Vulnerabilidade à perda de seguimento e ao óbito por tuberculose nas pessoas em situação de rua no Brasil: um estudo de coorte retrospectiva

Gabriel Pavinati Lucas Vinícius de Lima Camila Silveira Silva Teixeira Paula Hino Maria Rita Bertolozzi Joilda Silva Nery Gabriela Tavares Magnabosco Sobre os autores

Resumo

Esta coorte retrospectiva identificou os fatores associados à perda de seguimento e ao óbito por tuberculose na população em situação de rua no Brasil, estimando-se as odds ratios (OR) e seus intervalos de confiança de 95% (IC95%) por regressão logística multinominal. Analisaram-se 3.831 casos de tuberculose nessa população, dos quais 57,0% tiveram desfechos desfavoráveis. Associaram-se à perda de seguimento: histórico de abandono (OR=2,38; IC95% 2,05-2,77), desconhecimento da sorologia do HIV (OR=1,79; IC95% 1,38-2,32) e coinfecção com HIV (OR=1,73; IC95% 1,46-2,06), uso de drogas (OR=1,54; IC95% 1,31-1,80), idade (OR=0,98; IC95% 0,97-0,99), forma clínica mista (OR=0,64; IC95% 0,42-0,97) e extrapulmonar (OR=0,46; IC95% 0,29-0,73), auxílio de programa governamental (OR=0,64; IC95% 0,50-0,81) e tratamento supervisionado (OR=0,52; IC95% 0,45-0,60). Em relação ao óbito, associaram-se: idade (OR=1,03; IC95% 1,01-1,05), desconhecimento da sorologia do HIV (OR=2,39; IC95% 1,48-3,86), uso de álcool (OR=1,81; IC95% 1,27-2,58) e tratamento supervisionado (OR=0,70; IC95% 0,51-0,96). Percebeu-se a sobreposição de vulnerabilidades no processo saúde-doença das pessoas em situação de rua com tuberculose, demandando práticas cuidativas intersetoriais e integrais.

Palavras-chave:
Pessoas em Situação de Rua; Iniquidades em Saúde; Tuberculose; Estudos de Coortes

Introdução

A despeito da disponibilidade universal de tratamento - no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) - e da possibilidade de cura, a tuberculose (TB) ainda representa um problema social e de saúde pública mundialmente11 Hino P, Yamamotto TT, Bastos SH, Beraldo AA, Figueiredo TMRM, Bertolozzi MR. Tuberculosis in the street population: a systematic review. Rev Esc Enferm USP 2021;55:e03688.. Trata-se de uma doença que tem forte relação com os processos de produção social que geram e perpetuam situações de desigualdade e pobreza22 Gioseffi JR, Batista R, Brignol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em moradores de rua: uma revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56:43.. Sendo assim, torna-se primordial impulsionar os conhecimentos e o debate sobre a endemia da TB, com foco em alcançar a sua eliminação22 Gioseffi JR, Batista R, Brignol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em moradores de rua: uma revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56:43..

O Brasil, nação em desenvolvimento e com grandes disparidades sociais em seu território geopolítico, está ranqueado entre os trinta países com a maior carga da doença33 Moreira ADSR, Kritski AL, Carvalho ACC. Social determinants of health and catastrophic costs associated with the diagnosis and treatment of tuberculosis. J Bras Pneumol 2020; 46(5):e20200015.. Logo, entende-se como imprescindível a melhor compreensão acerca do processo de determinação social atrelado à ocorrência e à persistência da TB, sobretudo nos estratos mais vulneráveis da sociedade33 Moreira ADSR, Kritski AL, Carvalho ACC. Social determinants of health and catastrophic costs associated with the diagnosis and treatment of tuberculosis. J Bras Pneumol 2020; 46(5):e20200015., que - vítimas das incongruências sociais, políticas e econômicas - sofrem consideravelmente as piores consequências do agravo33 Moreira ADSR, Kritski AL, Carvalho ACC. Social determinants of health and catastrophic costs associated with the diagnosis and treatment of tuberculosis. J Bras Pneumol 2020; 46(5):e20200015..

Em se considerando a suscetibilidade das populações mais passíveis de adoecer por TB, sobretudo devido a questões sociais, é fundamental uma atuação responsável e comprometida por parte de profissionais e gestores de saúde, visando superar os obstáculos existentes para eliminação da doença44 Magnabosco GT. Vulnerabilidades no contexto da saúde coletiva: contribuições, desafios e perspectivas da enfermagem. Cien Cuid Saude. 2023;22:e68409.,55 Streit FV, Bartels C, Kuczius T, Cassier C, Gardemann J, Schaumburg F. Prevalence of latent tuberculosis in homeless persons: a single-centre cross-sectional study, Germany. PLoS One 2019; 14(3):e0214556.. Nesse ínterim, destaca-se a população em situação de rua (PSR), que apresenta risco elevado para adoecer e ter piores desfechos, principalmente em países com alta carga de TB55 Streit FV, Bartels C, Kuczius T, Cassier C, Gardemann J, Schaumburg F. Prevalence of latent tuberculosis in homeless persons: a single-centre cross-sectional study, Germany. PLoS One 2019; 14(3):e0214556., a exemplo do Brasil.

As pessoas que se encontram em situação de rua enfrentam barreiras de acesso à educação, ao trabalho, à alimentação, à higiene, aos cuidados e aos serviços de saúde, especialmente por serem alvo de preconceito e estigma; elas se inserem, portanto, em contextos de sobreposição de diferentes vulnerabilidades11 Hino P, Yamamotto TT, Bastos SH, Beraldo AA, Figueiredo TMRM, Bertolozzi MR. Tuberculosis in the street population: a systematic review. Rev Esc Enferm USP 2021;55:e03688.,22 Gioseffi JR, Batista R, Brignol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em moradores de rua: uma revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56:43.,66 Hungaro AA, Gavioli A, Christóphoro R, Marangoni SR, Altrão RF, Rodrigues AL, Oliveira MLF. Homeless population: characterization and contextualization by census research. Rev Bras Enferm 2020; 73(5):e20190236.. Esse cenário representa um grande desafio, principalmente para os serviços de saúde, uma vez que a persistência da TB acarreta repercussões para indivíduos e coletivos.

Estudos anteriores têm evidenciado a estreita relação existente entre os fatores biológicos, sociais, econômicos e programáticos, e a incidência de desfechos desfavoráveis do tratamento para TB no Brasil77 Lima LV, Pavinati G, Palmieri IGS, Vieira JP, Blasque JC, Higarashi IH, Fernandes CAM, Magnabosco GT. Factors associated with loss to follow-up in tuberculosis treatment in Brazil: a retrospective cohort study. Rev Gaucha Enferm 2023; 44:e20230077.,88 Saita NM, Andrade RLP, Bossonario PA, Bonfim RO, Hino P, Monroe AA. Factors associated with unfavorable outcome of tuberculosis treatment in people deprived of liberty: a systematic review. Rev Esc Enferm USP 2021; 55:e20200583.. Entretanto, a influência da vivência nas ruas em tais desfechos ainda requer uma investigação mais aprofundada, sobretudo ao se considerar os desafios notáveis em assegurar indicadores eficazes de controle da doença nesse segmento populacional vulnerável, conforme observado em pesquisa prévia99 Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Geoprogrammatic disparities in the performance of tuberculosis indicators in the homeless population in Brazil: an ecological approach. Rev Bras Epidemiol 2023; 26:e230048..

Sob o prisma do conceito de vulnerabilidade, este trabalho adiciona uma nova interpretação aos contextos de fragilização das pessoas em situação de rua em tratamento para TB, ao destacar como essa conjuntura pode influenciar a perda de seguimento e o óbito pela infecção nesse grupo populacional. Portanto, a fim de colaborar com estratégias de controle da doença mais assertivas, esta pesquisa objetivou identificar os fatores associados aos desfechos desfavoráveis dos casos de TB na PSR no Brasil.

Métodos

É um estudo de coorte não concorrente, de base populacional, realizado a partir dos dados provenientes das notificações dos casos de TB na PSR no Brasil, entre 2015 e 2021. Esses registros foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), que é alimentado ao longo do tratamento das pessoas com TB, que dura cerca de seis meses1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasil livre da tuberculose - Plano nacional pelo fim da tuberculose como problema de saúde pública: estratégias para 2021-2025. Brasília: MS; 2021.. As informações desse seguimento constam nas fichas de acompanhamento e notificação dos casos, servindo como fonte retrospectiva de dados ao Sinan1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasil livre da tuberculose - Plano nacional pelo fim da tuberculose como problema de saúde pública: estratégias para 2021-2025. Brasília: MS; 2021..

O recorte temporal se justifica pela inclusão da variável “população em situação de rua (sim; não; ignorado)” na ficha de notificação, que se deu em 20151111 Rocha MS, Bartholomay P, Cavalcante MV, Medeiros FC, Codenotti SB, Pelissari DM, Andrade KB, Silva GDM, Arakaki-Sanchez D, Pinheiro RS. Sistema de Informação de Agravos de Notificação Sinan: principais características da notificação e da análise de dados relacionada à tuberculose. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(1):e2019017.. Pontua-se que os dados foram acessados por meio do website do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) em novembro de 2022, razão pela qual a análise se encerrou em 2021. Os arquivos foram baixados no formato “.dbc”, lidos pelo software R® com o pacote “read.dbc”, e exportados para o formato “.csv”1212 Petruzalek D. Read.dbc - um pacote para importação de dados do Datasus na linguagem R. In: Anais do XV Congresso Brasileiro de Informática em Saúde. Goiânia; 2016..

Consideraram-se os casos de TB em pessoas com idade de 18 a 59 anos, em que a variável “população em situação de rua” estivesse assinalada como “sim”. Para inclusão, foram selecionados apenas os registros cuja variável “tipo de entrada” estivesse preenchida com as opções: “caso novo” - pessoa nunca submetida a tratamento ou tratada por menos de 30 dias; “recidiva” - pessoa com reinfecção ou recidiva da infecção anterior; e “reingresso após abandono” - pessoa que iniciou novo tratamento após abandono1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasil livre da tuberculose - Plano nacional pelo fim da tuberculose como problema de saúde pública: estratégias para 2021-2025. Brasília: MS; 2021..

Neste estudo, a variável dependente foi construída pela “situação de encerramento”, considerando-se os preenchimentos: “cura” (tratamento concluído como recomendado); “abandono primário” (uso de medicamentos por menos de 30 dias e interrupção por 30 dias consecutivos) e “abandono” (uso de medicamentos por mais de 30 dias e interrupção por 30 dias consecutivos) - denominados “perda de seguimento”; e “óbito” (tendo a TB como causa básica)1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasil livre da tuberculose - Plano nacional pelo fim da tuberculose como problema de saúde pública: estratégias para 2021-2025. Brasília: MS; 2021.. E as variáveis independentes foram:

a) sociodemográficas: sexo (masculino; feminino), idade (em anos), raça/cor autodeclarada (branca; não branca - preta/amarela/parda/indígena), escolaridade (sem estudo; até 8 anos de estudo; mais de 8 anos de estudo) e beneficiário de programa governamental de transferência de renda (sim; não).

b) clínico-epidemiológicas: tipo de entrada (reingresso após abandono; recidiva; caso novo), diabetes (sim; não), uso de drogas/álcool/tabaco (sim; não), doença mental (sim; não), infecção pelo vírus da imunodeficiência humana - HIV (sim; não; não sabe - não realizado/em andamento), forma clínica (pulmonar; extrapulmonar; mista - pulmonar/extrapulmonar) e tratamento diretamente observado - TDO (sim; não).

Adotou-se a abordagem de análise de casos completos, que consistiu na exclusão dos registros com pelo menos uma variável ignorada/em branco. Essa decisão foi embasada em uma exploração prévia do banco, observando-se um considerável quantitativo de missing data. Diante dessa constatação, optou-se pela abordagem mencionada visto que a presença de dados ausentes poderia comprometer a integridade e a fidedignidade da análise, impedindo uma interpretação apropriada dos resultados.

Para a análise descritiva dos dados, calcularam-se as frequências absolutas e relativas das variáveis categóricas; e as medidas de tendência central e dispersão para a variável “idade” (média - me; mediana - md; desvio padrão - dp). Para verificar as associações entre as variáveis dependente e independentes, utilizaram-se modelos de regressão logística multinomial (multiclasse)1313 Fernandes AAT, Figueiredo Filho DB, Rocha EC, Nascimento WS. Read this paper if you want to learn logistic regression. Rev Sociol Polit 2020; 28(74):006., dada a natureza categórica com mais de duas categorias na variável resposta (cura; perda de seguimento; óbito).

A cura foi considerada como a categoria de referência para a variável dependente, a fim de modelar os fatores que influenciaram na perda de seguimento e no óbito por TB nas pessoas em situação de rua. Inicialmente, foram construídos modelos bivariados e as associações foram reportadas em odds ratio (OR) - não ajustadas a nenhum fator de confusão (análise bruta) - e seus intervalos de confiança de 95% (IC95%). As variáveis com p-valor<0,20 foram consideradas para a análise múltipla.

A multicolinearidade das variáveis foi avaliada e descartada antes dos modelos múltiplos. Após, empregou-se a seleção pelo método backward stepwise, no qual foram incluídas, inicialmente, todas as variáveis com p-valor<0,20 no teste da razão de verossimilhança; em seguida, foram removidas uma a uma, mantendo-se apenas aquelas com p-valor<0,05. A partir disso, foram apresentadas as OR ajustadas, consideradas significantes quando seus IC95% não cruzassem o valor nulo (1,00).

Com vistas a verificar a robustez dos achados e apontar possíveis vieses de associação relacionados à exclusão dos casos com informações faltantes, procedeu-se à realização de análise post hoc considerando os dados ausentes como subcategoria das variáveis independentes presentes no modelo final. Todas as análises foram realizadas no software SPSS®, em versão 21.0. Ainda, pontua-se que os achados foram discutidos à luz do conceito de vulnerabilidade, proposto por Ayres et al.1414 Ayres JRCM, França Junior I, Calazans G, Salletti H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa R, Parker R, organizadores. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1999. p. 50-71..

Este estudo é derivado da dissertação de mestrado intitulada Tuberculose nas pessoas em situação de rua no Brasil: evidências das disparidades geoprogramáticas e dos preditores do desfecho desfavorável, defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá, em 2023. Conforme Resoluções nº 466/2012 e nº 674/2022, obteve-se parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa, sob certificado de apresentação para apreciação ética (CAAE) nº 63981922.6.0000.0104.

Resultados

No período de 2015 a 2021, foram notificados 13.839 casos de TB nas pessoas em situação de rua no Brasil, considerando-se aquelas com idade entre 18 e 59 anos e cuja “situação de encerramento” no Sinan foi preenchida como “cura”, “abandono primário/abandono” ou “óbito por TB”. Destes, 10.008 (79,7%) casos foram excluídos devido à falta de informações em alguma variável; portanto, ao final, 3.831 (20,3%) casos permaneceram e foram incluídos na análise deste estudo de coorte.

As exclusões por missing data de cada variável considerada foram apresentadas a seguir, em ordem decrescente: beneficiário de programa governamental (n=6.283; 45,4%), escolaridade (n=4.862; 35,1%), TDO (n=1.218; 8,8%), raça/cor autodeclarada (n=1.055; 7,6%), doença mental (n=1.005; 7,3%), diabetes (n=943; 6,8%), uso de tabaco (n=815; 5,9%), uso de drogas (n=685; 4,9%) e uso de álcool (n=663; 4,8%), sorologia para HIV (n=67; 0,5%) e sexo (n=1; 0,0%).

No tocante ao desfecho dos casos incluídos, 42,8% (n=1.640) foram encerrados como cura, 52,6% (n=2.016) apresentaram perda de seguimento e 4,6% (n=175) evoluíram para óbito por TB. Dentre as notificações, observou-se que a maioria foi referente a pessoas do sexo masculino (n=2.973; 77,6%), de raça/cor não branca (n=2.863; 74,7%), com até oito anos de estudo (n=2.965; 77,4%) e que não eram beneficiárias de programas de transferência de renda (n=3.476; 90,7%) (Tabela 1).

Tabela 1
Medidas descritivas das características sociodemográficas e clínico-epidemiológicas dos casos de tuberculose entre pessoas em situação de rua, segundo os desfechos do tratamento, no Brasil, 2015-2021.

Para mais, foi verificada a maior ocorrência de casos de TB com o tipo de entrada preenchido como caso novo (n=2.051; 53,5%), forma clínica pulmonar (n=3.605; 94,1%), TDO realizado (n=1.930; 50,4%) e que faziam uso de bebidas alcoólicas (n=2.129; 55,6%), tabaco (n=2.309; 60,3%) e/ou drogas (n=2.600; 67,9%). No tocante às comorbidades, observou-se que a ausência de HIV, diabetes e doença mental predominou entre os casos incluídos (Tabela 1).

Na análise bivariada, visualizaram-se associações significativas nas seguintes variáveis: sexo, raça/cor, idade, escolaridade, beneficiário do governo, tipo de entrada, forma clínica, uso de álcool, diabetes, HIV, TDO, uso de drogas e uso de tabaco (Tabela 2). Na sequência, permaneceram associadas no modelo final, mediante a análise multivariada, oito variáveis, a saber: idade, beneficiário do governo, tipo de entrada, forma clínica, uso de álcool, HIV, TDO e uso de drogas.

Tabela 2
Análise bivariada dos fatores associados à perda de seguimento e ao óbito dos casos de tuberculose entre pessoas em situação de rua, segundo as características sociodemográficas e clínico-epidemiológicas, no Brasil, 2015-2021.

Os fatores associados à perda de seguimento foram: uso de drogas (OR=1,54; IC95% 1,31-1,80), reingresso após abandono (OR=2,38; IC95% 2,05-2,77), coinfecção com HIV (OR=1,73; IC95% 1,46-2,06) e desconhecer a sorologia (OR=1,79; IC95% 1,38-2,32), idade (OR=0,98; IC95% 0,97-0,99), forma mista (OR=0,64; IC95% 0,42-0,97) e extrapulmonar (OR=0,46; IC95% 0,29-0,73), beneficiário do governo (OR=0,64; IC95% 0,50-0,81) e realização do TDO (OR=0,52; IC95% 0,45-0,60) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise multivariada dos fatores associados à perda de seguimento e ao óbito dos casos de tuberculose entre pessoas em situação de rua, segundo as características sociodemográficas e clínico-epidemiológicas, no Brasil, 2015-2021.

Quanto ao óbito por TB, evidenciaram-se os seguintes fatores significativamente associados no modelo múltiplo: idade (OR=1,03; IC95% 1,01-1,05), desconhecer a sorologia do HIV (OR=2,39; IC95% 1,48-3,86), uso de álcool (OR=1,81; IC95% 1,27-2,58) e realização do TDO (OR=0,70; IC95% 0,51-0,96) (Tabela 3). A análise de sensibilidade revelou estimativas semelhantes para as variáveis do modelo final nas abordagens de casos completos e de indicadores ausentes (Tabela 4).

Tabela 4
Análise multivariada post hoc dos fatores associados à perda de seguimento e ao óbito dos casos de tuberculose entre pessoas em situação de rua, segundo as características sociodemográficas e clínico-epidemiológicas, no Brasil, 2015-2021.

Discussão

Este estudo possibilitou a constatação de fatores sociodemográficos e clínico-epidemiológicos associados aos desfechos desfavoráveis dos casos de TB nas pessoas em situação de rua no Brasil. A despeito dos avanços no enfrentamento à infecção, reconhece-se que a PSR representa um grupo que sofre os efeitos da determinação social do processo saúde-doença, podendo se encontrar em um contexto menos sensível às ações de prevenção e manejo da TB, mesmo em países desenvolvidos1515 Nguipdop-Djomo P, Rodrigues LC, Smith PG, Abubakar I, Mangtani P. Drug misuse, tobacco smoking, alcohol and other social determinants of tuberculosis in UK-born adults in England: a community-based case-control study. Sci Rep 2020; 10(1):5639.,1616 Self JL, Mcdaniel CJ, Morris SB, Silk BJ. Estimating and evaluating tuberculosis incidence rates among people experiencing homelessness, United States, 2007-2016. Med Care 2021; 59(Supl. 2):S175-S181..

Sabe-se que as pessoas em situação de rua estão cotidianamente sujeitas a desafios decorrentes das condições de vida precárias e, muitas vezes, desumanas em que se encontram, demandando estratégias específicas para a garantia do cuidado integral e equânime1616 Self JL, Mcdaniel CJ, Morris SB, Silk BJ. Estimating and evaluating tuberculosis incidence rates among people experiencing homelessness, United States, 2007-2016. Med Care 2021; 59(Supl. 2):S175-S181.,1717 Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00101417.. Portanto, faz-se fundamental empregar a abordagem epidemiológica associada ao conceito de vulnerabilidade para uma compreensão mais aprofundada dos contextos da vida nas ruas1717 Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00101417. e sua relação com a TB.

Segundo os preceitos de Ayres et al.1414 Ayres JRCM, França Junior I, Calazans G, Salletti H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa R, Parker R, organizadores. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1999. p. 50-71.,1818 Ayres JRCM, Paiva V, França JRI, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, Marques HHS, Galano E, Lecussan P, Segurado AC, Silva MH. Vulnerabilidade, direitos humanos e necessidades de atenção integral à saúde de jovens vivendo com HIV/aids. Am J Public Health 2006; 96(6):1001-1006., a vulnerabilidade pode ser entendida em três dimensões inter-relacionadas, sendo elas: individual - que envolve o acesso à informação e a capacidade de incorporação em atitudes, conhecimentos, crenças, valores, entre outros; social - relativa a normas sociais e culturais, englobando estigma, preconceito, suporte social etc.; e programática - que se refere às ações e respostas das instituições sociais (saúde, educação, assistência social, segurança pública, dentre outras)1414 Ayres JRCM, França Junior I, Calazans G, Salletti H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa R, Parker R, organizadores. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1999. p. 50-71.,1818 Ayres JRCM, Paiva V, França JRI, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, Marques HHS, Galano E, Lecussan P, Segurado AC, Silva MH. Vulnerabilidade, direitos humanos e necessidades de atenção integral à saúde de jovens vivendo com HIV/aids. Am J Public Health 2006; 96(6):1001-1006..

Noutras palavras, para além das questões individuais e comportamentais que influenciam no adoecimento, consideram-se, também, aspectos sociais e estruturais relacionados ao acesso aos serviços de saúde1818 Ayres JRCM, Paiva V, França JRI, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, Marques HHS, Galano E, Lecussan P, Segurado AC, Silva MH. Vulnerabilidade, direitos humanos e necessidades de atenção integral à saúde de jovens vivendo com HIV/aids. Am J Public Health 2006; 96(6):1001-1006.. Portanto, para compreender a determinação social da TB, é necessário identificar as necessidades específicas desse grupo social - que, certamente, são originadas de contextos de vulnerabilidade - e considerar as situações que discriminam, subalternizam e fragilizam esses sujeitos.

Nesta coorte retrospectiva em nível nacional, observou-se que as seguintes variáveis estiveram positivamente associadas à chance de perda de seguimento do tratamento para TB, em comparação à cura, entre as pessoas que se encontram em situação de rua: reingresso após abandono (OR=2,38; IC95% 2,05-2,77), desconhecimento da sorologia do HIV (OR=1,79; IC95% 1,38-2,32) e coinfecção com HIV (OR=1,73; IC95% 1,46-2,06), e uso de drogas (OR=1,54; IC95% 1,31-1,80).

Revisão da literatura, que não investigou a perda de seguimento especificamente na PSR, identificou diferentes fatores relacionados à interrupção do tratamento e, dentre estes, visualizou-se que o histórico de abandono é um importante preditor de um novo episódio de abandono1919 Ferreira MRL, Bonfim RO, Siqueira TC, Orfão NH. Abandono do tratamento da tuberculose: uma revisão integrativa. Rev Enferm Contemp 2018; 7(1):63-71.. Em se considerando os contextos de precarização sabidamente enfrentados pela PSR2,66 Hungaro AA, Gavioli A, Christóphoro R, Marangoni SR, Altrão RF, Rodrigues AL, Oliveira MLF. Homeless population: characterization and contextualization by census research. Rev Bras Enferm 2020; 73(5):e20190236., o elevado quantitativo de reingresso após abandono visto neste estudo acende um alerta aos profissionais envolvidos no cuidado.

Estudo ecológico que avaliou os indicadores de TB na PSR, entre 2015 e 2019, apontou para a baixa testagem do HIV no território nacional, destacando estados, como Mato Grosso e Pará, com porcentagens inferiores a 75% na oferta de testes de HIV para pessoas com TB99 Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Geoprogrammatic disparities in the performance of tuberculosis indicators in the homeless population in Brazil: an ecological approach. Rev Bras Epidemiol 2023; 26:e230048.. Apesar da estratégia (dupla testagem) ser recomendada a todas as pessoas com TB ou HIV2020 Lima LV, Pavinati G, Oliveira RR, Couto RM, Alves KBA, Magnabosco GT. Temporal trend in the incidence of tuberculosis-HIV coinfection in Brazil, by macro-region, Federative Unit, sex and age group, 2010-2021. Epidemiol Serv Saude 2024; 33:e2023522., notam-se desafios persistentes para a implementação dessa abordagem junto às pessoas em situação de rua.

No Brasil, a elevada ocorrência de coinfecção TB-HIV na PSR também é uma realidade, correspondendo a mais de 30% dos casos em alguns estados99 Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Geoprogrammatic disparities in the performance of tuberculosis indicators in the homeless population in Brazil: an ecological approach. Rev Bras Epidemiol 2023; 26:e230048.. Tendo em vista que a coinfecção foi reconhecida como preditor de perda de seguimento em outras pesquisas77 Lima LV, Pavinati G, Palmieri IGS, Vieira JP, Blasque JC, Higarashi IH, Fernandes CAM, Magnabosco GT. Factors associated with loss to follow-up in tuberculosis treatment in Brazil: a retrospective cohort study. Rev Gaucha Enferm 2023; 44:e20230077.,1919 Ferreira MRL, Bonfim RO, Siqueira TC, Orfão NH. Abandono do tratamento da tuberculose: uma revisão integrativa. Rev Enferm Contemp 2018; 7(1):63-71., destaca-se que dificuldades atreladas à compreensão e à aceitação do duplo esquema terapêutico, efeitos colaterais e falta de complacência dos profissionais de saúde frente às queixas das pessoas em tratamento podem contribuir para a não adesão2121 Magnabosco GT, Andrade RLP, Arakawa T, Monroe AA, Villa TCS. Desfechos dos casos de tuberculose em pessoas vivendo com HIV: subsídios para intervenção. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):554-563..

O maior risco da perda de seguimento do tratamento para TB no contexto de vida das pessoas que fazem uso de drogas lícitas/ilícitas pode estar relacionado à sobreposição e interrelação de vulnerabilidades, uma vez que o estigma, a discriminação, a falta de recursos financeiros e os comportamentos de risco são aumentados nesses indivíduos2222 Camargo PO, Oliveira MM, Raupp LM, Pereira GB, Ramos CI. Políticas públicas e sociais frente à vulnerabilidade social no território da Cracolândia. Saude Soc 2022; 31(1):e200969.,2323 Apodaca MJFR, Castro-Granell V, Laguía A, Jaén Á, Cenoz S, Galindo MJ. Drug use and antiretroviral therapy (ART) interactions: a qualitative study to explore the knowledge, beliefs, adherence, and quality of life of people living with HIV taking ART and illicit drugs. AIDS Res Ther 2020; 17(1):24.. Especialmente na PSR com TB, esses resultados são ainda mais preocupantes, visto que grande parte dos indivíduos possui práticas de consumo de álcool e drogas.

Cabe pontuar, ainda, que aspectos protetores também foram identificados no modelo múltiplo. A cada ano acrescido de vida, observou-se uma redução de 2% nas chances de interrupção do tratamento; isso pode estar associado, por exemplo, à maior suscetibilidade dos jovens a situações de risco e negligência em relação ao autocuidado ou, até mesmo, por consequência da não aceitação do diagnóstico1919 Ferreira MRL, Bonfim RO, Siqueira TC, Orfão NH. Abandono do tratamento da tuberculose: uma revisão integrativa. Rev Enferm Contemp 2018; 7(1):63-71., o que explicaria sua maior perda do seguimento no tratamento para TB.

A obtenção de benefícios governamentais e a realização do TDO também reduziram as chances de perda de seguimento em 36% e 48%, respectivamente. Tais estratégias são fundamentais para a proteção e a garantia de direitos sociais, corriqueiramente negligenciados na PSR. Estudo de coorte com 274 pessoas em situação de rua desenvolvido nos Estados Unidos detectou melhora significativa nas chances de conclusão do tratamento para TB atribuída ao uso do TDO2424 Onwubiko U, Wall K, Sales RM, Holland DP. Using directly observed therapy (DOT) for latent tuberculosis treatment - a hit or a miss? A propensity score analysis of treatment completion among 274 homeless adults in Fulton County, GA. PLoS One 2019; 21(14):e0218373..

As formas clínicas mista (OR=0,64; IC95% 0,42-0,97) e extrapulmonar (OR=0,46; IC95% 0,29-0,73) da TB reduziram as chances de perda de seguimento. Esses resultados podem estar relacionados à lógica de atenção da TB na rede assistencial, em que casos com formas mais complexas devem ser atendidos, também, em nível ambulatorial e/ou hospitalar. Isso poderia colaborar, por exemplo, na diminuição das chances de descontinuidade, uma vez que as pessoas deveriam estar referenciadas aos serviços para manutenção do tratamento.

Além disso, pode-se inferir que, por abarcar mais equipes e profissionais envolvidos no cuidado, as pessoas que se encontram em situação de rua seriam acompanhadas em níveis assistenciais de forma conjunta com a atenção primária à saúde (APS)2525 Pinto PFPS, Santos BPS, Teixeira CSS, Nery JS, Amorim LDAF, Sanchez MN, Barreto ML, Pescarini JM. Performance evaluation of tuberculosis control in Brazilian municipalities. Rev Saude Publica 2022; 56:53., o que possibilitaria, portanto, maiores oportunidades de estabelecimento de vínculo e, consequentemente, de adesão ao tratamento para TB. Esses achados sugerem a importância de atuação articulada entre os diferentes níveis de atenção para a garantia de melhores indicadores da TB na PSR.

Com relação ao óbito por TB, constatou-se que a cada ano acrescido de idade, houve um aumento de 3% na chance desse desfecho; o uso de álcool (OR=1,81; IC95% 1,27-2,58) e o desconhecimento da sorologia do HIV (OR=2,39; IC95% 1,48-3,86) também se associaram a maiores chances de morte pela doença. Esse resultado se aproxima dos achados de uma revisão integrativa que identificou que a idade superior a 43 anos e o uso de bebida alcoólica foram preditores do óbito pelo agravo no sistema prisional2626 Camillo AJG, Ferreira MRL, Bossonario PA, Andrade RLP, Saita NM, Rezende CEM, Arcência RA, Monroe AA. Fatores associados ao óbito por tuberculose e HIV/aids em presídios: revisão integrativa. Acta Paul Enferm 2022; 35:eAPE01606..

Assume-se, portanto, a potencial influência do uso de álcool no óbito por TB. O abuso dessas substâncias pode ocasionar repercussões clínicas e fisiológicas, sendo responsável por danos hepáticos e deficiência nutricional e imunológica2727 Silva DR, Muñoz-Torrico M, Duarte R, Galvão T, Bonini EH, Arbex FF, Arbex MA, Augusto VM, Rabahi MF, Mello FCQ. Fatores de risco para tuberculose: diabetes, tabagismo, uso de álcool e uso de outras drogas. J Bras Pneumol 2018; 44(2):145-152. - especialmente quando há exposição prolongada, com destaque para adultos com idade avançada e/ou com diagnóstico de alcoolismo1515 Nguipdop-Djomo P, Rodrigues LC, Smith PG, Abubakar I, Mangtani P. Drug misuse, tobacco smoking, alcohol and other social determinants of tuberculosis in UK-born adults in England: a community-based case-control study. Sci Rep 2020; 10(1):5639.. Para mais, presume-se que esse consumo pode interferir, em geral, nas condições de vida e bem-estar, influenciando nocivamente os hábitos e o cotidiano das pessoas.

Quanto ao desconhecimento da sorologia do HIV, deve-se considerar que o subdiagnóstico, resultante da não realização de testes - muitas vezes, decorrente da fragmentação do cuidado nos serviços - ocasiona falhas no tratamento do HIV, o que pode aumentar o risco de morte por TB, dado o comprometimento imunológico causado pelo vírus2828 Mocellin LP, Winkler GB, Stella IM, Vieira PC, Beck C, Behar PRP, Kuchenbecker RS. Caracterização dos óbitos e dos itinerários terapêuticos investigados pelo comitê municipal de mortalidade por aids de Porto Alegre em 2015. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(3):e2019355.. Portanto, urge promover a interlocução entre os programas da TB e do HIV e os demais setores, a fim de que seja ofertada a testagem universal para as pessoas em qualquer oportunidade2020 Lima LV, Pavinati G, Oliveira RR, Couto RM, Alves KBA, Magnabosco GT. Temporal trend in the incidence of tuberculosis-HIV coinfection in Brazil, by macro-region, Federative Unit, sex and age group, 2010-2021. Epidemiol Serv Saude 2024; 33:e2023522..

Uma possibilidade para integrar o cuidado é a criação e o direcionamento de estratégias intersetoriais e de proteção social, como a implementação do projeto terapêutico singular (PTS) das pessoas em situação de rua com diagnóstico de TB, de modo humanizado e integral2929 Razente MS, Lima LV, Silva IGP, Monteiro LRS, Cecilio HPM, Gil NLM, Magnabosco GT. Perfil clínico-epidemiológico das pessoas acometidas por HIV/aids, tuberculose e hanseníase no Paraná, Brasil, 2010-2019. Cien Cuid Saude 2022; 21:e61725.. Ainda, nessa perspectiva, cumpre destacar e reiterar o TDO junto à PSR como estratégia efetiva para o tratamento da doença, que, neste estudo de coorte, foi capaz de reduzir em 30% a chance do óbito pela TB nessa população.

Apesar da existência de políticas públicas, programas, diretrizes e ações que, em tese, garantem o cuidado em saúde à PSR, verificam-se importantes lacunas em sua operacionalização99 Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Geoprogrammatic disparities in the performance of tuberculosis indicators in the homeless population in Brazil: an ecological approach. Rev Bras Epidemiol 2023; 26:e230048., tornando esses indivíduos mais expostos às situações de violência e privação de direitos33 Moreira ADSR, Kritski AL, Carvalho ACC. Social determinants of health and catastrophic costs associated with the diagnosis and treatment of tuberculosis. J Bras Pneumol 2020; 46(5):e20200015.. Neste estudo, esse cenário de disparidades foi visualizado pela elevada proporção de pessoas em situação de rua com desfechos desfavoráveis dos casos de TB, juntamente com os contextos que os potencializam.

É fundamental mitigar os obstáculos que tangenciam a realidade das pessoas em situação de rua com a doença. Nesse sentido, recentemente, o Governo Federal promulgou o Decreto nº 11.908/2024, instituindo o Programa Brasil Saudável, coordenado pelo Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDDS)3030 Brasil. Decreto nº 11.908, de 6 de fevereiro de 2024. Institui o Programa Brasil Saudável - Unir para Cuidar, e altera o Decreto nº 11.494, de 17 de abril de 2023, para dispor sobre o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente - CIEDDS. Diário Oficial da União 2024; 7 fev.. Essa iniciativa busca favorecer ações intersetoriais que eliminem tais agravos como problemas de saúde pública até o final desta década3030 Brasil. Decreto nº 11.908, de 6 de fevereiro de 2024. Institui o Programa Brasil Saudável - Unir para Cuidar, e altera o Decreto nº 11.494, de 17 de abril de 2023, para dispor sobre o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente - CIEDDS. Diário Oficial da União 2024; 7 fev..

A efetivação de estratégias que envolvam diferentes setores para enfrentar a TB, como o CIEDDS, é primordial para a eliminação da TB até 20303131 Almeida CPB, Trajman A, Mitnick CD, Kritski AL, Santos-Filho ET. Beyond goodwill and promises-urgent needs and opportunities to accelerate the fight against tuberculosis in Brazil. Lancet Reg Health Am 2024; 30:100663.. Essa meta não pode ser alcançada sem medidas para reduzir a desigualdade social enraizada no país3131 Almeida CPB, Trajman A, Mitnick CD, Kritski AL, Santos-Filho ET. Beyond goodwill and promises-urgent needs and opportunities to accelerate the fight against tuberculosis in Brazil. Lancet Reg Health Am 2024; 30:100663.. Assim, é premente que as esferas de gestão e os serviços envolvidos no cuidado a pessoas com TB atuem integradamente para que se consiga, de fato, implementar esse programa ousado, com potencial de eliminação das doenças determinadas socialmente e potencial de promoção de cuidado intersetorial no país.

O abismo de desigualdade persistente em nossa sociedade demanda por políticas sociais e de saúde que contemplem integralmente as necessidades de uma população tão vulnerabilizada como a PSR3232 Aldridge RW, Story A, Hwang SW, Nordentoft M, Luchenski AS, Hartwell G, Tweed EJ, Lewer D, Katikireddi SV, Hayward AC. Morbidity and mortality in homeless individuals, prisoners, sex workers, and individuals with substance use disorders in high-income countries: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2018; 391(10117):241-250.,3333 Macedo LR, Maciel ELN, Struchiner CJ. Vulnerable populations and tuberculosis treatment outcomes in Brazil. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4749-4759.. Assim sendo, reforça-se a urgência pela integração e articulação das várias esferas do SUS e de outros setores governamentais e não governamentais, buscando-se o cuidado contínuo e longitudinal, mediante serviços e ações de prevenção e controle da doença.

Como limitações deste estudo, assume-se a utilização de dados secundários, que podem estar sujeitos ao preenchimento errôneo e à subnotificação de casos, falseando o verdadeiro cenário epidemiológico do agravo, em especial na PSR. Para mais, destaca-se o elevado quantitativo de missing data, o que pode contribuir para os vieses de seleção, informação e análise; ou seja, isso pode acarretar conclusões incertas sobre a relação entre as variáveis e reduzir o poder de generalização dos resultados.

No entanto, mesmo ao se considerar que o grande número de exclusões possa limitar a interpretação dos achados, a análise post hoc revelou estimativas semelhantes para as variáveis do modelo final na comparação entre as abordagens de casos completos e de indicadores ausentes. Dessa forma, a inclusão das informações ignoradas como uma subcategoria das variáveis independentes parece ter mantido a direção e a força da associação para a maioria das análises apresentadas.

Além disso, diante da inserção da variável “população em situação de rua” na ficha de notificação somente em 2015, suscita-se outra limitação relacionada à possível incompletude dos registros por parte dos profissionais de saúde, que podem não estar habituados ao preenchimento da variável de forma correta. As informações precisas sobre cada caso, especialmente os relativos à PSR, são essenciais para a organização e a sustentabilidade de uma rede de saúde integral, integrada e efetiva.

Por fim, alerta-se que a pandemia da COVID-19 pode ter influenciado as análises, dada a inclusão de dados de 2020 e 2021, gerando medidas equívocas dos desfechos desfavoráveis que precisam ser ponderadas em estudos futuros. Mudanças nos padrões de busca por serviços de saúde, isolamento social, priorização de recursos, alterações no comportamento das pessoas e adaptações dos serviços de assistência e vigilância podem ter influenciado o acesso ao cuidado, a qualidade do tratamento e a vigilância dos casos de TB3434 Hino P, Yamamoto TT, Magnabosco GT, Bertolozzi MR, Taminato M, Fornari LF. Impacto da covid-19 no controle e reorganização da atenção à tuberculose. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE002115.,3535 Garcia MT, Resende MR, Santos NMS, Ferreira AT, Silva MDFN, Mendes EDT, Angerami RN, Agrela MVR, Martins AC, Hofling CC. Impacto da pandemia de covid-19 no desfecho de tratamento da tuberculose em hospital terciário. Braz J Infect Dis 2022; 26:102478..

Conclusão

A perda de seguimento dos casos de TB na PSR esteve associada à idade mais jovem, ao reingresso após abandono, à coinfecção com HIV e ao desconhecimento da sorologia, e ao uso de drogas. O recebimento de benefício governamental, a realização de TDO e ter as formas clínicas mista e extrapulmonar diminuíram as chances. O óbito por TB esteve atrelado ao avançar da idade, ao desconhecimento da sorologia do HIV e ao uso de álcool, enquanto a realização do TDO reduziu as chances de morte.

Esses achados ressaltam os contextos que vulnerabilizam e repercutem no processo saúde-doença das pessoas em situação de rua, tornando-as mais suscetíveis aos desfechos desfavoráveis da TB. Assim, percebe-se a importância de analisar a relação entre os aspectos sociodemográficos e clínico-epidemiológicos, bem como outros elementos que fragilizam essas pessoas, buscando a qualificação das estratégias de enfrentamento para serem sensíveis a esse grupo sabidamente marginalizado.

Outrossim, aponta-se o potencial da vigilância no que se refere ao planejamento, controle e manejo da TB, o que direciona à necessidade da qualificação constante dos serviços e suas ferramentas. Finalmente, ressalta-se a demanda por estudos, com diferentes abordagens, que objetivem elucidar os contextos vividos por esse grupo social, de modo a ampliar a compreensão das bases que sustentam essa realidade e a possibilitar a implementação de estratégias que modifiquem as suas condições estruturantes.

Referências

  • 1
    Hino P, Yamamotto TT, Bastos SH, Beraldo AA, Figueiredo TMRM, Bertolozzi MR. Tuberculosis in the street population: a systematic review. Rev Esc Enferm USP 2021;55:e03688.
  • 2
    Gioseffi JR, Batista R, Brignol SM. Tuberculose, vulnerabilidades e HIV em moradores de rua: uma revisão sistemática. Rev Saude Publica 2022; 56:43.
  • 3
    Moreira ADSR, Kritski AL, Carvalho ACC. Social determinants of health and catastrophic costs associated with the diagnosis and treatment of tuberculosis. J Bras Pneumol 2020; 46(5):e20200015.
  • 4
    Magnabosco GT. Vulnerabilidades no contexto da saúde coletiva: contribuições, desafios e perspectivas da enfermagem. Cien Cuid Saude. 2023;22:e68409.
  • 5
    Streit FV, Bartels C, Kuczius T, Cassier C, Gardemann J, Schaumburg F. Prevalence of latent tuberculosis in homeless persons: a single-centre cross-sectional study, Germany. PLoS One 2019; 14(3):e0214556.
  • 6
    Hungaro AA, Gavioli A, Christóphoro R, Marangoni SR, Altrão RF, Rodrigues AL, Oliveira MLF. Homeless population: characterization and contextualization by census research. Rev Bras Enferm 2020; 73(5):e20190236.
  • 7
    Lima LV, Pavinati G, Palmieri IGS, Vieira JP, Blasque JC, Higarashi IH, Fernandes CAM, Magnabosco GT. Factors associated with loss to follow-up in tuberculosis treatment in Brazil: a retrospective cohort study. Rev Gaucha Enferm 2023; 44:e20230077.
  • 8
    Saita NM, Andrade RLP, Bossonario PA, Bonfim RO, Hino P, Monroe AA. Factors associated with unfavorable outcome of tuberculosis treatment in people deprived of liberty: a systematic review. Rev Esc Enferm USP 2021; 55:e20200583.
  • 9
    Pavinati G, Lima LV, Radovanovic CAT, Magnabosco GT. Geoprogrammatic disparities in the performance of tuberculosis indicators in the homeless population in Brazil: an ecological approach. Rev Bras Epidemiol 2023; 26:e230048.
  • 10
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasil livre da tuberculose - Plano nacional pelo fim da tuberculose como problema de saúde pública: estratégias para 2021-2025. Brasília: MS; 2021.
  • 11
    Rocha MS, Bartholomay P, Cavalcante MV, Medeiros FC, Codenotti SB, Pelissari DM, Andrade KB, Silva GDM, Arakaki-Sanchez D, Pinheiro RS. Sistema de Informação de Agravos de Notificação Sinan: principais características da notificação e da análise de dados relacionada à tuberculose. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(1):e2019017.
  • 12
    Petruzalek D. Read.dbc - um pacote para importação de dados do Datasus na linguagem R. In: Anais do XV Congresso Brasileiro de Informática em Saúde. Goiânia; 2016.
  • 13
    Fernandes AAT, Figueiredo Filho DB, Rocha EC, Nascimento WS. Read this paper if you want to learn logistic regression. Rev Sociol Polit 2020; 28(74):006.
  • 14
    Ayres JRCM, França Junior I, Calazans G, Salletti H. Vulnerabilidade e prevenção em tempos de Aids. In: Barbosa R, Parker R, organizadores. Sexualidade pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1999. p. 50-71.
  • 15
    Nguipdop-Djomo P, Rodrigues LC, Smith PG, Abubakar I, Mangtani P. Drug misuse, tobacco smoking, alcohol and other social determinants of tuberculosis in UK-born adults in England: a community-based case-control study. Sci Rep 2020; 10(1):5639.
  • 16
    Self JL, Mcdaniel CJ, Morris SB, Silk BJ. Estimating and evaluating tuberculosis incidence rates among people experiencing homelessness, United States, 2007-2016. Med Care 2021; 59(Supl. 2):S175-S181.
  • 17
    Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saude Publica 2018; 34(3):e00101417.
  • 18
    Ayres JRCM, Paiva V, França JRI, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, Marques HHS, Galano E, Lecussan P, Segurado AC, Silva MH. Vulnerabilidade, direitos humanos e necessidades de atenção integral à saúde de jovens vivendo com HIV/aids. Am J Public Health 2006; 96(6):1001-1006.
  • 19
    Ferreira MRL, Bonfim RO, Siqueira TC, Orfão NH. Abandono do tratamento da tuberculose: uma revisão integrativa. Rev Enferm Contemp 2018; 7(1):63-71.
  • 20
    Lima LV, Pavinati G, Oliveira RR, Couto RM, Alves KBA, Magnabosco GT. Temporal trend in the incidence of tuberculosis-HIV coinfection in Brazil, by macro-region, Federative Unit, sex and age group, 2010-2021. Epidemiol Serv Saude 2024; 33:e2023522.
  • 21
    Magnabosco GT, Andrade RLP, Arakawa T, Monroe AA, Villa TCS. Desfechos dos casos de tuberculose em pessoas vivendo com HIV: subsídios para intervenção. Acta Paul Enferm 2019; 32(5):554-563.
  • 22
    Camargo PO, Oliveira MM, Raupp LM, Pereira GB, Ramos CI. Políticas públicas e sociais frente à vulnerabilidade social no território da Cracolândia. Saude Soc 2022; 31(1):e200969.
  • 23
    Apodaca MJFR, Castro-Granell V, Laguía A, Jaén Á, Cenoz S, Galindo MJ. Drug use and antiretroviral therapy (ART) interactions: a qualitative study to explore the knowledge, beliefs, adherence, and quality of life of people living with HIV taking ART and illicit drugs. AIDS Res Ther 2020; 17(1):24.
  • 24
    Onwubiko U, Wall K, Sales RM, Holland DP. Using directly observed therapy (DOT) for latent tuberculosis treatment - a hit or a miss? A propensity score analysis of treatment completion among 274 homeless adults in Fulton County, GA. PLoS One 2019; 21(14):e0218373.
  • 25
    Pinto PFPS, Santos BPS, Teixeira CSS, Nery JS, Amorim LDAF, Sanchez MN, Barreto ML, Pescarini JM. Performance evaluation of tuberculosis control in Brazilian municipalities. Rev Saude Publica 2022; 56:53.
  • 26
    Camillo AJG, Ferreira MRL, Bossonario PA, Andrade RLP, Saita NM, Rezende CEM, Arcência RA, Monroe AA. Fatores associados ao óbito por tuberculose e HIV/aids em presídios: revisão integrativa. Acta Paul Enferm 2022; 35:eAPE01606.
  • 27
    Silva DR, Muñoz-Torrico M, Duarte R, Galvão T, Bonini EH, Arbex FF, Arbex MA, Augusto VM, Rabahi MF, Mello FCQ. Fatores de risco para tuberculose: diabetes, tabagismo, uso de álcool e uso de outras drogas. J Bras Pneumol 2018; 44(2):145-152.
  • 28
    Mocellin LP, Winkler GB, Stella IM, Vieira PC, Beck C, Behar PRP, Kuchenbecker RS. Caracterização dos óbitos e dos itinerários terapêuticos investigados pelo comitê municipal de mortalidade por aids de Porto Alegre em 2015. Epidemiol Serv Saude 2020; 29(3):e2019355.
  • 29
    Razente MS, Lima LV, Silva IGP, Monteiro LRS, Cecilio HPM, Gil NLM, Magnabosco GT. Perfil clínico-epidemiológico das pessoas acometidas por HIV/aids, tuberculose e hanseníase no Paraná, Brasil, 2010-2019. Cien Cuid Saude 2022; 21:e61725.
  • 30
    Brasil. Decreto nº 11.908, de 6 de fevereiro de 2024. Institui o Programa Brasil Saudável - Unir para Cuidar, e altera o Decreto nº 11.494, de 17 de abril de 2023, para dispor sobre o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente - CIEDDS. Diário Oficial da União 2024; 7 fev.
  • 31
    Almeida CPB, Trajman A, Mitnick CD, Kritski AL, Santos-Filho ET. Beyond goodwill and promises-urgent needs and opportunities to accelerate the fight against tuberculosis in Brazil. Lancet Reg Health Am 2024; 30:100663.
  • 32
    Aldridge RW, Story A, Hwang SW, Nordentoft M, Luchenski AS, Hartwell G, Tweed EJ, Lewer D, Katikireddi SV, Hayward AC. Morbidity and mortality in homeless individuals, prisoners, sex workers, and individuals with substance use disorders in high-income countries: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2018; 391(10117):241-250.
  • 33
    Macedo LR, Maciel ELN, Struchiner CJ. Vulnerable populations and tuberculosis treatment outcomes in Brazil. Cien Saude Colet 2021; 26(10):4749-4759.
  • 34
    Hino P, Yamamoto TT, Magnabosco GT, Bertolozzi MR, Taminato M, Fornari LF. Impacto da covid-19 no controle e reorganização da atenção à tuberculose. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE002115.
  • 35
    Garcia MT, Resende MR, Santos NMS, Ferreira AT, Silva MDFN, Mendes EDT, Angerami RN, Agrela MVR, Martins AC, Hofling CC. Impacto da pandemia de covid-19 no desfecho de tratamento da tuberculose em hospital terciário. Braz J Infect Dis 2022; 26:102478.

  • Financiamento

    Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Ministério da Educação - Brasil (CAPES/MEC) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    20 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br