Resumo
O estudo tem por objetivo compreender os significados relacionados à saúde sexual e os contornos que definem a experiência de acesso aos serviços de saúde para mulheres lésbicas de Manaus, Amazonas. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Contou com a participação de dez mulheres que se autoidentificaram como lésbicas. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e suas análises ocorreram por meio de três eixos temáticos. O primeiro abordou as representações sobre prevenção e práticas sexuais, destacando a noção de fidelidade no relacionamento como “fator de proteção”. Foram relatadas dificuldades no uso de preservativos em relações entre duas mulheres. O segundo discutiu a heteronormatividade e seus efeitos no cuidado de si, relatando as dificuldades de as participantes serem compreendidas e acolhidas pelos serviços de saúde. O terceiro abordou a busca do próprio conhecimento como tática de cuidado, destacando a importância da informação e da autonomia para a promoção da saúde e a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. Conclui-se que existe a necessidade de políticas públicas voltadas para a promoção da saúde sexual de mulheres lésbicas e o reconhecimento de suas especificidades pelos serviços de saúde.
Palavras-chave:
Homossexualidade feminina; Minorias sexuais e de gênero; Equidade no acesso aos serviços de saúde; Saúde da mulher
Introdução
A assistência à saúde para mulheres lésbicas apresenta déficits tanto no acesso quanto na prestação dos serviços. São problemas cujas existência e permanência devem ser vistas dentro de um cenário que envolve aspectos políticos, econômicos, sociais, organizativos, técnicos e simbólicos11 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360..
Neste artigo serão utilizados os conceitos de gênero como construção social e o da heterossexualidade compulsória e seus efeitos nos modos de assistência à saúde das mulheres lésbicas, por meio de uma racionalidade que pressupõe uma junção indissociável entre sexo, gênero e desejo, pautada no modelo da heterossexualidade22 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.,33 Mosheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Saude Transform Soc 2016; 7(3):71-83.. Tal pressuposição endereça consultas, encaminhamentos, prescrições, entre outras atividades, para a persona da mulher cisgênero e heterossexual. Sobre isso, um estudo33 Mosheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Saude Transform Soc 2016; 7(3):71-83. apontou que tal racionalidade mantém visível ou invisível aspectos do processo saúde-doença, dando contornos específicos à oferta de cuidado de profissionais de saúde às mulheres lésbicas e bissexuais usuárias.
Considerando que o processo saúde-doença não se restringe à compreensão oriunda de uma perspectiva pautada no determinismo biológico44 Garbois JA, Sodré F, Dalbello-Araujo M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde. Saude Debate 2017; 41(112):63-76., entende-se que o cuidado direcionado pelo modelo de sexualidade heterossexual e cisgênero pode produzir adoecimento à medida em que dificulta o acesso à assistência à saúde de qualidade. Dessa forma, tem-se, portanto, justificativa para se discutir e produzir conhecimento que entenda o fenômeno da assistência às mulheres lésbicas no âmbito nacional e regional, localizando padrões de saber-poder que operam como dificultadores ou facilitadores de expressões de subjetividades e diversidades.
Corroborando esse entendimento, Aline Bento55 Bento AP. A saúde das mulheres lésbicas: uma pesquisa bibliográfica [trabalho de conclusão de curso]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2012. afirma haver muito menos estudos referentes à saúde de mulheres lésbicas do que de mulheres heterossexuais. Tendo em vista que as mulheres lésbicas apresentam especificidades quanto ao acesso à saúde e à permanência nos serviços33 Mosheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Saude Transform Soc 2016; 7(3):71-83., isso pode interferir na integralidade da atenção à saúde11 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360.,33 Mosheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Saude Transform Soc 2016; 7(3):71-83., e por vezes sustentar práticas profissionais violentas, resultantes de um conjunto de aspectos sociais11 Silva AN, Gomes R. Acesso de mulheres lésbicas aos serviços de saúde à luz da literatura. Cien Saude Colet 2021; 26(Supl. 3):5351-5360., em cenários tanto público quanto privado33 Mosheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Saude Transform Soc 2016; 7(3):71-83.. Tais violências podem aumentar a chance de exposição das mulheres lésbicas ao adoecimento, dificultar o acesso aos serviços de saúde ou intensificar a ausência de prevenção em saúde.
A pesquisa se justifica pela necessidade de inserir a saúde da mulher da região Norte do país na pauta da agenda nacional de saúde. Quando observada a literatura científica sobre o assunto, tem-se a marginalização ou a invisibilidade dessa população, o índice insatisfatório de desempenho no cuidado com a saúde da mulher66 Braga JAC, Castro DN, Gomes CA. Avaliação de indicadores de cobertura relacionados à saúde da mulher do estado do Amazonas: uma análise comparativa. Rev Ens Saude Biot Am 2019; 1(Esp.):1. e os dados alarmantes sobre mortalidade materna77 Rocha KPM. Mortalidade materna no Brasil: características sociodemográficas e suas principais causas [trabalho de conclusão de curso]. Santa Cruz: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2022., por exemplo. Dessa forma, busca-se inserir a pauta da saúde da mulher lésbica amazônida nas agendas de saúde para LGBTQIA+, ampliando a representatividade da região Norte para além do estado do Pará88 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2020; 27(10):3807-3814..
Face ao problema apresentado, este artigo tem por objetivo compreender os significados relacionados à saúde sexual e os contornos que definem a experiência de acesso aos serviços de saúde para mulheres lésbicas de Manaus, Amazonas.
Método
Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, de abordagem qualitativa, na perspectiva da teoria social e focada na descrição e compreensão dos sentidos produzidos no cotidiano.
A pesquisa de campo ocorreu entre julho de 2021 e maio de 2022, e teve como ponto de partida um convite em forma de folder postado nas redes sociais Twitter e Instagram. Dessa forma, duas mulheres entraram em contato respondendo o post do folder nas redes sociais. Ambas eram moradoras do município de Manaus, Amazonas. Por meio delas, utilizou-se a técnica snowball99 Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009. para convidar e realizar a pesquisa com outras interlocutoras. Ao todo foram entrevistadas dez mulheres lésbicas cis.
O instrumento para levantamento dos dados foi um roteiro de entrevista semiestruturada, com temáticas que versaram sobre a situação socioeconômica, a frequência da busca por consultas generalistas e ginecológicas, a frequência sexual, a parceira fixa, frequência de realização de exames e utilização de métodos de prevenção nas relações sexuais. De acordo com Minayo1010 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2009., a entrevista semiestruturada decorre de perguntas objetivas e subjetivas, em que o entrevistador pode indagar as questões de forma livre sem se prender à indagação.
Essas entrevistas ocorreram nas dependências da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mais especificamente no Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO), e online, via Google Meet. A escolha desses locais ocorreu por meio da negociação com as interlocutoras, de acordo com suas disponibilidades de participação na pesquisa: horários, dias da semana e locais de preferência. A duração das entrevistas foi entre 30 e 50 minutos. Todas tiveram os áudios registrados em dispositivos eletrônicos e foram transcritas na íntegra.
Nos dias que antecederam as entrevistas, foram mantidas conversas com as interlocutoras em redes sociais, como Twitter e Instagram, para negociar como seria o encontro. Por fim, o contato com algumas participantes tornou-se comum mesmo após a pesquisa. Tais momentos foram conduzidos com um misto de zelo metodológico e um cuidado na produção do vínculo, principalmente por meio da demonstração de que a interlocução na pesquisa não se restringiria a uma entrevista. Durante a realização do trabalho em campo, percebeu-se que essas relações, socialidades e preparo foram fundamentais para a qualidade da interlocução mantida.
A análise das entrevistas foi realizada de forma concomitante à sua produção, na medida em que se identificavam as pistas no campo, as reflexões sobre a literatura estudada e as reuniões dos pesquisadores da equipe. Utilizando a técnica de codificação temática, que permitiu identificar, analisar, interpretar e descrever padrões e regularidades por meio dos dados empíricos e das experiências em campo, foi possível a identificação dos conceitos e códigos presentes no material1010 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2009..
Quanto aos aspectos éticos, as interlocutoras foram informadas sobre a justificativa, os objetivos e procedimentos da pesquisa e convidadas a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas, sob Parecer nº 4.854.307, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAEE) 46823321.0.0000.5016.
Resultados e discussão
Participaram do estudo dez mulheres que se autoidentificaram como lésbicas, com idades entre 20 e 48 anos, que tinham frequentado pelo menos uma vez algum serviço de atenção à saúde, além de serem usuárias tanto da rede pública de saúde quanto da privada. As participantes são naturais de Manaus, Amazonas.
Entre as participantes, oito autodeclararam-se pardas, e duas, brancas. Quanto ao estado civil, sete se declararam solteiras e três em relação homoafetiva estável. A formação acadêmica variou entre ensino superior completo e incompleto, e as que tinham ensino superior incompleto ainda estavam com os cursos em andamento.
Foram construídos três eixos temáticos, que descrevem as compreensões das mulheres lésbicas relacionadas à saúde sexual e ao acesso aos serviços: representações sobre prevenção e práticas sexuais; heteronormatividade e seus efeitos no cuidado de si; busca do próprio conhecimento como tática de cuidado.
Representações sobre prevenção e práticas sexuais
As representações sobre prevenção são ancoradas na noção de seriedade de um relacionamento e na confiabilidade atribuída a uma relação estável. Essas representações tornam-se concretas com a não utilização de barreiras de proteção sexual, havendo penetração ou não. Ainda sobre formas de prevenção sexual, elas citaram as dificuldades presentes no manejo de tecnologia de prevenção, tal como o uso de preservativos voltados para sexo entre duas mulheres.
Mas creio que é muito do tipo da seriedade do relacionamento, entendeu? (E1).
No início, até que ficava meio em dúvida, ah! porque é uma relação entre duas mulheres, será é realmente necessário [uso de proteção sexual]? Ainda mais que é uma relação fixa (E3).
Não costumo usar proteção, pois tenho parceira fixa, então não uso... se não tiver parceira fixa, com certeza acho necessário fazer uso das barreiras, com certeza é necessário (E6).
Em relação à barreira de proteção entre as mulheres, não tem uma certa proteção como entre homem e mulher, como o preservativo. Entre duas mulheres, o cuidado é conhecer o parceiro, saber se ela toma conta da saúde dela, a mulher não é como o homem que tudo aparece, como cancro ou uma doença venérea. Então isso aí entre duas mulheres, é conhecimento e confiança (E7).
Entre as entrevistadas, destaca-se que a prevenção e as práticas sexuais ocorrem por uma noção subjetiva de seriedade do relacionamento, além da ausência de conhecimentos sobre técnicas de utilização de barreiras de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis (IST).
Esses dados corroboram a pesquisa de Barbosa e Facchini1111 Barbosa RM, Facchini R. Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(Supl. 2):s291-s300., que aponta que as mulheres lésbicas apresentam percepções de que o envolvimento com homens é mais propício a ocorrências de ISTs do que os com mulheres, que são relatados como mais seguros.
Entre as dez participantes da pesquisa, nove relataram dispensar o uso de métodos de prevenção quando têm uma relação fixa e estável. Esse dado vai ao encontro de Gogna1212 Gogna M. Contribuições para repensar a prevenção das DST. In: 2º Seminário Saúde Reprodutiva em Tempos de Aids. Rio de Janeiro: ABIA/IMS/UERJ; 1997. p. 55-60., que identificou em uma pesquisa que a busca da prevenção sexual por mulheres lésbicas ocorre por meio da fidelidade presente nas relações e isso também interfere na não utilização de uma tecnologia de prevenção de ISTs. O estudo de Pinto1313 Pinto VM. Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2004. coincide com a fala das participantes, ao abordar a não existência do uso de preservativos entre mulheres lésbicas, devendo-se pensar em outras estratégias para proteção sexual.
Através de políticas públicas, o Ministério da Saúde, além de alguns movimentos de mulheres lésbicas, disponibilizava kits de proteção sexual que dispunham de tesoura, cortador de unha e luvas1414 Almeida G. Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se autodefinem como lésbicas. Physis 2009; 19(2):301-331.. Embora apresentasse uma solução para a prática de sexo seguro, havia vários entraves, como difícil assepsia do material, transporte e até ocultação dos familiares.
Outra pesquisa, com enfoque na área de sexualidade e gênero, aponta um modelo de Estado mais intervencionista sobre a proteção, mediante a escuta das mulheres com o objetivo de promover subsídios mais eficazes1515 Soares SF, Dias MC, Peres MCC. Saúde e sobrevivência lésbica: uma questão de saúde pública. In: Gevehr DL, organizador. Temas da diversidade: experiências e práticas de pesquisa. São Paulo: Científica Digital; 2021. p. 564-581.. Embora a maioria das interlocutoras deste estudo dispensasse barreiras de prevenção nas relações ditas como mais sólidas, elas se contradizem sobre o reconhecimento de sua importância de maneira geral.
Eu sei que o certo seria usar sempre, mas eu não uso (E1).
Não costumo usar métodos de proteção... é necessário (E2).
Essa seria uma pauta sobre a saúde sexual de mulheres lésbicas, para que elas compreendam a importância de se fazer uso de tecnologias de prevenção.
Ainda sobre a utilização de barreiras contra as IST, uma das dez entrevistadas citou que os métodos de proteção para mulheres lésbicas são complicados, além da difícil manipulação para ser utilizado.
[...] mas pra quem tem relação sexual com mulheres é mais difícil ainda porque o protetor para fazer sexo oral, não tem... e o que tem pra gente adaptar é o negócio de odonto que eu esqueci o nome, mas como consegue isso? Aí a gente tem que partir pro outro lado da criatividade (E4).
[...] como não tem um negócio voltado pra isso, acaba dependendo de gambiarra, então... mesmo que tu faça, não vai ser 100% apropriado... (E4).
Das dez mulheres entrevistadas, nove informaram não conhecer métodos de proteção sexual voltado para sexo entre mulheres lésbicas de maneira integral. Entretanto, uma participante citou que conhece mais de dois métodos, porém sendo difícil executá-los. Esses achados corroboram o entendimento de que não há esclarecimento sobre saúde sexual de mulheres lésbicas1616 Silberman P, Buedo PE, Burgos LM. Barreras en la atención de la salud sexual en Argentina: percepción de las mujeres que tienen sexo con mujeres. Rev Salud Publica 2016; 18(1):1. nem investimento de políticas de governo e do setor privado para o reconhecimento das sexualidades lésbicas e sua saúde. O que existe atualmente é construído por meio da criatividade da interlocutora, de modo que a narrativa pareceu ter sido produzida por sua rede de sociabilidade, mas sendo significada como “gambiarra” ou “adaptação”, nem sempre apropriada. Isso revela ainda o sentido de como as práticas de prevenção são percebidas por ela como inseguras.
Dessa forma, é possível encontrar vínculos entre as falas deste estudo e o de Butler1717 Butler J. Vida precária. Belo Horizonte: Contemporânea; 2011., em sua obra Vida precária, na qual este público é associado a um grupo que não consegue ser legitimado, muitas vezes sequer enxergado. Tomando por base a mulher lésbica, o simples ato de não ser vista, de não receber atenção na vertente da sexualidade, colabora para sua vulnerabilidade de não proteger seu corpo.
Heteronormatividade e seus efeitos no cuidado de si
Neste eixo temático são agrupados os sentidos produzidos entre as participantes e os profissionais de saúde. Foi estabelecida uma ordem compulsória durante o atendimento clínico das pacientes, além de situações que despertaram desconforto e uma presente vulnerabilidade na resolução de problemas.
[...] eu mesma falo quando alguma pergunta é feita e eu sei que a resposta para ele entender a resposta eu preciso dizer sobre a minha orientação... como se eu tivesse grávida... digo que tenho um relacionamento homoafetivo... (E6).
[...] a gente já chega e o profissional da saúde fala “ah! teu namorado”, a gente já percebe por aí que eles não conseguem nem perguntar qual a sua orientação sexual, a gente já tira por aí que eles tiram conclusão e iniciam o procedimento (E7).
A fala da entrevistada E6 remete às reflexões de Butler² sobre a ordem compulsória da heterossexualidade. A narrativa revela a racionalidade do médico: por ser mulher e procurar um ginecologista, ela mantém relação heterossexual. A narrativa expressa por E6 é uma crítica à compulsoriedade desse tratamento, como se todas as mulheres que entram em um consultório façam parte de uma relação heterossexual, buscam métodos anticonceptivos ou até mesmo tratamentos para gravidez.
Pelos relatos, observa-se que a maioria dos profissionais, quando realizam o atendimento, acionam a presunção da heterossexualidade. Desse modo, pressupõe-se que todas as mulheres são heterossexuais. Isso afeta de maneira negativa o reconhecimento da diversidade sexual e a promoção de saúde sexual e reprodutiva. Esses dados corroboram estudo1818 Guimarães RCP. Estigma e diversidade sexual nos discursos dos (as) profissionais do SUS: desafios para a saúde da população LGBT [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018. de perspectiva foucaultiana1919 Foucault M. Microfísica do poder. Porto Alegre: Graal; 2005. que interliga a compreensão da sexualidade e seu reconhecimento por parte dos profissionais da saúde acerca de um certo poder entre os corpos, determinando a legitimidade ou a ilegitimidade e, no caso das interlocutoras E6 e E7, a invisibilidade.
Desse modo, nota-se o efeito da heteronormatividade2020 Facchini R, Barbosa RM. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde; 2006. nas instituições, de modo que pode propiciar a marginalização em relação à procura de cuidados, o que pode conferir vulnerabilidade às mulheres quando buscam saúde.
Entre as interlocutoras, os resultados coletados indicam que as mulheres têm vergonha de falar sobre sua sexualidade para médicos ginecologistas. As dez mulheres interlocutoras da pesquisa relataram que nunca foram perguntadas sobre sua sexualidade em consultas rotineiras, e quatro afirmaram que, mesmo sem o questionamento, resolveram falar sobre o assunto. Entre as dez participantes, três relataram medo, insegurança e sensação de falta de abertura ao se deparar com a reação do profissional em consultas periódicas.
[...] que eu tinha medo da reação do profissional, ano retrasado eu falei, senti um olhar diferente (E3).
Costumo ir ao ginecologista anualmente, não me sinto aberta em falar minha sexualidade... (E2).
Não me sinto nem um pouco segura em falar, tenho um pouco de receio de acabar sendo destratada (E4).
O apuramento desse resultado diverge da cartilha “Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social”2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social. Brasília: MS; 2013., que orienta que a mulher lésbica precisa e deve ser informada que vai ser atendida e examinada e ter vínculos com o profissional de saúde, para que possa relatar sua orientação sexual, caso queira.
Sobre exames, entre as dez participantes, seis já fizeram o exame Papanicolau. Essas interlocutoras relataram que, apesar de ser um exame invasivo, não houve constrangimentos nem questionamentos por parte do profissional que executou.
Quando eu fiz foi bem tranquilo, foi uma técnica que teve esse contato comigo, me deu as instruções, foi gentil, tranquilo, só coletou mesmo, me vesti e pronto. Ela não me perguntou nada sobre ser ativa e nem sobre sexo (E1)
Quando fui fazer exame Papanicolau não me perguntaram em relação a sexo e orientação sexual (E3).
Embora a maioria das interlocutoras tenha realizado o exame preventivo, é relevante ressaltar que um estudo internacional2222 Marrazzo JM, Koutsky LA, Kiviat NB, Kuypers JM, Stine K. Papanicolaou test screening and prevalence of genital human papillomavirus among women who have sex with women. Am J Public Health 2001; 91(6):947-952. e outro nacional2020 Facchini R, Barbosa RM. Dossiê saúde das mulheres lésbicas: promoção da equidade e da integralidade. Belo Horizonte: Rede Feminista de Saúde; 2006. destacam que a questão de saúde da mulher lésbica está relacionada à baixa frequência de exames preventivos. Os resultados revelam que o ato de questionar essas mulheres quanto à sua orientação sexual e demonstrar profundidade nos aspectos voltados à sexualidade e ao gênero, não sobrepondo as relações cisgêneras sobre as demais, pode promover o acesso e a permanência com mais qualidade e excelência.
A busca do próprio conhecimento em saúde como tática de cuidado
Este eixo busca analisar as formas de acesso a autoconhecimento apresentadas pelas entrevistadas, que embora encontrem dificuldades para acessar informações de cuidado com a saúde, ainda conseguem por meios diversos atingir seus objetivos perante as normas vigentes.
Entre as dez participantes, três relataram não conseguir um aproveitamento integral ou mesmo parcial em consultas médicas. Elas buscam por conta própria meios não oficiais para autocuidado em saúde (páginas de internet e rede de amizades de mulheres lésbicas com algum grau de instrução em saúde). Nesse momento, chama atenção o estudo de Fraser2323 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. New York: Verso; 2003., que aponta que as injustiças de reconhecimento levam a injustiças na distribuição de recursos, resultando em má estruturação da atenção básica, afetando direta ou indiretamente o acolhimento dessas pessoas.
Nesse mesmo contexto, Starfield2424 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002. diferencia o acesso, que se refere à utilização adequada dos serviços de saúde e à acessibilidade que interliga o usuário ao devido serviço. Logo, por causa de diversas barreiras, como a falta de estruturação e o reconhecimento citado por Fraser2323 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. New York: Verso; 2003., as concepções de acessibilidade e acesso ficam prejudicadas para essa minoria.
Esse eixo temático remete à noção de tática trabalhada na obra de Michel de Certeau2525 Certeau M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes; 1998.. A tática é compreendida como se fizesse parte do cabedal de astúcias de indivíduos, categorizando-a, então, como “a arte dos fracos”, na qual é possível transfigurar a seu favor e de modo silente os sistemas disciplinares. Assim, as práticas cotidianas (estratégicas e táticas) configuram-se como locais e espaços de competição, embates e cisões que fortalecem e corrompem as costumeiras configurações do poder e do saber2525 Certeau M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes; 1998.. No caso das narrativas das participantes, a busca do próprio conhecimento em saúde pode ser interpretada como uma estratégia a seu favor frente ao não reconhecimento de sua sexualidade quando diante de um serviço de saúde:
Eu sei muito bem me proteger, porque eu sempre tive essa responsabilidade sexual com quem me envolvo... (E7).
[...] mas ela [profissional de saúde] não falou nada sobre essa questão de usar preservativo, “se protege dessa forma, faz isso e isso...”, foi tudo olhando na internet e pesquisando (E3).
Acho bom fazer exames, tenho amigos da área da saúde e conversamos muito sobre isso (E8).
Ao serem indagadas sobre receber algum tipo de educação em sexualidade durante as consultas, as participantes relataram não haver uma conversa voltada para esse aspecto. As participantes acabam pesquisando para buscar informações para proteção, principalmente de cunho sexual.
É possível analisar nas narrativas das mulheres da pesquisa as relações de poder analisadas por Foucault1919 Foucault M. Microfísica do poder. Porto Alegre: Graal; 2005., em que o conhecimento é um produto das relações de luta, das relações de poder entre sujeitos e poderes. Logo, o indivíduo luta para sobreviver, embora não consiga se inserir de um modo normativo, buscando diversos outros meios, condições, conhecimentos e táticas para o seu melhor bem-estar. Táticas como estabelecimento de conhecimento por meio de terceiros e informações em folhetos em redes sociais, podendo ser muitas vezes refutáveis, não deixam de ser um modo de insurgência frente à tentativa de aniquilamento das sexualidades não heterossexuais.
Nos trechos citados, é evidente que elas recebem apenas informações de proteção de cunho heterossexual ou não recebem qualquer informação nas suas experiências nos serviços de saúde. Todavia, mesmo que de maneira informal, as participantes buscam, por meio de suas redes de sociabilidades e pelas vias informais, conhecimento sobre a prática sexual e sobre como se proteger diante de certas situações.
Considerações finais
As compreensões das mulheres lésbicas sobre saúde sexual e acesso aos serviços de saúde foram caracterizadas neste estudo por meio de três eixos temáticos. O primeiro trata das representações sobre prevenção e práticas sexuais, destacando que as participantes têm uma noção subjetiva de fidelidade do relacionamento como “fator de proteção” e ausência de conhecimentos sobre as técnicas de utilização de métodos barreiras de prevenção às ISTs. O segundo eixo temático aborda a heteronormatividade e seus efeitos no cuidado de si, ressaltando que as participantes sentem falta de um ambiente acolhedor e inclusivo, além de sofrerem com o estigma, o preconceito e a invisibilidade por parte dos profissionais de saúde, seja em instituições públicas ou privadas.
Por fim, o terceiro eixo discorre sobre a busca do próprio conhecimento como tática de cuidado, demonstrando que as participantes buscam informações sobre saúde e cuidado por conta própria, por meio da internet e de outras mulheres lésbicas.
Os resultados desta pesquisa apontam para a importância de se pensar em políticas públicas que promovam a inclusão e a equidade no acesso aos serviços de saúde, tendo em vista a diversidade das identidades de gênero e orientações sexuais. Além disso, é fundamental que os profissionais de saúde sejam capacitados para atender às demandas específicas das mulheres lésbicas, garantindo um atendimento humanizado e acolhedor. Por fim, a pesquisa evidencia que as compreensões de saúde sexual e as experiências no acesso aos serviços de saúde são compatíveis com aquelas apresentadas por mulheres de outras regiões do Brasil, bem como a necessidade de inserir a pauta da saúde da mulher lésbica amazônida nas agendas nacionais de saúde para LGBTQIA+.
Referências
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- 2Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.
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- 7Rocha KPM. Mortalidade materna no Brasil: características sociodemográficas e suas principais causas [trabalho de conclusão de curso]. Santa Cruz: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2022.
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- 25Certeau M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes; 1998.
Financiamento
A pesquisa foi financiada pelo Governo do Estado do Amazonas, com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) Resolução nº 002/2023 - POSGRAD 2023/2024 - Processo nº 01.02.016301.01928/2023-40, e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Maio 2024 - Data do Fascículo
Maio 2024
Histórico
- Recebido
16 Mar 2023 - Aceito
10 Jul 2023 - Publicado
12 Jul 2023