravam em áreas rurais dentro de terras indígenas (55%) e em áreas urbanas fora de terras indígenas (33%). Indígenas em situação rural, fora de terras indígenas, representaram 9% do total, dos quais 79% concentrados nas regiões Norte e Nordeste do país. Indivíduos residentes em domicílios localizados dentro de terras indígenas em áreas urbanas responderam por 3% do total de declarações indígenas. As condições de habitação observadas em cada um desses recortes geográficos evidenciaram diferenciais significativos entre os grupos populacionais analisados.

Indígenas residentes em terras indígenas em contexto rural apresentaram os mais baixos níveis de acesso geral a serviços. Esses indivíduos residiam principalmente em domicílios homogêneos das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. A quase totalidade dessa população não declarou acesso à coleta de lixo (95%), não tinha banheiro na residência (73%), consumia água proveniente de poços, nascentes ou lagos (70%) e o acesso a rede de esgotamento sanitário ou fossa séptica estava restrita a menos de 12% do total.

Pessoas indígenas, em áreas rurais fora de terras indígenas, apresentaram condições de habitação semelhantes àquelas dentro de terras indígenas. Essa população foi particularmente expressiva nas regiões Norte e Nordeste, que responderam por 79% do total de indígenas nesse recorte espacial.

Em relação aos indígenas que residem em terras indígenas em áreas urbanas, os quantitativos foram expressivos para pessoas em domicílios homogêneos da região Nordeste, 74% do total. Nesse recorte, as condições encontradas foram mais favoráveis, uma vez que 71% dos indivíduos declararam acesso à rede de esgotamento ou presença de fossa séptica; 87% tinham banheiro no domicílio; 79% eram atendidos por coleta de lixo, mesmo percentual daqueles com acesso à rede de abastecimento de água; e praticamente a totalidade desses indivíduos tinha acesso à rede de distribuição de energia (98%).

Em relação aos indígenas em áreas urbanas fora de terras indígenas, foram mais numerosos nas regiões Nordeste (32%), Sudeste (26%) e Norte (20%). As regiões Sul e Centro-Oeste responderam, cada, por 11% do total. Nesse contexto, 61% dos indígenas viviam em domicílios mistos, 36% viviam onde o responsável era indígena e 25% viviam em lares cujo responsável não era indígena. As condições observadas apontaram para acesso quase total à rede elétrica, mais de 80% de indivíduos com banheiro no domicílio e serviço de coleta de lixo domiciliar declarado por 88% dessas pessoas.

De modo geral, as proporções de acesso aos serviços analisados em domicílios homogêneos foram menores do que em domicílios mistos. A maior diferença foi encontrada no acesso à rede de esgotamento ou na existência de fossa séptica: 53% de acesso pelo subgrupo classificado como homogêneo, contra 66% e 67% daqueles identificados como mistos com responsável indígena e não indígena, respectivamente.

A Tabela 3 apresenta os valores gerados para o indicador-síntese. A amplitude observada dimensiona a desigualdade existente entre os subgrupos de indígenas nos recortes espaciais considerados. O valor máximo obtido foi 6,2 vezes maior do que aquele mais baixo estimado, relativo às pessoas indígenas em domicílios homogêneos da região Norte, em situação rural, dentro de terras indígenas.

Tabela 3
Ranking das condições de acesso de indígenas declarados no Censo 2010 a serviços e infraestruturas de saneamento básico e eletricidade segundo o tipo de domicílio, grande região, situação e localização em relação às terras indígenas.

De maneira geral, foram observados valores maiores para áreas urbanas do que para rurais. Regionalmente, os maiores valores foram para o Sudeste, seguido de Sul, Nordeste, Centro-Oeste, os valores mais baixos foram no Norte. Em relação à localização, indígenas residindo fora de terras indígenas apresentaram valores superiores aos encontrados dentro de terras indígenas.

No que se refere aos tipos analisados em cada recorte geográfico, os resultados indicaram a existência de desigualdade por cor ou raça entre os grupos. Nesse sentido, indígenas em domicílios mistos com responsável não indígena apresentaram, em geral, valores mais elevados do que aqueles residindo em domicílios com responsável indígena, com escores mais baixos para os moradores de domicílios homogêneos.

As análises apontaram para dois padrões regionais distintos: o primeiro, representado pelas regiões Norte e Centro-Oeste, caracteriza-se por apresentar elevados contingentes populacionais de indígenas, principalmente em situação rural, em sua maioria dentro de terras indígenas, e menores escores; o segundo padrão predomina nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, com significativa representatividade de indivíduos em situação urbana, fora de terras indígenas, com escores maiores, sobretudo no Sudeste e Sul.

Discussão

Os resultados desta pesquisa evidenciam a relevância da tipologia proposta na caracterização das populações analisadas. Foi possível observar, entre os tipos de domicílio com indígenas, perfis distintos para cada subgrupo populacional, com padrões sociodemográficos e de distribuição espacial diferenciados e relativamente consistentes nos três censos, apesar das oscilações nos totais captados. As diferenças observadas refletem, em grande medida, iniquidades por situação e por grandes regiões, em concordância com aquelas observadas no país2424 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: características da população e dos domicílios - resultados do universo [Internet]. 2010. [acessado 2023 jun 23]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=793
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php...
, assim como em relação às desigualdades por cor ou raça.

Diversas questões levantadas, como a possível omissão de declarações de indígenas, principalmente entre crianças e jovens, em domicílios mistos localizados sobretudo nas cidades do Nordeste, Sudeste e Norte, poderão ser aprofundadas quando forem publicados os resultados completos para indígenas do Censo 2022. Os primeiros resultados, publicados em 7 de agosto de 20231717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indígenas: primeiros resultados do universo [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 7]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
, dão pistas de algumas possibilidades. Neste censo, marcado pelo aumento significativo de captação de populações indígenas, o quesito se considera indígena respondeu por mais de um quarto de todas as declarações registradas fora de terras indígenas, sendo que, em 2010, esse quesito só era acionado dentro de terras indígenas. Esse fato, por um lado, reitera a importância da pergunta de cobertura, em conjunto com a de cor ou raça, para a captação dessas populações; por outro, aponta para a necessidade de investigação desse “novo” contingente populacional captado, visibilizado nas estatísticas oficiais neste último censo, como é o exemplo de Manaus, no Amazonas, com 4.040 indígenas declarados no Censo 2010 e 71.713 no Censo 2022, dos quais 52.860 captados pelo quesito “se considera indígena”1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indígenas: primeiros resultados do universo [Internet]. 2022. [acessado 2023 ago 7]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html
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.

Ainda sob a perspectiva das possibilidades analítico-metodológicas abertas pelo Censo 2022, pelo fato de o IBGE ter mantido os quesitos de identificação e bloco étnico-racial no questionário do universo, assim como a manutenção da dimensão localidade, será possível, pela primeira vez, a comparação dos resultados do universo de dois censos, ampliando as possibilidades de uso das variáveis etnia e língua indígena falada o domicílio.

A metodologia utilizada neste estudo permite a incorporação dessas variáveis e de outras, como as provenientes do questionário de abordagem indígena, outra novidade do Censo 2022, aplicado junto às lideranças políticas das aldeias e comunidades antes do início do recenseamento, com perguntas sobre infraestrutura coletiva, aparelhos de atendimento de saúde, economia, deslocamento, entre outros temas - se esses dados forem tornados públicos pelo IBGE, obviamente.

A possibilidade da declaração de mais de um cônjuge dentro de terras indígenas, e da relação de parentesco existente para composição de núcleos familiares, também representa outro terreno fértil para demógrafos da temática indígena e outros interessados no tema.

A maior novidade do Censo 2022, contudo, foi a inédita investigação de populações quilombolas. Esse novo conjunto de dados também abre possibilidades de estudos, inclusive de sua interface com as populações indígenas, uma vez que o duplo pertencimento quilombola e indígena foi possível, fato relevante em determinadas localidades, principalmente em alguns estados do Nordeste.

A perspectiva de explorar os quesitos de identificação étnico-racial em conjunto com outras variáveis do questionário apresenta-se como uma opção viável para a construção de novos arranjos de dados que permitam a investigação de grupos populacionais específicos. Entretanto, é importante lembrar que essas novas perspectivas analíticas precisam considerar os próprios limites dos dados censitários, como a adequabilidade das variáveis selecionadas à realidade das populações indígenas11 Campos MB, Estanislau BR. Demografia dos povos indígenas: os censos demográficos como ponto de vista. Rev Bras Estud Popul 2016; 33(2):441-449., a robustez estatísticas das desagregações e a impossibilidade do censo demográfico de captar determinados eventos com precisão.

Esse último ponto foi averiguado em relação ao emprego da classificação utilizada neste estudo em relação aos dados do bloco de mortalidade do Censo 2010, aplicada em domicílios com declaração indígena3232 Okamoto da Silva L, Borges GM. Mortalidade de indígenas no Censo Demográfico 2010: análise segundo a composição por cor ou raça nos domicílios com indígenas declarados - produto para o projeto "Situação de saúde indígena no Brasil e seus determinantes sociais: abordagem das iniquidades étnico-raciais a partir de diferentes bases de dados secundários sobre demografia, políticas sociais e saúde de amplitude nacional" [relatório de pesquisa]. Rio de Janeiro: Fiotec; 2021.. Apesar de os resultados obtidos sugerirem piores indicadores para indígenas, algumas análises baseadas em cálculos indiretos (método dos filhos sobreviventes e da orfandade materna) mostraram-se inconclusivas, provavelmente em virtude da elevada omissão de óbitos entre indígenas, ressaltando que essa omissão nos censos demográficos como um todo é reconhecida por especialistas1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE). Tábua completa de mortalidade para o Brasil - 2015: breve análise da evolução da mortalidade no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2015.,3333 Borges GM, Okamoto da Silva L. Situação de saúde indígena no Brasil e seus determinantes sociais: abordagem das iniquidades étnico-raciais a partir de diferentes bases de dados secundários sobre demografia, políticas sociais e saúde de amplitude nacional - produto para o projeto "Situação de saúde indígena no Brasil e seus determinantes sociais: abordagem das iniquidades étnico-raciais a partir de diferentes bases de dados secundários sobre demografia, políticas sociais e saúde de amplitude nacional" [relatório de pesquisa]. Rio de Janeiro: Fiotec; 2021., ou por limitações dos próprios dados coletados para a estimação dos indicadores.

Classificar é, em essência, reduzir e simplificar. Contudo, apesar desse inevitável “achatamento” das realidades captadas na pesquisa66 Santos RV, Guimarães BN, Simoni AT. Cor ou raça: indígena? Contextos e recepções da inclusão de uma categoria no Censo Demográfico 1991. Rev Fr-Bras Geogr 2023; 59. DOI: 10.4000/confins.51565
https://doi.org/10.4000/confins.51565...
, de suas implicações histórico-políticas e das próprias limitações dos quesitos de captação, é inegável a importância de análises quantitativas sobre grupos minoritários para a produção e condução de políticas públicas adequadas e o cumprimento dos preceitos legais existentes. Nesse sentido, a busca por novas formas de se analisar os dados, de modo a melhor retratar as características de populações etnicamente diferenciadas, como as populações indígenas, faz-se necessária para o aprofundamento do conhecimento sobre as iniquidades sociais e em saúde, dimensão fundamental para a implementação e o acompanhamento de políticas públicas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    22 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br