Àgô Sankofa: um olhar sobre a trajetória da doença falciforme no Brasil nos últimos 20 anos

Clarice Santos Mota Altair dos Santos Lira Maria Candida Alencar de Queiroz Márcia Pereira Alves dos Santos Sobre os autores

Resumo

A doença falciforme (DF) é um caso emblemático de negligência histórica em saúde no Brasil e reflete como o racismo institucional produz iniquidades em saúde. Este artigo fez um percurso histórico até os dias atuais e mostra atraso na implementação de políticas de saúde voltadas para as pessoas com DF, tantas vezes encoberto em (in)ações e omissões do poder público. O descompromisso para a efetivação das recomendações do Ministério da Saúde, a exemplo da triagem neonatal, e a dificuldade de incorporar as tecnologias para a assistência à saúde resultam desse modus nada operandi. Os avanços e retrocessos nas ações programáticas, bem como a pressão constante sobre os diversos entes governamentais, caracterizaram a saga dos últimos 20 anos. O texto disserta sobre as políticas voltadas para as pessoas com DF, apropriando-se da simbologia Sankofa, já que só é possível construir o presente pelo aprendizado dos erros do passado. Assim, reconhecemos essa trajetória e esse momento histórico em que há possibilidade concreta de avançar e concretizar o tão almejado cuidado integral para pessoas com DF. Concluiu-se que há um convite para um novo olhar, em que esperançar seja o disparador das movimentações necessárias para a garantia do direito para as pessoas com DF.

Palavras-chave:
Anemia falciforme; População negra; Racismo Sistêmico; Política de saúde

Introdução

A contribuição brasileira para gerar conhecimento científico sobre doença falciforme (DF) no mundo é relevante, ainda que com certo grau de distanciamento, posiciona-se somente atrás dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França11 Musa HH, El-Sharief M, Musa IH, Musa TH, Akintunde TY. Global scientific research output on sickle cell disease: a comprehensive bibliometric analysis of web of science publication. Scientific African 2021; 12:e00774.,22 Okoroiwu HU, López-Muñoz F, Povedano-Montero FJ. Bibliometric analysis of global sickle cell disease research from 1997 to 2017. Hematol Transf Cell Therapy 2022; 44(2):186-196.. Na perspectiva das políticas públicas, a incorporação da Política Nacional de Atenção Integral à Pessoa com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias (PNAIPDF) no Sistema Único de Saúde (SUS) pela atuação dos movimentos sociais junto aos atores institucionais reforça o protagonismo e a importância dessa agenda no Brasil.

Se por um lado esse protagonismo é motivo de reconhecimento, por outro a compreensão das imbricações do racismo sistêmico nas entranhas das estruturas globais, regionais, locais e interpessoais é percebida como obstáculo à reverberação dessa pujança no cotidiano e na vida das pessoas com DF33 Power-Hays A, McGann PT. When actions speak louder than words - racism and sickle cell disease. NEJM 2020; 383(20):1902-1903.,44 Bulgin D, Tanabe P, Jenerette C. Stigma of sickle cell disease: a systematic review. Issues Mental Health Nurs 2018; 39(8):675-686.. Não por acaso, o racismo como sistema desdobrado em diferentes dimensões compõe o modelo teórico explicativo para dor, que é a marca da DF55 Royal CD, Babyak M, Shah N, Srivatsa S, Stewart K A, Tanabe P, Asnani, M. Sickle cell disease is a global prototype for integrative research and healthcare. Adv Genetics 2021; 2(1):e10037..

Indiscutivelmente, a DF é um protótipo para a compreensão de como a determinação social impacta o processo de saúde-adoecimento-cuidado-morte, intimamente relacionada à fragmentação do modelo de atenção à saúde e à baixa translação de conhecimento científico. Muito mais do que uma doença genética, a DF no Brasil é um caso emblemático de como essas duas engrenagens, o racismo e a exclusão social, retroalimentam-se66 Mota CS, Atkin K, Trad LA, Dias ALA. Social disparities producing health inequities and shaping sickle cell disorder in Brazil. Health Sociol Rev 2017; 26:280-292.

7 Mota CS, Trad LAB, Silva GS, Lira A, Dias ALA. O racismo e seus impactos na vida das pessoas com doença falciforme. In: Verde IL, Campos DB, Custódio LL, Oliveira RS, organizadores. Doença falciforme: saberes e práticas do cuidado integral na Rede de Atenção à Saúde. Fortaleza: EdUECE; 2019, p. 256-292.
-88 Silva GS, Mota CS, Trad L. Racismo, eugenia e doença falciforme: o caso de um programa de triagem populacional. RECIIS 2020; 14(2):355-371. e ilustram o status quo para vivências, experiências, conquistas, avanços e retrocessos.

Os dias atuais ainda retratam a realidade descrita em 1979, a saber:

Algumas nuvens de preocupação aparecem agora no horizonte para o programa nacional de doença falciforme. Há uma flagrante atenção geral por parte da população negra e uma diluição do interesse e da visibilidade do problema da anemia falciforme provocada por manobras políticas para colocar o programa sob o guarda-chuva legislativo de muitas outras doenças genéticas. Além disso, o programa federal eliminou recentemente seis centros de referência em assistência integral à doença falciforme abrangentes e impôs cortes orçamentários nos demais centros. As vítimas desta doença, a população negra em geral e os pesquisadores e investigadores que buscam formas de controlar esta doença precisam da garantia da atual administração nacional de que o programa de células falciformes não terá a permissão de morrer lentamente devido a desgaste financeiro, atenuação de interesse e negligência hábil, levando à eliminação gradual de outro projeto minoritário99 Oransky I. Roland B Scott. Lancet 2003; 361(9361):973. (Roland B. Scott, 1978 apud Oransky, 2003, p. 973 - tradução e grifo nossos).

Apesar das diferenças contextuais e históricas, permanecem o baixo interesse, os cortes orçamentários, as manobras políticas e a negligência como registros da história social da DF no Brasil1010 Mota CS, Trad LAB, Dikomitis L. Sickle cell disease in Bahia, Brazil: the social production of health policies and institutional neglect. Societies 2022; 12(4):108-128..

A DF é uma das doenças hematológicas hereditárias de relevância epidemiológica por ser um problema de saúde pública no Brasil e no mundo. Afeta aproximadamente 30 milhões de pessoas1111 Cançado R. Sickle cell disease: looking back but towards the future. Rev Bras Hematol Hemoter 2012; 34(3):175-177. com a estimativa de que nasçam 300 mil crianças vivas anualmente1212 Dormandy E, Gulliford M, Bryan S, Roberts TE, Calnan M, Atkin K, Karnon J, Logan J, Kavalier F, Harris HJ, Johnston TA, Anionwu EN, Tsianakas V, Jones P, Marteau TN. Effectiveness of earlier antenatal screening for sickle cell disease and thalassaemia in primary care: cluster randomised trial. BMJ 2010; 341:c5132.. No país, estima-se entre 60 mil e 100 mil pessoas com DF. Como ação programática, o diagnóstico foi instituído em 2001 pelo programa nacional de triagem neonatal. Cabe esclarecer que a adesão e cobertura da triagem neonatal pelos estados variaram significativamente ao longo do tempo. Há uma distribuição heterogênea da DF no país, onde Bahia, Distrito Federal e Piauí são as unidades federadas que apresentam o maior número de casos.

Sem dúvida há dados imprecisos (sub-registros) sobre a DF, o que pode influenciar a precisão de sua prevalência no país1313 Diniz D, Guedes C, Barbosa L, Tauil PL, Magalhães I. Prevalência do traço e da anemia falciforme em recém-nascidos do Distrito Federal, Brasil, 2004 a 2006. Cad Saude Publica 2009; 25(1):188-194. Para superar essa imprecisão, realizar o cadastramento de todos as pessoas com diagnóstico de DF viabilizaria informações mais fidedignas. Além disso, propiciaria o registro dos casos diagnosticados no pré-natal ou nas doações de sangue, ocasiões em que o diagnóstico é estabelecido fora da triagem neonatal. Existe o indicador que se refere ao número de crianças diagnosticadas com a doença na triagem neonatal em relação aos nascidos vivos triados1414 Batista LE, Barros S, Silva NG, Tomazelli PC, Silva AD, Rinehart D. Indicadores de monitoramento e avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Saude Soc 2020; 29(3):e190151.. Esse cadastramento ampliaria a possibilidade de elaboração de outros indicadores para monitoramento. Segundo Batista1414 Batista LE, Barros S, Silva NG, Tomazelli PC, Silva AD, Rinehart D. Indicadores de monitoramento e avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Saude Soc 2020; 29(3):e190151., a falta de informações qualificadas para a gestão e tomada de decisão para o cuidado em saúde é uma característica da baixa implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), sendo um desafio a ser superado.

No Brasil, a expectativa de vida das pessoas com DF é de aproximadamente 37 anos na mediana da idade ao óbito, em comparação com a população geral. Em um estudo sobre mortalidade no país dos 6.553.132 óbitos registrados, 3.320 registros foram de indivíduos com DF. Entre eles, a mediana da idade ao óbito foi de 32 anos, enquanto que na população geral a mediana foi de 69 anos1515 Cançado RD, Costa FF, Lobo C, Migliavaca CB, Falavigna M, Souza Filho HC, Pinto ACS. Sickle cell disease mortality in Brazil: real-world evidence. Blood 2021;138(Suppl. 1):3025..

A relação da DF com os processos de determinação social é histórica e se renova, já que não há uma política de priorização dessa população. No atual cenário de crise econômica, política e sanitária, o empobrecimento da população negra é um obstáculo adicional para famílias que convivem com uma doença crônica como a DF. Seja porque as mães/avós param de trabalhar para exercer o cuidado com as crianças, seja porque as crianças evadem a escola precocemente em decorrência das múltiplas hospitalizações, seja pela dificuldade dos adultos de se manterem empregados em meio às crises periódicas causadas pela doença. São fatores complexos, que dificultam a mobilidade social e impactam a renda dessas famílias.

As recentes tentativas de desmonte do Sistema Único de Saúde têm implicação negativa na saúde da população negra, que usa majoritariamente o sistema público de saúde. Além disso, o subfinanciamento de pesquisas, especialmente aquelas com foco em populações em situação de vulnerabilidade social, resultam em apagões de dados sobre os impactos das crises nas pessoas que vivem com DF. Portanto, fica evidente que passado e presente se confundem na história social da DF no Brasil.

Frente a esse contexto, o objetivo deste artigo é mostrar e discutir as persistentes formas de produzir negligência quando se trata de uma doença prevalente entre a população negra no Brasil, grupo populacional majoritário no país. Para isso, os racismos estrutural e institucional serão analisados como ferramentas explicativas para a reprodução dessa negligência. Dessa forma, a luta pela vida e a saúde das pessoas com DF passa a ser uma luta também contra o racismo e as iniquidades raciais na saúde.

Para iniciar a reflexão, é preciso questionar: o que o percurso histórico das políticas em prol das pessoas com DF tem a nos ensinar? O que o atual cenário político no Brasil representa para uma pauta negligenciada por tantos anos no Brasil? O quanto avançamos? O quanto falta avançar para o cuidado integral para essas pessoas? Há espaço para a esperança? Essas reflexões estão nas sessões: 1) Avanços, impasses e retrocessos na luta pela saúde das pessoas com doença falciforme; 2) Negligências históricas e atualizadas e os impactos do racismo na história da DF no Brasil; e 3) A situação da doença falciforme hoje: preocupação e esperança.

1) Avanços, impasses e retrocessos na luta pela saúde das pessoas com doença falciforme

A história da Política de Atenção Integral a Pessoas com Doença Falciforme está atrelada à própria reivindicação da população negra pelo direito à saúde e retrata a história de exclusão vivida por essa população e o impacto desse processo nas condições de vida e saúde. Dessa forma, tanto a questão da exclusão social quanto o racismo e as iniquidades em saúde são fatores importantes para melhor compreender a trajetória social da DF no Brasil e as marcas deixadas nos corpos das pessoas com a doença.

A construção dessa “linha do tempo”, que se inicia em 1996 e se estende até os dias atuais. Permite identificar os principais acontecimentos que marcaram a luta das pessoas com DF pelo direito à saúde. Nesse intervalo de tempo, destacam-se três grandes marcos: a inclusão no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) e a criação da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (FENAFAL), ambas em 2001, e a criação da Política Nacional de Atenção Integral à Pessoa com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias (PNAIPDF) em 2005.

A organização das pessoas com DF e seus familiares em associações e grupos de apoio representou uma importante ação que se somou às mobilizações protagonizadas pelo Movimento Negro Brasileiro desde a Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e pela Vida que em novembro de 1995, que reivindicava ações de cuidado e atenção à saúde da população negra, bem como gestão participativa, controle social, produção de conhecimento, formação e educação permanente de trabalhadores de saúde visando a promoção da equidade1717 Oliveira F. Saúde da população negra no Brasil. Brasília: Organização Mundial da Saúde; 2001..

O primeiro mandato do presidente Lula foi crucial para o movimento negro, especialmente após a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Em 2001 ocorre a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, e a participação intensa do Brasil, especialmente do movimento de mulheres negras, permitiu avanços na agenda nacional. Desde então, a invisibilidade da DF nas políticas públicas e de saúde é tratada como um caso emblemático de negligência e racismo institucional.

Uma das conquistas desse processo de mobilização foi a inclusão da DF como um dos agravos a serem rastreados pela triagem neonatal. Entretanto, embora a Portaria que estabelece a inclusão tenha sido assinada em 2001 (Portaria nº 822, de 6 de junho de 2001), ela só se efetiva em 14 estados. Os demais foram aderindo paulatinamente até 2010. Tal atraso repercute muito negativamente na detecção precoce da doença, no atraso para iniciar o acompanhamento, no planejamento de políticas públicas e na própria qualidade de vida das pessoas nascidas acometidas. As conquistas que vieram após a inclusão da DF na triagem neonatal foram frutos de intensa mobilização de pessoas com DF e seus familiares.

O ano de 2001 marca também a criação da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (FENAFAL), com desdobramentos nos estados, que passaram também a constituir associações estaduais. Na Bahia, a Associação de Pessoas com DF no Estado da Bahia (ABADFAL) também começa sua atuação naquele ano.

Até 2004, o tratamento de hemoglobinopatias foi uma das atividades da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que representava uma barreira pois, a Anvisa não é responsável pelas ações diretas de cuidado com a saúde.

Em 2005, a Portaria nº 1.391 instituiu a Política Nacional de Atenção Integral a Pessoas com Doença Falciforme1818 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.391, de 16 de agosto de 2005. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. Diário Oficial da União 2005; 17 ago., que passou a ser gerida pela Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados (CGSH), na Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES). Isso representou uma grande conquista, pois, pela primeira vez, o Plano Orçamentário Plurianual 2004-2007 destinou recursos para a política.

A saída do Programa de DF da Anvisa e a criação da Coordenação da PNAIPDF foi de extrema importância para ganhar respaldo político no Ministério da Saúde e começar a construir uma política de atenção no SUS. Nesse mesmo período, o termo “anemia falciforme” foi substituído por “doença falciforme”, abrangendo de maneira mais ampla as demais hemoglobinopatias, marcadamente caracterizadas pela presença majoritária da mutação Hb S. A publicação de protocolos clínicos, portarias e resoluções marcaram um período de intensa atuação da gestão nacional, sob a coordenação de Joice Aragão de Jesus, em um contexto político que era favorável às políticas de ações afirmativas na saúde.

Em 2005, após dez anos, houve outra Marcha Zumbi em Brasília, na qual o Movimento Negro reivindicou o cumprimento das promessas em favor da população com DF.

Em 2006, o ministro da Saúde Agenor Álvares reconhece o racismo como problema de saúde durante o Segundo Seminário Nacional de Saúde da População Negra, citando a doença falciforme como caso emblemático.

Os dez anos subsequentes à publicação da referida portaria revelam que as políticas de saúde, ao almejarem responder às necessidades de uma população, percorrem quase sempre um caminho de idas e vindas. Não se configura como um percurso linear, visto que são muitas as batalhas para romper com a inércia tantas vezes imposta pelo próprio sistema. Observa-se que mesmo conquistas já legitimadas através de portarias e documentos oficiais sofrem contínuos ataques, demandando ações de mobilização e pressão por parte dos movimentos sociais.

O desconhecimento dos profissionais de saúde em relação à DF, tanto no diagnóstico quanto no tratamento, era tão alarmante que resultava em uma grande quantidade de diagnósticos tardios, uma vida de internações e peregrinação por longos anos em serviços de saúde, muitas vezes sem o diagnóstico, ainda que os primeiros estudos sobre anemia falciforme no Brasil datam da década de 1940. Um incremento desses estudos ocorreu na década de 1950, dada a inclusão dos achados da genética de populações, dos estudos sobre a seleção natural e da biologia molecular. Havia, portanto, uma intensa produção de artigos científicos publicados em revistas de grande circulação nacional, além de apresentações em congressos anuais de hematologia. A DF é incorporada em quase todos os livros didáticos como exemplo do modelo mendeliano de herança genética. Isso permite refletir sobre o abismo entre a produção intelectual e a formação nos diferentes espaços, seja nas escolas ou nos cursos de saúde das universidades.

Dar visibilidade à doença torna-se uma das bandeiras da luta e o diagnóstico precoce uma medida extremamente importante para reverter o quadro da invisibilidade da DF, com a possibilidade de ter dados consistentes, capazes de apoiar no planejamento das ações. Dados de incidência produzidos pela triagem neonatal, que pode ser considerada a melhor fonte de dados sobre a relevância da DF no Brasil, especialmente nas regiões Nordeste e Sudeste, onde há maior concentração da população negra. Entretanto, a triagem neonatal ainda não tem cobertura total em alguns municípios, sendo ainda mais precária em municípios de pequeno porte. Além disso, a subnotificação da DF ainda é recorrente e decorre da falta de preparo/interesse dos profissionais de saúde para o preenchimento de prontuários médicos. Frequentemente os prontuários de saúde das pessoas com DF não apresentam o CID (International Classification of Disease Number) correspondente (D-57) como doença de base. O resultado é a ausência de dados e/ou a má qualidade dos dados sobre DF nos sistemas de informação.

Ainda em 2011 foi lançada pela Coordenação de Sangue e Hemoderivados a Nota Técnica nº 035/20111919 Silva MC, Shimauti ELT. Eficácia e toxicidade da hidroxiuréia em crianças com anemia falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter 2006; 28(2):144-148., que orientava sobre a inserção do teste de eletroforese de hemoglobina nos exames de pré-natal - Rede Cegonha, na compreensão da importância do diagnóstico precoce durante o pré-natal. Essa iniciativa enfatiza a necessidade de um olhar para a saúde da mulher com recorte racial. Além disso, propõe a estruturação de uma rede organizada tendo a atenção básica como suporte e a garantia de um sistema de referência, o que iria gerar um grande impacto no perfil de morbimortalidade e na qualidade de vida das gestantes com doença falciforme. Aqui cabe questionar a lógica adotada à medida que a atenção básica se torna a porta prioritária de entrada do sistema de saúde, cabendo a ela ordenar e coordenar as ações e serviços territorializados de saúde do SUS, referenciando para os demais níveis da atenção.

Por meio da portaria 872, de 6 de novembro de 2002, o Ministério da Saúde aprovou o uso de hidroxiureia (HU) para pessoas com DF. Nos últimos 15 anos, o uso progressivo do medicamento representou aumento significativo na qualidade de vida das pessoas com o agravo, especialmente entre a população adulta 2020 Cançado RD, Lobo C, Ngulo, Ivan L, Araújo PIC, Jesus JA. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para uso de hidroxiureia na doença falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter 2009; 31(5):361-366.. Estudos revelam uma redução na mortalidade desses pacientes de até 40% com o uso da HU2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Portaria nº 27, de 12 de junho de 2013. Decisão de incorporar hidroxiuréia em crianças com doença falciforme no Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2013; 13 jun.. Sua ação consiste na elevação dos níveis de hemoglobina fetal, melhorando a severidade clínica e os parâmetros hematológicos2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Portaria nº 27, de 12 de junho de 2013. Decisão de incorporar hidroxiuréia em crianças com doença falciforme no Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2013; 13 jun.,2222 Araújo OMR, Ivo ML, Júnior MAF, Pontes ERJC, Bispo LMGP, Oliveira ECL. Survival and mortality among users and non-users of hydroxyurea with sickle cell disease. Rev Lat Am Enferm 2015; 23(1):67-73.. Steinberger e colaboradores2323 Steinberg MH, McCarthy WF, Castro O, Ballas SK, Armstrong FD, Smith W, Ataga K, Swerdlow P, Kutlar A, DeCatsro L, Waclawiw MA. The risks and benefits of long-term use of hydroxyurea in sickle cell anemia: a 17.5 years follow-up. Am J of Hematol 2010; 85(6):403-408. acompanharam por 17 anos e meio pessoas com anemia falciforme. Entre os que usaram HU, a mortalidade foi reduzida e as curvas de sobrevida apresentaram redução significativa no número de mortes com a exposição em longo prazo. Sendo que 24% das mortes foram devido a complicações pulmonares e 87,1% ocorreram em pacientes que nunca tomaram a HU.

Em 2015, com cenário político conturbado, não houve previsão orçamentária para o desenvolvimento das ações da Política. Ainda assim, a publicação do manual intitulado “Doença falciforme: diretrizes básicas da linha de cuidado” contribuiu para que estados e municípios recebessem orientações para que incluíssem a DF na rede de cuidado integral a partir da apresentação do fluxo de cuidado, cujas estratégias visavam superar a lógica biologicista e médico-centrada da assistência.

A partir do segundo semestre daquele ano - em um contexto de cortes orçamentários, a assistente social Maria Cândida Queiroz assume a Coordenação da PNAIPDF, e em seguida a crise política se intensifica, tendo em vista o golpe político que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 -, a crise econômica e a instabilidade política foram marcas constantes. Durante a gestão de Maria Cândida Queiroz, foi realizado um movimento de fortalecimento da Política de Atenção às Pessoas com DF por meio das visitas técnicas para assessoria em todos os estados e das oficinas regionais, que buscaram auxiliar a implementação das linhas de cuidado estaduais, respeitando as especificidades locais e envolvendo a gestão, os serviços e o movimento social, a fim de inserir a DF nas redes de saúde já existentes.

No mesmo ano, o movimento social de pessoas com DF se uniu à CGSH na reivindicação para que a DF fosse incluída na lista de patologias elegíveis para o transplante de medula óssea (TMO). No Brasil existe uma população em torno de 1.000 pessoas curadas nos centros de pesquisas das universidades pelo TMO. O Ministério da Saúde (MS) respondeu de forma favorável a partir da publicação da portaria, entretanto restringiu a idade de realização do procedimento, fato que continuou mobilizando as associações para que fossem realizadas retificações nesse documento. O TMO também tem sido apontado como a única possibilidade de cura da DF.

A eleição de Jair Bolsonaro como presidente da República é um ponto de inflexão significativo e representou um retrocesso nas políticas de saúde relacionadas à DF. A ascensão de um governo de extrema direita no Brasil (2019-2022), representado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, implicou um grave retrocesso e/ou estagnação das políticas públicas, um período caracterizado como paralisia, com contínuo desfinanciamento de projetos e programas, além da alteração/revogação de diversos marcos legais devido a um movimento de desmonte de programas, políticas e áreas técnicas como estratégia programática de governo, de forte cunho ideológico, sobretudo de ações com foco na equidade de gênero e raça ou de defesa das populações vulnerabilizadas ou de grupos específicos. No âmbito da saúde, por exemplo, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) denunciou através de carta enviada para a Relatoria da Saúde da Organização das Nações Unidas (ONU)2424 Conselho Nacional de Saúde (CNS). CNS denuncia a organismos internacionais corte de R$ 22,7 bilhões no orçamento do SUS para 2023 [Internet]. 2022. [acessado 2022 dez 20]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2687-cns-denuncia-a-organismos-internacionais-corte-de-r-22-7-bilhoes-no-orcamento-do-sus-para-2023
http://conselho.saude.gov.br/ultimas-not...
a retirada de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) para o ano de 2023, já que, quando comparado ao orçamento de 2022, que foi equivalente a R$ 172,60 bilhões, o orçamento previsto para o MS em 2023 sofreu redução de R$ 22,7 bilhões. O CNS ainda denunciou que essas perdas alcançariam R$ 60 bilhões se considerados os recursos sequestrados pelo “teto de gastos”2424 Conselho Nacional de Saúde (CNS). CNS denuncia a organismos internacionais corte de R$ 22,7 bilhões no orçamento do SUS para 2023 [Internet]. 2022. [acessado 2022 dez 20]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2687-cns-denuncia-a-organismos-internacionais-corte-de-r-22-7-bilhoes-no-orcamento-do-sus-para-2023
http://conselho.saude.gov.br/ultimas-not...
, que se apresentou como outro desafio ao terceiro mandato do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva.

2) Negligências históricas atualizadas e os impactos do racismo na história da DF no Brasil

O racismo no Brasil é estrutural e sistêmico, engendrado nas instituições e nas subjetividades. Trata-se de um “processo em que condições de subalternidade e de privilégio se distribuem entre grupos raciais e se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”2525 Almeida SL. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra; 2019..

O caso da doença falciforme ilustra a relação entre racismo e negligência de forma cabal. Prevalente na população negra, tem o seu primeiro relato científico com ampla divulgação em 1910, através do médico J.B. Herricks, que, na revista Archives of Internal Medice, descreveu o caso de um estudante negro de 20 anos nascido na Jamaica que exibia quadro clínico e hematológico até então desconhecido: episódios de icterícia, palpitações, dificuldade de execução de exercícios físicos e que a análise de sangue revelou um quadro de anemia e várias células alongadas “parecidas com uma foice”2626 Herrick JB. Peculiar elongated and sickle-shaped red blood corpuscles in a case of severe anemia. Yale J of Biol and Med 2001; 74(3):179-184.. Ao mesmo tempo em que esse fato apresenta a DF ao mundo científico e da pesquisa, traça um roteiro da não-assistência que perdura no Brasil até 2005, quando é lançada a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme por meio da Portaria GM 13/95/2005.

Esse hiato de quase um século entre a “descoberta” e a primeira política pública expressa um importante componente de invisibilidade social, pois em meio a um incessante desenvolvimento da pesquisa científica sobre o tema, ocorria uma letargia no campo da assistência, o que nos leva a imaginar como um saber científico pode vir a não ser utilizado como política pública de saúde2727 Lira A. Necropolítica e doença falciforme: ensaio sobre invisibilidade e racismo estrutural na saúde. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 77-92.. “Esta condição sine qua non nos foi apresentada através de Naoum, que no prefácio de seu livro Doença das células falciforme2828 Naoum PC, Naoum FA. Doença das células falciformes. São Paulo: Sarvier; 2004. nos faz refletir: ‘Foi justamente o negro africano que ao padecer de uma enfermidade crônica e dolorosa, como a doença falciforme, contribuiu com sua dor, com seu sangue e com sua morte precoce para o conhecimento científico mais importante sobre a bioquímica, físico-química, genética e biologia molecular das proteínas. Apesar de todo o progresso conseguido até o presente, os negros de todo o mundo, em especial, os negros brasileiros, não puderam se beneficiar das conquistas científicas e tecnológicas obtidas com seu próprio sangue...’”

De forma cíclica, o racismo pode ser considerado o início, a causa e o desfecho que explica o fato de que a população negra tenha os piores indicadores de saúde. Nesse sentido, a história da DF se confunde com a história de muitos outros agravos que, por acometerem uma parcela desfavorecida da população, não ocupam um lugar de priorização. Um agravo é considerado negligenciado quando não é priorizado pelas políticas de saúde apesar da relevância social dele, seja pelo número de pessoas acometidas, seja pela letalidade ou pelo grau de sofrimento que causa. Não raro são agravos que evocam o “discurso de segregação, periferia e esquecimento, seja pela indústria farmacêutica, pelos governos ou pelos sistemas de saúde” 2929 Araujo IS, Moreira ADL, Aguiar R. Doenças negligenciadas, comunicação negligenciada: apontamentos para uma pauta política e de pesquisa. RECIIS 2013; 6:1-11, contribuindo para um ciclo de negligências.

A negligência pode resultar da invisibilidade social por não ser reconhecida como um problema de saúde; pode resultar também da apatia, quando há o reconhecimento mas não é dada a devida importância ao agravo; ou pode resultar da inação ou ausência de ações para responder ou agir diante do agravo, que por sua vez pode decorrer da incompetência para planejar e executar ações3030 Nunes J. Ebola and the production of neglect in global health. Third World Quaterly 2016; 37(3):542-556.. Seja por um ou mais motivos combinados, a produção da negligência está intimamente ligada à baixa priorização de problemas e ao desinteresse político.

É preciso lembrar que, embora as causas sejam estruturais, a negligência em saúde não apenas acontece, ela é causada, seja por invisibilidade, apatia, inação ou incompetência3030 Nunes J. Ebola and the production of neglect in global health. Third World Quaterly 2016; 37(3):542-556.. Há um processo de produção da negligência, que abrange tanto as dimensões estruturais como o papel da agência, da omissão como ação social, do não reconhecimento como projeto político. Não são somente doenças negligenciadas, mas pessoas negligenciadas. Populações, territórios, comunidades negligenciadas através de processos históricos e sociais complexos.

Prevalente em população não-branca, a DF está presente em todo o mundo, com maior concentração em alguns países africanos (África Subsaariana) e na Índia. Estima-se o nascimento de 300 mil crianças com a doença anualmente3131 Piel FB, Steinberg MH, Rees, DC. Sickle cell disease. NEJM 2017; 376(16):1561-1573.. Entretanto, a sobrevida e a qualidade de vida dessas crianças dependerão do desenvolvimento econômico e social do país onde moram, da existência ou não de cuidados em saúde e das condições de acesso a esse cuidado. A doença tende a ter sua prevalência aumentada em todo o mundo, mas nos países desenvolvidos o número de pessoas com a doença decorre principalmente do aumento da expectativa de vida resultante das intervenções em saúde3131 Piel FB, Steinberg MH, Rees, DC. Sickle cell disease. NEJM 2017; 376(16):1561-1573.. Apesar dos avanços, a mortalidade infantil de crianças com DF ainda é uma realidade em contextos empobrecidos3131 Piel FB, Steinberg MH, Rees, DC. Sickle cell disease. NEJM 2017; 376(16):1561-1573..

A DF tem sido ignorada por quase todas as organizações de saúde e governantes3232 Ware RE. Is sickle cell anemia a neglected tropical disease? PLoS Negl Trop Dis 2013; 7(5):e2120.. Para o autor, as seguintes características justificam tal argumento: (1) é uma doença que afeta milhões de pessoas no mundo; (2) tem mais impacto em populações empobrecidas; (3) apresenta alta morbidade e mortalidade; (4) pode atuar em comorbidade com outras doenças igualmente letais; (5) é de simples diagnóstico; e (6) pode ser tratada com opções de baixo custo. Ainda é insuficiente a produção de dados sobre mortalidade por DF no Brasil3333 Sabarense AP, Lima GO, Sílvia LML, Viana MB. Caracterização do óbito de crianças com doença falciforme diagnosticadas por Programa de Triagem Neonatal. J Pediatr 2015; 91(3):242-247.

34 Carvalho EMMS, Espirito Santo FH, Izidoro C, Santos MLSC, Santos RB. O cuidado de enfermagem à pessoa com doença falciforme em unidade de emergência. Cienc Cuid Saude 2016; 15(2):328-335.
-3535 Fernandes APPC, Avendanha FA, Viana MB. Hospitalizations of children with sickle cell disease in the Brazilian Unified Health System in the state of Minas Gerais. J Pediatr 2017; 93(3):287-293., além de estudos que tratem do envelhecimento dessa população e as complicações mais frequentes.

Há necessidade de se chamar a atenção dos financiadores federais, legisladores, advogados, pesquisadores e tomadores de decisão em saúde no sentido do trabalho colaborativo e parceiro para reverter o impacto de anos de racismo estrutural sobre DF33 Power-Hays A, McGann PT. When actions speak louder than words - racism and sickle cell disease. NEJM 2020; 383(20):1902-1903., visto na distribuição díspar de recursos, como ocorre no cenário estadunidense, onde a alocação de recursos para a fibrose cística é muito maior, embora para um quantitativo menor de população branca. A comparação com a fibrose cística é pertinente por ser uma doença hereditária, progressiva e com risco de vida associada à diminuição da qualidade e do tempo de vida, assim como a doença falciforme. No entanto, a fibrose cística afeta principalmente os americanos brancos, em proporção equivalente de um terço a menos que a população negra. No entanto, recebe de 7 a 11 vezes o financiamento de pesquisa por paciente, o que resulta em taxas díspares de desenvolvimento de medicamentos, por exemplo. Na prática, isso significa a aprovação de quatro medicamentos para a doença falciforme e 15 para fibrose cística pela Food and Drug Administration. Os autores concluem que é preciso analisar o papel da raça e do racismo na persistência dessa (des)alocação de recursos.

3) A situação da doença falciforme hoje: da preocupação à esperança

A pandemia contribuiu para o recrudescimento de múltiplas crises, afetando sobremaneira as pessoas com DF, aumentando o risco de adoecimento e morte. Por ser uma doença sistêmica, que acarreta maior risco para processos inflamatórios, havia uma expectativa do risco aumentado para pessoas com DF desenvolverem quadros graves de COVID-19, com maior chance de complicações renais, neurológicas e cardiovasculares3636 Hazin-Costa MF, Correa MSM, Ferreira ALCG, Pedrosa EM, Silvia FAC, Souza AI. COVID-19 e doença falciforme: um desafiador dilema em uma doença antiga. Rev Bras Saude Mater Infant 2021; 21(Suppl. 1):311-313.. Isso pode ser percebido no Plano Nacional de Imunização, que traz a doença falciforme como comorbidade prioritária para a vacinação. Daí a necessidade de priorizar a imunização de pessoas com DF, já que é a única estratégia eficaz para evitar a contaminação ou mitigar os efeitos da COVID-19. Ao descortinar nas seções anteriores as imbricações da DF, é fácil compreender que quaisquer intervenções que estejam descontextualizadas da questão étnico-racial chancelam desvantagens injustas. Essa foi a crítica ao critério de priorização das vacinas por recortes etários e existência de comorbidades. O acesso prioritário de pessoas com DF à vacina é um pleito legítimo pela perspectiva da equidade, e sobretudo pelo direito à preservação da vida.

De lição aprendida, fica a necessidade de garantir a abordagem integral à saúde das pessoas de forma multiprofissional, com agentes comunitários de saúde, equipes de saúde integradas por médicos, enfermeiros, dentistas, biomédicos, farmacêuticos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, bem como assistentes sociais, educadores e todas as demais profissões que qualifiquem o bem viver das pessoas com DF.

No Brasil não existe um painel de monitoramento para os casos de DF. Por exemplo, a experiência estadunidense sobre casos de DF e COVID-19 propiciou uma rede colaborativa mundial de profissionais de saúde, que atenderam pessoas com DF, registraram e monitoraram os casos confirmados de COVID-19, o que permitiu não só o monitoramento dos casos mas, sobretudo, compilar dados e informações para elaboração de ações e tomada de decisão.

Além dos desafios impostos pela pandemia, muitos outros impasses dificultam a efetivação de um cuidado integral às pessoas com DF, dentro e fora do âmbito da saúde. A grave crise econômica em que o país se encontra, com impactos diretos no subfinanciamento do SUS, é uma realidade. Joice Aragão retorna ao Ministério da Saúde em 2023, agora como coordenadora geral de sangue e hemoderivados, e com ela toda uma coletividade de profissionais de saúde, controle social, gestores e pesquisadores, com a esperança de avanços na implementação da PNAIPDF.

Considerações finais

Sankofa é o princípio orientador da nossa análise. Àgô, pedimos licença para acessar as dificuldades, erros e acertos de uma trajetória na qual nós, autoras e autor, também fazemos parte uma rede de mobilização e luta, seja como pesquisador, profissional de saúde, gestor, familiares de pessoas com doença falciforme. À guisa de conclusão, ao refletir sobre os caminhos a seguir, aponta-se para que as frentes de trabalho sejam assumidas por gestores, profissionais de saúde, universidades e pesquisadores que prezem pelo diálogo permanente com as pessoas com DF e seus familiares.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2023
  • Aceito
    19 Jan 2024
  • Publicado
    21 Jan 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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