Desafios para o suporte à amamentação em homens transgêneros sob à luz da interseccionalidade

Danielle Laet Silva Galvão Wallacy Jhon Silva Araújo Waldemar Brandão Neto Mariana Boulitreau Siqueira Campos de Barros Estela Maria Meirelles Monteiro Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é apreender os desafios nas vivências dos usuários e profissionais de Banco de Leite Humano no atendimento a homens transgêneros no contexto da amamentação sob à luz da Interseccionalidade. Estudo qualitativo descritivo-exploratório a partir de entrevistas realizadas com seis profissionais do Banco de Leite Humano, que atenderam previamente homens trans no contexto de amamentação, e dois homens trans bissexuais, que amamentaram ao peito. Os dados foram tratados pela Análise Temática com auxílio do software Atlas.ti versão 9.0. Observam-se lacunas nas esferas educacionais, institucionais e na gestão, associadas a questões pessoais e sociais, que reproduzem um modelo pré-concebido normativo, desconsiderando as singularidades requeridas no atendimento à população trans no contexto da amamentação. A cisheteronormatividade e a supremacia do profissional operam em âmbitos pessoais, sociais e institucionais para a segregação de homens transgêneros nos serviços de suporte à amamentação. A análise interseccional destes desafios permite uma visão global dos fatores de segregação e a implementação de políticas públicas promotoras da justiça social.

Palavras-chave:
Transgênero; Amamentação; Bar reiras ao acesso aos cuidados de saúde; Banco de leite humano; Teoria da Interseccionalidade

Introdução

A sociedade é composta por famílias com uma pluralidade de conformações, sendo a família com pessoas Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais, Pangêneros e outras variações de identidade de gênero e orientação-afetivo sexual (LGBTQIAP+), uma forma de arranjo que foge à normativa cisheterossexual. Diante desta variação de constituição familiar desponta a parentalidade, que pode acontecer através gestação natural, adoção e técnicas de reprodução assistida, com envolvimento dos pais num movimento constante de ressignificação de identidades, relações de gênero e normas sociais11 Lee R. Queering lactantion: Contiributions of Queer Theory to Lactation Support for LGBTQIA2S+ Individuals and Families. J Hum Lact 2019; 35(2):233-238..

Tal qual o direito à família e à parentalidade, existe o direito reprodutivo, o qual demanda suporte para nutrição e alimentação adequada dos filhos e que nos remete à questão da amamentação como exercício deste direito11 Lee R. Queering lactantion: Contiributions of Queer Theory to Lactation Support for LGBTQIA2S+ Individuals and Families. J Hum Lact 2019; 35(2):233-238..

A amamentação é uma prática estimulada pelo mundo, com vantagens bem estabelecidas na literatura e redução da morbimortalidade infantil. A rede brasileira de Bancos de Leite Humano (BLH) atua estrategicamente neste processo, sendo referência na promoção e apoio do aleitamento, com ações de orientação às lactantes e processamento de leite humano22 Fonseca RMS, Milagres LC, Franceschini SCC, Henriques BD. O papel do banco de leite humano na promoção da saúde materno infantil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2021; 26(1):309-318..

Ao citar como premissas a promoção da saúde da mulher e da criança, e atuar como elemento relevante para redução da mortalidade materna e neonatal no Brasil, percebe-se a amamentação nos BLHs como ato feminino, invisibilizando este direito reprodutivo em homens trans, que podem amamentar22 Fonseca RMS, Milagres LC, Franceschini SCC, Henriques BD. O papel do banco de leite humano na promoção da saúde materno infantil: uma revisão sistemática. Cien Saude Colet 2021; 26(1):309-318..

A população transgênera enfrenta inúmeros entraves no acesso a serviços de saúde, marcados por preconceito e marginalização, alicerçados na cisheteronormatividade. Padrões de comportamento e expectativas sociais moldam a postura com a qual os profissionais tendem a desenvolver suas atividades e envolvem questões pessoais, sociais, culturais, históricas que se interligam33 Lacerda JAG, Bigliardi AM. A política nacional de saúde integral LGBT aplicada no NASF-AB. Rev Contraponto 2021; 8(1):141-161..

Baseada nesta realidade, a interseccionalidade é um referencial analítico que abarca e conecta os elementos, que resultam em segregação desta população nos diversos serviços de saúde44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Cabe uma escuta qualificada aos atores sociais envolvidos no processo de suporte à amamentação, buscando desvelar os desafios que marcaram a assistência a homens transgêneros lactantes. O estudo é singular em explorar os obstáculos desta interação na assistência ao aleitamento no cenário brasileiro, com a perspectiva de subsidiar formas de enfrentamento das iniquidades.

Diante do exposto, este estudo objetiva apreender os desafios nas vivências dos usuários e profissionais de BLH no atendimento a homens transgêneros no contexto da amamentação sob à luz da interseccionalidade.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa realizado com profissionais de três BLH públicos do estado de Pernambuco, que atenderam previamente homens trans no contexto de amamentação, com ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento, e execução de atividades de coleta da produção láctea.

A seleção inicial dos profissionais de saúde aconteceu após contato inicial com as chefias dos nove BLHs públicos de Pernambuco, sendo realizadas visitas presenciais nos plantões de modo a contemplar todos os profissionais destes setores, para apresentar o estudo e verificar interesse na participação. Foi solicitada às respectivas chefias que mandassem mensagem via WhatsApp para seus grupos de trabalho a cada duas semanas por seis semanas, relembrando à equipe sobre a possibilidade de participação na pesquisa.

A amostra foi composta por conveniência, quando não houve resposta de outros possíveis voluntários nas duas últimas semanas, sendo encerrada a coleta de dados dos profissionais de saúde com a inclusão de seis participantes, com base operacional na saturação por exaustão55 Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica 2008; 24(1):17-27.. Foram excluídos profissionais afastados durante o período da coleta dos dados.

A seleção dos homens trans, que amamentaram seus bebês por pelo menos 1 mês ao peito nos últimos 5 anos, se deu pela amostragem em “bola de neve”, sendo o primeiro participante indicado por um serviço de atendimento especializado à população LGBT. A pesquisadora entrou em contato com este homem trans via WhatsApp para fornecer informações sobre a pesquisa e, através deste, foi possível a indicação de outro participante, totalizando dois homens trans bissexuais. Um terceiro homem trans desistiu de participar da pesquisa, elencando razões pessoais.

Foram utilizados roteiros de entrevista distintos para cada grupo de participantes, contemplando os desafios no atendimento de homens trans em serviços de suporte à amamentação. As entrevistas aconteceram individualmente, em um único momento, entre os meses de agosto a outubro de 2022. Duraram em média 30 minutos, sendo gravadas com a autorização prévia dos participantes, transcritas e validadas por todos eles. Aplicou-se um questionário para caracterização sociodemográfica dos participantes, seguido de entrevista e registro em caderno de campo de características físicas dos usuários e do ambiente do BLH.

As entrevistas dos profissionais de saúde aconteceram presencialmente, em salas reservadas no ambiente de trabalho. Uma das entrevistas com os homens trans aconteceu virtualmente pelo Google Meet, e a outra presencial, em ambiente reservado de um Shopping da região metropolitana do Recife, Pernambuco.

Visando o anonimato, os participantes profissionais de saúde foram designados como PS, seguido de um número ordinal, referente à ordem na entrevista, a letra M ou F, conforme o sexo de nascimento, e mais um número ordinal relativo à idade (exemplo PS1-M40). A mesma lógica se deu para os participantes trans, sendo usados o termo USS como usuário de serviço de saúde e a letra M em todos, já que se designavam como homens trans (exemplo USS2-M32). Justifica-se o uso de sexo biológico nos profissionais de saúde pelo desconhecimento de alguns deles sobre o significado de identidade de gênero.

A realização da análise ocorreu por pares segundo Análise Temática proposta por Braun e Clarke66 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol 2006; 3(2):77-101., para cada segmento de grupo de participantes, seguindo as seis etapas e utilizando como ferramenta de apoio o programa Atlas.ti (versão 9.0) (Figura 1).

Figura 1
Etapas para realização da Análise Temática, Recife-PE, Brasil, 2022.

As entrevistas foram iniciadas após leitura, esclarecimentos e anuência formal do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de forma presencial ou virtual. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética número 58300022.1.0000.5208 e conduzido em conformidade com os tópicos do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)77 Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02631..

Resultados

A apresentação das vivências de amamentação junto aos profissionais de BLH e dos usuários trans dos serviços de saúde foram apresentados separadamente, sendo precedidos pelos dados de caracterização dos participantes.

A faixa etária dos profissionais de saúde variou entre 25 e 60 anos, com uma média de 43 anos. O tempo médio de atuação profissional foi de 18,5 anos, sendo a atuação no BLH em média de 10,8 anos, variando de 1 ano e meio a 18 anos. Quatro profissionais eram naturais de Pernambuco, uma de Santa Catarina e outro do Ceará. Todos se autodeclararam heterossexuais. Dois se declararam cisgêneros; os demais não sabiam o significado de identidade de gênero e não puderam se autodeclarar. Quatro relataram sexo biológico feminino, e dois masculino. Todos tinham curso superior, sendo dois coordenadores, três técnicos em enfermagem e um auxiliar de enfermagem. As quatro mulheres eram casadas, um participante era solteiro e um referiu “morar junto”. Um profissional trabalhava no BLH1, dois deles no BLH2 e três no BLH3.

Todos relataram que atenderam apenas uma pessoa trans no contexto de amamentação. Um deles referiu capacitação prévia para atendimento à população no contexto de diversidade de gênero e buscou aprofundamento após o atendimento inicial. Nenhum dos participantes teve a temática de gênero e sexualidade abordada na formação/graduação. Durante as visitas às Unidades de BLH, havia propagandas de estímulo à amamentação com bebês ao seio de mulheres cisgêneras e fotos de conformações familiares com pais cisheterossexuais, sem referências à população LGBTQIAP+.

Os homens transgêneros, usuários do SUS, possuíam idade média de 32,5 anos. Apresentavam pelos na face, cabelos curtos e utilizavam vestimentas folgadas durante a entrevista. Ambos eram bissexuais e brancos e passaram por constrangimentos em serviços de saúde por sua identidade de gênero. Até o momento da entrevista, nenhum deles havia realizado cirurgias ou procedimentos nos peitos. Outras características relacionadas à sexualidade e a marcadores sociodemográficos estão descritas no Quadro 1.

Quadro 1
Caracterização dos usuários trans dos serviços de saúde, Recife-PE, Brasil, 2022.

A análise das entrevistas e do diário de campo resultaram em três categorias temáticas: I - Homens trans no BLH? Quem são?; II - Desafios de ordem pessoal/social para atendimento aos homens trans em BLH; e III - Desafios institucionais/na gestão para atendimento aos homens trans em BLH.

Homens trans no BLH? Quem são?

A primeira categoria temática se refere às impressões dos profissionais sobre a presença de homens trans no ambiente de BLH. Revelou neste contato a presença de dúvidas em relação aos termos relacionados à sexualidade e na concepção de que para ser uma pessoa trans são necessárias cirurgias que modifiquem o corpo. Apesar de terem atendido apenas homens trans, os relatos dos profissionais remetem a qualificativos femininos:

[...] Primeiro, que eu não sabia o que era um trans. Ninguém me passou nada antes. Só disseram para ir à enfermaria tal. Eu imaginei que estava querendo amamentar, mas quando cheguei lá, me deparei com um indivíduo [homem trans] (PS1-M25).

[...] A primeira dificuldade era essa questão de se dirigir a ele ou ela. Porque a coisa não era muito definida ainda e aí houve problemas de ele cobrar que fosse chamado ele, mas aí o nome oficial era o nome feminino, ele não tinha ainda nome masculino [social]. Até porque ele nem tinha feito ainda cirurgias (PS4-F50).

A sensação de estranheza esteve presente nos relatos dos profissionais ao constatarem que um homem gostaria de amamentar. Havia a percepção que a amamentação não se prolongaria, surpreendendo a equipe do BLH:

[...] Eu senti o impacto da barba e tive medo que as pacientes que usavam a sala de ordenha tivessem algum tipo de restrição a ele por conta do aspecto físico (PS2-F60).

[...] Quando eu cheguei eu achei estranho. Jurava que ela [homem trans] não ia querer amamentar. Porque assim, na minha cabeça, uma pessoa que quer mudar de sexo, quer ser homem não vai querer estar com o bebê no peito... Mas, depois dos quatro meses, ela veio e disse: “Está só no peito”. Foi uma surpresa pra todo mundo (PS3-F36).

[...] Deu uma perturbada no meu juízo, porque como é que uma pessoa estava querendo mudar totalmente o seu biotipo, não se vê mulher. Assume a característica física, tudo de homem... É um homem que vai botar no peito, é estranho lidar com isso (PS4-F50).

Desafios de ordem pessoal/social para atendimento aos homens trans em BLH

Nesta categoria, emergem os desafios de ordem pessoal e social no atendimento de homens trans em serviços de suporte ao aleitamento.

O relato de experiências prévias negativas de outros colegas do ambiente hospitalar desencadeou medo de lidar com o homem trans no ambiente de BLH e receio de cometer transfobia. Uma profissional se sentiu oprimida para desenvolver diálogo com o usuário:

[...] Já tinha acontecido problema com outra profissional, não do banco de leite… Aí eu acho que isso já causou esse receio… no sentido de falar alguma coisa que pudesse causar algum transtorno. Eu estava sempre lembrando, usava palavras mínimas, só o importante... eu falava muito “você” e até evitava conversar (PS4-F50).

[...] Às vezes dá um nó na cabeça da gente e o medo de estar falando alguma coisa que a pessoa venha a se magoar, se machucar… A gente quer dar o melhor, mas sem estar discriminando de alguma forma (PS5-F48).

Houve relatos dos profissionais sobre a percepção que tiveram sobre os homens trans durante o atendimento no contexto da amamentação. Evidenciaram aparente constrangimento, carência e receio das atitudes dos profissionais e de outras mulheres no ambiente de BLH. Diante destas percepções, despertou-se empatia para minimizar desconfortos durante a estadia no hospital e no BLH:

[...] Eu percebi ele bem calado… parecia que tinha sido um momento que ele não estava tão feliz ou confortável diante daquela situação. Você ser trans e estar num meio de uma enfermaria, com várias mãezinhas, você pode se sentir deslocado. Eu acho que se tivesse um pouquinho mais de cuidado poderia ter colocado num isolamento. Não estou dizendo para isolar, mas ele se sentiria mais à vontade, porque são realidades diferentes (PS1-M25).

[...] O que eu senti foi que ele estava carente, que ele precisava de um apoio... ele se sentiu bem à vontade, ele conversava abertamente comigo... A recepção teve um impacto inicial com ‘disse me disse’, com risadagem, mas depois as próprias mães [que frequentavam o BLH] deram um acolhimento maravilhoso pra ele... Ele também relatou ter ficado um pouquinho envergonhado (PS2-F60).

[...] Ela [homem trans] veio meio na defensiva... se sentiu excluída em algum momento e isso fez com que em algumas vezes ela fosse um pouco ríspida com a equipe. Em algum momento ela deve ter ficado chateada, mas ela não trouxe isso para o momento de amamentação... Se tiver alguma necessidade, alguma dificuldade, aí pode vir até a salinha para fazer um atendimento mais íntimo que vai estar agindo diretamente com o paciente (PS5-F48).

[...] No começo ele quis [ordenhar sozinho], mas depois ele entrou na rotina da ordenha no horário junto com outras pacientes. No início precisou desse cuidado porque ele disse, não sei como é que vai ser com as outras, né? Como as mulheres vão reagir (PS6-M39).

Verificaram-se elementos de ordem pessoal que podem ter dificultado a interação dos profissionais e usuários. Há reconhecimento da religiosidade e da criação dos profissionais dentro de expectativas sociais normativas como possíveis entraves, com esforço deles para ressignificação de visão de mundo sobre questões de gênero:

[...] Eu venho de uma família muito religiosa. E, querendo ou não, o preconceito, ele existe. Além disso, não é tão fácil pra uma pessoa trans chegar no serviço e ser bem atendido (PS1-M25).

[...] Pra mim foi bastante desafiador e eu fiquei um pouco receosa, porque eu sou evangélica e eu confesso que num primeiro momento a gente começa a refletir sobre os valores que são construídos ao longo da nossa vida e também as coisas que são ensinadas através da religião. Tem muitas pessoas trans, muitas pessoas LGBT. Eu sei que todo mundo tem direitos e deveres. Mas às vezes eles não lembram que a gente foi criado e veio dentro do padrão. E a gente está saindo desse padrão (PS5-F548).

Um profissional referiu possibilidade de atendimento mais inclusivo caso a pessoa trans verbalize para a equipe de BLH informações sobre sua sexualidade, sobre sua conformação familiar e suas expectativas em relação à amamentação:

[...] Existem casos de relações homoafetivas… que chegam aqui e passam “batidos” e a gente não tem nem acesso a fazer esse cuidado, esse olhar diferente por conta da própria omissão dos pacientes de não dizer a situação deles (PS2-F60).

A transfobia se fez presente nos ambientes públicos, nos atos de curiosidade extrema da sociedade, olhares, registro de imagem e filmagem sem autorização do lactante trans:

[...] A questão da amamentação é algo mais delicado. Eu digo porque, quando eu saía com a minha filha, de barba, eu tirava o peito para amamentar. Eu já vi gente filmar, ficar olhando. Se eu não tivesse o punho forte de enfrentar, olhar e dizer, o que é? Minha filha não vai ficar com fome! Quer tirar uma foto? Nunca viu um homem amamentar não? Eu não sou uma aberração. Ela é minha filha. E quem pariu ela foi eu! (USS1-M32).

[...] A gente não teve muito dessa experiência de amamentar fora de casa [por causa da pandemia pelo COVID-19], que talvez certamente poderia ter ocasionado vários processos de transfobia (USS2-M33).

Apesar das vantagens, a amamentação pode ter um percurso difícil e que por vezes é romantizada como algo perfeito e de responsabilidade exclusiva da ‘mãe’, com exclusão da figura paterna. Dificuldades como dor e ingurgitamento foram relatadas pelos homens trans, condições enfrentadas por mulheres cis:

[...] Normalmente a amamentação não é fácil e não é tão romântica como as pessoas falam.... O que acontece muito da gente ver que só a mãe recebe a carga, só a mãe fica com a carga e o pai muitas vezes é excluído (PS5-F48).

[...] A gente não pode definir pré-formadamente e achar que a amamentação é maravilhosa. Eu não estou falando do valor do leite materno e nem da amamentação nem do vínculo nem nada (PS2-F60).

[...] Quando ela [a bebê] começou a mamar, ficava sufocada porque eu fiquei com um peito enorme, meu peito cresceu acho que umas três vezes mais... uma enfermeira e o pai dela me ajudaram (USS1-M32).

[...] Esse primeiro mês foi péssimo. Doía pra caramba... (USS2-M33).

Nesta categoria, evidencia-se um consenso entre usuários e profissionais quanto às dificuldades relacionadas ao ato de amamentar, rompendo uma ideação romantizada. O sentimento de medo se fez presente nos grupos de participantes, impactando no diálogo entre eles. Os PS apontaram receio de atuar de modo preconceituoso e relataram uma diversidade de posturas dos USS, que variou de timidez à rispidez. O receio também se fez presente nos relatos dos USS, diante da percepção de vulnerabilidade à exposição de violências pelo ato de amamentar.

Houve reconhecimento dos PS sobre a influência religiosa e de padrões culturais normativos no delineamento das relações entre profissionais e homens trans em processo de amamentar.

Desafios institucionais/na gestão para atendimento aos homens trans em BLH

Os dois homens trans desejavam amamentar. Um deles realizou atendimento em um BLH público e referiu ter sido inquirido por uma profissional sobre como um homem pode amamentar. O outro homem trans foi atendido por uma consultora particular, que atendia mulheres lésbicas e tinha maior percepção sobre a inclusividade, e ele comentou sobre a falta de conhecimento de termos gênero inclusivos por profissionais de saúde:

[...] A profissional me perguntou: “Como assim um pai que amamenta? Desculpa a minha grosseria, mas eu queria entender”. Eu sentei com ela e expliquei, eu tenho útero, tenho vagina. Eu não podia engravidar, mas Deus quis que eu engravidasse. Ela disse: “Mas Deus não permitiu isso como um sinal para você se reconhecer como mulher?” Eu disse: “Não tenho que ter vergonha”. Aí ela: “Mas você não tem medo da sua filha não lhe aceitar?”. Ela vai crescer sabendo da verdade... Eu quero criar ela livre, para ela entender e não ter preconceito. Foi aí que ela disse: “Realmente você tem razão, eu nunca tinha pensado desse modo” (USS1-M32).

[...] Tive uma experiência muito boa, porque minha consultora de amamentação já atendia muitas mulheres lésbicas. Ela disse: “Vou ser muito sincera, eu não estou preparada pra atender vocês. Eu estou olhando aqui todos os meus materiais e eles não são inclusivos”. Foi incrível! Porque não é fácil no meio da saúde a gente encontrar pessoas que entendam que estão errando os termos. Não é leite materno, é leite humano (USS2-M33).

O BLH foi percebido como feminino pelo homem trans, com tendência de uso de termos femininos no tratamento para com o usuário e correções do mesmo sobre nomes adequados à sua identidade de gênero. A vestimenta para ordenha desencadeou desconforto e buscou-se inclusividade, escutando o usuário para minimizar angústias:

[...] Foi difícil pra mim ordenhar porque eu via que lá era só mulheres e eu não quis vestir a bata, eu me senti muito mal com ela. Eu me sentia feminina. A médica disse: “Se sinta à vontade pra ser quem você é”. Mas independente dos preconceitos, de me chamarem de ela e eu corrigir para ele, eu tinha que estar ali porque era questão de dependência da minha filha (USS1-M32).

O despreparo profissional associado ao pouco contato da equipe de BLH com pessoas trans resultou no conhecimento reduzido sobre amamentação na população trans e, consequentemente, na partilha desta experiência com seus pares. Todos os participantes atenderam apenas um homem trans em seus respectivos serviços:

[...] Eu acho que se tivessem mais (pacientes trans) a gente conseguiria ter mais experiências para poder dividir (PS1-M25).

[...] Eu não tenho tanto conhecimento em relação a isso. Até porque eu só tive esse contato, com uma pessoa [homem trans] e… em relação à transexualidade, eu também não sei muita coisa (PS3-F36).

Agravando a realidade acima, os profissionais pontuam dificuldades para acessar estudos científicos sobre a amamentação em homens trans. Emergiu dúvida se uma gestação poderia ocorrer em uso de testosterona. Um profissional elencou sobre a falta de protocolos de atendimento a esta população por instâncias superiores:

[...] A gente tem um comitê estadual de aleitamento materno que faz discussões importantíssimas... A gente tem protocolos importantes fora, pensando na indução da lactação em casais homoafetivos com resultados, mas não temos validação ainda aqui (PS6-M39).

[...] É muito difícil conseguir um estudo científico, não é fácil de você estudar (PS2-F60).

[...] Essa mudança de que está tomando hormônio masculino e mesmo assim ovulou, engravidou… Faltou um pouco disso dessa parte, esse entendimento científico do que podia estar acontecendo (PS4-50).

Um homem trans elencou lacunas de conhecimento no percurso de amamentação, principalmente sobre a segurança da testosterona durante a lactação:

[...] A gente precisa pensar em estudos que possam garantir que a gente utilize testosterona (durante a amamentação) ou possa de fato dar uma resposta pra isso (USS2-M33).

A postura de curiosidade desmedida do profissional sobre a intimidade e sexualidade de homens trans pode causar constrangimentos. Existe a preocupação sobre a possibilidade de homens trans sofrerem transfobia por amamentar:

[...] Há a questão de também entender a intimidade do outro. Não querer ser invasivo... Eu não me oponho a responder não. Porque às vezes é uma dúvida que a pessoa tem, mas é o modo de falar (USS1-M32).

[...] Eu me preocupo muito com os homens trans que estão vindo, com a questão de ser pais. Eu nunca fui agredido, mas pode ser que alguém seja. Porque um homem de barba amamentando a criança, podem acabar achando um absurdo e haver uma agressão, tanto física como verbal (USS1-M32).

Nesta categoria, os dois grupos de participantes apontaram consensos referentes às lacunas de conhecimento, falta de estudos científicos e de protocolos que resultam em entraves para atendimento inclusivo. Esta realidade atuou para a necessidade de o USS atuar como educador no ambiente de BLH.

Os relatos dos profissionais de BLH mostraram suas vivências e desafios para ofertar cuidados a homens trans em processo de amamentação com segurança e discernimento. Os homens trans relataram sobre vivências acerca das especificidades para amamentar e desafios enfrentados em serviços especializados em lactação. A fundamentação nos princípios da interseccionalidade possibilitou melhor compreensão das desigualdades e discriminações sofridas decorrentes de paradigmas sociais de poder instituídos. A partir da consolidação dos relatos, propostos na Figura 2, segue-se a discussão.

Figura 2
Paradigmas sociais de poder e uma perspectiva interseccional para a equidade no suporte a amamentação aos homens trans. Recife-PE, Brasil, 2022.

Discussão

Este estudo qualitativo visou apreender desafios nas vivências dos usuários e profissionais de Banco de Leite Humano, no atendimento a homens transgêneros no contexto da amamentação sob à luz da interseccionalidade.

As ideias centrais da Interseccionalidade - a desigualdade social, as relações de poder interseccionais, o contexto social, a relacionalidade, a complexidade e a justiça social - atuam como ferramentas analítica e resolutiva, buscando assimilar as razões sociais, estruturais e institucionais que se associam na marginalização da assistência da população LGBT e buscando a proposição de políticas públicas em prol da transformação social44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. De maneira geral, os resultados desta pesquisa mostram a necessidade de se quebrar paradigmas relacionados à amamentação, moldados na cisheteronormatividade.

A estrutura das instituições educacionais no Brasil reflete a pouca abordagem da temática de sexualidade e impacta no conhecimento de profissionais de saúde no atendimento à população trans. Pesquisa conduzida em 2021 no Estado de São Paulo, demonstrou a presença de 264 cursos de enfermagem. Destes, 19 possuíam um Projeto Pedagógico do Curso disponível para análise, e apenas nove apresentaram ementas curriculares com disciplinas que contemplavam a saúde da população trans, havendo limitações na abordagem sobre a temática88 Santana AVS, Melo LF, Santos AL, Machado GM, Jesus LLR, Teixeira RMP, Lima GCBB, Reis NROG, Santos DMS, Barros FD, Martins MCV, Galloti FCM. Approach to trans population in Nursing education. Res Soc Dev 2022; 11(9):1-11..

A população trans é abordada de maneira superficial e insuficiente na graduação em Enfermagem para garantir um atendimento competente e integral a este grupo. Pontua-se também a importância da capacitação do corpo docente, quebrando paradigmas cisheteronormativos na esfera educacional e a relevância de vivência prática com esta população para maior entendimento sobre questões de gênero99 Gentil AGB, Padilha MI, Bellaguarda MLR, Caravaca-Morera J. Unveiling undergraduate nursing students' knowledge about trans people. Texto Contexto Enferm 2023; 2:e2022015032..

Cabe citar que a saúde da população trans raramente se encontra descrita em cursos de áreas de saúde interdisciplinares, como Medicina1010 Visgueira FLL, Chaves SRS, Batista LIV, Nunes MDS. Análise do conhecimento de estudantes de medicina acerca da identidade de gênero. Rev Bras Educ Med 2021; 45(4):e192. e Nutrição1111 Rizzieri LB, Silva DL. A saúde LGBTQ+ no curso de Nutrição: a importância da pluralidade da população na ementa curricular. Rev Interdiscip Saude Educ 2022; 3(2):8-21.. Esta realidade é um entrave importante ao acesso à saúde, pois o desconhecimento sobre especificidades desta população, como a ausência no uso do nome social, e de termos gênero inclusivos e presunção da identidade de gênero pela aparência, podem causar afastamento das pessoas trans pela busca por sua saúde, ao perceberem antecipadamente possibilidades de transfobia1212 Matsuno E, Bricker NL, Savarese E, Mohr Jr R, Balsam KF. "The default is just going to be getting misgendered": Minority stress experiences among nonbinary adults. Psychol Sex Orientat Gend Divers [periódico na internet]. 2022 [acessado 2023 maio 6]. Disponível em: https://doi.org/10.1037/sgd0000607.
https://doi.org/10.1037/sgd0000607...
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Evidencia-se na esfera educacional a cisheteronormatividade, ao pressupor que todos são heterossexuais e cisgêneros. A desigualdade social, decorrente deste pensamento e das lacunas na educação, constitui-se num dos pilares para a análise interseccional44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. e resulta na falta de acesso aos serviços de saúde de modo igualitário.

Diante do fato de nem todos os homens trans referirem problemas para amamentar em si, cabe ponderar sobre repercussões mentais decorrentes do estigma em ambientes reconhecidos como “femininos” e no despreparo profissional para atuação junto à população trans1313 Rodriguez-Wallberg K, Obedin-Maliver J, Taylor B, Van Mello N, Tilleman K, Nahata L. Reproductive health in transgender and gender diverse individuals: A narrative review to guide clinical care and international guidelines. Int J Transgend Health 2022; 24(1):7-25.. Há ainda a sobreposição da ferramenta de poder da hierarquia do saber profissional, com base no paradigma higienista, que prioriza as vantagens do leite humano para a saúde da criança, sem valorizar os anseios e sentimentos que perpassam o ato de amamentar1414 Kalil IR, Aguiar AC. Amamentar hoje é pensar no futuro: o lugar da mulher nos discursos de promoção ao aleitamento materno contemporâneos. Rev Bras Pesq Saude 2019; 21(2):29-39..

A cisheteronormatividade e o modelo de cuidado biomédico se constituem em estruturas de poder que se interseccionam na produção de iniquidades e que influenciam as posturas do indivíduo em sociedade44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. O diálogo horizontal do profissional de saúde com o usuário permite aprendizado mútuo, estabelecimento de vínculos e troca de experiências de vida1515 Oliveira I, Romanini M. (Re)escrevendo roteiros (in)visíveis: a trajetória de mulheres transgênero nas políticas públicas de saúde. Saude Soc 2020; 29(1):e170961., sendo um ponto relevante para quebra da estrutura de poder da hierarquia do saber profissional e da própria cisheteronormatividade, através da aplicação de políticas de educação permanente em saúde.

A violência sofrida pelos corpos trans pode ter diferentes autores e locais. Apesar de atitudes transfóbicas ocorrerem de maneira mais prevalente por estranhos em estudo chileno, 16,67% de pessoas trans, numa amostra de 101 pessoas, sofreram preconceito por profissionais de saúde, e 13,3% relataram violências nos centros de saúde. Os participantes deste estudo relataram que a discriminação parece começar quando há o reconhecimento de que a pessoa faz parte da população LGBT+, sendo maior o receio de sofrer preconceitos na população trans1616 Ortega Quezada IR, Pujol-Cols L, Lazzaro-Salazar M. General health and perceived/feared discrimination in the LGBT+ community. Texto Contexto Enferm 2022; 31:e20220130..

A associação de outros marcadores identitários à transgeneridade, como negritude e presença de deficiências, exacerbou o percentual de experiências negativas em serviços de saúde pela população trans num estudo brasileiro1717 Schio NA, Drum AJS. Atendimento médico na transexualidade: uma abordagem interseccional, competências e desafios. In: Viana ACA, Bertotti BM, Gitirana JHS, Kreuz LRC, Costa TC, organizadores. Pesquisa, Gênero & Diversidade: Memórias do III Encontro de Pesquisa por/de/sobre mulheres. Curitiba: Editora Íthala; 2020. p. 181-196.. As desigualdades econômicas também são fatores de segregação para acesso aos serviços de saúde pela população trans1717 Schio NA, Drum AJS. Atendimento médico na transexualidade: uma abordagem interseccional, competências e desafios. In: Viana ACA, Bertotti BM, Gitirana JHS, Kreuz LRC, Costa TC, organizadores. Pesquisa, Gênero & Diversidade: Memórias do III Encontro de Pesquisa por/de/sobre mulheres. Curitiba: Editora Íthala; 2020. p. 181-196. e podem se relacionar aos entraves sofridos pelos participantes desta pesquisa, ambos usuários do SUS, ganhando menos que 4 salários mínimos. Explicita-se a importância da relacionalidade interseccional entre marcadores diversos de segregação, os quais se somam na intensificação de disparidades44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021..

O medo da violência pode ser explicitado quando os usuários evitam dialogar sobre sua identidade de gênero e outros construtos da sexualidade aos profissionais de saúde. Este bloqueio pode ocasionar na ausência da inclusão do parceiro não gestante no processo de amamentar e a ausência de informações que permitam à família definir a melhor maneira de alimentar sua criança. Estas possibilidades incluem relactação, translactação, indução da lactação pelo(a) parceiro(a), colactação e uso de fórmulas lácteas se necessário1818 Ferri RL, Rosen-Carole CB, Jackson J, Carreno-Rijo E, Greenberg KB, Academy of Breastfeeding Medicine. ABM Clinical Protocol #33: Lactation Care for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus Patients. Breastfeed Med 2020; 15(5):284-293.,1919 Rosen-Carole C, Greenberg KB. Chestfeeding and lactation care for LGBTQ+ families (lesbian, gay, bisexual, transgender, queer, plus). In: Lawrence RA, Lawrence RM, editors. Breastfeeding. 9ª ed. Philadelphia: Elsevier; 2022. p. 646-650..

Mesmo com o desejo de atendimento inclusivo, o discurso dos profissionais de BLH é marcado pela referência de nomes femininos ao se referirem a homens trans. “Ela”, “mãe” e “leite materno” foram utilizados, constituindo microagressões “inconscientes” dos profissionais que trouxeram desconforto aos USS deste estudo. O uso de pronomes adequados e a mudança de termos enraizados, como amamentação ao seio por amamentação ao peito ou lactação, são mais inclusivos, sendo relevante que o usuário comente sobre termos de parentalidade que gostaria de ser chamado1818 Ferri RL, Rosen-Carole CB, Jackson J, Carreno-Rijo E, Greenberg KB, Academy of Breastfeeding Medicine. ABM Clinical Protocol #33: Lactation Care for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus Patients. Breastfeed Med 2020; 15(5):284-293.,1919 Rosen-Carole C, Greenberg KB. Chestfeeding and lactation care for LGBTQ+ families (lesbian, gay, bisexual, transgender, queer, plus). In: Lawrence RA, Lawrence RM, editors. Breastfeeding. 9ª ed. Philadelphia: Elsevier; 2022. p. 646-650..

O uso de nomes não condizentes com a identidade de gênero dos pacientes se denomina misgendering, sendo uma microagressão descrita na literatura. Mesmo ocorrendo de modo não intencional, pode trazer à tona sequelas mentais diversas, como a disforia, angústia relacionada a divergências entre identidade de gênero e características corporais ou percepção dos outros sobre o próprio gênero1212 Matsuno E, Bricker NL, Savarese E, Mohr Jr R, Balsam KF. "The default is just going to be getting misgendered": Minority stress experiences among nonbinary adults. Psychol Sex Orientat Gend Divers [periódico na internet]. 2022 [acessado 2023 maio 6]. Disponível em: https://doi.org/10.1037/sgd0000607.
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A despeito das lacunas na graduação e de dúvidas durante o atendimento, foram escassas as ações de educação em saúde com profissionais de BLH. Este achado corrobora com estudo em ambientes de emergência, onde a maioria dos profissionais de saúde não foram instruídos sobre cuidados com as pessoas trans, embora as tenham atendido2020 Chisolm-Straker M, Willging C, Daul AD, McNamara S, Sante SC, Shattuck 2nd DG, Crandall CS. Transgender and gender-nonconforming patients in the emergency department: what physicians know, think, and do. Ann Emerg Med 2018; 71(2):183-188.. Evidencia-se a pouca visibilidade das necessidades desta minoria e carência de aperfeiçoamento profissional diante destas limitações, exacerbando as desigualdades no acesso à saúde.

Perceberam-se dificuldades em se conseguir estudar a temática da amamentação na população trans pela raridade de artigos brasileiros que tratam desta temática. Uma revisão integrativa sobre indução à lactação em mulheres trans foi publicada no Brasil neste ano, sendo incluídos nove artigos, nenhum deles brasileiro2121 Costa RA, Lopes IMD, Tavares CPL, Rosa CFS, Leite RSD, Nunes AVM, Martins BLM, Alves MP, Silva KS, Leite MO. Induction of lactation in transgender women: An integrative literature review. Res Soc Dev 2023; 12(2):e13412240079..

Outra revisão integrativa acerca das experiências de homens trans gestantes tecem considerações sobre a amamentação, apenas com artigos internacionais2222 Pereira DMR, Araújo EC, Silva ATCSG, Abreu PD, Calazans JCC, Silva LLSB. Scientific evidence on experiences of pregnant transsexual men. Texto Contexto Enferm 2022; 31:e20210347.. Um artigo refletiu sobre o uso da linguagem neutra no campo do aleitamento, a partir da perspectiva da interseccionalidade. Citou também como entraves a ausência de aplicação de conhecimentos em indução à lactação e falta de conhecimento de que pessoas trans podem gestar e amamentar2323 Bolissian AM, Ferreira BEC, Stofel NS, Borges FA, Camargo BT, Salim NR, Teixeira IMC. Aleitamento humano e a perspectiva da interseccionalidade queer: contribuições para a prática inclusiva. Interface (Botucatu) 2023; 27:e220440.. Não há diretrizes que contemplem as especificidades requeridas para instrumentalizar os profissionais de BLH no acolhimento a esta população, ocasionando dúvidas e iniquidade no atendimento.

Destacam-se ainda nesta lista de dificuldades as questões pessoais e sociais. A cultura e história de vida desses profissionais podem refletir no tratamento dirigido às minorias, e instituições como família e religião se apoiam em normas cisheteronormativas que se estendem para relações sociais, exacerbando a discriminação33 Lacerda JAG, Bigliardi AM. A política nacional de saúde integral LGBT aplicada no NASF-AB. Rev Contraponto 2021; 8(1):141-161.. A relevância deste fato é exemplificada em estudo que cita a transfobia como fator preponderante para aquisição de conhecimento do profissional de saúde, a despeito do aumento de horas dirigidas à sua educação2424 Stroumsa D, Shires DA, Richardson CR, Jaffee KD, Woodford MR. Transphobia rather than education predicts provider knowledge of transgender health care. Med Educ 2019; 53(4):398-407..

Ainda sobre questões pessoais e sociais, a religiosidade tende a ser atrelada a um padrão cisheteronormativo, com transfobia internalizada e extensão da discriminação para as relações sociais fora do ambiente religioso. Há a tentativa de grupos religiosos compatibilizarem o cristianismo com sexualidades não heterossexuais e/ou a transgeneridade2525 Cortes HM, Morais AVC, Lacerda LCS, Santos RO, Pinho PH. Sexuality and Religiosity: an integrative literature review. Res Soc Dev 2021; 10(2):e37910212540., oportunizando inclusividade. Nesta conjuntura, os profissionais que atendem a população trans devem refletir sobre sua atuação na perpetuação de desigualdades e sobre o modo como suas opiniões e posições sociais interseccionadas impactam no relacionamento com minorias2626 Wesp LM, Malcoe LH, Elliott A, Poteat T. Intersectionality research for transgender health justice: a theory-driven conceptual framework for structural analysis of transgender health inequities. Transgender Health 2019; 4(1):287-296..

A interconexão de fatores pessoais, sociais e institucionais destaca o pilar da complexidade da análise interseccional de diferentes estruturas na produção e manutenção de desigualdades, diante da própria complexidade do ato de amamentar em si. Cabe citar ainda a importância do contexto em que ocorrem as relações de poder, bem como compreender a cultura e a sociedade que moldam o indivíduo e influenciam sua postura44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021..

Postura discriminatória nos serviços de saúde, disforia e uso prévio de hormonioterapia podem estar relacionados a uma menor taxa e tempo de amamentação na população trans, quando comparada à população cisgênera em estudo chinês. Entre os 647 participantes, um terço decidiu pela amamentação exclusiva ao peito e 58,7% amamentaram por menos de 6 meses2727 Yang H, Na X, Zhang Y, Xi M, Yang Y, Chen R, Zhao A. Rates of breastfeeding or chestfeeding and influencing factors among transgender and gender-diverse parents: a cross sectional study. EClinicalMedicine 2023; 57:101847., apresentando um percentual aquém da meta da Organização Mundial de Saúde para a Agenda 20302828 World Health Organization (WHO). United Nations Children's Fund (UNICEF). Global breastfeeding scorecard, 2019: increasing commitment to breastfeeding through funding and improved policies and programmes. Geneva: WHO; 2019.. O desejo de retomar o uso de testosterona pode estar implicado na cessação da amamentação. Apesar de relatos de uso deste hormônio na lactação2323 Bolissian AM, Ferreira BEC, Stofel NS, Borges FA, Camargo BT, Salim NR, Teixeira IMC. Aleitamento humano e a perspectiva da interseccionalidade queer: contribuições para a prática inclusiva. Interface (Botucatu) 2023; 27:e220440.,2929 Oberhelman-Eaton S, Chang A, Gonzalez C, Braith A, Singh RJ, Lteif A. Initiation of gender-affirming testosterone therapy in a lactating transgender man. J Hum Lact 2021; 38(2):339-343., não há evidências de segurança para a saúde do bebê1313 Rodriguez-Wallberg K, Obedin-Maliver J, Taylor B, Van Mello N, Tilleman K, Nahata L. Reproductive health in transgender and gender diverse individuals: A narrative review to guide clinical care and international guidelines. Int J Transgend Health 2022; 24(1):7-25..

Apesar de não referir explicitamente sobre a interseccionalidade, parece haver sobreposição das ferramentas de poder da cisheteronormatividade e do modelo de atenção biomédico para desmame precoce, ao citar a violência sofrida pelos corpos trans e a piora da saúde mental desta população no ambiente de saúde.

A apreciação dos relatos das vivências através da interseccionalidade torna possível examinar discursos e práticas que geram e perpetuam disparidades nas instituições de saúde2626 Wesp LM, Malcoe LH, Elliott A, Poteat T. Intersectionality research for transgender health justice: a theory-driven conceptual framework for structural analysis of transgender health inequities. Transgender Health 2019; 4(1):287-296., incluindo os ambientes de BLH. A consciência global destes entraves permitirá a proposição e implementação de políticas públicas em prol da justiça social, pilar da interseccionalidade44 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., de modo a erradicar barreiras no acesso aos serviços de apoio à amamentação às pessoas trans.

Considerações finais

A cisheteronormatividade e a supremacia do profissional operam nas esferas pessoais, sociais e institucionais na segregação da população transgênera no contexto de amamentação. As visões de mundo dos profissionais de saúde, permeadas por instituições familiares, religiosas e a própria sociedade operam em conjunto com a falta de expressividade do tema nas esferas educacionais na graduação e na formação em saúde dos profissionais. Além do mais, não há protocolos que contemplem as possibilidades de alimentação de um bebê em famílias não normativas e que orientem os profissionais de suporte à amamentação.

O profissional de saúde assume uma posição de poder que se reflete nas relações com as pessoas trans no contexto da amamentação, ressaltando a importância desta prática para saúde da criança em detrimento da subjetividade de quem amamenta, pautadas no paradigma higienista. A população trans ocupa um lugar de fala na denúncia de discriminações e reivindicações de cuidados transcompetentes.

A interseccionalidade amplia a visão para estas iniquidades de forma a contemplá-las em conjunto na implementação de políticas públicas para atendimento equânime à população trans nos ambientes de BLH.

Este estudo apresentou algumas limitações. A primeira se refere à amostra pequena de profissionais de saúde que atuam em BLH e usuários trans de serviços de saúde, o que pode se relacionar a tabus sobre a temática de identidade de gênero. A segunda se refere à participação exclusiva de homens trans bissexuais no contexto de amamentação, não contemplando mulheres trans que desejam amamentar. A pobreza de artigos sobre amamentação na população trans brasileira concorreu para realização de comparativos com a população trans internacional e a população nacional de mulheres cisgêneras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2023
  • Aceito
    14 Dez 2023
  • Publicado
    15 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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