Rede social de famílias envolvidas na negligência contra crianças e adolescentes: construindo um olhar multidimensional

Fabiano Henrique Oliveira Sabino Ana Paula de Miranda Araújo Soares Ingrid Pacheco Nathalia Vitória de Carvalho Martinez Maísa Rodrigues Françoloso Diene Monique Carlos Sobre os autores

Resumo

A negligência constitui uma das violências contra crianças e adolescentes mais notificadas, entretanto ainda pouco explorada em estudos nacionais. O objetivo deste estudo foi analisar a rede pessoal social de famílias envolvidas na negligência contra crianças e adolescentes. Estudo qualitativo, ancorado no paradigma da complexidade, realizado junto a 20 familiares envolvidos na negligência contra crianças e adolescentes em município do interior de São Paulo, Brasil. A coleta de dados se deu por mapas mínimos da rede pessoal social e entrevistas semiestruturadas em janeiro de 2021. As redes se apresentaram reduzidas, com pouca ou nenhuma articulação entre os diferentes serviços e setores e predominantemente homogêneas. Por terem muitos vínculos fragilizados, mostrou-se pouco sustentadora, apontando dificuldades no acesso a trabalho, educação e saúde. Pelas características da rede, identificou-se a complexidade do fenômeno da negligência, em que elementos condicionam e perpetuam vivências de ausências e fragilidades. Olhares e ações interprofissionais e intersetoriais são pleiteadas e recomendadas.

Palavras-chave:
Violência doméstica; Maus-tratos infantis; Criança; Adolescente; Família; Rede social

Introdução

A violência, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), é definida como o uso intencional da força ou do poder que pode ocasionar danos ou risco de danos físicos ou psicológicos à uma comunidade, a um grupo ou a um indivíduo11 World Health Organization (WHO). Violence prevention alliance - the public health approach. Geneva: WHO; 2014.. A negligência familiar, uma das várias tipificações de violência interpessoal, é mais comum junto a crianças e adolescentes22 García-Cruz AH, García-Piña CA, Orihuela-García S. Negligencia infantil: una mirada integral a su frecuencia y factores associados. Acta Pediatr Mex 2019; 40(4):267-273..

A negligência infantil se caracteriza pela não realização ou efetivação dos cuidados prestados a crianças e adolescentes, estando relacionada a não prover cuidados médicos, de higiene e moradia segura, bem como não garantir a proteção contra situações perigosas, como estar em contato com pessoas ou ambientes que tragam riscos33 Avdibecovis E, Brkic, M. Child neglect: causes and consequences. Psychiatria Danubina 2020; 32(Suppl. 3):337-342.. Trata-se de um tipo de violência com múltiplos fatores, sendo estes ligados a características e dificuldades individuais da família; ao contexto sociocultural em que a família se encontra; à falta de acesso a serviços e informações que deem os meios para oferecer cuidado adequado às crianças; e à interação desses fatores, combinando os estressores do contexto da família com as suas capacidades e seus recursos para responder a eles44 Mulder TM, Kuiper KC, Van Der Put CE, Stams GJM, Assink M. Risk factors for child neglect: a meta-analytic review. Child Abuse Negl 2018; 77:198-210..

No Brasil, esse fenômeno é atravessado por questões socioeconômicas, estruturais, culturais, em especial de gênero e classe social, devido à violência ser uma omissão social, cíclica e de repetição55 Mata, NT. Negligência na infância: uma reflexão sobre a (des)proteção de crianças e famílias. Soc Questao 2019; 22(45):223-238.. Tal violência se articula a outras, geralmente com caráter de repetição, e traz riscos de agravos à saúde, incluindo a morte44 Mulder TM, Kuiper KC, Van Der Put CE, Stams GJM, Assink M. Risk factors for child neglect: a meta-analytic review. Child Abuse Negl 2018; 77:198-210.. O lócus dessas situações em geral centraliza-se na família como responsável, por vezes culpabilizada a despeito de outros elementos55 Mata, NT. Negligência na infância: uma reflexão sobre a (des)proteção de crianças e famílias. Soc Questao 2019; 22(45):223-238.. Aqui considera-se família como conceito flexível, complexo e não estanque, dando espaço à multiplicidade, que pode abranger pessoas com laço biológico e consanguíneo, mas também pessoas significativas com relações de afeto e cuidado, como pessoas da família estendida, amigos, parentes de “criação”66 Medeiros JPB, Neves ET, Pitombeira MGV, Figueiredo SV, Campos DB, Gomes ILV. Percepções de cuidadoras acerca da continuidade do cuidado às crianças com necessidades especiais de saúde. Rev Fam Ciclos Vida Saude Contexto Soc 2022; 10(4):718-731..

No Brasil, a última publicação do Atlas da Violência77 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S. Atlas da violência 2021. São Paulo: FBSP; 2021. mostra que a negligência atinge cerca de 52% das crianças de 0 a 9 anos. Vislumbrou-se aumento importante das denúncias de violências contra essa população já antes da pandemia por COVID-1988 Lettiere-Vianna A, Baraldi NG, Carlos DM, Fumincelli L, Costa LCR, Castro PC. Coping strategies for violence against children, adolescents and women in the context of social isolation due to covid-19: scoping review. Texto Contexto Enferm 2021; 30:e20200443.. Estimativas mundiais de incidência de negligência contra crianças vão de 20,6% até 29,4%, a depender da faixa etária e das características da negligência33 Avdibecovis E, Brkic, M. Child neglect: causes and consequences. Psychiatria Danubina 2020; 32(Suppl. 3):337-342.. Em estudos nacionais, esse fenômeno se relaciona aos elementos gênero, raça e condição econômica, sendo mais presente em pessoas do sexo masculino, pardas ou negras e em situações de pobreza99 Pereira VOM, Pinto IV, Mascarenhas MDM, Shimizu HE, Ramalho WM, Fagg CW. Violências contra adolescentes: análise das notificações realizadas no setor saúde, Brasil, 2011-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200004.SUPL.1.

10 Silva VEO, Ribeiro MRC, Marques MTS, Almeida JS, Gomes JA, Silva DPA, Branco MRFC, Silva AAM. Differences between violence against children and adolescents in Maranhão, Brazil, 2009-2019. Rev Bras Saude Mater Infant 2023; 23:e20210431.
-1111 Pedroso MRO, Leite FMC. Prevalência e fatores associados à negligência contra crianças em um estado brasileiro. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220128..

O contexto das violências interpessoais apresenta condicionantes e determinantes envoltos numa multidimensionalidade de fatores. No entanto, os olhares da literatura para a negligência ainda são pouco robustos devido à subnotificação, por isso tal contexto requer uma análise aprofundada e contextualizada sobre o cenário desses fenômenos, com os atores diretamente envolvidos nesse processo, sob uma ótica que busque contemplar todas estas dimensões22 García-Cruz AH, García-Piña CA, Orihuela-García S. Negligencia infantil: una mirada integral a su frecuencia y factores associados. Acta Pediatr Mex 2019; 40(4):267-273.. A meta-análise trouxe uma atualização dos fatores de risco para a negligência infantil. A maior parte dos riscos se relacionou ao nível parental, como ter história pregressa ou atual de adoecimento mental ou físico; história de comportamento antissocial ou criminal; e experiências de violência na infância. O estudo concluiu que esses fatores parentais são relevantes para prevenção e redução da negligência envolvendo crianças e adolescentes33 Avdibecovis E, Brkic, M. Child neglect: causes and consequences. Psychiatria Danubina 2020; 32(Suppl. 3):337-342..

Considerando a prevalência da negligência e a demanda de considerá-la sob novas perspectivas, pesquisa estadunidense estimou como fatores de proteção podem reduzir a negligência em situações de pobreza. As mães participantes relataram que o apoio social percebido foi associado a menos negligência física, além de moderar a associação entre pobreza e negligência física1212 Sattler KMP. Protective factors against child neglect among families in poverty. Child Abuse Negl 2022; 124:105438..

Dessa forma, considerando a necessidade de construção de um olhar multidimensional em relação à negligência e às lacunas ainda presentes, traz-se os seguintes questionamentos: quais os vínculos pessoais que são estabelecidos por famílias envolvidas na negligência contra crianças e adolescentes? Qual a rede de apoio que podem utilizar para contribuir no cuidado a seus filhos? A partir da análise de redes sociais, de onde emerge o apoio social, pode-se ter um olhar para as especificidades das relações sociais e, consequentemente, de seus efeitos no bem-estar e saúde individual1313 Latkin CA, Knowlton AR. Social network assessments and interventions for health behavior change: a critical review. Behav Med 2015; 41(3):90-97.. Entende-se que a rede pessoal social pode determinar quais são os pontos de ancoragem e de fragilidade que indivíduos têm em seu cotidiano, de modo que a ocorrência da negligência pode ser revisitada quando desvelamos os cenários sociais em que estes estão inseridos.

Para responder aos questionamentos deste estudo, traz-se como referencial teórico o paradigma da complexidade1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008.. Esse referencial tem por objetivo compreender o significado de fenômenos complexos, caracterizados pela instabilidade, a não linearidade e a impossibilidade de serem descritos em um número de passos e espaço de tempo finitos. Para o paradigma, fenômenos como a violência não apresentam uma única causa ou consequência, mas sim multidimensionalidades que levam ao seu aparecimento. Os distintos elementos desse fenômeno permanecem em constante interação, da qual podem surgir propriedades desconhecidas1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008..

Portanto, tem-se como objetivo analisar a rede pessoal social de famílias envolvidas na negligência contra crianças e adolescentes.

Método

Estudo de abordagem qualitativa1515 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., ancorado no paradigma da complexidade1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008.. Foi utilizado o instrumento Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) para nortear a escrita do estudo.

A pesquisa foi realizada em um município no interior de São Paulo, com população estimada, em 2020, de 83.626 moradores, sendo 19,7% da população na faixa etária de zero a 18 anos1616 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Demográfico 2010. Brasília: IBGE; 2010.. O local específico foi um conselho tutelar (CT), que atendeu em média 9.461 pessoas no último ano.

Os dados foram coletados em janeiro de 2021. Os critérios de inclusão foram: ser familiar de crianças e adolescentes que tivessem suspeita ou confirmação de alguma situação de negligência familiar contra eles(as); a família estar em acompanhamento no CT; e ter mais do que 18 anos. Foram excluídas famílias em privação da liberdade e/ou em sofrimento psíquico grave.

Os participantes foram indicados pelo serviço a partir dos critérios de inclusão apontados. Foram preservados todos os aspectos éticos para que os participantes não se sentissem intimidados ou acusados de negligência. Ressalta-se que em nenhum momento foi pontuado aos participantes que seriam convidados a participar da pesquisa por serem suspeitos de negligência contra crianças e adolescentes, mas foi ressaltada a importância de dar voz a eles para falar sobre o que consideravam cuidar ou não de crianças e adolescentes. Em seguida, o pesquisador responsável fez contato via telefone explicitando os objetivos da pesquisa e, depois da anuência do participante, foi agendado um encontro presencial em uma sala privativa do CT. No encontro presencial, foi entregue o TCLE, foram sanadas possíveis dúvidas das famílias a respeito da pesquisa e, após aceite para a participação, realizadas as entrevistas. Foram convidados 20 familiares, todos aceitaram participar. Após a anuência deles, iniciou-se a coleta de dados.

O procedimento da coleta de dados utilizou um instrumento de caracterização sociodemográfica, mapas mínimos da rede pessoal social e entrevistas semiestruturadas. Esse mapa1717 Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997. é representado a partir do desenho de um círculo com quatro quadrantes principais, a saber: família, amizades, escola/trabalho e relações comunitárias (religião, esporte, cinema, teatro, clubes, praças, entre outros). Além desses, há um quadrante que abarca a relação com serviços de saúde. Os quadrantes são preenchidos por outros dois círculos que indicam a intimidade das relações (quanto mais perto do centro, mais íntimo), sendo classificados como íntimos, sociais ou ocasionais. Os vínculos, representados por cores ou traços específicos, são qualificados em significativos, fragilizados e rompidos ou inexistentes1717 Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.,1818 Prado FKM, Lourenço MAM, Souza LB, Placeres AF, Cândido FCA, Zanin G, Fantacini CMF, Fiorati RC. Therapeutic follow-up and network intervention as a strategy in psychosocial care. Rev Bras Enferm 2020; 73(1):e20180161..

De forma concomitante à construção dos mapas, foram realizadas entrevistas semiestruturadas1515 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., norteadas pelas seguintes questões disparadoras: como você percebe sua rede de apoio? O que mais poderia ser feito para ajudar na sua vida e de sua família?

A coleta de dados foi organizada e empreendida pelo primeiro autor do estudo, enfermeiro, homem, mestrando neste período, supervisionado por sua orientadora, a última autora. A construção dos mapas e as entrevistas duraram em média 40 minutos, sendo os mapas desenhados em papel A4 impresso com a estrutura deles. Todo o processo de coleta foi gravado em áudio por meio de aplicativo de celular. Para identificação dos mapas e das entrevistas, foi utilizada a letra P, inicial de participante, e numeradas na sequência em que foram realizadas.

Apesar da saturação de dados1919 Sim J, Saunders B, Waterfield J, Kingstone T. Can sample size in qualitative research be determined a priori? Int J Qual Methods 2018; 21(5):619-634. ter ocorrido no 13º mapa e entrevista, a partir de elementos que permitiram um aprofundamento nas respostas às questões de estudo, optou-se por dar continuidade à coleta até o 20º participante. Como as conversas ocorreram no próprio CT, foi reforçado tratar-se de aproximação confidencial, com garantia da não identificação e liberdade para retirar o consentimento a qualquer momento, sem prejuízos ao acompanhamento realizado no serviço.

Para avaliação dos mapas, a interpretação recomendada se dá pelos seguintes critérios: tamanho (quantidade de vínculos institucionais/pessoais estabelecidos, sendo que a rede pode ser classificada como reduzida, mediana ou ampliada); densidade (qualidade dos vínculos observados no que tange às linhas do traçado); distribuição/composição (número de pessoas ou instituições situadas em cada quadrante, onde denota-se lacunas e recursos existentes na rede); dispersão (distância geográfica entre membros e instituições); homogeneidade ou heterogeneidade (características dos membros e das instituições, no intuito de verificar a diversidade e as semelhanças que compõem a rede)1717 Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.,1818 Prado FKM, Lourenço MAM, Souza LB, Placeres AF, Cândido FCA, Zanin G, Fantacini CMF, Fiorati RC. Therapeutic follow-up and network intervention as a strategy in psychosocial care. Rev Bras Enferm 2020; 73(1):e20180161.. Além dessas características, reconhecem-se as funções da rede: companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos, regulação e controle social, ajuda material e de serviços e acesso a novos contatos1818 Prado FKM, Lourenço MAM, Souza LB, Placeres AF, Cândido FCA, Zanin G, Fantacini CMF, Fiorati RC. Therapeutic follow-up and network intervention as a strategy in psychosocial care. Rev Bras Enferm 2020; 73(1):e20180161.. Buscou-se destacar essas características e funções ao longo dos mapas apresentados, bem como a apresentação de falas que ilustrassem tais achados, seguindo uma lógica de análise indutiva2020 Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Health 2019; 11(4):589-597., ou seja, a partir dos dados, em articulação com o paradigma complexo1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008.. Essa descrição/análise foi feita pelos dois primeiros autores do estudo, revisada pela última autora.

O referido estudo obteve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos, sob o protocolo nº 4.513.110 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) 39875420.8.0000.5504, e seguiu todas as recomendações presentes nas resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Foram entrevistados 20 participantes, sendo 18 mulheres e dois homens, e a média de idade foi de 34,4 anos. A idade do participante mais novo foi de 19 anos, a do participante mais velho, 48 anos. Quanto à raça, 17 se autodeclararam pardos e três brancos. Metade desses participantes declararam não ter terminado o ensino fundamental, quatro o concluíram, quatro terminaram o ensino médio e apenas um fez a graduação. Metade dos participantes tinham empregos informais, quatro estavam desempregados e seis não trabalhavam. A profissão faxineira/diarista foi recorrente em nove participantes. Quanto à religião, 15 relataram ser evangélicos, quatro não tinham religião e apenas um declarou-se católico.

Esses entrevistados eram familiares de crianças acompanhadas no Conselho Tutelar, 18 eram pais/mães, um era irmão e uma era tia. Essas famílias foram denunciadas e referenciadas devido a situações negligentes, sete foram denunciadas por meio jurídico (Ministério Público), cinco por via telefônica (Disque Denúncia), duas pelas escolas do município e um caso pela Unidade Básica de Saúde (UBS). As demais situações foram notificadas diretamente ao CT por meio de vizinhos, familiares e terceiros.

As famílias tinham de duas a 11 pessoas residindo juntas, sendo a média de três por domicílio. A configuração familiar foi múltipla: em 15 famílias houve ausência do parceiro/pai no convívio diário de cuidado aos filhos por separação e/ou mãe solo, alguns declaram os avós maternos presentes nos lares, outros presença de tia/tios da criança e houve apenas uma participante que afirmou residir apenas com o filho.

Os mapas mínimos da rede pessoal social dos participantes mostraram redes reduzidas, tendo em vista a quantidade de vínculos pessoais estabelecidos serem baixos. Além disso, foram delineadas como homogêneas, denotando pouca diversidade de pessoas e instituições. Além de poucos familiares e amigos, predominantemente apareceram igrejas e serviços de proteção social básica, como o Centro de Referência Social (CRAS), como instituições vinculadas aos participantes. As redes se constituíram pouco densas, ou seja, com grande número de vínculos fragilizados, rompidos ou inexistentes, revelando pouco suporte às famílias. A distribuição e composição das redes será discutida na apresentação de cada quadrante do mapa, entretanto são evidenciadas lacunas em diversos setores.

Os vínculos das redes são dispersos e ocasionais, em especial com as instituições. A grande distância geográfica entre os participantes da pesquisa e os serviços e setores que compõem a rede de proteção e garantia de direitos impossibilita que os processos sejam devidamente construídos. Como exemplo, tanto o CT quanto a Delegacia da Mulher e a delegacia de polícia do município estão afastados dos bairros de moradia dos participantes. Na Figura 1 são apresentados quatro mapas que se fizeram representativos das redes das famílias participantes:

Figura 1
Mapas mínimos da rede pessoal social dos participantes 1, 4, 12 e 15.

Os participantes expressaram que a dificuldade no estabelecimento e fortalecimento de vínculos foi relacionada à não articulação dos setores, em especial saúde, educação e CT, como explicita o fragmento a seguir:

Ah, eu... Hoje em dia a geração é mais difícil né, mais complicada né, e meu filho que tem quinze anos agora ele dá muito trabalho, trabalho mesmo né, já foi internado né que mexia com drogas né, e sempre tava no conselho, nunca gostou de estudar, é um pouco difícil,, mas eu tento passar pra eles, né (P1, 41 anos).

Os vínculos com os familiares se apresentaram para muitos participantes de forma fragilizada e com relações sociais não íntimas, como se identifica no mapa de P4. Há um destaque para vínculos significativos com filhos mais velhos e com a mãe (no caso, avó das crianças e adolescentes, em especial materna). No quadrante das relações de amizade, evidenciou-se que o número de amigos é limitado. Em algumas situações essa rede de amigos e comunidade não se fez solidária, mas sim acusatória e em tom policialesco:

Ush... Não é só lá na casa não, tem uma mulher lá que era minha amiga, ela fica na beira do bar, as crianças fica jogada pra rua, o vizinho lá esses dias pegou o filho pelo pescoço, comecei até a chamar o Conselho Tutelar [...] Como já me denunciaram por maus tratos eu também denuncio por maus tratos. E olha que eu nem fiz maus tratos, hein, olha que eu não fiz... (P10).

Com relação ao quadrante trabalho/estudo, os participantes demonstraram a ausência de um vínculo de trabalho com registro formal. Tomando como exemplo o mapa de P1, há dois vínculos de trabalho não registrados formalmente, assim como 70% dos participantes da pesquisa (n = 12). O trabalho ocupa um campo importante para os participantes, visto que a ausência dos vínculos formais de trabalho determinou o movimento de buscar mais de uma inserção informal ou sazonal. Há, predominantemente, mais de um vínculo empregatício informal por pessoa, com o indicativo da necessidade de vínculos formalizados:

Eu já tinha um emprego antes que me consumia muito tempo, né, eu entro de manhã e saio praticamente à noite, eu entro 9h da manhã e 8h20 da noite, até porque eu tenho uma, aquela coisa de eu sou a provedora da casa e tudo mais, então eu tenho essa responsabilidade, então eu tenho, né, é essa função, essa função não, né, eu tenho essa responsabilidade de ter que levar, então eu trabalho durante muito tempo, eu procuro fazer o melhor, é óbvio que tem horas que a gente é falha, né, tem vez que a gente tá cansada, ou estressada, entendeu? (P6, 33 anos).

Com relação à comunidade/serviços, as vivências se relacionaram com a proximidade da igreja ao funcionamento familiar, numa busca por companhia social e apoio emocional, em especial frente às ausências de demais serviços da rede.

Tá difícil, tô tentando levar ele [filho] pra igreja, vamos ver o que que ele quer, né, então[...]eu falo sempre pro meu esposo que é difícil ele conviver ali por causa das minhas filhas, né, eu tenho uma filha de dez anos (P20, 26 anos).

Os participantes expressaram a necessidade de aproximação de alguns serviços, como assistência social e saúde. Nesse sentido, explicitam tanto a ausência de companhias sociais e apoio socioemocional quanto a ausência de amparo do Estado perante as demandas que apresentam:

É, a culpa também é do governo, o governo não ajuda,, a família fica tudo desestruturada, é um na droga, o pai que não dá comida, o pai que não dá pensão, o pai que sai com outra mulher, aí a mãe recai também, quer judiar do filho, abandona o filho, vai pra um bar, vai pra um caminho errado, caminho da droga, aí fica jogado assim, né, isso é negligência do pai e de uma mãe. Porque deixar uma criança jogada, então [...] O governo tinha que pegar, sim, no pé, tem que ajudar e também tem que pegar, né, porque não é só soltar, não (P13, 44 anos).

Os participantes relataram a dificuldade de acesso e continuidade de atendimento em serviços de saúde. Ressaltaram a precarização da abordagem em saúde mental, trazendo a necessidade de olhares e cuidados frente ao uso de substâncias psicoativas e sofrimentos psíquicos, como transtornos depressivos. Além disso, pelas próprias situações vividas, são necessárias ações que efetivem a promoção de saúde mental:

Ah, eu falo pra você que não, porque eu já internei ela quatro vezes, e cada vez que eu interno ela, ela volta, mas cada vez mais pior, sabe, negócio de vício, sabe, eu dou uma de forte, sabe, porque se eu abaixo a cabeça ela quer bater em mim, sabe (P4, 39 anos).

Eu acho que deveria ter uma visão pra saúde mental da população maior, né, em todos os sentidos, assim, é que nem no meu caso e da mãe, ela acaba sendo negligente porque foi abandonada quando foi mais nova, acabou se envolvendo num relacionamento e aí foi vindo vários fatores (P6, 33 anos).

Os participantes ainda demonstraram as necessidades de construção de vínculos. Entre os anseios relatados, emergiu a construção de um vínculo empregatício formal, o retorno à escola para finalização dos estudos, uma aproximação maior com familiares e o retorno a atividades sociais, como aquelas em igrejas e CRAS.

Discussão

Os mapas e relatos demonstraram redes reduzidas, homogêneas, pouco densas e com vínculos ocasionais e dispersos. Foi ressaltada a não articulação dos serviços, em especial com dificuldades no trabalho, educação, assistência social e saúde. Nesse sentido, emerge a falta de apoio nos âmbitos sociais, instrumentais e emocionais. A complexidade traz a necessidade de um olhar que considere a tessitura de diferentes elementos para a emergência de um fenômeno1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008.. Neste estudo, foi desvelado que todas as ausências relatadas representadas nas redes sociais estão envolvidas na emergência da negligência familiar contra crianças e adolescentes.

Nesse sentido, a literatura2121 Mata NT, Silveira LMB, Deslandes SF. Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2881-2888. propõe que a ocorrência ou não da negligência pode ser resultado da interação de fatores protetivos dos quais a família dispõe, com seus recursos e capacidades para o enfrentamento de adversidades, bem como dos estressores aos quais ela é exposta. Tal aspecto dialoga fortemente com a complexidade, mostrando que a tessitura para conformação do fenômeno “negligência” é multidimensional1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008.. Alguns estressores que aparecem em nosso estudo são reforçados no campo científico, como a vulnerabilidade social e a ausência de ações de proteção do Estado2121 Mata NT, Silveira LMB, Deslandes SF. Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2881-2888., a distância geográfica entre o serviço e o local de moradia, as fragilidades encontradas nos serviços de saúde2222 Wolkers PCB, Pina JC, Wernet M, Furtado MCC, Mello DF. Children with diabetes mellitus type 1: vulnerability, care and access to health. Texto Contexto Enferm 2019; 28: e20160566. e a rede de apoio fragilizada2323 Carlos DM, Pádua EMM, Fernandes MID, Leitão MNC, Ferrani MGC. Domestic violence against children and adolescents: social support network perspectives. Rev Gaucha Enferm 2016; 37(Esp.):e72859..

Os resultados trazem, ilustrados em alguns trechos, questões relativas à ausência de apoio do Estado percebidas por essas famílias. O estudo traz a discussão sobre as famílias no contexto brasileiro tenderem a ser responsabilizadas de forma integral pelos cuidados ou a ausência desses a seus filhos, sendo culpabilizadas por sua pobreza e suas estratégias de sobrevivência. Entende-se que são alvos fáceis para represálias, diferentemente da sociedade de maneira geral e do poder público2121 Mata NT, Silveira LMB, Deslandes SF. Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2881-2888.. Esses autores apontaram ainda a importância de não confundir negligência com a falta de recursos materiais para prover os cuidados necessários às crianças, assim como não deixar de considerar as negligências do Estado ao analisar as situações ocorridas no seio familiar2121 Mata NT, Silveira LMB, Deslandes SF. Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2881-2888..

A ausência do Estado também se reflete nas dificuldades encontradas referentes à distância geográfica entre a residência e o local dos serviços ofertados, assim como na fragilidade da rede de atenção a essas famílias. A complexidade busca religar as dimensões de sobrevivência humana indivíduo/espécie/sociedade, fundamentando a chamada ética da solidariedade. Nesse sentido, traz o princípio da autonomia-dependência1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008., ou seja, entende-se a impossibilidade de que famílias sejam totalmente responsáveis pela realidade vivida - aqui no caso, a situação de negligência. Um exemplo disso é discutido pela literatura2222 Wolkers PCB, Pina JC, Wernet M, Furtado MCC, Mello DF. Children with diabetes mellitus type 1: vulnerability, care and access to health. Texto Contexto Enferm 2019; 28: e20160566. quando autores destacam que o cuidado integral às crianças pode não estar disponível para todas as populações. Segundo esses autores, a distância geográfica pode ter como consequência decisões pensadas pela família, por exemplo, de não levar a criança à escola em razão da distância, assim como outras situações não intencionais relacionadas às dificuldades de transporte até o local em questão2222 Wolkers PCB, Pina JC, Wernet M, Furtado MCC, Mello DF. Children with diabetes mellitus type 1: vulnerability, care and access to health. Texto Contexto Enferm 2019; 28: e20160566.. Ou seja, é possível que a distância geográfica signifique, para as famílias, maior probabilidade de rompimento de vínculo com as instituições da rede2222 Wolkers PCB, Pina JC, Wernet M, Furtado MCC, Mello DF. Children with diabetes mellitus type 1: vulnerability, care and access to health. Texto Contexto Enferm 2019; 28: e20160566.. Nesse sentido, faz-se necessária a articulação de serviços para a garantia do atendimento integral e para a continuidade do cuidado a essas famílias, incluindo os serviços de mobilidade que promovem o deslocamento das famílias até o local de atendimento, e que os serviços sejam descentralizados e territorializados2424 Dias BC, Arruda GO, Marcon SS. Family vulnerability of children with special needs of multiple, complex and continuous care. Rev Min Enferm 2017; 21:e-1027..

Quanto às fragilidades da rede de atenção, na literatura é possível encontrar dados que enfatizam a falta de confiança nos profissionais e nos serviços de saúde que atendem crianças, em especial aquelas com condições crônicas, dificuldades de agendamento de consultas, dificuldades de acesso ao serviço adequado e de resolutividade de situações de saúde e doença, ações desarticuladas dos serviços de atenção em saúde e falta de capacitação, agilidade e humanização nos atendimentos2222 Wolkers PCB, Pina JC, Wernet M, Furtado MCC, Mello DF. Children with diabetes mellitus type 1: vulnerability, care and access to health. Texto Contexto Enferm 2019; 28: e20160566.,2424 Dias BC, Arruda GO, Marcon SS. Family vulnerability of children with special needs of multiple, complex and continuous care. Rev Min Enferm 2017; 21:e-1027.. Esses achados são semelhantes aos resultados aqui discutidos, uma vez que os participantes deste estudo trouxeram em suas falas dificuldades encontradas no acesso aos serviços e na resolutividade das questões de saúde, sobretudo de saúde mental e uso abusivo de substâncias de seus filhos.

A atenção primária à saúde (APS) tem papel primordial na organização das redes de atenção à saúde, podendo contribuir fortemente na construção do cuidado interprofissional e intersetorial a essas crianças, adolescentes e suas famílias. A família é o foco da APS, buscando a superação do modelo biomédico centrado no indivíduo2525 Sampaio AD, Spagnolo LML, Schwarts E, Lise F, Neves JL, Kickhofel MA. Work characteristics and attitudes of nurses in caring for families in primary health care. Rev Enferm UFMS 2022; 12:e8.. Todavia, a existência de um serviço de saúde não implica necessariamente o seu acesso, sofrendo influência de diferentes fatores, como geográficos e financeiros2626 Vicari T, Lago LM, Bulgarelli AF. Realities of the practices of the Family Health Strategy as driving forces for access to SUS health services: a perspective of the Institutional Analysis. Saude Debate 2022; 46(132):135-147.. Redes de atenção implicam relações sociais, portanto são dinâmicas, visando garantir o acesso aos serviços de saúde1313 Latkin CA, Knowlton AR. Social network assessments and interventions for health behavior change: a critical review. Behav Med 2015; 41(3):90-97.. O pensamento complexo propõe então essa mudança paradigmática, do uni ao interdisciplinar e intersetorial1414 Morin E. On complexity. New York: Hampton Press; 2008. para o cuidado voltado às populações, em diálogo com a proposta das Redes de Atenção à Saúde presente nas políticas de saúde brasileiras, mas ainda distantes na prática.

Os dados aqui analisados colocam em evidência as dificuldades de acesso a trabalho, educação e renda por essa população. A literatura corrobora tais achados, mostrando que as principais vulnerabilidades de famílias cuidadoras de crianças estavam relacionadas à falta de acesso a trabalho e renda. Tal aspecto pode trazer como consequência a pobreza e a precariedade de recursos materiais da família para o provimento dos cuidados com as crianças2121 Mata NT, Silveira LMB, Deslandes SF. Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence. Cien Saude Colet 2017; 22(9):2881-2888.. Outro estudo estimou os fatores de proteção para redução da negligência em situação de pobreza. Os resultados indicam que ter empregos formais em turno parcial ou completo foram associados à menor ocorrência de negligência física1212 Sattler KMP. Protective factors against child neglect among families in poverty. Child Abuse Negl 2022; 124:105438..

Além disso, condições socioeconômicas são agravantes de conflitos familiares e determinam situações de violência. Algumas famílias em situação de pobreza são, muitas vezes, forçadas a antecipar a ida de seus filhos para o mercado de trabalho, afastando-os do meio familiar e escolar, fragilizando os vínculos. Essa necessidade de entrada precoce nas atividades laborais pode gerar consequências a longo prazo, como o abandono escolar2727 Silva AJN, Costa RR, Nascimento AMR. The implications of the contexts of social vulnerability in child and youth development: from the family to social assistance. Pesqui Prat Psicossociais 2019; 14(2):1-17..

A questão racial dos participantes também se destacou nos achados, sendo a maioria parda. Esse determinante foi visualizado em outros artigos quantitativos nacionais, nos estados do Maranhão e do Espírito Santo e em estudo que avaliou as notificações de violências contra adolescentes99 Pereira VOM, Pinto IV, Mascarenhas MDM, Shimizu HE, Ramalho WM, Fagg CW. Violências contra adolescentes: análise das notificações realizadas no setor saúde, Brasil, 2011-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200004.SUPL.1.

10 Silva VEO, Ribeiro MRC, Marques MTS, Almeida JS, Gomes JA, Silva DPA, Branco MRFC, Silva AAM. Differences between violence against children and adolescents in Maranhão, Brazil, 2009-2019. Rev Bras Saude Mater Infant 2023; 23:e20210431.
-1111 Pedroso MRO, Leite FMC. Prevalência e fatores associados à negligência contra crianças em um estado brasileiro. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220128.. Esses estudos salientaram que a estratificação de raça/cor preta/parda envolve maior exposição à violência e a desigualdades sociais, em comparação com brancos99 Pereira VOM, Pinto IV, Mascarenhas MDM, Shimizu HE, Ramalho WM, Fagg CW. Violências contra adolescentes: análise das notificações realizadas no setor saúde, Brasil, 2011-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200004.SUPL.1.

10 Silva VEO, Ribeiro MRC, Marques MTS, Almeida JS, Gomes JA, Silva DPA, Branco MRFC, Silva AAM. Differences between violence against children and adolescents in Maranhão, Brazil, 2009-2019. Rev Bras Saude Mater Infant 2023; 23:e20210431.
-1111 Pedroso MRO, Leite FMC. Prevalência e fatores associados à negligência contra crianças em um estado brasileiro. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220128.. Essas evidências apontam para a necessidade de um olhar singular para a interseccionalidade raça na compreensão e na prática para enfrentar as violências.

Outro elemento encontrado entre os participantes remete aos estressores ocorridos ao longo da vida e as repercussões na saúde mental. Estudo2828 Giordani JP, Lima CP, Trentini CM. Childhood Adversities: association with protective factors and internalizing symptoms in adulthood. Estud Pesqui Psicol 2020; 20(3):889-918. que analisou os resultados de experiências adversas da infância na vida adulta descreveu o aparecimento de sintomas de ansiedade e depressão. Os mesmos autores propõem que o acesso a serviços de saúde mental e a percepção de rede de apoio fortalecida podem funcionar como fatores protetivos a esses sintomas2828 Giordani JP, Lima CP, Trentini CM. Childhood Adversities: association with protective factors and internalizing symptoms in adulthood. Estud Pesqui Psicol 2020; 20(3):889-918., que também estão relacionados à reprodução do ciclo de violência. Chama-se a atenção, portanto, para a importância do acesso a serviços de saúde mental não só pelas crianças e adolescentes, mas por suas famílias, assim como para a necessidade de fortalecimento de suas redes de apoio.

Por fim, a religiosidade aparece nos relatos dos participantes, e aqui vale ressaltar que esse aspecto já é discutido na literatura como importante fator para o enfrentamento de adversidades e para o aumento da qualidade de vida2929 Silva LS, Poiares IR, Machado CAM, Lenhani BE, Guimarães PRB, Kalinke LB. Religion/spirituality and social support in improving the quality of life of patients with advanced cancer. Referencia 2019; 4(23):111-125.. No entanto, a religião também pode ter aspectos negativos relacionados a práticas baseadas em crenças tradicionalistas que tendem a reduzir o engajamento em atividades e tratamentos propostos pelas instituições em que as pessoas são atendidas, em especial relacionados a questões de saúde mental3030 Thiengo PCS, Gomes AMT, Mercês MC, Couto PLS, França LCM, Silva AN. Spirituality and religiosity in health care: an integrative review. Cogitare Enferm 2019; 4:e-58692.. Revisão integrativa que objetivou descrever os estudos científicos publicados no Brasil demonstrou que a produção nacional sobre a temática ainda é uma lacuna, mostrando-se um ponto de pesquisa, em especial na linha das correlações entre religiosidade e violências3030 Thiengo PCS, Gomes AMT, Mercês MC, Couto PLS, França LCM, Silva AN. Spirituality and religiosity in health care: an integrative review. Cogitare Enferm 2019; 4:e-58692..

O pensamento complexo explicita que um objeto de estudo, aqui descrito como as famílias em contexto de negligência, nunca está isolado de seu contexto1010 Silva VEO, Ribeiro MRC, Marques MTS, Almeida JS, Gomes JA, Silva DPA, Branco MRFC, Silva AAM. Differences between violence against children and adolescents in Maranhão, Brazil, 2009-2019. Rev Bras Saude Mater Infant 2023; 23:e20210431.. Essa afirmação dialoga com a discussão aqui proposta de que o que se pode designar como negligência está muitas vezes relacionado ao contexto em que a família vive, e depende das múltiplas interações dos elementos que podem proteger, como uma das facetas dos aspectos religiosos citados acima, ou oferecer riscos à família, como a vulnerabilidade social, a ausência de rede de apoio e de suporte do Estado e a distância geográfica dos serviços necessários para o cuidado integral. Isto é, o contexto familiar pode influenciar comportamentos que podem ser julgados como negligentes, mas o comportamento em si não está isolado e deve ser analisado a partir das variadas vulnerabilidades a que a família é exposta.

Finalmente, ressalta-se a relevância deste tema para a prática de profissionais de saúde. Estudo mostra que situações de violência necessitam de escuta qualificada e empática, promovendo cuidado integral e envolvendo a família. Tal demanda requer um olhar para o contexto familiar e seus fatores de risco e protetores, além de ações intersetoriais extramuros, como prevenção de situações de violência com ações educativas, especialmente nas escolas, e articulação com a rede de proteção para a resolutividade de casos3131 Marcolino EC, Santos R.C, Clementin, FS, Souto RQ, Silva GWS, Miranda FAN. Violência contra criança e adolescente: atuação do enfermeiro na atenção primária à saúde. Rev Bras Enferm 2022; 75(Suppl. 2):e20210579.. O próprio uso de recursos, como o mapa das redes sociais pessoais, permite um olhar, uma compreensão e a atuação ampliada, centrada na pessoa e em perspectiva multidimensional. Nesse aspecto, clama-se novamente pelo pensamento complexo, que propõe a integração dos conhecimentos das várias disciplinas para compreender e cuidar de um determinado fenômeno1010 Silva VEO, Ribeiro MRC, Marques MTS, Almeida JS, Gomes JA, Silva DPA, Branco MRFC, Silva AAM. Differences between violence against children and adolescents in Maranhão, Brazil, 2009-2019. Rev Bras Saude Mater Infant 2023; 23:e20210431..

Este estudo tem limitações, em especial relacionadas ao local de realização. Pela implicação do CT, as famílias poderiam ter dado outras respostas caso a pesquisa fosse realizada noutro ambiente, apesar dos cuidados éticos tomados. Além disso, o estudo não aprofundou particularidades dos participantes, sobretudo pelo fato de a maior parte ser mulher solteira ou divorciada.

Conclusão

As redes pessoais sociais de famílias envolvidas na negligência contra crianças e adolescentes se apresentaram reduzidas, com pouca ou nenhuma articulação entre os diferentes serviços e setores, predominantemente homogêneas. Por terem muitos vínculos fragilizados, mostra-se pouco sustentadora, apontando dificuldades no acesso a trabalho, educação e saúde. Vislumbra-se a complexidade do fenômeno da negligência, em que elementos condicionam e perpetuam vivências de ausências e fragilidades, trazendo a emergência deste fenômeno. Olhares e ações interprofissionais e intersetoriais são pleiteados e recomendados.

O estudo traz contribuições para a saúde coletiva, a saber: a incorporação de instrumentos que permitam aproximar da rede de apoio social de crianças, adolescentes e famílias envolvidas na negligência para apreender a complexidade das vivências e buscar fragilidades ou potencialidades; o delineamento de um cuidado singular e contínuo, buscando romper situações de vulnerabilidade; e a construção de um cuidado a priori interprofissional e intersetorial que fortaleça vínculos nos diferentes serviços da rede de proteção social. É fato que a APS, por estar mais diretamente presente no cuidado e no território dessa população, tem nas mãos as tecnologias necessárias para promover uma vida futura livre de negligências e precursora de relações saudáveis. Na área da pesquisa, recomenda-se com este estudo a realização de novas abordagens que revisitem e reconsiderem os significados das violências, em especial a negligência familiar, sob as óticas de famílias, profissionais de educação, saúde e proteção social.

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  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    26 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br