Resumo
Eu, nós... ELAS quilombolas, documentário que aborda a identidade quilombola e o direito à vacinação contra a COVID-19, faz emergir noções como prioridade, direito, privilégio e identidade durante o processo que precisa vincular os números de doses a braços de cidadãos. No Brasil, diante da omissão do governo federal, fundamentada na necropolítica e no negacionismo, a falta de informações levou as comunidades quilombolas a se responsabilizarem pela construção das listas de aptos a receberem a vacina. O objetivo da produção foi utilizar as imagens como linguagem política na área da saúde, documentando e dando visibilidade para essas questões, como ilustração de processos de enfrentamento das desigualdades e iniquidades sociais e de saúde pautadas no racismo estrutural. Ao associar ciência e arte, o método de produção audiovisual, entrelaçado com os referenciais da sociologia das imagens, da antropologia visual e dos dispositivos de produção e estética de Coutinho, emergiram três categorias: o eu, o nós e o elas. Este artigo apresenta as categorias que embasaram a construção narrativa do documentário a partir das potencialidades das imagens, que se apresentaram como dispositivo político-pedagógico antirracista, tanto durante o processo de produção quanto ao longo das exibições públicas.
Palavras-chave:
COVID-19; Quilombola; Vacinação; Documentário cinematográfico; Racismo
Introdução
A pandemia de COVID-19 foi um enorme desafio para países que apresentam profundas desigualdades e iniquidades sociais, e, no Brasil, revelou cor, renda e gênero, pois entre os mais atingidos estão as pessoas negras, em situação de rua, moradores de favelas e periferias, quilombolas e indígenas11 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022.. Agravou a situação dessas populações historicamente vulnerabilizadas, que sofrem injustiças pautadas no racismo estrutural22 Anunciação D, Pereira LL, Silva HP, Nunes APN, Soares JO. (Des)caminhos na garantia da saúde da população negra e no enfrentamento ao racismo no Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3861-3870., racismo que é “um determinante social de saúde que afeta adversamente a saúde das populações e representa a causa fundamental das iniquidades de acesso aos bens, recursos e oportunidades em uma realidade global”33 Araújo EM, Caldwell KL, Santos MPA, Souza IM, Rosa PLFS, Santos ABS, Batista LE. Morbimortalidade pela COVID-19 segundo raça/cor/etnia: a experiência do Brasil e dos Estados Unidos. Saude Debate 2020; 44(esp. 4):191-205., sobretudo pela falta de acesso aos serviços de saúde, de moradia adequada e da precarização do trabalho, resultando em maiores taxas de mortalidade e de infecção de COVID-19 em negras e negros22 Anunciação D, Pereira LL, Silva HP, Nunes APN, Soares JO. (Des)caminhos na garantia da saúde da população negra e no enfrentamento ao racismo no Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3861-3870.,44 Goes EF, Ramos D O, Ferreira AJF. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00278110.. Os riscos de morte por COVID-19 foram significativamente maiores para mulheres negras, especialmente as que se encontram na base da pirâmide social. Para as que trabalham em serviços domésticos, as chances foram 112% maiores do que as dos brancos11 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022.. Estamos diante das intersecções entre gênero, raça e classe social, que reforçam o quanto as diversas identidades e sistemas de opressão se entrelaçam e interagem na vida das pessoas. Partindo da interseccionalidade55 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019., reconhecemos que as experiências de discriminação racial não podem ser entendidas de forma isolada, pois as múltiplas identidades se sobrepõem e influenciam as vidas de maneira complexa, o que reforça o quanto as mulheres negras se diferenciam e precisam lutar e resistir contra as opressões da nossa sociedade cisheteropatriarcal branca vivida por seus corpos de mulheres racializados55 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019.,66 González AM; García DM; Lezic LR; Lozano JD. Interseccionalidades en el cuerpo-territorio. Cuerpos, territorios y feminismos. Compilación latinoamericana de teorías, metodologías y prácticas políticas. Quito-Ecuador: Ediciones Abya-Yala; 2020..
O Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-1911 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022. evidenciou a gravidade da falta de respostas adequadas à pandemia, reunindo uma análise técnica e política profunda sobre a emergência da COVID-19 no Brasil e sua (não) gestão em toda a sua complexidade, demonstrando o quanto a correlação entre negacionismo científico77 Cassiani S, Selles SLE, Ostermann F. Negacionismo científico e crítica à ciência: interrogações decoloniais. Cienc Educ 2022; 28:e22000. e necropolítica88 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições; 2018. foi devastadora para essas populações. Como forma de resistir e lutar contra essa situação, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) ajuizou, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)11 Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro: Abrasco; 2022., e a partir dela houve a formação de um grupo de trabalho interdisciplinar para debater, aprovar e monitorar a execução do Plano Nacional de Enfrentamento da Pandemia de COVID-19 voltado à população quilombola.
Mesmo com todo esse avanço, a falta de dados levou as comunidades quilombolas a se responsabilizarem pelo mapeamento dos casos confirmados e suspeitos de COVID-19 em seus territórios99 Santos MPAD, Nery JS, Goes EF, Silva AD, Santos ABSD, Batista LE, Araújo, EM. População negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estud Av 2020; 34(99):225-244., assim como mobilizou a criação, por exemplo, do Observatório da COVID-19 nos quilombos, com o intuito de monitorar de forma autônoma os casos da doença1010 Quilombos sem COVID-19 [Internet]. [acessado 2023 jan 6]. Disponível em: https://www.quilombosemcovid19.org/
https://www.quilombosemcovid19.org... . Tal constatação reforça a tese de Silvio Almeida1111 Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., para quem o racismo no Brasil é elemento constituinte da política e da economia, estruturando de maneira nefasta a sociedade e tornando-se um obstáculo para a garantia do direito à saúde e à vida para a população quilombola. Em quilombos ainda não titulados, questões como essas são ainda mais intensas e tensas, diante da necessidade de comprovação da identidade quilombola. Em termos gerais, quilombos e quilombolas se referem ao agrupamento étnico em comunidades negras rurais e urbanas relacionado à resistência à opressão histórica sofrida, resistência construída a partir de uma significativa rede de relações socioculturais, econômicas e políticas, de uma memória coletiva ancorada na ancestralidade negra afrodiaspórica, no corpo-território. Adotamos neste texto a concepção do ser quilombola que emergiu a partir das vozes dos corpos-territórios das mulheres quilombolas e constituiu a trama narrativa do documentário.
Assim, o objetivo da produção audiovisual em questão consistiu na construção da presença social desses grupos nos ambientes de tomadas de decisão política, a partir da linguagem do documentário, dando visibilidade para o protagonismo das mulheres quilombolas na comprovação da identidade e na elaboração das listas de aptos a receberem a vacina contra COVID-19. Registrar para nunca mais esquecer1212 Lins C. O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2004., para não desaparecer, para fazer o silêncio falar1313 Bento C. O pacto da branquitude. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2022., explorar sua potência estética-narrativa-política para dar a ver aquilo que o Estado pretende invisível1414 Raposo P. "Artivismo": articulando dissidências, criando insurgências. Cad Arte Antropol 2015; 4(2):3-12.. Esses são elementos que serão apresentados neste artigo, a partir da construção do documentário em suas diferentes etapas de produção, analisando as potencialidades das imagens, que, além da linguagem, apresentam-se como dispositivo político-pedagógico antirracista capaz de produzir outros olhares sobre essas populações, tanto durante o processo de produção quanto ao longo das exibições públicas.
O processo de construção do documentário
Entrelaçando ciência e arte
Inspirados e desafiados pelos usos das imagens na pesquisa científica e pelo papel do documentário como linguagem de intervenção social1414 Raposo P. "Artivismo": articulando dissidências, criando insurgências. Cad Arte Antropol 2015; 4(2):3-12., associando ciência e arte1515 Diniz D. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Cien Saude Colet 2008; 13(2):417-426., utilizamos o método de produção audiovisual tendo como referência estética algumas linhas de captação das imagens a partir de Eduardo Coutinho1212 Lins C. O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2004., entrelaçado com os referenciais da sociologia das imagens1616 Cusicanqui SR. Sociología de la imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones; 2015. e da antropologia visual1717 Landa MB. Metodologías audiovisuales participativas. Un desafío epistémico, ético e político. Rev Soc Estado 2022; 37(1):101-110.,1818 Souza EP. "O caso do homem errado" - o cinema como instrumento de denúncias do genocídio da população negra. 2020. [acessado 2023 out 6]. Disponível em: https://publication.avanca.org/index.php/avancacinema/article/view/158
https://publication.avanca.org/index.php... .
Concebemos o documentário como uma produção de encontros de saberes, interepistêmicos e interculturais, inspirados por Silvia Cusicanqui1919 Cusicanqui SR. Chíxinakax Utxiwa. Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón; 2010., que a partir de um Sul epistêmico geopolítico e anticolonial “nos conecta con las culturas visuales como potencias de interpretación, desmitificación y contrapunto de las culturas letradas”, e pelas reflexões de Mariano Landa1717 Landa MB. Metodologías audiovisuales participativas. Un desafío epistémico, ético e político. Rev Soc Estado 2022; 37(1):101-110.:
El trabajo científico, académico y artístico no escapa a las influencias de la teoría, la ideología, la posición política, los intereses y los valores del sujeto científico o artístico. Es por ello que se precisa ensayar metodologías que permitan producir interconocimientos, es decir, lograr experiencias disciplinares y prácticas sociales colaborativas que logren trazar mapas de conocimientos interculturales e interepistémicos [...]1717 Landa MB. Metodologías audiovisuales participativas. Un desafío epistémico, ético e político. Rev Soc Estado 2022; 37(1):101-110. (p. 104).
A equipe de realizadores técnicos e culturalmente diferentes, a partir do seu próprio campo epistêmico, dotou o audiovisual de um caráter democrático e libertador que buscou promover espaços e experiências de perfil autônomo, impulsionando “procesos de reciprocidad simétrica entre investigadores e investigados para superar la arrogancia académica y entablar compromisos de solidaridad, cambio social y producción de interconocimientos que se expresen a través de nuevas y/o diferentes narrativas de corte intercultural”1717 Landa MB. Metodologías audiovisuales participativas. Un desafío epistémico, ético e político. Rev Soc Estado 2022; 37(1):101-110. (p. 105). Assim como: “SURear no es mediar y/o traducir las relaciones entre contextos culturales y mentales diferentes. Es montar procesos comunicativos abiertos, francos, transparentes y amigables, que garanticen la convivencia basada en el respeto a la diversidad humana”1717 Landa MB. Metodologías audiovisuales participativas. Un desafío epistémico, ético e político. Rev Soc Estado 2022; 37(1):101-110. (p. 104).
Ao considerarmos um documentário produzido com os outros, e não sobre os outros, nos inspiramos também nos dispositivos de filmagem de Eduardo Coutinho1212 Lins C. O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2004.:
Tornar o entrevistado não um “objeto” de um documentário e sim sujeito de um filme, dialogar com ele, fazer com que se expresse, com soluções éticas e estéticas para isso. Não “dar a voz” ou ser “porta-voz”, porque essa ideia, entre outras coisas, pressupõe uma verdade do outro a ser revelada no filme, pronta para ser extraída pela equipe do documentário. Não há como “dar voz ao outro”, porque a palavra não é essencialmente do outro. O documentário é um ato no mínimo bilateral, em que a palavra é determinada por quem a emite, mas também por aquele a quem é destinada, ou seja, o cineasta, a equipe e quem estiver em cena (p. 108).
Construindo espaços de encontros interculturais por meio de imagens
Partindo dessas referências teórico-metodológicas, construímos, a partir de mãos, mentes e olhares diversos, as etapas de produção, em um processo iniciado em agosto de 2021 e finalizado em novembro de 2022, que estão sistematizadas na Figura 1.
Na pré-produção, realizamos uma revisão narrativa, um estado da arte sobre os temas centrais do projeto, o acompanhamento dos casos de COVID-19 em áreas de quilombos rurais do RS e formamos a equipe. A formação da equipe foi um momento crucial desta etapa, pela possibilidade concreta de construir uma realização do audiovisual experimentando o encontro intercultural desde a equipe, a partir da paridade de gênero e raça/cor/etnia, composta por pesquisadoras mulheres (três negras, sendo uma quilombola, e três brancas, de diferentes níveis de foomação (IC, mestrandas e doutorandas), de áreas de conhecimento diversas - antropologia, saúde coletiva, desenvolvimento rural, todas trabalhando com o tema das mulheres quilombolas e indígenas, e de técnicos (distribuidor e curador cinematográfico, produtores audiovisuais, fotógrafo, designer gráfico, editor de som, ilustradores), sendo quatro homens (dois negros e dois brancos) e uma mulher branca .
A escolha da comunidade quilombola de Morro Alto, presente nos municípios de Maquiné-Osório, se deu por ser um dos maiores quilombos do RS, ainda não titulado, ilustrativo das situações envolvendo as dificuldades de reconhecimento da identidade quilombola para a vacinação. A partir da apresentação da proposta (e do consentimento, interesse e disponibilidade de participação) à liderança quilombola e às gestoras e profissionais de saúde locais, elas escolheram as vozes que representariam cada uma dessas três categorias de atores sociais. Cabe ressaltar que as mulheres, historicamente cuidadoras2020 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549., lideraram e protagonizaram todo o processo. A escolha política de valorização do papel da mulher negra quilombola tem sustentação no papel que desempenham na sociedade, pois assim como são cuidadoras, também são as que mais sofrem com o racismo nos mais diferentes espaços sociais. O recorte de gênero teve a intencionalidade de dar visibilidade a ELAS, cuja matriz social e de poder colonial, cisheteropatriarcal normativa impõe, ainda, a colonialidade do ser, do saber e do ver2121 Hernàndez DTC. Una mirada muy otra a los territorios-cuerpos femeninos. Solar 2017; 12(1):35-46.,2222 Barriendos J. La colonialidad del ver. Hacia un nuevo diálogo visual interepistémico. Nomadas 2011; 35:13-29..
Com a equipe de produção e as interlocutoras construímos um espaço interepistêmico e de encontro intercultural virtual, em que fomos nos aproximando, criando laços de confiança e de respeito à medida que discutíamos as questões envolvendo o processo de vacinação. Reuniões virtuais/oficinas da equipe também ocorreram para a construção coletiva da problematização, do argumento, do pré-roteiro e das escolhas estéticas. O pré-roteiro continha três grandes temas: (1) o cenário pandêmico, sanitário, social, econômico, político e ambiental e os impactos na vida cotidiana das famílias; (2) a identidade quilombola - quem são e onde estão, reconhecimento dessa identidade, corpo-território versus ausência de dados; listas de autodeclaração; (3) a vacinação - organização, logística, escassez, acesso.
Na etapa de produção, foram gravados vídeos e captadas imagens aéreas e fotográficas dos relatos de constituição das listas de quilombolas a serem vacinados contra COVID-19. Enquadramentos e planos de filmagem registraram imagens e momentos quase indescritíveis (olhares, gestos, silêncios, objetos e pessoas externas à cena principal), evidenciando um conjunto de não-ditos, de invisibilidades de uma identidade não reconhecida pelo Estado.
O roteiro pré-construído foi se moldando a partir da interação com a câmera e com as interlocutoras. Das reflexões iniciais sobre como a vacina chega no território a partir do número de doses, da contagem de doses disponíveis e do “número de braços” demandada pelo poder público (quantas pessoas pertencem ou formam a comunidade quilombola enquanto coletivo), a interação com as pessoas em seu território foi nos mostrando uma realidade complexa. A partir da territorialidade, aprendemos a ver “braços diferentes”, diversos, não homogêneos, mas com laços de parentesco sustentados pela ancestralidade, pelo afeto e pela solidariedade, que evidenciam o sentimento de pertencimento e de identidade. Foi necessário que as histórias individuais pudessem vir à tona para poder entender o conjunto de práticas simbólicas que tinham o poder de garantir o sentimento de pertencimento, de resistência e permanência dos grupos sociais em seu território. Nesse contexto, aceitamos o convite da noção proposta de corpo-território para:
[...] mirar a los cuerpos como territorios vivos e históricos que aluden a una interpretación cosmogónica y política donde en él habitan nuestras heridas, memorias, saberes, deseos, sueños individuales y comunes y, a su vez, invita a mirar a los territorios como cuerpos sociales que están integrados a la red de la vida y, por tanto, nuestra relación hacia con ellos debe ser concebida como “acontecimiento ético” entendido como una irrupción frente a lo “otro”2121 Hernàndez DTC. Una mirada muy otra a los territorios-cuerpos femeninos. Solar 2017; 12(1):35-46. (p. 43).
As identidades quilombola reveladas nas falas expressam práticas ancestrais de uso do mato desde a escravização (liberdade, fuga, encontros), mobilizam relações estabelecidas na senzala (parentesco, memória, ancestralidade) e na roça (relações familiares, legado de terras, trabalho, sobrevivência) que configuram a territorialidade e o ser quilombola. Laços e relações estabelecidas que permitem identificar nomes e ramos familiares de descendentes em territórios dispersos (o parentesco estabelece um dos sistemas unificadores da comunidade, operando conexões entre a “terra”e as “pessoas”); a cor e a valorização de sua existência e resistência promovem reconhecimentos solidários. Enquanto remanescentes de comunidades quilombolas reivindicam direito ao território, a identidade guarda memória pela história viva de quem há séculos sofre a opressão, o silenciamento e a invisibilidade pela desumanização e o racismo.
A entrada em cena do dispositivo de Eduardo Coutinho, filmando os rostos em plano fechado em uma câmera, plano médio em outra câmera e plano aberto na terceira câmera (incluindo a equipe de produção), promoveu interações potentes que permitiram expressar o corpo-território mulher quilombola e as territorialidades, preservando a força expressiva da imagem1212 Lins C. O documentário de Eduardo Coutinho - televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2004.. As interações com e pela câmera proporcionam para as mulheres quilombolas momentos de reencontro com a história e com a ancestralidade; para as profissionais de saúde e gestoras, momentos de desconforto, de reviravolta, de interpelação da condição do colonizador e a reprodução da matriz social de poder racializada e patriarcal; para a equipe de produção, momentos de interpelação da alteridade, da colonialidade do ser, do ver, do saber; para todos, momentos de fazer da diferença, processos de troca e aprendizagem. Nós fomos para falar sobre o processo de vacinação (equipe, profissionais e gestoras), elas (as mulheres quilombolas) vieram para falar sobre quem eram, sobre seus corpos-território.
Como aponta Débora Diniz, diferentemente de outras narrativas visuais, em que o roteiro determina as gravações, no filme etnográfico, os participantes reconstroem continuamente qualquer proposta de pré-roteiro. Essa, na verdade, é também a riqueza do método etnográfico1515 Diniz D. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Cien Saude Colet 2008; 13(2):417-426. (p. 419). Assumir essa perspectiva configura o engajamento e a implicação da equipe em ofertar uma narrativa a partir da perspectiva de quem sempre foi invisibilizado e silenciado: assumir que não há neutralidade na construção da narrativa é afirmar que toda narrativa representa um ponto de vista sobre os fenômenos sociais, sendo, portanto, uma narrativa ética e estética sobre o que é filmado1515 Diniz D. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Cien Saude Colet 2008; 13(2):417-426. (p. 419).
O fio condutor da narrativa fílmica: Eu, nós… ELAS quilombolas
Na pós-produção, a compreensão da realidade que nos desafiamos a revelar exigiu um olhar que percorre singularidades e transversalidades, transitando entre a dimensão individual e coletiva. Esse percurso marca as dinâmicas sociais afro-brasileiras, nas quais a comunidade é o centro das preocupações do indivíduo2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231.. As três categorias centrais que emergiram das vozes dos corpos-territórios das mulheres quilombolas foram: o eu, o nós e o elas. Elas não constituem a sequência da narrativa do documentário em sua linearidade, mas atravessam toda a trama do filme.
Iniciamos pelas visualizações das gravações individuais, produzindo uma síntese dos momentos mais marcantes de cada entrevista, o que poderia/deveria ser detalhado de cada história de vida. A partir da construção de um quadro-síntese das singularidades, identificamos aquilo que compartilhavam de comum em sua identidade social2121 Hernàndez DTC. Una mirada muy otra a los territorios-cuerpos femeninos. Solar 2017; 12(1):35-46. (além do gênero, raça/etnia, classe social, como a força, coragem, determinação, ancestralidade, resistência, sensibilidade, acolhimento, dor/sofrimento/racismo, saída do quilombo, violência, face perversa do racismo e da necropolítica interseccionadas pelo patriarcado, colonialismo, capitalismo) e que transversalizassem a construção da narrativa sobre a vacinação contra COVID-19: “Nós não seríamos vacinados ou seríamos os últimos se não fosse o papel dos quilombolas” (Catiani). A partir daí, vai se construir a trama e as costuras entre a identidade quilombola/ser quilombola e o papel das mulheres quilombolas para enfrentar o racismo enquanto determinante social da saúde pela construção das listas de aptos a receberem a vacina contra COVID-19.
Instigados pela narrativa das mulheres quilombolas, experimentamos, com auxílio de ilustrações, uma sistematização desses corpos-territórios capaz de convidar a confluir olhares múltiplos. Mesclando linguagens2424 Teixeira FE. Documentário moderno. In: Marcarello F, organizador. História do cinema mundial. Campinas: Papirus; 2010., as reflexões e inspirações são então traduzidas por ilustrações, que acabam por promover a horizontalidade no diálogo entre equipe técnica e comunidade quilombola. Retratam a transversalidade que permeia histórias de vida enraizadas na identidade e memória de mulheres quilombolas, assim como provocam a polissemia do olhar e o diálogo interepistêmico. Assim, as ilustrações desenvolvidas pela artista Natália Gregorini mediam o diálogo entre acadêmicos, técnicos, comunidade e sentipensantes.
Os traços foram feitos em carvão, escolha que remete às atividades manuais presentes nas histórias das 11 mulheres protagonistas do documentário e, sobretudo, no corpo-território que produz a resistência da comunidade, sendo posteriormente digitalizados. Também reverenciam a terra, fator que influencia a escolha da paleta de cores das ilustrações, repleta de tons terrosos. Entre as sutilezas, destacamos a presença de personagens não humanos, como a figueira e o vento, que contribuem para a caracterização do corpo-território, despertando a memória, os afetos através dos laços, a terra que nutre, sustenta e permeia os tempos. A partir dessa concepção, na qual são considerados indivíduos e coletividade, humanos e não humanos, território e tempo, foram elaboradas animações que sintetizam conceitos e momentos complexos, o ser quilombola, além de inspirarem o título e o cartaz da trama. Assim como a vida no quilombo é nutrida pelas ações cotidianas das mulheres, as escolhas quanto à abordagem da narrativa entre equipe técnica e mulheres quilombolas é nutrida pelos diálogos mediados pelas imagens. Uma poética que vai em busca das memórias e de um registro imagético científico.
O ser quilombola foi, assim, o fio condutor da narrativa, e as imagens geradas subsidiaram a análise interpretativa de construção coletiva do roteiro para montagem e edição das imagens (audiovisuais, fotográficas, ilustrações). Eu, nós e elas se configuraram como elementos centrais dessa identidade e permearam todo o processo de vacinação, elementos que se entrelaçam ao longo de toda a trama da narrativa audiovisual em questão. O eu, remete à fala inicial, “Eu quilombola, ser vacinada por ser quilombola, faz uma grande diferença” (Catiani), e traz a marca da identidade em primeiro lugar. O eu contempla, portanto, as singularidades de cada história, apresentadas aqui descritivamente, ao mesmo tempo em que expressa a conexão com a dimensão coletiva produzida pelo nós. Nesta dimensão, convidamos o leitor a aproximar-se da profundidade do contexto em que se evidenciam os valores comuns que produzem reconhecimento, pertencimento, ou seja, a identidade social. Ao nos referirmos a elas, apresentamos análises que conferem destaque às protagonistas do processo, enraizado na ancestralidade, relacionando-se com o fazer falar o silêncio1313 Bento C. O pacto da branquitude. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2022., o resistir à dominação de corpos e territórios pela colonização e a branquitude, garantindo assim direito à vacinação. Abarcar essas questões sob o ponto de vista da interseccionalidade reforça o quanto as mulheres negras precisam lutar e resistir contra as opressões sociais55 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019..
Eu: as singularidades no processo de compreensão da identidade quilombola
Do coração da comunidade, no interior da associação comunitária Rosa Osório Marques, pulsaram as falas, reflexões e emoções das protagonistas do processo de vacinação na comunidade quilombola de Morro Alto. Onze mulheres que, impulsionadas pelo desafio do momento, revisitaram memórias, encararam medos, reformularam planos. O Quadro 1 sistematiza alguns elementos de suas vidas e algumas de suas falas no documentário que embasaram a construção das categorias eu, nós e elas, centrais no fio condutor da narrativa do documentário.
Foi a partir das histórias singulares de cada uma das interlocutoras, encarregadas de identificar os braços, que elas nos contam sobre laços, sobre o que as une, o nós. Evidenciaram também as intersecções entre gênero, raça e classe social55 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019. desses corpos-territórios, fundamentadas nos modelos do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo, sistemas que se entrelaçam e produzem consequências estruturais a partir da interação entre esses eixos de subordinação2020 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549.,2525 Santos ER. Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras. Rev CEAM. 2020; 6(1):114-124..
Nós: corpo-território no fortalecimento da identidade e da luta antirracista
Das falas das protagonistas sobre a relação entre memória e união do grupo, chegamos à figueira, local das primeiras reuniões na comunidade. Encontros ancorados nas raízes da árvore e da comunidade, que sob o abrigo da copa da planta, coberta por barbas, de tom acinzentado, que se movem com o toque dos ventos, embalam os processos de transformação.
A figueira passa a ser, simultaneamente, cenário, personagem e inspiração. Sabendo também que para os quilombolas as árvores, plantadas por um indivíduo, significam a permanência contínua dos antepassados na coletividade2626 Muller CB. Comunidade remanescente de quilombos de Morro Alto: uma análise etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do significado da identidade jurídico-política de "remanescentes de quilombos" [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2006., percebemos nesse elemento uma aproximação com a epistemologia quilombola, pelas relações entre corpos-territórios-terra, entre raízes, ancestralidade, resistência e futuro (Figura 2). Assim, agregar a figueira à narrativa, a partir de outra linguagem, permitiu ilustrar a conexão com valores que constroem a identidade social produzida pelas raízes ancestrais quilombolas e evidenciar as lutas, as dores e os desassossegos em decorrência das estruturas racistas e coloniais do país, e também as resistências atemporais, os enfrentamentos do presente e as esperanças do futuro, valores que, como nos dizem Roberto Lacerda et al.2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231., são essenciais para a sobrevivência do grupo.
Ilustração da síntese sociocultural da ancestralidade quilombola que se tornou animação e fio condutor da narrativa audiovisual.
A relação com o território atravessa as narrativas (Figura 3), contemplando o sentir quilombola de mulheres que nasceram na comunidade e nunca saíram dela, bem como de pessoas que foram forçadas a migrar para outras regiões para sobrevivência (uso de dinamites na pedreira, busca por empregos). Há também os jovens que, em busca de formação, residem em centros maiores e retornam ao quilombo todos os finais de semana, e ainda há os laços matrimoniais. Nesse contexto, merece destaque o ser quilombola como não restrito ao território. A dimensão coletiva, de pertencimento e de reconhecimento de uma identidade social, não desaparece com a saída do quilombo.
O processo desencadeado pela vacinação contra a COVID-19 na comunidade de Morro Alto evidencia que o ser quilombola transcende a dimensão biológica, individual, presente e material do fenômeno saúde. Este caso reforça a ideia de que a identidade, fortalecida pela coesão e saúde do corpo coletivo, contribui para a resistência às adversidades da vida2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231.. Se a expressão quilombo já foi sinônimo de organização criminosa, que precisava ser perseguida e rechaçada, hoje se apresenta como uma conquista, uma organização de direito, uma identidade que é requerida pelos quilombolas2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231.,2727 Santos AB. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCT; 2015..
Nesse contexto, atentos aos desafios que lhes são impostos, e o lugar que ocupam na estrutura da sociedade brasileira, uma das falas sintetiza a importância do nós na garantia do direito à vacinação: “Nós não seríamos vacinados ou seríamos os últimos se não fosse o papel dos quilombolas” (Catiani).
Elas quilombolas: o protagonismo das mulheres quilombolas no processo de vacinação contra a COVID-19 e no enfrentamento do racismo estrutural
As tomadas de decisão e ações na comunidade quilombola têm na identidade, ancorada na memória, o alicerce para a elaboração de listas que garantem o direito à vacinação, à vida, à maneira quilombola de ser e estar no mundo. Através das narrativas das vivências das mulheres quilombolas, a trama evidencia os (des)encontros entre o planejamento e as ações que envolvem as esferas federal, estadual e municipal, assim como as estratégias locais para lidar com a escassez de vacinas, as demandas dos grupos prioritários e a transparência do processo junto à população: “Não era só a vacina. A vacina veio me mostrar o outro lado” (Francisca).
As mulheres negras são sujeitos históricos e políticos fundamentais nas ações de resistência, desde os tempos da escravização, mulheres que sempre foram silenciadas pela narrativa dominante, mas que assumiram a responsabilidade pela vacinação dos quilombolas diante do Estado que não se incumbiu de forma efetiva de seu papel de responsável pela saúde dessa população.
Diante do cenário pandêmico, convivendo com distanciamento social, quarentena, doenças, mortes e incertezas, estressadas, confusas, preocupadas, angustiadas e amedrontadas, elas perceberam a importância de protagonizar esse processo que garantiria a vida do coletivo, mesmo colocando suas próprias vidas em perigo. As falas e ações das mulheres quilombolas nos levam a refletir sobre a construção antirracista de uma prática de cuidado que requer a supressão da carência de dados, que reproduz a invisibilidade social desses grupos, tidos como invisíveis ou incômodos por sua existência2525 Santos ER. Necropolítica, coronavírus e o caso das comunidades quilombolas brasileiras. Rev CEAM. 2020; 6(1):114-124.. Nesse sentido, um olhar que não reduza as comunidades quilombolas a territórios áridos, adoecidos, esquecidos pelo poder público e marcados para desaparecer2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231.,2828 Barbosa RRS, Silva CS, Sousa AAP. Vozes que ecoam: racismo, violência e saúde da população negra. Rev Katálysis 2021; 24(2):353-363..
Ainda na etapa de pós-produção, também fizemos a pré-exibição do documentário junto à comunidade para devolutiva e validação, dispostos a ajustes que se fizeram necessários e comprometidos até o final com a construção compartilhada de todo o processo de produção de uma narrativa ética, política e implicada. Foi também o momento de retorno das ilustrações ao quilombo, não somente pela visualização delas no filme, mas pela entrega impressa, permitindo que fossem partilhadas, além da razão, emoções. Esses encontros culminaram no aceno positivo para que a narrativa proposta, de raízes fortes, pudesse agora ganhar asas, e percorrer caminhos e olhares outros. Nesse contexto, torna-se oportuno assumir que optamos por apresentar as protagonistas com nome fidedigno, pautados no consentimento e na escolha delas do uso do nome e das imagens.
A complexidade da narrativa originou um longa-metragem (Figura 4) que, além da vacinação, retrata a realidade das populações quilombolas, trama que, apesar dos esforços de descrição e reflexão neste texto, confiamos que adquira sua potência na sua visualização, em que imagens falam o que o texto escrito é incapaz. Sendo assim, convidamos o leitor a aproximar o seu olhar sobre essas questões por meio do link https://www.youtube.com/watch?v=OJdzxOi0RAE. A escrita pode falar da invisibilidade, mas ver e ouvir as mulheres quilombolas falando sobre sua invisibilidade confere outro sentido.
Reflexões finais: a produção audiovisual enquanto dispositivo antirracista
A vacinação da população quilombola contra a COVID-19 foi um passo importante no reconhecimento da identidade e do direito dessa população, no entanto, ao longo da sua operacionalização, questões estruturais emergiram quando se precisou vincular números de doses a braços de cidadãos. Imersos nessa que foi uma das mais graves crises sanitária, social, econômica e política, e atentos à problemática, em que a invisibilidade marca os processos de tomadas de decisão, temos na produção audiovisual, além do registro, a possibilidade de um dispositivo político-pedagógico capaz de abordar a ausência do Estado, a necropolítica, o racismo estrutural e institucional, o privilégio e o direito que afetam as populações quilombolas e todas as demais populações invisibilizadas e vulnerabilizadas. Buscamos fazer ciência mediada pelas imagens, e corroboramos o que afirma Ana Lúcia Ferraz2929 Ferraz AL. Metamorfoses da imagem nas ciências sociais: três experiências com o filme etnográfico. Rev Soc Estado 2022; 37(1):111-126., pois
a produção audiovisual contribui nos processos de democratização do conhecimento produzido nas ciências sociais, ampliando as possibilidades do diálogo entre o conhecimento acadêmico e os sujeitos sociais. Este diálogo mediado pelas imagens e sua restituição no processo de pesquisa aos grupos estudados amplia a compreensão e aprofunda os vínculos compartilhados em campo (p. 113).
Dar visualidade à vivência cotidiana das comunidades quilombolas como exercício científico de investigação e compreensão das potências na produção do cuidado em contextos e cenários de negligência e vulnerabilização2323 Lacerda RS, Almeida MVG, Jesus JS. Práxis do cuidado em comunidades quilombolas: potências e diálogos na produção de saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 201-231. possibilita ao campo da saúde coletiva considerar e se apropriar da multiplicidade de gêneros discursivos em suas práticas de pesquisa, tal como as imagens. Possibilita, igualmente, a devolução à sociedade daquilo que a ciência produz, assim como potencializa no campo científico a interação das experiências dos indivíduos no que diz respeito à sua saúde, historicamente invisibilizadas pelo racismo epistêmico que universaliza e legitima as concepções eurocêntricas de análise dos modos de vida de comunidades tradicionais3030 Gerhardt TE, Ruiz ENF. Resistências, (re)existências e (sobre)vivências em imagens para pensar o rural - manifesto visual [Internet]. 2018. [acessado 2023 out 13]. Disponível em: https://issuu.com/projetodeslocamentos/docs/cat_logo_exposi__o_fotogr_fica
https://issuu.com/projetodeslocamentos/d... .
A proposição de uma ciência pública deve materializar-se em ações, desenvolvendo metodologias para ampliar a compreensão em diálogos para a produção de conhecimento. O filme etnográfico atua nos processos sociais, visibilizando pontos de vista, lugares de experiência, formas de vida, trazendo à discussão os temas dos momentos vividos em processos de produção de conhecimento. O filme etnográfico amplia as possibilidades de diálogo com o público para fora dos muros da academia, amplificando as vozes dos sujeitos, disputando as imagens dos sujeitos com a visibilidade hegemônica, filmados a partir de seus territórios, de suas formas de existência e das próprias lógicas2929 Ferraz AL. Metamorfoses da imagem nas ciências sociais: três experiências com o filme etnográfico. Rev Soc Estado 2022; 37(1):111-126. (p. 113-114).
Apesar de conhecidas as proporções dos impactos de produções imagéticas, há ainda desafios envoltos tanto na elaboração como na aceitação desses materiais no âmbito acadêmico: epistemológicos, metodológicos, de fomento, de formação de uma equipe técnica multidisciplinar disposta a tecer uma narrativa autoral de um sujeito coletivo que conta uma história.
Joaquín Barriendos2222 Barriendos J. La colonialidad del ver. Hacia un nuevo diálogo visual interepistémico. Nomadas 2011; 35:13-29. aborda a colonialidade do ver como constitutiva da modernidade, portanto, agindo como padrão heterárquico de dominação, decisivo para todas as instâncias da vida contemporânea, e problematiza a relação entre produção visual da alteridade e do racismo epistemológico. Utilizadas pelos colonizadores como forma de poder, as imagens podem ser ignoradas, esquecidas, alimentando o imaginário com a interiorização de preconceitos, ou, ao contrário, pode-se utilizar do poder que a imagem tem para contestar, reativar, reconvocar a serem pensadas a partir de um outro lugar de enunciação, que permite ressignificar e utilizar as imagens como fonte de conhecimento do outro, onde novas demandas e identidades modificam seu significado original e se insere em um novo quadro de significados3131 Gerhardt TE, Migon NB. O reverso de algumas reflexões sobre as potencialidades das imagens e das artes enquanto princípios descolonizadores para pensar o cuidado. In: Gerhardt TE, Pinheiro R, Lopes TC, Silva Jr. AG, organizadores. Natalidade e o SUS. Pensar inícios e (re)começos no cuidar - 20 anos de integralidade em saúde (Tempos de Pandemia COVID-19). No prelo; 2023..
As categorias centrais do processo de construção das listas de vacinação, o eu, nós, elas, permitem aprofundar a natureza do laço social e compreender as condições e as possibilidades de certos grupos concretizarem suas reivindicações na arena da disputa política sobre o significado e a visibilidade das demandas sociais marginalizadas, pois as imagens contribuem para construir o imaginário social a partir de uma história contada por elas.
Estamos aqui no cerne de fazer falar o silêncio1313 Bento C. O pacto da branquitude. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2022. diante das opressões em relação à diversidade de saberes e manifestações do viver e do cuidar, da resistência contra o privilégio epistêmico do modelo biomédico e as formas de dominação, sobretudo pela sinergia decorrente do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado. Cida Bento1313 Bento C. O pacto da branquitude. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2022. vai nos falar sobre a herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida publicamente:
Assim, falar sobre a herança escravocrata que vem sendo transmitida através do tempo, mas silenciada, pode auxiliar novas gerações a reconhecer o que herdaram daquilo que vivem na atualidade, debater e resolver o que ficou no passado para então, construir uma outra história1313 Bento C. O pacto da branquitude. Rio de Janeiro: Companhia das Letras; 2022. (p. 25).
Segundo Silvia Cusicanqui1616 Cusicanqui SR. Sociología de la imagen: miradas ch'ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón Ediciones; 2015., as imagens têm força para construir uma narrativa crítica que pode desmascarar diferentes formas de colonialismo, argumentando que são as imagens, mais do que as palavras, que permitem captar e desconstruir os sentidos bloqueados pela língua oficial. A intenção não é idealizar a imagem como algo não colonizado, mas pensá-la como um desafio criativo que transcende a escrita, considerando que a palavra tem lugar privilegiado no conhecimento ocidental e que parte do mundo rural não acessa a palavra escrita. As imagens, por sua polissemia, possibilitam encontros múltiplos com outras formas de existir acompanhadas de uma ética de cuidado3232 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29., em que o respeito é a premissa básica e necessária de diálogo e escuta de suas formas expressivas.
O trabalho visual ainda contribui para a memória, pois nos lembra do que esquecemos, e “evocam elementos profundos da consciência humana”3333 Harper D. Talking about pictures: a case for photoelicitation. Visual Studies 2002; 17(1):13-26.. Fazem parte de um conhecimento que oferece possibilidade de escape dentro dos domínios coloniais, de outra ontologia, na qual a ontologia política relacional realoca o mundo moderno em um mundo dentro de outros mundos, tarefa fundamental das academias e de alguns movimentos sociais3434 Escobar A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Ediciones Unaula; 2014.. Por fim, as imagens permitem compreender e aprender sobre diferentes epistemologias, concepções e práticas em saúde, e por meio desse exercício imagético, tornam-se potentes aliadas na construção de espaços de diálogos interepistêmicos e interculturais no Sistema Único de Saúde.
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Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - documentário financiado com recurso Projeto PROEX.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 - Data do Fascículo
Mar 2024
Histórico
- Recebido
16 Abr 2023 - Aceito
04 Dez 2023 - Publicado
06 Dez 2023