Resumo
Desde o seu nascimento na medicina cirúrgica do século XVII, a pesquisa do trauma admitiu interpretações múltiplas e associadas ora às lesões visíveis de órgãos e tecidos, ora à influência de agentes psíquicos patogênicos sobre a memória, a consciência e a personalidade. Com o aprofundamento do papel dos sistemas classificatórios desde DSM-III, o fenômeno do trauma será incorporado ao prisma psiquiátrico através do Transtorno de Estresse Pós-Traumático e destinado, finalmente, à circunscrição da pesquisa neurocientífica. A partir de revisão narrativa, este artigo abordará uma das premissas epistemológicas fundamentais para essa transição, que informa como o trauma psicológico ganhou autonomia sobre as descrições anatômicas para ser, cerca de um século depois, por ela reanexado enquanto fenômeno essencialmente corporal e aderido à gramática das neurociências.
Key words:
Psychological trauma; Post-Traumatic Stress Disorder; Neurosciences; Psychopathology
Abstract
Since its origin in the surgical medicine of the 17th century, trauma research has had multiple interpretations and has been associated either with visible injuries to organs and tissues, or with the influence of pathogenic psychic agents on memory, consciousness and personality. With the intensification of the role of classification systems since DSM-III, the phenomenon of trauma came to be incorporated into the psychiatric realm through Post-Traumatic Stress Disorder and destined finally to the constraints of neuroscientific research. Based on a narrative review, this article will address one of the fundamental epistemological premises for this transition, which informs how psychological trauma gained autonomy over anatomical descriptions to be reclassified, around a century later, as an essentially bodily phenomenon and incorporated into the jargon of neurosciences.
Key words:
Psychological trauma; Post-Traumatic Stress Disorder; Neurosciences; Psychopathology
Introdução
O último quarto do século XX testemunhou uma expansão global significativa do diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)11 Moghimi Y. Anthropological Discourses on the Globalization of Posttraumatic Stress Disorder (PTSD) in Post-Conflict Societies. J Psychiatric Practice 2012; 18(1):29-37., a ponto de pesquisadores do campo aludirem a sua criação ao próprio movimento imperialista da tradição psiquiátrica contemporânea22 McNally RJ. The Expanding Empire of Psychopathology: The Case of PTSD. Psychol Inquiry 2016; 27(1):46-49.. Como a psiquiatria continua a colonizar a vida abarcando formas de sofrimento que outrora estavam à margem da sua jurisdição profissional, é provável que continuemos a presenciar o efeito da redução dos limiares para diagnósticos tradicionais na progressão acentuada da classificação de casos subssindrômicos como instâncias mórbidas de TEPT22 McNally RJ. The Expanding Empire of Psychopathology: The Case of PTSD. Psychol Inquiry 2016; 27(1):46-49..
Foi assim que fenômenos sociais devastadores, como a guerra e o abuso sexual passaram a ser ostensivamente codificados no interior da grade nosográfica do trauma. Conforme as fronteiras diagnósticas para o TEPT no DSM-IV33 American Psychiatric Association. (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4ª ed. Washington, D.C: APA; 1994. foram expandidas, outros estressores e eventos menos extremos puderam ser anexados ao seu raio classificatório, que passou a compreender não apenas episódios circunscritos e imediatamente biográficos, mas também vivências testemunhais e infortúnios de longo prazo44 Terr LC. Time and Trauma. Psychoan Study Child 1984; 39(1):633-665.,55 Herman JL. Trauma and Recovery. New York: Basic Books; 1995.. Na opinião de Moghimi11 Moghimi Y. Anthropological Discourses on the Globalization of Posttraumatic Stress Disorder (PTSD) in Post-Conflict Societies. J Psychiatric Practice 2012; 18(1):29-37., o TEPT se tornou, no século XXI, o idioma cultural dominante para a discussão do estresse relacionado ao trauma no mundo ocidental.
Apesar das consequências epidêmicas da flexibilização em seus critérios de elegibilidade, que provocou artificialmente estimativas de prevalência de 75% à exposição a estressores traumáticos na população geral americana66 Kessler RC, Sonnega A, Bromet E, Hughes M, Nelson CB. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey. Archives General Psychiatry 1995; 52(12):1048-1060., considera-se que o TEPT seja uma condição relativamente rara77 McNally R. Remembering Trauma. Cambridge: The Belknep Press of Harvard University; 2005.. Essa controvérsia é ilustrativa de como fenômenos sociais heterogêneos, que vão desde episódios extremos de violência às mais diversas condições de precarização da vida podem ser, atualmente, submetidos à interpretação psicopatológica da traumatização. Na ausência dessa correlação significativa entre um estressor extremo e seus efeitos sintomatológicos, uma ampla variedade de fenômenos passa a ser classificada como potencialmente traumatizante, pois a régua diagnóstica perdeu sua especificidade; essa foi a condição histórica para a expansão do raciocínio patológico do trauma.
Mas o TEPT não representa, necessariamente, o primeiro deslocamento observado no campo da traumatologia88 Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. New Jersey: Princeton University Press; 1995.. A primeira readequação da pesquisa do trauma ocorre em meados do século XIX, sob a tutela de Jhon Erichsen99 Erichsen J. On Railway and Other Injuries of the Nervous System. London: Walton and Maberly; 1867.. Propondo que analgesias, paralisias funcionas, hipervigilância, estados depressivos e outras classes de sintomas estariam associados a lesões microscópicas da medula espinhal resultantes de acidentes ferroviários, o autor logrou realizar a tradução definitiva do trauma mecânico da medicina cirúrgica do século XVII, a partir da qual surgem os primeiros rudimentos de uma concepção psicológica da traumatização88 Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. New Jersey: Princeton University Press; 1995.,1010 Sanfelippo LC. Vías cruzadas para la psicologización del trauma en los saberes médicos de fin del siglo XIX. Asclepio 2018; 70(2):237.. O trauma, então, transpõe suas referências imediatas à lesão tecidual e ressurge aplicado à superfície incerta e desconhecida da subjetividade. Duas trajetórias distintas - uma que vai de Erichesen, Crile, Cannon e Pavlov, traçando a evolução da memória traumática somatizada, e outra que percorre os trabalhos de Charcot, Janet e Freud, delineando a memória traumática psicologizada - passam a representar as principais matrizes da pesquisa do psicotraumatismo88 Young A. The harmony of illusions: inventing post-traumatic stress disorder. New Jersey: Princeton University Press; 1995.,1111 Young A. Suffering and the origns of traumatic memories. Daedalus 1996; 125(1):245-260.,1212 Young A. Bodily memory and traumatic memory. In: Antze P, Lambek M, organizers. Tense Past: Cultural Essays in Trauma and Memory. New York: Routledge; 1996. p. 89-102.. Daí se desdobram programas específicos e, eventualmente, mesmo antagônicos.
O circuito que levou à “psicologização do trauma”, iniciado no século XIX, traduz a história de uma transformação gradual no reconhecimento das condições pós-traumáticas. Isso foi alcançado pela inclusão de significados inéditos à descrição médico-cirúrgica1313 Sanfelippo LC, Dagfal AA. The Debate Between Janet and Freud Revisited: Trauma and Memory (1892-1895/1913-1914). Psychoanal Quarterly 2020; 89(1):119-141., conforme demonstrado na análise realizada por Erichsen99 Erichsen J. On Railway and Other Injuries of the Nervous System. London: Walton and Maberly; 1867. em relação ao papel patogênico das emoções no desenvolvimento de perturbações psíquicas posteriores. As experiências do choque cirúrgico e, em seguida, do choque nervoso, revelando as misteriosas dependências entre a lesão mecânica e a dor, introduziram uma espécie de virtualização da causalidade patológica favorável ao raciocínio psicodinâmico. É assim que emoções intensas adquiriram isonomia de importância na causação de quadros pós-traumáticos, pois o afeto passa a preencher a lacuna entre a lesão e uma sintomatologia decorrente, daí depreendendo o seu poder etiológico.
A partir de então, presenciaremos a coexistência relativamente independente de duas matrizes da memória traumática e a instalação de seus respectivos programas científicos entre o fim do século XIX e a meados do século XX, quando a crescente neurobiologia, impulsionada pelas técnicas de imageamento cerebral, revigora a tentativa de encontrar os correlatos anatomopatológicos para uma explicação “definitiva” de como o trauma se instala nos interstícios do corpo1414 Bourne C, Mackay CE, Holmes EA. The neural basis of flashback formation: The impact of viewing trauma. Psychol Med 2013; 43(7):1521-1532.,1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113.. Esse movimento na história das ciências redireciona a percepção de validade das diversas teorias que surgiram na matriz psicodinâmica da pesquisa do trauma - como as teorias da sedução1616 Freud S. Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: Freud S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. Salomão J. Vol. 3. Rio de Janeiro: Imago; 1996. p. 163-183. e da fantasia1717 Freud S. Obras Completas. Volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras; 2016 [1905]., na obra freudiana, ou da confusão de línguas1818 Ferenczi S. Psicanálise IV. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011. e do nascimento1919 Rank O. Le traumatisme de la naissance. Influence de la vie pre´natale sur l'e´volution de la vie psychique individuelle et colletive. Paris: Payot; 2002., introduzidas por Ferenczi e Rank, respectivamente -, mas também o rebaixamento da importância de teorias comportamentais historicamente alinhadas ao espectro somático da pesquisa do trauma, como a teoria do condicionamento clássico de Pavlov2020 Pavlov I. Experimental Psychology and Psychopathology in Animals. In: Pavlov I. Lectures on Conditioned Reflexes. Vol. 1. New York: International Publishers; 1928. p. 47-60.. A cooperação entre as neurociências e a psiquiatria norte-americana inaugura, assim, um novo cenário em que não só a mente humana e seus múltiplos produtos linguísticos, culturais e sociais serão expatriados da concepção etiológica da traumatização, mas mesmo a cognição e o comportamento serão também subtraídos do debate em nome de elementos tanto microscópicos quanto mensuráveis2121 Reis R, Ortega F. A soberania do visível: como a memória traumática se torna estresse traumático. Cad Saude Publica 2023; 39:e00132622.,2222 Russo J, Venâncio ATA. Classificando as pessoas e suas perturbações: a "revolução terminológica" do DSM III. Rev Latinoam Psicopatol Fundamental 2006; 9:460-483., como as concentrações de substâncias neuroquímicas, as oscilações neuro-elétricas e as composições neuroanatômicas, pois o trauma do século XXI resgatará algo de sua origem cirúrgica: ele reverterá os caminhos pelos quais a lesão física historicamente alcançou os estados psicológicos para, enfim, ser revisualizado como um evento pertencente ao território do cérebro e à dinâmica cerebral2121 Reis R, Ortega F. A soberania do visível: como a memória traumática se torna estresse traumático. Cad Saude Publica 2023; 39:e00132622..
Portanto, o exemplo do TEPT situa uma nova racionalidade classificatória que emerge e se populariza no Ocidente junto à necessidade de significar eventos extraordinários e condições sociais degradantes - um estilo de pensamento que embora remonte aos anos finais do século XIX, vem a adquirir um semblante definitivo com a incorporação do fenômeno traumático pela psiquiatria de base biológica e, finalmente, pelo espectro da pesquisa neurocientífica2323 van der Kolk B. The body keeps the score: brain, mind and body in the healing of trauma. New York: Viking Penguin; 2016.. Pela sua pregnância política na estruturação de uma economia moral voltada para a reparação e para o testemunho, sobretudo após as consequências nefastas do empreendimento nazista, essa retórica se tornará um verdadeiro “império do trauma” nas sociedades ocidentais contemporâneas2424 Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009..
Este artigo analisará o surgimento de uma hipótese axiomática na pesquisa neuropsiquiátrica contemporânea do trauma, qual seja, a noção de que a resposta pós-traumática, expressa sobretudo por meio de um conjunto de sintomas característicos, seria a reprodução fiel e literalizada do acontecimento traumático, manifesta não apenas no psiquismo do sujeito acometido, mas em sua própria fisiologia ou anatomia neural. Para tanto, buscaremos paralelos entre os mecanismos de formação de memórias para eventos emocionais significativos e fenômenos dissociativos que lhes seriam supostamente antagônicos, como a hipnose e a amnésia psicogênica. Finalmente, procuraremos demonstrar como a tese psicodinâmica da dissociação2525 Janet P. L'Automatisme Psychologique: Essai de Psychologie Expérimentale Sur les Formes Inférieures de L'Activité Humaine. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière; 1889. está paradoxalmente no centro das explicações neurocientíficas dos fenômenos traumáticos. Espera-se que a reflexão aqui proposta contribua para a ampliação do foco da pesquisa sobre o traumatismo, estimulando modelos explicativos mais sensíveis à experiência humana do sofrimento pós-traumático.
A fotografia do trauma
Durante mais de cem anos, especialistas têm registrado e analisado a natureza peculiar de memórias que frequentemente apresentam emoções fragmentadas e intensas, além de possuírem pouco conteúdo narrativo verbal2626 McNally RJ. Implicit and Explicit Memory for Trauma-Related Information in PTSD. Annals New York Academy Sci 1997; 821(1):219-224.,2727 van der Kolk BA, Hopper JW, Osterman JE. Exploring the Nature of Traumatic Memory. J Aggression Maltreatment Trauma 2001; 4(2):9-31.. Quais seriam os fatores distintivos dessas memórias? Por quais mecanismos específicos elas se formam, e que propriedades especiais as distinguem das memórias oriundas de acontecimentos ordinários? O campo científico do trauma foi transversalmente influenciado por esse debate que, durante as duas últimas décadas do século XX, procurou caracterizar a natureza e a confiabilidade da memória traumática2828 Christianson SÅ, Loftus EF. Memory for traumatic events. Applied Cognitive Psychol 1987; 1(4):225-239.,2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.. Sob a premissa de que experiências pessoais devastadoras seriam capazes de instituir vestígios mnêmicos imperecíveis e estruturalmente distintos das representações de experiências pessoais neutras3030 Porter S, Birt A. Is traumatic memory special? A comparison of traumatic memory characteristics with memory for other emotional life experiences. Applied Cognitive Psychol 2001; 15(7):S101-S117., se convencionou argumentar que as memórias traumáticas possuem três características fundamentais: elas seriam particularmente precisas, persistentemente intrusivas e notavelmente recorrentes.
Diversos autores concordam que a valência emocional pode favorecer a fixação em memória de uma determinada experiência3131 Brown R, Kulik J. Flashbulb memories. Cognition 1977; 5(1):73-99.,3232 McCloskey M, Wible CG, Cohen NJ. Is there a special flashbulb-memory mechanism? J Experimental Psychol General 1988; 117(2):171-181.. O quão precisa é a recordação de um evento depende, assim, da correlação entre a vividez com que ele é lembrado e a emocionalidade da vivência no instante de seu acontecimento. Isso sugere a possibilidade de que a lembrança de alguns acontecimentos há muito vividos não seja passível da mesma corrosão a qual sucumbem todas as demais memórias. A ideia de um registro permanente dos conteúdos da consciência para o período imediato em torno de vivências emocionalmente radicais se consolida em 19773232 McCloskey M, Wible CG, Cohen NJ. Is there a special flashbulb-memory mechanism? J Experimental Psychol General 1988; 117(2):171-181. com a especulação acerca de mecanismos de memória diferenciados e responsáveis pela codificação dessas experiências. Esse mecanismo especial produziria uma memória nítida e caracterizada pelo detalhismo da experiência sensoperceptiva.
Mas o que torna alguns eventos mais memoráveis do que outros, e qual é o papel da emoção e da repetição na formação e manutenção dessas memórias vivazes? De acordo com Pillemer3333 Pillemer DB. Flashbulb memories of the assassination attempt on President Reagan. Cognition 1984; 16(1):63-80., um minúsculo subconjunto de episódios específicos persiste ao longo da vida com mínima perda de clareza, expondo a profunda seletividade com que a memória autobiográfica de longo prazo rechaça incontáveis oportunidades de codificar os eventos cotidianos e as suas respectivas respostas. Uma memória notável “é definida pelo seu detalhamento, por sua precisão, e pelo fato de persistir ao longo do tempo”3434 Yuille JC, Cutshall J. Analysis of the Statements of Victims, Witnesses and Suspects. Vol 47. Dordrecht: Springer; 1989.(p.175). As testemunhas de eventos trágicos costumam ter uma memória muito precisa e com pouco declínio aparente ao longo do tempo3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.. A hipótese do mecanismo especial da memória, pelo qual se postulou a potencialidade em conservar todos os elementos perceptuais disponíveis a uma lente no momento preciso de sua impressão fotográfica, foi exaustivamente debatida nos últimos 40 anos3131 Brown R, Kulik J. Flashbulb memories. Cognition 1977; 5(1):73-99.,3333 Pillemer DB. Flashbulb memories of the assassination attempt on President Reagan. Cognition 1984; 16(1):63-80.; preservando indiscriminadamente uma cena a partir de então transportada com indivíduo a despeito do tempo e da saturação de seus elementos figurativos, a memória flash se instalaria em sua integralidade quando, por efeito de um evento desencadeante, são alcançados os níveis cerebrais mínimos de excitação emocional e significância biológica3131 Brown R, Kulik J. Flashbulb memories. Cognition 1977; 5(1):73-99.: “sempre que um evento é muito surpreendente e tem consequências pessoais importantes, o flash ocorre”3333 Pillemer DB. Flashbulb memories of the assassination attempt on President Reagan. Cognition 1984; 16(1):63-80.(p.65).
A correspondência entre a fotografia de uma cena catastrófica e a memória de uma reprodução traumática parece imediata. Alguns elementos desses eventos “parecem ficar fixos na mente, inalterados pela passagem do tempo ou pela intervenção da experiência subsequente”3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.(p.512). Consideradas exclusivamente a partir de seus aspectos formais, as memórias provenientes do trauma e do flash são absolutamente indistintas, daí resultando que a recuperação da memória flash possa equivaler à irrupção, sob a forma de sintoma, da memória traumática. Entretanto, apesar de aproximadas, a memória flash e a memória traumática não se ajustam perfeitamente uma à outra, pois falta àquela o poder intrusivo de reincidir contra qualquer esforço que faria o indivíduo para preservar a continuidade de sua experiência autobiográfica. A nitidez, a precisão, a vivacidade e outras propriedades eidéticas extraídas do estudo dos fenômenos em flash podem, ainda, responder a mecanismos de formação outros quando observadas pelo prisma dos processos de traumatização. Especula-se que a dissociação seja a essência do trauma3636 van der Kolk B, Blitz R, Burr W, Sherry S, Hartmann E. Nightmares and trauma: A comparison of nightmares after combat with lifelong nightmares in veterans. Am J Psychiatry 1984; 141(2):187-190.; por meio dela, uma experiência avassaladora “é dividida e fragmentada, de modo que as emoções, sons, imagens, pensamentos e sensações físicas relacionadas ao trauma ganham vida própria. Os fragmentos sensoriais da memória invadem o presente, onde são literalmente revividos”2323 van der Kolk B. The body keeps the score: brain, mind and body in the healing of trauma. New York: Viking Penguin; 2016.(p.142). A dissociação, portanto, decompõe a unidade ontológica da experiência, isolando os seus elementos constituintes em compartimentos recuperáveis sob a forma exclusiva de percepções sensoriais ou estados afetivos2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.,3737 van der Kolk BA, van der Hart O. The intrusive past: The flexibility of memory and the engraving of trauma. American Imago 1991; 48(4):425-454..
Dissociação, flashback e hipnose
Desde o século XIX, Janet2525 Janet P. L'Automatisme Psychologique: Essai de Psychologie Expérimentale Sur les Formes Inférieures de L'Activité Humaine. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière; 1889. já descrevera o estreitamento do campo da percepção consciente por ocasião de experiências altamente estressantes que seriam posteriormente recuperadas sob formas sensoriais não-verbais ou mediante fragmentos informativos3030 Porter S, Birt A. Is traumatic memory special? A comparison of traumatic memory characteristics with memory for other emotional life experiences. Applied Cognitive Psychol 2001; 15(7):S101-S117.. Esses fragmentos literais esculpidos no self pela intervenção de determinadas experiências significativas são os flashbacks, que consistem na revivência intrusiva de experiências passadas em um momento presente3838 Brewin CR. Re-experiencing traumatic events in PTSD: New avenues in research on intrusive memories and flashbacks. Eur J Psychotraumatol 2015; 6:27180.. São imagens espontâneas, habitualmente vívidas, que assaltam o sujeito em vigília e lhe reapresentam a uma cena de qualidade perturbadora frequentemente relacionada à experiência mórbida originária. Desde seu aparecimento como metáfora na literatura sobre o abuso de substâncias até sua reificação como fato na literatura sobre trauma, o fenômeno do flashback tem recapitulado a tese moderna da desintegração da memória como elemento etiológico indispensável ao desenvolvimento de um conjunto especial de entidades patológicas subsumidas, no século XIX, pela histeria e pela neurose traumática, e, no século seguinte, pelo transtorno dissociativo de identidade (TDI) e pelo TEPT3939 Frankel FH. The concept of flashbacks in historical perspective. Int J Clinical Experimental Hypnosis 1994; 42(4):321-336..
A revivência do trauma na forma de memórias intrusivas é muito frequentemente associada às respostas a sugestões pós-hipnóticas4040 Lovern J. Posthypnotic state changes and flashbacks: Analogous processes? J Trauma Dissociation 2012; 13(5):568-581. passíveis de desencadear, mediante os gatilhos apropriados, a reinstauração do estado mental em que a sugestão ocorreu1414 Bourne C, Mackay CE, Holmes EA. The neural basis of flashback formation: The impact of viewing trauma. Psychol Med 2013; 43(7):1521-1532.. Isso ocorre porque se supõe que o flashback e a sugestionabilidade hipnótica compartilhem um mecanismo etiológico análogo: ambos se originam de processos dissociativos, pelos quais a cisão de grupos de conteúdos mentais permite a desvinculação de um conteúdo ideativo do seu significado emocional e do seu afeto correspondente, ou mesmo a manutenção, na consciência, de duas injunções contraditórias a despeito de sua inconsistência lógica.
A fidelidade da definição do mecanismo dissociativo proposta pela American Psychiatric Association (APA) com as ideias de Janet para a etiologia da histeria traumática é significativa, e noticia a capilaridade de seu pensamento sobre a estruturação da psiquiatria descritiva contemporânea4141 Putnam FW. Pierre Janet and modern views of dissociation. J Trauma Stress 1989; 2:413-429.. A teoria de Janet fundamenta o processo de integração mental sobre uma tripla partição composta de percepção sensorial, consciência, e reações dissociativas4242 Scalabrini A, Mucci C, Esposito R, Damiani S, Northoff G. Dissociation as a disorder of integration - On the footsteps of Pierre Janet. Progress Neuro-Psychopharmacol Biological Psychiatry 2020; 101:109928.. Experiências emocionais avassaladoras seriam capazes de desequilibrar o sistema regulatório interno-externo, fazendo surgir um automatismo psicológico subliminar caracterizado pela fragmentação do campo da consciência - cujos efeitos adversos verificam-se na perda da atenção apropriada e no enfraquecimento do juízo e da agência para coordenar e interagir com o ambiente2525 Janet P. L'Automatisme Psychologique: Essai de Psychologie Expérimentale Sur les Formes Inférieures de L'Activité Humaine. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière; 1889.,4343 Charcot J-M. Oeuvres Completes De J.-M. Charcot. Sydney: Wentworth Press; 2008.. Como o conceito psicológico da integração se associa à concepção neurológica da sincronização neural4242 Scalabrini A, Mucci C, Esposito R, Damiani S, Northoff G. Dissociation as a disorder of integration - On the footsteps of Pierre Janet. Progress Neuro-Psychopharmacol Biological Psychiatry 2020; 101:109928., a hipótese psicodinâmica de Janet vem sendo progressivamente transposta como representação coerente do funcionamento cerebral. Não sem propósito, van der Kolk et al.2727 van der Kolk BA, Hopper JW, Osterman JE. Exploring the Nature of Traumatic Memory. J Aggression Maltreatment Trauma 2001; 4(2):9-31. sentenciaram que todo estudo atual de memórias traumáticas incidentalmente confirmou as observações pressagiadas por Janet e Freud um século antes. Isto é, que as condições imprescindíveis para o desenvolvimento dos fenômenos histéricos se encontram em alterações particulares do campo da consciência a partir das quais surgem as ideias patogênicas2525 Janet P. L'Automatisme Psychologique: Essai de Psychologie Expérimentale Sur les Formes Inférieures de L'Activité Humaine. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière; 1889.,4444 van der Hart O, Bolt H, van der Kolk BA. Memory Fragmentation in Dissociative Identity Disorder. J Trauma Dissociation 2005; 6(1):55-70..
Assim, as circunstâncias afetivas, insinuando o seu poder de criação e reprodução dos estados dissociativos, sugerem que a teoria da dissociação manteve a sua relevância semiológica e permaneceu relativamente indestrutível à passagem do tempo4141 Putnam FW. Pierre Janet and modern views of dissociation. J Trauma Stress 1989; 2:413-429.. O afeto “cria por si mesmo o estado hipnoide”4545 Freud S, Breuer J. Obras Completas, Volume 2: Estudos Sobre a Histeria (1893-1895). São Paulo: Companhia das Letras; 2016.(p.185), mas cria igualmente o trauma; logo, não é impossível que a reprodução espontânea no TEPT deva uma parcela de sua intensidade ab-reativa semelhante à hipnose ao estado dissociativo análogo no qual se presume que o doente estivesse imerso no decorrer da consecução traumática.
Se a dissociação é mesmo a “essência do trauma”2323 van der Kolk B. The body keeps the score: brain, mind and body in the healing of trauma. New York: Viking Penguin; 2016. e a condição indispensável à sua instalação ideogênica, então o flashback é dele precisamente a reprodução mais fidedigna. O flashback é esse fenômeno visível excepcional sujeito a atestar a realidade tangível do trauma enquanto visibiliza, por um jogo de espelhamentos e inferências, as operações dissociativas que representam os seus mecanismos de formação essenciais. Isso levará van der Kolk3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002. a considerá-lo o ícone supremo da memória que o trauma edifica, não porque o traumatizado costuma relacionar a origem das imagens do flashback a uma experiência assustadora anterior3939 Frankel FH. The concept of flashbacks in historical perspective. Int J Clinical Experimental Hypnosis 1994; 42(4):321-336., mas porque esse produto exemplar do trauma confina passado, presente e futuro a uma única e mesma “paisagem” sinistra44 Terr LC. Time and Trauma. Psychoan Study Child 1984; 39(1):633-665.. Ao fundir o tempo em uma imagem inerte, o flashback interpela a própria historicidade da experiência humana do sofrimento, pois é a verdade dessa experiência que forma o centro de sua psicopatologia; diz-se, então, que os sujeitos traumatizados estão “fixados no trauma”4646 Kardiner A. The traumatic neuroses of war. Washington, D.C.: National Research Council; 1941.(p.87), ou que, para eles, “o passado pode ser revivido com uma intensidade sensorial e emocional imediata”4747 Caruth C. Unclaimed experience: Trauma, narrative, and history. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1996.(p.100) capaz de fazê-los sentir como se o evento estivesse ocorrendo novamente.
A literalidade da memória traumática
A partir da década de 1980, a imagem traumática veio a ser ostensivamente caracterizada como uma memória icônica que assombra a vítima na forma de flashbacks, sonhos e outras modalidades intrusivas de repetição4747 Caruth C. Unclaimed experience: Trauma, narrative, and history. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1996.,4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137.. O que está em questão na ênfase recente dessas imagens é compreender como o trauma desabilita o aparato perceptivo e cognitivo da vítima a tal ponto que a experiência jamais se torna parte do sistema de memória responsável pela gênese e pela degradação das memórias comuns4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137.. Ou, dito de outro modo, por que meios os flashbacks, sonhos traumáticos e outros produtos do trauma serão caracterizados não como uma representação verdadeira do passado, mas como um registro literal do evento traumático?4949 Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: The University of Chicago Press; 2000.. Isso explica a alegação de que as memórias traumáticas “persistem principalmente como memórias implícitas, comportamentais e somáticas, e apenas secundariamente como narrativas vagas, generalizadas, fragmentadas, incompletas e desorganizadas”2727 van der Kolk BA, Hopper JW, Osterman JE. Exploring the Nature of Traumatic Memory. J Aggression Maltreatment Trauma 2001; 4(2):9-31.(p.24).
A premissa da literalidade está ancorada na justificativa de que haveria uma filiação irrecusável entre a sintomatologia pós-traumática e os fenômenos do campo perceptivo. Em contraste com a maneira como as pessoas parecem processar informações comuns, as experiências traumáticas seriam “inicialmente impressas como sensações ou estados de sentimento e não são agrupadas e transcritas em narrativas pessoais”1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113.(p.109-110). Por parecerem resistir ao alinhamento e à atualização com demais experiências regulares, as memórias traumáticas exprimiriam uma modalidade de codificação cuja recuperação, dirigida às representações sensoriais e emocionais, expressam o prejuízo na expressão da linguagem verbal comunicável.
A hipótese da natureza especial das memórias traumáticas está edificada sobre uma manobra argumentativa que localiza o caráter extraordinário duplamente nas qualidades intrínsecas à própria imagem de um trauma e na sua capacidade de transgredir as leis que regulamentam as demais memórias. Portanto, as diferenças supostamente qualitativas entre a forma como as pessoas com TEPT categorizam a experiência e aquela pela qual pessoas não traumatizadas o fazem indicam não só que a falha em compreender a experiência desempenha um papel determinante em torná-la traumática1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113., mas que indivíduos traumatizados assimilam as experiências por meio de aparatos percepto-sensoriais radicalmente específicos; os traumatizados veem, ouvem, cheiram, enfim, sentem de modo diverso.
Portanto, a hipótese da literalidade tenciona alienar a memória traumática pela extração absoluta de seus componentes linguísticos2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.,5050 Caruth C, editor. Trauma: Explorations in memory. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1995.. O declarativo, o semântico e o explícito são, pois, encerrados em um exercício de antinomia com o sensorial, o implícito e o indeclarável, e um sistema simplificado de classificação circunscreveu em dois grandes conjuntos toda a variedade das memórias, discriminando igualmente os predicados que as antagonizam: em uma ala, a fugacidade das memórias do dia a dia e suas características autobiográficas; na outra, a precisão admirável e a consistência aparentemente indelével das memórias do trauma. Se a memória declarativa resulta de um processo construtivo condicionado a esquemas mentais preexistentes - e cuja assimilação torna indisponível a totalidade da lembrança como entidade separada e imutável, a memória não declarativa, implícita ou procedural refere-se a habilidades e hábitos, ações reflexas e respostas classicamente condicionadas1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113.. Quando as pessoas recebem informações sensoriais comuns e não traumáticas, elas “sintetizam essa informação recebida em forma simbólica, sem percepção consciente dos processos que traduzem as impressões sensoriais em uma história pessoal”2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.(p.520), pois é próprio do processo de integração operar distorções pela experiência precedente ou pelo estado emocional no ato da lembrança3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.. Contudo, quando as memórias não podem ser integradas em um nível semântico/linguístico, elas “tendem a ser organizadas mais primitivamente, como imagens visuais ou sensações somáticas”2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.(p.519).
Naturalmente, a memória traumática veio a ser representada como um exemplo de memória implícita, sobretudo porque a especificidade de suas memórias ratifica um projeto de resgate da teoria dissociativa com a qual as disciplinas psiquiátrica e neurocientífica expandiram o seu domínio2626 McNally RJ. Implicit and Explicit Memory for Trauma-Related Information in PTSD. Annals New York Academy Sci 1997; 821(1):219-224.,5151 van der Kolk BA. Trauma and Memory. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah L. editors. Traumatic Stress: The Effects of Overwhelming Experience on Mind, Body, and Society. New York: Guilford Press; 1996. p. 279-303.,5252 Kihlstrom J. Trauma and memory revisited. In: Uttl B, Ohta N, Siegenthaler AL, editors. Memory and emotion: Interdisciplinary perspectives. Hoboken: Blackwell Publishing; 2006. p. 259-291.. A pesquisa sobre a natureza das memórias traumáticas indicaria que o trauma interfere na memória declarativa, mas não na memória implícita. Portanto, o impacto emocional de um evento pode influir na capacidade de capturar experiências em palavras ou símbolos - e é justamente pelo fracasso da organização semântica que a memória retrocede até uma configuração primitiva pressuposta em seu registro somatossensorial ou icônico3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.. Nesse caso, costuma-se dizer que o sujeito traumatizado experimenta um “terror sem palavras”2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525..
No início do século XX, quando observou que “certos acontecimentos [...] deixavam memórias indeléveis e angustiantes”2525 Janet P. L'Automatisme Psychologique: Essai de Psychologie Expérimentale Sur les Formes Inférieures de L'Activité Humaine. Paris: Ancienne Librarie Germer Baillière; 1889., Janet preparava o estabelecimento de um estatuto formal para as imagens, sensações, estados afetivos e comportamentos invariáveis posteriormente resgatados - ou, mais precisamente, reinventados - nas obras de Terr33 American Psychiatric Association. (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4ª ed. Washington, D.C: APA; 1994., Caruth5050 Caruth C, editor. Trauma: Explorations in memory. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1995. e van der Kolk3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.. Não que o retorno insistente do sonho traumático descrito por Freud culmine em uma figura eminentemente distinta do sintoma despojado de desejo ou significado inconsciente enunciado por Caruth, mas tomá-lo por equivalente literal de seu evento formador desabilita a finalidade da repetição traumática pressuposta pelo pensamento freudiano da segunda tópica5353 Freud S. Além do princípio do prazer. Obras completas, volume 17. São Paulo: Companhia das Letras; 2014 [1920].. Se para Freud5353 Freud S. Além do princípio do prazer. Obras completas, volume 17. São Paulo: Companhia das Letras; 2014 [1920]. as reincidências dos sonhos traumáticos serviam a um princípio anterior e mais originário que o princípio do prazer, ainda assim a matéria de que tratavam visava obter o domínio da situação penosa geradora do produto onírico, restaurando, em última medida, o princípio geral do funcionamento psíquico e os processos de simbolização que dele decorrem. Na tradição do estresse pós-traumático, porém, a repetição é um curto-circuito do aparato psíquico4747 Caruth C. Unclaimed experience: Trauma, narrative, and history. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 1996. ou cerebral2323 van der Kolk B. The body keeps the score: brain, mind and body in the healing of trauma. New York: Viking Penguin; 2016.,5151 van der Kolk BA. Trauma and Memory. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah L. editors. Traumatic Stress: The Effects of Overwhelming Experience on Mind, Body, and Society. New York: Guilford Press; 1996. p. 279-303., e está desvirtuada do percurso que a levaria a dissipar-se em linguagem, pois, apartada da representação, ela é também terminantemente desapropriada de sua função comunicativa. Por isso, para a pesquisa neurocientífica, o sintoma do trauma nada diz, nada comunica. Ele sobrevive do aniquilamento do intervalo que antes a representação impunha entre a psique e a violência externa. Através do trauma, o externo se torna interno por ligação direta, sem qualquer mediação.
Essa é a razão pela qual a imagem do trauma, transformada em ícone, é corporalizada e, finalmente, expatriada do território do conhecimento - não daquele proibido à consciência do sujeito cindido da teoria psicanalítica, mas do conhecimento facultado à própria possibilidade de conhecer4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137.. É neste ponto que a precisão atemporal da memória do trauma e as propriedades fotográficas da memória flash ganham contraste. Pois a teoria da memória jamais ratificou uma explicação inferencial unívoca para a associação referencial afeto-precisão5454 Reisberg D, Reuer F. Remembering the details of emotional events. In: Winograd E, Neisser U, editors. Affect and accuracy in recall: studies of "flashbulb" memories. Cambridge: Cambridge University Press; 1992. p. 162-191., e mesmo a discrepância entre a retenção de informações para eventos “pálidos” ou emocionalmente significativos deixa dúvidas se a vivacidade da lembrança é evidência de alguma vantagem de codificação ou recuperação associada à emocionalidade2828 Christianson SÅ, Loftus EF. Memory for traumatic events. Applied Cognitive Psychol 1987; 1(4):225-239.,5454 Reisberg D, Reuer F. Remembering the details of emotional events. In: Winograd E, Neisser U, editors. Affect and accuracy in recall: studies of "flashbulb" memories. Cambridge: Cambridge University Press; 1992. p. 162-191.. Nas palavras de Frankel3939 Frankel FH. The concept of flashbacks in historical perspective. Int J Clinical Experimental Hypnosis 1994; 42(4):321-336.: “quando essas memórias têm a qualidade vívida e intensa de um flashback completo, é crível que sua precisão histórica seja imediatamente validada”(p.321)? Em caso afirmativo, diríamos que as memórias são verídicas, porque vívidas. Essa parece ter sido a premissa essencial da abordagem de van der Kolk1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113. e seus apoiadores para a memória traumática. Por ela, o modelo do flashback inverteu o raciocínio dedutivo que antes utilizava o sintoma não para alcançar, mas para inferir o trauma, por um outro que o converteu em uma revisualização testemunhal dotada de absoluta precisão histórica3939 Frankel FH. The concept of flashbacks in historical perspective. Int J Clinical Experimental Hypnosis 1994; 42(4):321-336..
A hipótese do mecanismo especial da memória3030 Porter S, Birt A. Is traumatic memory special? A comparison of traumatic memory characteristics with memory for other emotional life experiences. Applied Cognitive Psychol 2001; 15(7):S101-S117. foi, de modo geral, contestada na literatura científica do trauma em duas frentes simultâneas, correspondentes às suas proposições e aos seus fundamentos. Esses movimentos objetivaram impor alguma resistência à implementação de afirmações responsáveis por compromissar disciplinas tão heterogêneas quanto a neurobiologia moderna e determinadas versões do pós-estruturalismo a uma mesma descrição de trauma psíquico. São elas: a afirmação empírica que classificou os sintomas traumáticos como memórias verídicas ou representações do seu evento desencadeante; e a reivindicação epistemológico-ontológica, segundo a qual “esses mesmos sintomas são réplicas literais ou repetições do trauma e que, como tal, estão fora da representação”4949 Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: The University of Chicago Press; 2000.(p.229). As condições contextuais e a evidência de altos níveis de confabulação indicam a presença de erros mesmo nas lembranças relacionadas a eventos emocionalmente significativos5454 Reisberg D, Reuer F. Remembering the details of emotional events. In: Winograd E, Neisser U, editors. Affect and accuracy in recall: studies of "flashbulb" memories. Cambridge: Cambridge University Press; 1992. p. 162-191.. Logo, o grau de emocionalidade relacionado a um determinado evento sugere, mas não determina a precisão e a consistência do material mnêmico resultante5555 Southwick SM, Morgan CA, Nicolaou AL, Charney DS. Consistency of memory for combat-related traumatic events in veterans of Operation Desert Storm. Am J Psychiatr 1997; 154(2):173-177.. A segunda alegação do trauma argument - a hipótese da literalidade da memória traumática - recomenda uma deriva ainda mais sinuosa pelo fenômeno da amnésia pós-traumática.
A memória adiada
Por mais de 100 anos, inúmeras descrições clínicas documentaram a emergência de quadros amnésicos consecutivos à vivência de situações traumáticas3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.,4343 Charcot J-M. Oeuvres Completes De J.-M. Charcot. Sydney: Wentworth Press; 2008.,4646 Kardiner A. The traumatic neuroses of war. Washington, D.C.: National Research Council; 1941.. Já em 1980 o DSM-III reconheceu a existência de perda de memória para eventos traumáticos nos critérios de diagnóstico para amnésia dissociativa e para o TEPT33 American Psychiatric Association. (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4ª ed. Washington, D.C: APA; 1994.. Embora o DSM-5 opte por não excluir a amnésia dissociativa do seu painel semiológico, ele agrega à amnésia psicogênica novos elementos diagnósticos provenientes da combinação entre achados neuropsicológicos e de neuroimagem, alinhando a sua base aos modelos neurais integrativos de cognição e emoção5656 Staniloiu A, Markowitsch HJ. Dissociative amnesia. Lancet Psychiatr 2014; 1(3):226-241..
Uma vez que a pesquisa comportamental e cognitiva em humanos e animais indica o feedback positivo do estresse sobre o grau de retenção da memória explícita, a associação com altos níveis de estresse pode tornar a memória mais distintiva e, portanto, mais facilmente recuperável. Nisso reside o primeiro grande desafio posto aos proponentes do argumento da memória traumática5757 Shobe KK, Kihlstorm JF. Is Traumatic Memory Special? Current Directions Psychol Sci 1997; 6(3):70-74.: explicar esta inesperada hiperminésia para a memória semântica do trauma dificilmente solucionável sob a égide do modelo dissociativo da amnésia pós-traumática.
Como é possível que o trauma simultaneamente aprimore e debilite os fluxos de memória? A resposta do trauma argument para essa controvérsia foi que os eventos traumáticos poderiam permanecer devidamente preservados na memória implícita, como imagens, sensações e sentimentos vívidos, ainda que lhes faltassem outras características declarativas2626 McNally RJ. Implicit and Explicit Memory for Trauma-Related Information in PTSD. Annals New York Academy Sci 1997; 821(1):219-224.,2828 Christianson SÅ, Loftus EF. Memory for traumatic events. Applied Cognitive Psychol 1987; 1(4):225-239.,5151 van der Kolk BA. Trauma and Memory. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah L. editors. Traumatic Stress: The Effects of Overwhelming Experience on Mind, Body, and Society. New York: Guilford Press; 1996. p. 279-303.. Portanto, não só as emoções associadas a quaisquer experiências particulares desempenhariam um papel determinante nos esquemas cognitivos futuramente ativados, mas a própria exposição a estímulos emocionais ou sensoriais específicos, ainda que inócuos, poderiam recapitular sentimentos e ações síncronas ao momento da traumatização. Nesse sentido, “é relevante que muitas pessoas com histórias de traumas, como estupro, violência doméstica e abuso infantil, pareçam funcionar relativamente bem, desde que os sentimentos relacionados às memórias traumáticas não sejam estimulados”5151 van der Kolk BA. Trauma and Memory. In: van der Kolk BA, McFarlane A, Weiseah L. editors. Traumatic Stress: The Effects of Overwhelming Experience on Mind, Body, and Society. New York: Guilford Press; 1996. p. 279-303.(p.284). Qualquer afeto ou sensação relacionada a uma experiência traumática estaria, então, habilitada a servir como pista para a recuperação de sensações associadas, incluindo medo, desejo ou excitação sexual3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002..
Portanto, a amnésia pode ocorrer como a contraparte da codificação sensório-motora de experiências traumáticas, quando estas não podem ser facilmente traduzidas para a linguagem simbólica necessária à recuperação linguística4949 Leys R. Trauma: a genealogy. Chicago: The University of Chicago Press; 2000.. Se é plausível que em situações de terror a experiência não se processe em formas simbólico-linguísticas, mas tenda a se organizar em ícones, é porque o registro não distorcido do trauma alude à destruição provisória dos mecanismos comuns de consciência e memória responsáveis pela representação2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.. Entretanto, os próprios desenhos experimentais utilizados para a dedução das qualidades especiais da memória traumática são insensíveis a aspectos essenciais do fenômeno, como o método de recrutamento dos sujeitos de pesquisa e a faixa etária em que um indivíduo estava durante a ocorrência do evento traumatizante5757 Shobe KK, Kihlstorm JF. Is Traumatic Memory Special? Current Directions Psychol Sci 1997; 6(3):70-74.. Nem mesmo a unanimidade de relatos acerca da precedência de sensações corporais sobre a memória narrativa de eventos traumatizantes constitui prova suficiente para a conclusão das qualidades especiais de suas memórias consecutivas2929 van der Kolk BA, Fisler R. Dissociation and the fragmentary nature of traumatic memories: Overview and exploratory study. J Trauma Stress 1995; 8:505-525.. Sendo este o caso, o “normal” e o “especial” da memória estariam dispostos em gradiente, não em oposição, e a manutenção desse princípio deixa uma lacuna insuperável para a transição a que as memórias do trauma estão sujeitas, muitas vezes migrando, por contagens e recontagens, do plano procedural e implícito à dimensão semântica e narrativa. Essa fragilidade conceitual explica por que a afirmação de que “as pessoas parecem ser incapazes de aceitar experiências sem significado”1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113.(p.110) constitui uma retórica que parece especular atributos ontológicos para oferecer algum fôlego a essa teoria do trauma até que ela encontre fundamentos epistemológicos pelos quais possa se conservar. Assim é que a marca sensorial indelével do trauma pôde, pela atribuição de significado, ser transcrita para a memória comum e sujeitar-se às mesmas distorções que as regulamentam. “Uma vez que as pessoas tomam consciência dos elementos intrusivos do trauma, elas tendem a tentar preencher os espaços em branco e completar o quadro. [...] eles tentarão entender o que estão sentindo”1515 van der Kolk BA, Burbridge JA, Suzuki J. The psychobiology of traumatic memory. Clinical implications of neuroimaging studies. In: Yehuda R, McFarlane AC, editors. Psychobiology of posttraumatic stress disorder. New York: Academy of Sciences; 1997. p. 99-113.(p.110). Para sustentar a sua teoria do trauma, essa tradição científica prescreverá, então, uma teoria do ser.
Considerações finais
Desde que a especulação traumática cruzou os limites da vida onírica, onde, desde Freud5858 Freud S. Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das Letras; 2010., o campo do traumatismo havia fixado sistematicamente o seu interesse, a pesquisa do trauma vem reservando ao papel da imagem uma importância determinante para os transtornos relativos ao estresse4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137.. Esses conteúdos mentais de qualidades sensoriais e distintas da atividade mental verbo-abstrata marcam o paradigma da percepção, cuja expansão determinou a transformação da natureza mesma da imagem, alterando as relações que anteriormente ela detinha com a memória e com a representação5959 Horowitz MJ. Modes of Representation of Thought. J Am Psychoanal Associat 1972; 20(4):793-819.. Como imagem e memória se veiculam essencialmente por ingerência da representação, um novo conjunto de proposições teóricas passaria a requisitar que os fenômenos de reprodução reputados ao traumatismo fossem explicados por mecanismos alternativos de memória. Isso instaura um processo de hierarquização de que teremos notícias pela apropriação do fenômeno traumático por teorias de matriz neurobiológica amplamente aceitas na comunidade científica desde o lançamento do DSM-III6060 Pitman RK. Post-traumatic stress disorder, hormones, and memory. Biological Psychiatry 1989; 26(3):221-223.,6161 Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatr 2001; 13(3):159-163.. O foco no fator etiológico e, portanto, na função do ambiente externo o qual o evento traumático personifica, suscitou tentativas de reformulação da categoria diagnóstica do TEPT em termos de imagem, tencionando, com isso, a sua pura objetivação.
Daí surge a tentativa de explicar as condições pós-traumáticas como reproduções literais de acontecimentos devastadores, a qual se convencionou denominar trauma argument5757 Shobe KK, Kihlstorm JF. Is Traumatic Memory Special? Current Directions Psychol Sci 1997; 6(3):70-74.. Pesadelos recorrentes, flashbacks intrusivos, excitação exacerbada e comportamentos evitativos passaram, então, a ter a sua raiz etiológica associada ao surgimento e à manutenção de uma memória traumática herdeira desses eventos extraordinários. Sustentam essa tese tanto a incorporação da imagem e da representação pelo paradigma perceptivo no século XX, como o resgate da tese dissociativa de Janet1010 Sanfelippo LC. Vías cruzadas para la psicologización del trauma en los saberes médicos de fin del siglo XIX. Asclepio 2018; 70(2):237., que possibilitou a fragmentação da unidade experiencial em componentes mnêmicos irredutíveis, sejam eles de natureza linguística, sejam de natureza somato-sensória. Esse duplo desenvolvimento possibilitou que o fenômeno do flashback fosse finalmente alçado à figura-tipo da experiência traumática no final daquele século. Como a ambição diagnóstica do TEPT procura o reconhecimento trans-individual irrestrito das consequências psicológicas de eventos traumáticos, o seu modelo depende da elucidação pelo esvaziamento da abordagem identificatória do trauma, que se concentrava na interpretação subjetiva da vítima, bem como por métodos dedicados a objetivar e operacionalizar o evento traumático4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137.. Quando as teses sobre os mecanismos especiais de codificação começaram a ser contestadas, uma vertente dominante do campo do trauma recrutou o instrumental neurocientífico para aprofundar a aposta na mesma diretriz, blindando os seus pressupostos ao preço do descarte sumário de toda a tradição psicológica que a complementava. Essa operação de blindagem, expropriando a racionalidade psicodinâmica da interpretação do fenômeno traumático, marca a disjunção essencial de seu duplo fundamento genealógico2424 Fassin D, Rechtman R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press; 2009.: a partir de agora, a coalizão hegemônica firmada entre psiquiatria, neurociências e neurobiologia revestirá a teoria do trauma com a densa tecnocracia da pesquisa neurocientífica, destinará o seu objeto à propriedade exclusiva do corpo e refutará quaisquer objeções a partir de sua impenetrável especialização6262 Rose N, Abi-Rached J. Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Princeton: Princeton University Press; 2013.. Isso explica também a migração dos entusiastas da hipótese do mecanismo especial da memória traumática até os domínios seguros da crescente neurobiologia moderna3535 van der Kolk BA. Psychological Trauma. Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing Inc; 2002.,5555 Southwick SM, Morgan CA, Nicolaou AL, Charney DS. Consistency of memory for combat-related traumatic events in veterans of Operation Desert Storm. Am J Psychiatr 1997; 154(2):173-177.,6161 Brewin CR. Memory processes in post-traumatic stress disorder. Int Rev Psychiatr 2001; 13(3):159-163..
As trajetórias das duas memórias do trauma, cujo entrelaçamento temos notícias pela obra de Charcot e pelo raciocínio semiológico que cunhou o TEPT, se dissociam decisivamente nesse instante. Suas ramificações, outrora reputadas a uma única e mesma origem, passam a organizar-se por um sistema desigual de hierarquias, e a memória psicológica do trauma é rebaixada à condição de fenômeno potencial subordinado aos mecanismos de processamento de informação neuronal dos quais temos pouco conhecimento6363 Fuchs T. Ecology of the Brain: The phenomenology and biology of the embodied mind (International Perspectives in Philosophy and Psychiatry). Oxford: Oxford University Press; 2018.. Logo, o mesmo ponto focal e abstrato para onde convergiam - e de onde se inferia a sua origem genealógica, não é mais capaz de conferir a equidistância entre as determinações da memória corporal e psicológica do trauma, porque esta, enquanto epifenômeno das operações do corpo figurado no cérebro, perde igualmente o seu protagonismo etiológico sobre as perturbações relativas ao traumatismo. Fora do campo representacional, o trauma psíquico será tão somente um efeito espetaculoso do sofrimento, jamais a sua causa primeira. O surgimento da neurobiologia do trauma aponta, assim, para uma definitiva e - aparentemente - irremediável crise da representação4848 Leys R. Image and Trauma. Sci Context 2006; 19(1):137..
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Fev 2024 - Data do Fascículo
Fev 2024
Histórico
- Recebido
25 Dez 2022 - Aceito
07 Jun 2023 - Publicado
09 Jun 2023