Resumo
Mar González é psicóloga e foi uma das pioneiras nos estudos sobre a homoparentalidade na Espanha. Suas pesquisas, a partir dos anos 2000, tiveram papel relevante no debate parlamentar no país, que culminou com a aprovação do casamento homossexual em 2015. A Espanha, um país de maioria católica que havia deixado a ditadura franquista três décadas antes, foi o terceiro país no mundo, depois de Bélgica e Holanda, a reconhecer o direito de união da população homossexual. Seus estudos versam sobre famílias não convencionais, diversidade familiar, desenvolvimento infantil e familiar e sua relação com educação e saúde. Nossa conversa tratou do tema da homoparentalidade, do estabelecimento dos direitos de filiação para esse grupo social, dos estudos sobre essas configurações familiares e as principais implicações da homoparentalidade para a saúde.
Palavras-chave:
Homoparentalidade; Diversidade familiar; Famílias homoparentais
Rosana - Poderia nos contar sobre sua for mação e trajetória acadêmica?
Mar González - Eu tenho formação em psicologia na Universidade de Sevilha e doutorado em psicologia também. Comecei como pesquisadora, como bolsista em pesquisa na universidade, trabalhando com interações parentais e filiais e construção do desenvolvimento cognitivo linguístico a partir de um marco sociocultural e de como efetivamente se constroem esses desenvolvimentos. Mas depois desses estudos, me interessei pela diversidade familiar e comecei a trabalhar com certos tipos de família que não correspondem ao padrão convencional. Famílias de mães sozinhas depois de um divórcio, e a partir de então, fui me interessando por outros tipos de família.
Rosana - Quando esses estudos começaram?
Mar González - Foi no final dos anos 1990, sobretudo 1997/1998, com os estudos sobre famílias pós divorcio e mães solteiras. Em 2002, temos o primeiro estudo sobre diversidade familiar e famílias lésbicas e gays, que começamos em 200011 González M, Morcillo E, Sánchez MA, Chacón FY, Gómez A. Ajuste psicológico e integración social en hijos e hijas de familias homoparentales. Infancia Aprendizaje 2004; 27(3):327-344..
Rosana - O que te motivou a estudar as configurações familiares homoparentais?
Mar González - O debate que se abre na Espanha no final dos anos 1990 foi um debate forte em torno das famílias homoparentais. Sua raiz está na Comunidade Autônoma de Valencia, que legisla a possibilidade de acolhimento familiar não somente pessoas casadas, mas casais vivendo em união e sem estabelecer qualquer distinção, podendo ser casais heterossexuais ou de mesmo sexo. Nesse momento na Espanha, ainda não está aprovado o casamento homossexual e não há legislação nesse sentido. Era um governo conservador e houve muita revolta. E já havia sido publicada, em 1992, uma revisão fantástica de Charlotte Patterson2 em Child Development, uma revista central para a psicologia do desenvolvimento. Eu li e sabia o que ocorria com crianças que cresciam nesse tipo de família, porque ela revisou tudo o que se havia publicado até o ano de 1992. Eu tinha um curso de doutorado que falava sobre diversidade familiar, incluindo famílias lésbicas e gays. E incluí em meu próprio concurso para professora estável na universidade, em 1995, as famílias homoparentais como um tipo de diversidade familiar.
Rosana - Quando esse tema se converte numa preocupação acadêmica e em que área do conhecimento isso começa?
Mar González - Quando nosso estudo estava se desenvolvendo em Andaluzia, soube depois de uma pesquisa que estava em curso a partir da antropologia em Barcelona também sobre famílias de casais de mesmo sexo. E havia um estudo em desenvolvimento no Departamento de Sociologia de Barcelona. Assim, esses estudos dos três grupos vão à luz praticamente juntos. A nossa é a primeira pesquisa a partir da psicologia do desenvolvimento e a realizamos para dar resposta às perguntas sociais. Isso porque surgiu um debate em torno da possibilidade de legislar, mas havia um forte debate social contrário, com posturas dizendo que as crianças poderiam ser afetadas pelo fato de viverem com duas mães ou dois pais, não ter uma figura paterna ou materna, ou por viver em um ambiente hostil, que ameaçava, com bullying na escola. Então nosso objetivo era responder a essas perguntas sociais, solucionar essas dúvidas que a sociedade tinha, fazendo isso a partir da ciência, com dados. Conhecíamos dados de outros países, e como havíamos intervindo em alguns debates nos meios de comunicação, comentamos os estudos desenvolvidos em outros países. Nesse momento, sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde havia pesquisas feitas pela equipe de Susan Golombok33 Golombok S, Tasker F, Murray C. Children raised in fatherless families from infancy: family relationships and the socioemotional development of children of lesbian and single heterosexual mothers. J Child Psychol Psychiatry 1997; 38(7):783-791. (psicóloga, professora de pesquisa em família e diretora do Centre for Family Research na Universidade de Cambridge, no Reino Unido), pela equipe de Charlotte Patterson (psicóloga, lidera pesquisas sobre parentalidade LGBTI+ na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos) e por outros pesquisadores também nos EUA, bem como outros estudos na Holanda, na Bélgica e no Canadá. Assim, já havia bastante evidência científica. Mas na Espanha se dizia essas coisas - sim, mas esses são outros países. Os espanhóis são um povo latino, um povo mediterrâneo, nossa cultura é distinta, aqui essa parte da infância tem muito mais peso e essas famílias e crianças vão crescer mal nesse entorno. Então resolvemos responder a essas perguntas, fazer pesquisas para responder isso.
Rosana - Nos primeiros estudos, quais eram as questões que te preocupavam? Sobre que temas exatamente se investigavam essas famílias?
Mar González - Nos interessava saber como eram seus progenitores. Se eram pessoas saudáveis, com equilíbrio mental, emocional e comportamental. Por quê? Porque havia muitas perguntas sociais, havia muito estigma, muito preconceito em torno das pessoas homossexuais. Portanto, queríamos saber como eram seus estilos educativos, como era sua rede de apoio. Pois, como havia preconceito, queríamos saber se eram pessoas isoladas, que viviam em “guetos”, se relacionando somente com outras pessoas homossexuais e como organizavam a vida cotidiana das crianças. Porque também havia essa preocupação. Havia quem dizia que essas crianças tinham uma vida anômala, que não iam a parques e que ficavam todo o dia fechadas em lugares e ambientes. Então, as perguntas com relação aos pais e às mães era sobre organização da vida cotidiana e as práticas educativas e de desenvolvimento. Quanto às crianças, era sobre sua autoestima, como era seu ajuste emocional e comportamental, como eram suas relações de gênero. Porque também se dizia que não teriam uma identidade de gênero bem definida, pela falta de dois modelos em casa. E igualmente como era a aceitação social, se tinham amigos e se eram bem aceitos na escola, nas relações. Então, basicamente as perguntas fundamentais eram essas.
Rosana - E como se regulou o casamento para estes grupos na Espanha? Como esses estudos da área e, digamos, sua contribuição se relacionaram com essa discussão?
Mar González - Nossos dados foram publicados em 2002 e houve muita agitação social com os resultados, pois há uma parte da sociedade, a parte mais conservadora, que não está disposta a aceitar que essas crianças estão crescendo bem, que é basicamente o que dizem as pesquisas. Elas estão crescendo sem problemas de saúde mental, não têm problemas de autoestima, estão sendo bem acompanhadas. Levam uma vida ordenada e muito parecida com a de seus colegas. Não diferem de seus colegas em praticamente nenhuma das medidas que utilizamos. Exceto que são mais flexíveis com as questões de gênero. Não que tenham mais conhecimento que seus colegas, mas que entendem, por exemplo, que uma mamadeira pode ser usada tanto por homens como por mulheres. São mais flexíveis ao considerar o que é masculino e o que é feminino. Eles tendem a considerar que a função pode ser desenvolvida tanto por homens como por mulheres, ainda que saibam que tradicionalmente tenha sido designada ao gênero feminino ou ao gênero masculino. Então, esses dados foram muito chocantes para uma parte da sociedade. Isso abre um debate e permite se apresentar aos meios de comunicação. Apresentamos os resultados no ano de 2002 e até que a lei fosse aprovada, em 2005, foram três anos. Foram três anos indo em diferentes províncias e apresentando os resultados pelo território nacional, pelo convite das províncias. Houve muita cobertura e debate nos meios de comunicação. Finalmente, no ano de 2004, muda o governo. Deixa o governo nacional o Partido Popular, um partido conservador, e entra o Partido Socialista Espanhol de novo, com o presidente Rodríguez Zapatero. Um projeto de lei foi apresentado ao Congresso em 2004, a poucos meses de mudar o governo. Há um debate parlamentar e no Senado se paralisa o trâmite e se pede a participação de especialistas. Me convidam como especialista ou profissional e, justamente no dia de minha intervenção, antes de minha fala, se apresenta um psiquiatra, um catedrático em psiquiatria da Universidade Complutense de Madri, que numa apresentação sem base científica e declara que os homossexuais são filhos ou filhas de abusadores e que passam a ser abusadores, são filhos de pessoas violentas ou alcoólatras, de tal calibre, o que provocou uma revolta na Comissão de Justiça do Senado. Eu logo apresento meus dados e, claro, foi um contraste marcante. E esse contraste entre uma ideologia sem base científica e dados que provêm da ciência terminam por decantar o debate parlamentar. E quando o projeto de lei passou no Congresso, foi aprovada por maioria a Lei de Matrimônio Igualitário, em 2005, e acreditamos que a partir da ciência contribuímos com isso porque demos fundamentação científica a extensão de direitos civis à população LGBTI+ na Espanha. Só se alterou uma frase no Código Civil, mas teve um efeito imenso, pois se estabelece o direito ao casamento entre homens e mulheres e terá o mesmo efeito se for entre pessoas de mesmo sexo. Essa última frase foi a única que se mudou no Código Civil, mas ao estar no próprio Código, afetava todas as leis derivadas. Ou seja, afetava a adoção e tudo que o Código estabelece em termos de princípios de direitos civis e a discussão em todos os âmbitos.
Rosana - Que tipo de benefícios podemos dizer que esse reconhecimento legal trouxe para as famílias homoparentais?
Mar González - Possibilitou legalizar os vínculos afetivos que já tinham. Ou seja, a família não começa a existir à raiz da lei. Nós havíamos estudado, elas eram preexistentes e tinham um vazio de reconhecimento legal que explicava, por exemplo, que um pai e uma mãe real, que não tivesse vínculo legal com seu filho, porque não havia podido legalizar o vínculo, os laços, não podia acompanhar seu filho em uma urgência ou podia não ser atendido pelo tutor escolar do seu filho/filha por não ter vinculação legal com ele/ela. E isso já havia ocorrido com essas famílias. Não ter vinculação legal restringia os direitos dessas pessoas em grande parte, porque não tinham direito a ser atendidos e cuidados por seu pai não legal, seu pai real. Havia toda uma série de direitos que essas crianças estavam sendo privadas. E seus pais também, ao não poderem exercer legalmente a paternidade e a maternidade. Então, essa lei veio a dar legalidade à realidade. Dar legitimidade ao que já era uma realidade social, e contribuiu, e isso é muito interessante do meu ponto de vista, para avançar a aceitação da população LGBTI+ em nossa sociedade. Como sabem, a Espanha teve uma ditadura até 1975. Até a Constituição democrática de 1978, a homossexualidade era perseguida penalmente na Espanha. E em menos de 30 anos, de 1975 a 2005, mudamos a população homossexual, a população LGBTI+, do Código Penal para o Código Civil. Isso é uma revolução para qualquer sociedade e fez com que se agilizassem os processos de aceitação dos direitos LGBTI+. Assim, a Espanha é, junto com Suécia e Dinamarca, o país com maior aceitação dos direitos LGBTI+ no mundo, sendo um país de tradição católica, sendo o país que tinha a homossexualidade no Código Penal fazia muito pouco tempo. Com essa legalização precoce, foi o terceiro país no mundo a legalizar, deu legitimidade, segurança e tranquilidade às famílias e enviou uma mensagem pedagógica muito clara à sociedade. Que essas famílias deveriam gozar dos mesmos direitos que as pessoas heterossexuais.
Rosana - Você estudou sobre como esse reconhecimento legal produziu mudanças nas famílias homoparentais. Poderia falar um pouco sobre isso?
Mar González - Foi uma investigação que realizamos quando mudou o governo 44 Montes A, Gonzalez M, López Gaviño F, Angulo Menasé A Familias homoparentales, más visibles y mejor aceptadas: efectos del matrimonio en España. Apuntes Psicol 2016; 34(2-3):151-159.. Havíamos tido dois mandatos do governo socialista e em 2011 chega ao governo o Partido Popular de novo, que tinha recorrido considerando como inconstitucional a lei do matrimônio e havia ameaçado revogá-la. O Tribunal Constitucional negara o apoio. Então as famílias se sentiam absolutamente nervosas e ansiosas. E decidimos estudar sua experiência antes do matrimônio aprovado, depois que se aprovara e quando nos encontrávamos, esse momento de incerteza legal quanto ao seu futuro. E foi muito bonito ver como o casamento os havia dado não somente segurança, legitimidade, mas um sentimento de cidadania de primeira classe em nossa sociedade, que é muito importante. Além disso, havia dado aceitação social e abertura. Ou seja, depois de ser aprovado o casamento, de todas as famílias que entrevistamos, pelo menos uma que aguardava processo de adoção internacional pode casar, onde este vínculo estava pendente. Mas diziam que com a aprovação do casamento se mostraram muito mais abertamente em seu entorno, sua família extensa, as amizades e pessoas conhecidas, sobretudo no âmbito do trabalho. Por exemplo, passaram a se assumir abertamente como pessoas LGBTI+ (antes eram 30% dos entrevistados), a ser abertamente pessoas LGBTI+ com todos, mais de 60%. Ficava claro um reduto de 5% a 10% que não comentavam com um entorno muito patriarcal, que perseguia muito a homossexualidade. Mas a grande maioria falava disso abertamente na família. As amizades passaram a falar de modo aberto e foi uma mudança muito clara.
Rosana - Que efeitos podem acarretar a homofobia a essas famílias?
Mar González - Bem, já existem muitos estudos que demonstram o efeito de pertencer a uma minoria estigmatizada e viver em uma sociedade que tem preconceito. Assim, no entorno sociocultural mais próximo de sua família, amigos, vizinhos e também nos grupos mais distantes que não aceitam a homossexualidade, que são homofóbicos, que perseguem a homossexualidade, como está acontecendo agora institucionalmente na Itália com a chegada ao poder de um partido homofóbico, isso provoca claramente alterações na saúde mental dessas minorias. Pertencer a uma minoria, mas viver num entorno que aceita, que a incluí, que permite viver sua diversidade sexual, facilita, serve de contrapeso como fator de proteção para essas famílias que têm que enfrentar em algum momento determinado a homofobia. Isso serve de contrapeso, como fator de proteção. A homofobia institucionalizada, a homofobia crescente pelas leis, que discriminam tanto o próximo como o distante, tem consequências claramente perniciosas para essas famílias, tanto para pais e mães como para as crianças. Outro dia entrevistamos uma menina de dez anos, mas muito madura, que me dizia haver crescido numa escola onde todos a conheciam. Seus pais haviam escolhido um centro educativo muito aberto, público, com uma ideologia aberta à diversidade. Seus colegas conheciam sua situação, de ter dois pais e de ter nascido de gestação por substituição. Ela estava terminando a escola e iria para um instituto que recebe jovens de diferentes centros educativos. Muitos deles e delas não iriam lhe conhecer, por isso tinha medo de ter de enfrentar a homofobia e o rechaço a famílias como a sua. E isso já com dez anos. Dois anos antes de chegar aos estudos secundários já haviam lhe retirado esse sonho.
Rosana - Acredita que estudar esse tema na academia pode ser entendido como uma ação política?
Mar González - Sem dúvida o é. Sem dúvida tem um valor político claríssimo, e no debate que houve em torno da lei na Espanha, nos sentimos claramente parte dessa luta política. Para nós, nosso papel era a partir da ciência. Os coletivos tiveram um papel de reivindicação, de ativismo. Os meios de comunicação tiveram um papel muito relevante de divulgar distintas posturas, dos tipos de investigações sobre o tema. E também a academia e a universidade. Mas, em nosso juízo, também é um papel político, um papel que nos situa como uma referência social, já que estamos dando respostas científicas a preconceitos sociais.
Rosana - Que tipo de necessidade trazem essas famílias para a área da saúde? Que especificidades se poderia destacar?
Mar González - Esse me parece um ponto muito interessante. Sabemos que a maior parte dos profissionais de saúde não se formou sobre diversidade familiar, nem em sua formação primária, nem na formação permanente. Portanto, é uma realidade desconhecida, da qual têm muitas dúvidas e desconhecem em muitos aspectos. E uma realidade não é isenta de preconceitos na sociedade geral, e sabemos que muitos profissionais podem estar imbuídos também, porque está crescendo em nossa sociedade. Portanto, há preconceitos nos profissionais que estão trabalhando com essas famílias na saúde, na educação, no trabalho social, na psicologia. Assim, temos um dever, a autoridade de saúde pública, de avançar na formação em diversidade familiar e famílias LGBTI+ e do que ocorre no desenvolvimento de crianças e jovens. Em segundo lugar, creio que há que se tirar dúvidas, pois não temos conhecimento de que haja quaisquer afetações no desenvolvimento, considerando os dados e as sociedades internacionais de pediatria, psiquiatria, psicologia, de trabalho social e psicanálise. São posições muito claras das sociedades profissionais. A evidência científica diz que crianças que crescem nessas famílias têm as mesmas possibilidades de desenvolvimento harmônico e saudável que em famílias heterossexuais, e que seus pais são capazes de dar as mesmas condições para favorecer o desenvolvimento. E isso, por exemplo, a Academia Americana de Pediatria afirmou já em 2002. Ou seja, faz muitos anos que há pronunciamentos muito claros de todas as sociedades profissionais relevantes. E isso precisa ser traduzido em formação para profissionais, adaptação de protocolos da área, e do nosso ponto de vista, deve haver uma mudança no modelo de patologia e déficit, que traz consequências para essas famílias, para um modelo de desafios. No sentido de que essas famílias enfrentam 80% de desafios comuns a outras famílias e outras questões distintas, que devem resolver de outra maneira. E isso se traduz em fortalezas e dificuldades específicas, que acredito que devem ser conhecidas.
Começo pelas dificuldades. Uma delas é enfrentar a homofobia. Esses familiares enfrentam a homofobia, profissionais da saúde e de outros âmbitos nem sempre os entendem. Portanto, devem ser fortalecidas, devem ser acompanhadas, devem ser legitimadas por profissionais da saúde. Pois, como sabemos, enfrentar a homofobia acaba tendo consequências claras, como aumento da ansiedade, de sinais depressivos, de diminuição na autoestima, aumento de estresse. Então, há consequências claras para a saúde dos pais e das crianças, que também podem ter de enfrentar a homofobia. E, nesse sentido, parece claro em nossos dados, e muitos outros países indicam claramente, que quando se legitima, se legaliza o casamento, quando se dá carta de legalidade e legitimidade a essas famílias, aumenta o bem-estar e diminui o estresse e os problemas de ansiedade nelas. Portanto, essa seria uma boa ideia política, a legalização e a legitimação, pois promovem o bem-estar desse público. Digamos que as dificuldades de legislar sobre essas famílias estão sem dúvida no marco sociocultural. Esse marco que acompanha, legaliza e legitima seu devir é parecido com aquele que enfrentam outras famílias, são problemas habituais ligados a ter um filho e a questões relacionadas ao dia a dia.
No entanto, quais são as fortalezas que podem se considerar? São famílias que amadureceram muito e refletiram muito sobre sua decisão de parentalidade, porque não se chega a construir esse projeto com pessoas do mesmo sexo sem isso. Tiveram uma decisão muito madura e refletida e, portanto, têm um compromisso muito claro com a parentalidade. Como no caso das famílias que adotam, qualquer tipo de famílias adotivas, são pessoas comprometidas com a parentalidade. Passa algo parecido com essas famílias. Assim, isso é uma fortaleza dessas famílias. Outro dado importante que os estudos na Espanha revelam é que têm uma maior corresponsabilidade na distribuição das tarefas, uma divisão mais igualitária. Há estudos feitos na sociologia em vários países da Europa e da América, bem como metanálises, que demonstram ser claramente mais igualitárias na divisão das responsabilidades domésticas e no cuidado infantil em comparação com famílias heteroparentais. E educam seus filhos e filhas num ambiente de igualdade. Seus filhos são mais flexíveis quanto a questões de gênero. Essa divisão mais igualitária das tarefas tem uma vinculação significativa com maior satisfação vital.
Ou seja, encontramos tanto em famílias lésbicas como em famílias heterossexuais igualitárias, mas em termos percentuais, encontramos muito mais em famílias lésbicas esse igualitarismo no dia a dia, na distribuição de tarefas e no cuidado infantil, e isso está claramente vinculado ao bem-estar da família. Outro elemento encontrado como fortaleza, e que parece muito relevante nestas famílias, é que educam seus filhos e filhas com maior liberdade para definir sua orientação sexual. E isso sabemos por que nos disseram os próprios pais e mães, que nos contaram uma cena muito bonita. Conversamos com o pai de uma filha de cinco anos e lhe perguntamos como educava de forma afetiva sua filha. Ele dizia que a mensagem era pequena, mas quando está brincando com as Barbies, por exemplo, que estava na moda, e com o Ken, às vezes lhe digo - “As Barbies podem ter namoradas e podem casar-se, porque se gostam e se querem, podem ter namoradas”. E às vezes, quando ela estava brincando com as Barbies, Ken e outras amigas, ela falava para as amigas - “as Barbies também podem ser namoradas”. Porque é como dizem os filhos e filhas adultas que estudamos, quando analisamos sua orientação sexual.
Esas era uma das grandes preocupações de nossa sociedade, se também seriam homossexuais como seus pais e mães, e viam isso como uma preocupação. O que encontramos é que 88% deles são pessoas que têm relação com jovens de outro sexo; 10% se definem gays ou lésbicas como seus pais e mães e 2% se definiam como bissexuais. Ou seja, é um percentual muito parecido ao que encontramos na população em geral. Os filhos acreditam que podem viver a sexualidade com liberdade e que serão aceitos pela forma como se definem. De fato, uma das filhas que se percebia heterossexual, com 14 anos, acreditou estar apaixonada pela professora e falou com suas mães, pois quem sabe podia ser lésbica. E as mães disseram que pode ser, mas também pode ser que a olhe e pareça uma pessoa que você goste pela forma de ser. Eu não conheço uma só pessoa não hetero que tenha pais heterossexuais e que os consultou nas primeiras dúvidas. Consulta uma amiga, uma irmã, não os pais. Nesse sentido, educam seus filhos com maior liberdade para decidir sua orientação sexual, e isso acredito que seja importante ter em conta.
Rosana - Você coordenou o projeto APEGO, sobre promoção de competências parentais no sistema de saúde público andaluz. Poderia nos contar um pouco sobre esse projeto? Quando surge a iniciativa e qual a importância para o sistema de saúde público espanhol implicar-se com o trabalho com famílias homoparentais?
Mar González - Eu fui parte do grupo que o coordenou 55 Hidalgo MV, Jiménez L, González M, Jiménez-Morago J, Moreno C, Oliva A, Antolín-Suárez L, López-Gaviño F, Román M, Palacios J. "Programa Apego". Una experiencia de promoción de parentalidad positiva desde el contexto sanitario. Apuntes Psicol 2016; 34(2-3):101-106.. A coordenação esteve a cargo da professora Jesús Palácio González, que trabalha muito com o Brasil sobre infância. Éramos uma equipe de pessoas que trabalhavam com família há algum tempo e já havíamos realizado um programa de intervenção com profissionais da educação, com pais e mães, o que agora se compreende como parentalidade positiva. É o termo mais amplamente utilizado. Em finais dos anos 1980, inícios dos anos 1990, conduzimos um projeto com o governo andaluz na saúde. Mas esse programa estava um pouco antigo, obsoleto, e não contemplava a diversidade. Foi feito um ajuste necessário, demandado pelo Conselho de Saúde da Junta de Andaluzia. Nos pediram algo muito simples, que era fazer um projeto, materiais para pediatras, enfermaria pediátrica, sobre o apego e os transtornos do apego. Nos parece fundamental fazer isso. No entanto, nós lhe dissemos que gostaríamos de fazer algo mais amplo, voltado para a parentalidade positiva, de como acompanhar da melhor maneira possível o desenvolvimento em todos os âmbitos, não somente no âmbito do apego, da vinculação, mas do linguístico, do social, do emocional. Enfim, queríamos tocar em outros âmbitos da personalidade. Então me ocupei em parte de uma etapa, focando a diversidade, da etapa de 2 a 12 anos. Isso se traduziu em umas guias para profissionais e guias para as famílias, para acompanhar o desenvolvimento de todas as etapas, desde o nascimento até a adolescência, 16 anos. Deveria ser traduzido também em formação para os profissionais, em cursos ou grupos de trabalho. Mas o governo mudou e isso deixou de ser uma prioridade. Não pudemos fazer mais e gostaríamos de termos feito muito mais, pois era uma demanda dos próprios profissionais.
Rosana - Apesar dos avanços e do reconhecimento legal das famílias homoparentais em vários países do mundo, assistimos atualmente ao crescimento da resistência a essas configurações familiares e, em alguns casos, da revogação de leis, especialmente por parte de grupos políticos de extrema direita. Como você entende esses processos?
Mar González - Eu creio que é um processo acalentado por uma ideologia ultraconservadora e de ultradireita, que está lesionando gravemente os direitos e está afetando a saúde e o bem-estar dessas famílias. Tenho que dizer assim. Fizemos uma investigação específica relacionada a esse tema, mas há muita investigação desenvolvida em torno da segurança dos debates sobre regulação na Austrália e nos Estados Unidos. Todas as pesquisas que existem em torno da experiência familiar quando há um grande debate em torno delas, quando são o foco, que se permite duvidar e negar-lhes os direitos, negar sua capacidade como pais e mães, discutir se suas famílias são legítimas, temos problemas de bem-estar, de saúde, nas famílias e nas crianças. Alimentado por esse debate social, pode surgir bullying por parte de colegas que estão encontrando esses argumentos nas redes, nos parlamentos. Encontramos um político que fez afirmações homofóbicas. A legitimação política desse discurso sem dúvida é um fator de risco muito claro para o bem-estar e a saúde dos coletivos LGBTI+ e, em particular, das famílias e de seus filhos e filhas, que são a parte mais vulnerável no momento, e temos o dever de salvaguardar. Precisamos de um posicionamento claro de organismos internacionais e dos governos em defesa da infância, em defesa dos direitos humanos. Devemos ter um pronunciamento muito claro a esse respeito.
Rosana - Que efeito pesquisar esse tema teve para você e sua equipe?
Mar González - Até agora eu vivi como uma pessoa heterossexual. Sou casada, tenho filhos e nunca havia enfrentado homofobia. Ela existia, eu havia visto no dia a dia, me posicionava contra quando via que faziam brincadeiras e afirmações homofóbicas perto de mim. Mas, a partir da primeira pesquisa, tivemos uma campanha contrária muito forte dos meios de comunicação mais conservadores. Fizeram uma campanha que estivemos a ponto de fazer a minha universidade sair em minha defesa, pelo tipo de afirmação que estavam fazendo, duvidando do rigor científico, duvidando da validade da pesquisa e de nossa trajetória. E uma associação ultraconservadora ligada à linha ultraconservadora da Igreja Católica, fez uma campanha em nível nacional pedindo que nunca mais se financiassem estudos desse tipo nem publicassem os dados, estimulando as pessoas a escreverem ao presidente do Governo da Junta de Andaluzia, para que não financiasse a investigação e nunca mais se publicasse nossos dados. E me chamaram na Presidência do governo para dizer-me que isso estava ocorrendo e para me tranquilizar, que não iam prestar atenção, mas estavam recebendo essas manifestações.
Tivemos também ameaças por telefone, mensagens nos ônibus, panfletos na porta dos congressos em que íamos apresentar os dados. Até um cartaz colocado na minha porta na universidade fazendo referência a um termo popular de ser lesbiana. Eu não retirei o cartaz e depois de um tempo o levei para a sala de aula. Tudo isso me deixou ainda mais consciente do efeito pernicioso da homofobia para as pessoas LGBTI+ e passei a fazer parte de um coletivo. Pois, ainda que eu goste dos homens, me alegro com as alegrias, sofro com as tristezas, sofro com os sofrimentos do coletivo. Assim, passei a fazer parte do coletivo, das famílias que se sentem parte do coletivo. Colaboro com eles sempre que necessário. Foi um modo de enfrentar a homofobia. Digamos que é o preço de fazer ciência, e não deveria ser assim. Naquele tempo foi realmente duro e, além de tudo, houve uma mudança de governo em Madri. O que fazíamos foi realizado primeiro na Andaluzia e em Madri. Com as mudanças em Madri (do defensor público), queriam impedir que se publicassem os dados, a própria instituição que os financiou. Foi uma coisa muito vergonhosa. A universidade que nos ampara deve seguir sendo livre e sem determinação política, e a sociedade científica nos ampara também, e isso nos dá uma liberdade que não podemos perder. A responsabilidade de seguir mantendo essa liberdade de cátedra e de ciência, que é o que a sociedade precisa. Na Espanha, os cientistas são das pessoas mais valorizadas pela sociedade, uma das profissões mais reconhecidas e valorizadas. E esse crédito é importante para não ceder a essas pressões.
Rosana - Muito obrigada!
Referências
- 1González M, Morcillo E, Sánchez MA, Chacón FY, Gómez A. Ajuste psicológico e integración social en hijos e hijas de familias homoparentales. Infancia Aprendizaje 2004; 27(3):327-344.
- 2Patterson CJ. Children of lesbian and gay parents. Child Dev 1992; 63(5):1025-1042.
- 3Golombok S, Tasker F, Murray C. Children raised in fatherless families from infancy: family relationships and the socioemotional development of children of lesbian and single heterosexual mothers. J Child Psychol Psychiatry 1997; 38(7):783-791.
- 4Montes A, Gonzalez M, López Gaviño F, Angulo Menasé A Familias homoparentales, más visibles y mejor aceptadas: efectos del matrimonio en España. Apuntes Psicol 2016; 34(2-3):151-159.
- 5Hidalgo MV, Jiménez L, González M, Jiménez-Morago J, Moreno C, Oliva A, Antolín-Suárez L, López-Gaviño F, Román M, Palacios J. "Programa Apego". Una experiencia de promoción de parentalidad positiva desde el contexto sanitario. Apuntes Psicol 2016; 34(2-3):101-106.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Abr 2024 - Data do Fascículo
Abr 2024
Histórico
- Recebido
21 Nov 2023 - Aceito
27 Nov 2023 - Publicado
27 Nov 2023