Transferências federais por emendas parlamentares aos municípios: implicações para o financiamento do SUS

André Schimidt da Silva Luciana Dias de Lima Tatiana Wargas de Faria Baptista Fabiola Sulpino Vieira Carla Lourenço Tavares de Andrade Sobre os autores

Resumo

O artigo tem como objetivo analisar as transferências por emendas parlamentares do Ministério da Saúde aos municípios para o financiamento de ações e serviços públicos de saúde, de 2015 a 2021. Foi realizado estudo descritivo e exploratório com dados secundários, abrangendo a totalidade de municípios brasileiros. Os recursos provenientes de emendas apresentaram aumento, em especial a partir de 2018, indicando a expansão de sua relevância para o financiamento do SUS. No período de 2016 a 2021, mais de 80% foram alocados aos municípios, representando 9,5% dos repasses federais, com 91,2% de natureza de custeio. As transferências por emendas diferem dos repasses regulares por possuir maior instabilidade e variação per capita entre os montantes captados pelos municípios, e por destinar a maior parte dos recursos ao Nordeste e à atenção primária, em detrimento do Sudeste e da média e alta complexidade. Configura-se uma modalidade diferenciada de alocação de recursos no SUS que produz novas distorções e assimetrias, com implicações para as relações intergovernamentais e entre os poderes executivo e legislativo, ampliando o risco de descontinuidade de ações e serviços e impondo desafios para as gestões municipais.

Palavras-chave:
Financiamento da Assistência à Saúde; Alocação de Recursos para a Atenção à Saúde; Recursos Financeiros em Saúde; Gastos Públicos com Saúde

Introdução

Os sistemas de partilha fiscal possibilitam adequar a disponibilidade de recursos às responsabilidades de gestão de políticas públicas entre entes federados de diferentes ou iguais níveis de governo11 Bachur JP. Federalismo fiscal, atribuições fiscais constitucionais e equalização regional: EUA, Alemanha e Brasil em perspectiva comparada. Rev Serv Publico 2005; 56(4):377-401.. No Brasil, a repartição de receitas tributárias da União com os demais entes da federação tem papel central, destacando-se as transferências do Ministério da Saúde (MS) aos municípios22 Rezende F. O federalismo brasileiro em seu labirinto: crise e necessidade de reformas. Rio de Janeiro: FGV; 2013..

Instituídos a partir da segunda metade dos anos 1990, os repasses federais para financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) são importantes instrumentos de indução da implantação de programas e coordenação de políticas nacionais prioriárias33 Paiva AB, Gonzalez RHS, Leandro JG. Coordenação federativa e financiamento da política de saúde: mecanismos vigentes, mudanças sinalizadas e perspectivas para o futuro. Estud CEBRAP 2017; 36(2):55-81., representando fonte regular e significativa de receitas para a maioria dos municípios brasileiros44 Lima LD. Federalismo fiscal e financiamento descentralizado do SUS: balanço de uma década expandida. Trab Educ Saude 2008; 6(3):573-598.. Também denominados como transferências condicionadas, os repasses federais do SUS obedecem a diferentes critérios de alocação definidos em portarias do MS55 Paiva AB, Gonzalez RHS, Benevides RPS. Instrumentos Financeiros de Coordenação no SUS. In: Jaccoud L, organizadores. Coordenação e Relações Intergovernamentais nas Políticas Sociais Brasileiras. Brasília: Ipea; 2020. p. 149-182..

Estudos indicam que, até 2019, repasses do Piso de Atenção Básica Fixo (PAB-Fixo) permitiram redistribuir recursos para regiões mais carentes, e compensar, ainda que de modo insatisfatório, desigualdades nas condições de financiamento em saúde66 Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica 2022; 56:123.. Também estimularam a adoção de novos serviços e protocolos assistenciais, e a reorientação do modelo de atenção primária à saúde (APS)55 Paiva AB, Gonzalez RHS, Benevides RPS. Instrumentos Financeiros de Coordenação no SUS. In: Jaccoud L, organizadores. Coordenação e Relações Intergovernamentais nas Políticas Sociais Brasileiras. Brasília: Ipea; 2020. p. 149-182..

Contudo, ao longo da última década, uma série de mudanças repercutiram na alocação de recursos federais, com inflexões e retrocessos para o financiamento do SUS. A promulgação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 instituiu um novo regime fiscal no país, impondo o congelamento das despesas primárias do governo federal (“teto de gastos”), a princípio, por duas décadas, em um cenário de fortalecimento da agenda neoliberal e implantação de políticas de austeridade77 Santos IS, Vieira FS. Direito à saúde e austeridade fiscal: o caso brasileiro em perspectiva internacional. Cien Saude Colet 2018; 23(7):2303-2314.. Na saúde, o teto de gastos determinou o congelamento, em termos reais, da aplicação mínima federal a partir de 2018, no patamar do ano anterior, com a desvinculação do gasto das receitas arrecadadas pela União, culminando com diminuição dos recursos disponíveis para o SUS88 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise. Brasília: Ipea; 2019. p. 85-127..

No contexto da agenda de austeridade fiscal, realizaram-se reformas controversas no financiamento federal da saúde99 Jaccoud L, Vieira FS. Federalismo, integralidade e autonomia no SUS: desvinculação da aplicação de recursos federais e os desafios da coordenação. Rio de Janeiro: Ipea; 2018.. Em 2017, a redução dos blocos de transferências do MS aos dois grupos de despesas (custeio e investimento)1010 Brasil. Portaria nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017. Altera a Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais. Diário Oficial da União; 2017. gerou questionamentos quanto à manutenção da capacidade de coordenação federal frente aos ganhos de uma possível maior autonomia dos entes subnacionais. Em 2019, foi instituído o Programa Previne Brasil, que estabeleceu um novo modelo de financiamento da APS. Entre outras mudanças, o Programa extinguiu o repasse do PAB-fixo, única transferência intergovernamental em saúde com base populacional, incorporando outros critérios de alocação de recursos que afetam a organização deste nível de atenção1111 Morosini MVGC, Fonseca AF, Baptista TWF. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00040220.,1212 Massuda A. Mudanças no financiamento da atenção primária à saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1181-1188..

As restrições para o crescimento das despesas com as políticas sociais adicionaram uma nova camada de complexidade ao financiamento federal do SUS que, desde 2014, observava a impositividade de execução de emendas parlamentares (EP) individuais - propostas por cada parlamentar, no limite de 25 emendas por deputado e senador1313 Piola SF, Vieira F. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2019.. Inicialmente, por força da lei de diretrizes orçamentárias daquele ano e, nos anos subsequentes, pela aprovação da EC 86/20151414 Brasil. Emenda Constitucional nº 86, de 17 de março de 2015. Altera os arts. 165, 166 e 198 da Constituição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que especifica. Diário Oficial da União 2015; 18 mar., que estabeleceu a execução obrigatória dessas emendas em até 1,2% da receita corrente líquida (RCL) realizada no exercício anterior, devendo a metade deste percentual ser destinada às ações e serviços públicos de saúde (ASPS). Tal mudança configurou o denominado “orçamento impositivo” ao executivo federal, cujas despesas devem ser contabilizadas no cálculo da aplicação mínima constitucional em saúde1515 Menezes DC, Pederiva JH. Orçamento impositivo: elementos para discussão. Adm Publica Gest Soc 2015; 7(4):178-185..

Nos anos seguintes, a execução de EP assumiu maior protagonismo no orçamento federal do SUS1616 Vieira FS. Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS: método para estimação dos repasses a cada município favorecido, segundo áreas de alocação dos recursos (2015-2020). Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2022.. Em 2019, nova alteração no texto constitucional tornou as emendas de bancadas estaduais, definidas conjuntamente entre os parlamentares de cada um dos 26 estados e do Distrito Federal (DF), de execução obrigatória1717 Brasil. Emenda Constitucional nº 100, de 26 de junho de 2019. Altera os arts. 165 e 166 da Constituição Federal para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária proveniente de emendas de bancada de parlamentares de Estado ou do Distrito Federal. Diário Oficial da União 2019; 27 jun.. Além disso, as emendas de relator ampliaram sua participação no orçamento do MS1313 Piola SF, Vieira F. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2019.,1616 Vieira FS. Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS: método para estimação dos repasses a cada município favorecido, segundo áreas de alocação dos recursos (2015-2020). Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2022.. Tais emendas são propostas pelos parlamentares responsáveis pelo parecer final sobre o projeto de lei orçamentária e pelos relatores setoriais das dez áreas temáticas que compõem o orçamento federal1818 Brasil. Congresso Nacional. Resolução nº 1, de 2006-CN. Dispõe sobre a Comissão Mista Permanente a que se refere o § 1º do art. 166 da Constituição, bem como a tramitação das matérias a que se refere o mesmo artigo. Diário Oficial da União 2006; 26 dez.,1919 Brasil. Congresso Nacional. Resolução nº 3, de 2015-CN. Altera a Resolução nº 1, de 2006 - CN, para ampliar o número de relatorias setoriais do projeto de lei orçamentária anual e dá outras providências. Diário Oficial da União 2015; 28 set.. As emendas de relator tiveram presença frequente na mídia, popularizando a expressão “orçamento secreto”, por causa da falta de transparência na alocação desses recursos pelos parlamentares2020 Bassi CM. Orçamento secreto: discutindo as consequências do caráter impositivo às emendas parlamentares do relator-geral. Brasília: Ipea; 2023.. Por fim, em 2023, o limite de execução de emendas individuais foi ampliado para 2% da RCL, mantendo-se a alocação de metade desse valor às ASPS2121 Brasil. Emenda constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022. Altera a Constituição Federal, para dispor sobre as emendas individuais ao projeto de lei orçamentária. Diário Oficial da União 2022; 22 dez..

Como consequência dessas medidas, na vigência do teto de gastos, foi possível observar o aumento expressivo das EP nas despesas federais, sobretudo as que se destinam às transferências para custeio de ASPS, alcançando ampla abrangência dos municípios contemplados1313 Piola SF, Vieira F. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2019.. Esses repasses são definidos como incrementos temporários ao custeio dos serviços de APS e de média e alta complexidade (MAC)2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Fundo Nacional de Saúde (FNS). Cartilha para apresentação de propostas ao Ministério da Saúde - 2023. Brasília: MS; 2023., sendo objeto de portarias e cartilhas anuais do MS, que definem orientações aos gestores do SUS e parlamentares. Para Vieira1616 Vieira FS. Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS: método para estimação dos repasses a cada município favorecido, segundo áreas de alocação dos recursos (2015-2020). Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2022., o aumento de recursos de EP para a saúde, desde que se tornaram de execução obrigatória e com maior protagonismo das emendas de relator, tem contribuído para a redução da participação de ações com despesas de programação própria do MS.

Nesse contexto, questiona-se sobre como se distribuem as EP alocadas aos municípios e suas implicações para o financiamento do SUS. Como ressaltam diversos autores, análises sobre as despesas públicas possibilitam identificar as prioridades na alocação de recursos, avaliar os sentidos e as repercussões de mecanismos de financiamento de políticas e contribuir para práticas de controle social do orçamento2323 Oliveira FA. Economia e política das finanças públicas no Brasil: um guia de leitura. São Paulo: Hucitec; 2009.,2424 Giacomoni J. Orçamento governamental: teoria, sistema, processo. São Paulo: Atlas; 2018..

Com vistas a contribuir com esses processos, o artigo tem como objetivo analisar as transferências por EP do Ministério da Saúde aos municípios para o financiamento de ASPS, no período de 2015 a 2021.

Metodologia

Trata-se de estudo descritivo e exploratório apoiado em dados secundários de acesso público e irrestrito provenientes do Sistema de Informações sobre Orçamento Público Federal (SIGA Brasil, “acesso especialista”, https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil) e do sítio eletrônico do Fundo Nacional de Saúde (FNS, https://portalfns.saude.gov.br/). A coleta de dados ocorreu em três períodos. Até o ano de 2020, as consultas aos sistemas de informação ocorreram em maio (SIGA Brasil) e agosto (FNS) de 2021. Para o ano de 2021, os dados foram extraídos em março de 2022.

Adicionalmente, foram utilizadas as estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enviadas ao Tribunal de Contas da União (TCU) para o cálculo de valores per capita, e os números-índices relativos aos meses de dezembro do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), disponibilizados pelo IBGE, para a correção dos valores em reais de 2021.

Do SIGA Brasil foram extraídas as variáveis: despesas liquidadas pelo MS com ASPS - totais e por EP, por modalidade de aplicação e grupo de natureza de despesa; e despesas liquidadas para transferência aos municípios por município identificado e áreas de alocação (APS e MAC). Cabe ressaltar algumas especificidades desta base: 1) no ano de 2015 apenas as emendas individuais são identificadas; 2) nos anos de 2016, 2017 e 2020, apenas parte dos municípios beneficiados foi identificada, correspondendo, respectivamente, a 60,8%, 94,1% e 99,0% dos valores empenhados e; 3) para o período de 2015 a 2018, foi necessário realizar cálculo de estimativas para identificação da área de alocação de parte das emendas1616 Vieira FS. Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS: método para estimação dos repasses a cada município favorecido, segundo áreas de alocação dos recursos (2015-2020). Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2022..

Do FNS foram obtidas as variáveis relativas aos valores líquidos transferidos aos municípios por áreas de alocação. Os valores líquidos refletem os recursos que foram colocados à disposição dos entes municipais pelo MS para o financiamento das ASPS. No caso do SIGA Brasil, a escolha pelas despesas liquidadas, deveu-se ao fato de esses dados já considerarem como realizadas, sob a perspectiva federal, as ações cujos recursos foram empenhados, refletindo melhor a modalidade de distribuição dos valores e repercussões para as gestões municipais do SUS, focos principais deste estudo. Todos os valores foram corrigidos para reais de 2021.

Os dados relativos às transferências abrangeram 5.568 municípios e Fernando de Noronha, distrito do estado de Pernambuco. O DF foi excluído por constar na rubrica de transferência aos estados. Os dados foram agregados ao nível nacional, por região e unidade da federação (UF) para o cálculo de indicadores. Estes foram organizados em planilhas eletrônicas e analisados com o uso do software estatístico SAS (versão 9.4). Os mapas foram elaborados com o programa TabWin do DATASUS (versão 4.1.5).

Como para 2015 só foi possível identificar os valores de EP individuais, este ano foi considerado somente na análise da série histórica definida para o estudo. Os seguintes indicadores, com respectivos métodos de cálculo, foram obtidos para o período de 2016-2021:

  1. - EPTM = proporção das EP transferidas aos municípios para ASPS = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para ASPS de todos os anos dividido pelo somatório das despesas de EP para ASPS do MS de todos os anos multiplicado por 100.

  2. - EPTM-C = proporção das EP de custeio transferidas aos municípios = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para custeio de ASPS de todos os anos dividido pelo somatório das despesas de EP para ASPS do MS de todos os anos multiplicado por 100.

  3. - EP/T = proporção das EP transferidas aos municípios em relação ao total de transferências SUS = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para ASPS de todos os anos dividido pelo somatório das transferências do MS aos municípios de todos os anos multiplicado por 100.

  4. - EP/T-APS = proporção das EP transferidas aos municípios para APS em relação ao total de transferências SUS para APS = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para APS de todos os anos dividido pelo somatório das transferências do MS aos municípios para APS de todos os anos multiplicado por 100.

  5. - EP/T-MAC = proporção das EP transferidas aos municípios para MAC em relação ao total de transferências SUS para MAC = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para APS de todos os anos dividido pelo somatório das transferências do MS aos municípios para APS de todos os anos multiplicado por 100.

  6. - EPTM-pc = EP transferidas aos municípios per capita = somatório das despesas de EP transferidas aos municípios para ASPS de todos os anos dividido pelo somatório das estimativas populacionais de todos os anos.

  7. - TReg-pc = Transferências regulares do MS aos municípios per capita = somatório das despesas de transferências regulares do MS aos municípios de todos os anos dividido pelo somatório das estimativas populacionais de todos os anos.

  8. - EPTM-pc (cv) = Coeficiente de variação das EP transferidas aos municípios per capita = desvio padrão dividido pela média das EP transferidas aos municípios per capita de todos os anos da série multiplicado por 100.

  9. - TReg-pc (cv) = Coeficiente de variação das Transferências regulares do MS aos municípios per capita = desvio padrão dividido pela média das EP transferidas aos municípios per capita de todos os anos da série multiplicado por 100.

  10. - MRP-pc = Maior redução percentual nos valores per capita entre dois anos subsequentes.

O cálculo dos coeficientes de variação foi realizado para caracterizar a dispersão dos valores das transferências per capita entre os municípios da mesma UF em termos relativos às respectivas médias estaduais2525 Silva JLC, Fernandes MW, Almeida RLF. Estatística e Probabilidade. 3ª ed. Fortaleza: EdUECE; 2015.. Neste caso, menores coeficientes de variação indicam uma distribuição mais homogênea.

Considera-se neste trabalho sob a nomenclatura de transferências regulares os valores líquidos dos repasses do MS subtraídas as despesas liquidadas vinculadas a EP para ASPS transferidas aos municípios no mesmo período.

Resultados

No período de 2015 e 2017 verifica-se estagnação dos gastos federais liquidados com ASPS, com discreto aumento de 2018 a 2019. Entre 2020 e 2021, no contexto da pandemia de COVID-19, observa-se uma elevação mais significativa das despesas, quando foram autorizados créditos extraordinários ao orçamento federal para enfrentamento da emergência sanitária (Tabela 1).

Tabela 1
Despesas do Ministério da Saúde com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), 2015-2021.

As transferências de recursos aos municípios foram responsáveis por mais da metade dos gastos do MS (51,2%) em 2018, com tendência de ampliação gradual da sua participação nos dois anos seguintes. Em 2021, os repasses aos municípios apresentaram um volume de despesas 7,6% mais elevado que em 2019. Contudo, a expansão das aplicações diretas na ação orçamentária vinculada à COVID-19 retraiu substancialmente a participação das transferências no último ano da série histórica.

As EP apresentaram tendência de aumento, em especial a partir de 2018, indicando a expansão de sua relevância para o financiamento do SUS. Como as despesas com a COVID-19 alteraram o padrão de gasto em 2020, os anos de 2019 e 2021 são importantes referências para a compreensão da participação das EP. Os dados da Tabela 1 expressam que as emendas representaram 9,3%, em 2019, e 7,7%, em 2021, das despesas federais com ASPS. Em relação aos recursos transferidos aos municípios, observa-se que 14,8%, em 2019, e 14,5%, em 2021, foram alocados a partir das indicações de deputados federais e senadores.

No período de 2016 a 2021, 82,5% dos recursos provenientes de EP em âmbito nacional (EPTM) foram alocados aos entes municipais (Tabela 2), sendo a modalidade preferencial de aplicação pelos parlamentares em todos os estados brasileiros. Entre as regiões, a participação das emendas destinadas aos municípios em relação ao total de repasses por EP variou entre 74% na região Norte e 86% no Nordeste. Em relação aos estados, apenas dois apresentaram proporções inferiores a 60% - Roraima (53,4) e Amapá (57,6%). No outro extremo, encontram-se os estados com percentuais acima de 90% - Amazonas (96,4%), Maranhão (96,1%), Paraíba (92,5%), Minas Gerais (92,2%), Alagoas (91,1%) e Pernambuco (90,7%).

Tabela 2
Transferências federais de emendas parlamentares aos municípios para o financiamento de ações e serviços públicos de saúde. Brasil, 2016 a 2021.

Além da preferência pelo direcionamento de recursos de EP aos municípios, destaca-se a destinação para o custeio como natureza de despesa (EPTM-C). Entre 2016 e 2021, 91,2% dos recursos transferidos aos municípios em âmbito nacional foram para este fim. Percentuais abaixo de 80% apenas foram identificados nos estados de Espírito Santo (70,6%), Goiás (78,1%) e Roraima (79,6%).

A participação das EP em relação ao total de transferências aos municípios no SUS (EP/T) é um indicador relevante para compreender a magnitude das emendas e sua importância para as gestões municipais. Nos dados acumulados para o período, observa-se que as emendas foram responsáveis por 9,5% dos repasses aos municípios, superando este percentual nas regiões Norte (14,6%) e Nordeste (12,7%). Participações superiores a 20% são identificadas apenas em estados da região Norte - Amapá (34,2%), Acre (25,9%), Roraima (22,7%) e Amazonas (20,2%).

Quando os dados são desagregados por nível de atenção, verifica-se maior peso das EP em relação ao total de transferências do MS destinadas à APS em todos os estados (EP/T-APS), alcançando 17% em âmbito nacional. Neste recorte, as variações do peso das emendas são ainda mais acentuadas. No âmbito das regiões, a participação das EP no financiamento federal da APS supera 20% no Norte (21,4%) e no Nordeste (20,9%). Os estados do Amapá (41,7%), Roraima (36,2%) e Acre (35%) apresentaram as maiores participações.

Quanto à participação do financiamento por emendas em relação ao total das transferências para MAC (EP/T-MAC), as regiões apresentaram proporções menores, destacando-se o Norte, com 9,2%, e o Centro-Oeste, com 8%. Por outro lado, a região Sul apresentou o patamar mais baixo de participação, 3,1%, com os estados de Paraná e Rio Grande do Sul abaixo deste percentual.

No que se refere aos valores per capita transferidos aos municípios por EP (EPTM-pc) no período de 2016 a 2021, o Nordeste também apresenta os números mais elevados, diferentemente das transferências regulares (TReg-pc), nas quais o Centro-Oeste se encontra no patamar mais alto. A região Norte apresenta o menor valor per capita das transferências regulares (TReg-pc), mas é a segunda região com os maiores valores per capita no que se refere às EP (EPTM-pc).

A variação dos valores per capita entre os municípios de cada UF e agregados por região e em âmbito nacional foi superior em todos os casos para os recursos transferidos por EP em relação aos repasses regulares, indicando maior assimetria entre os valores captados por EP pelas gestões municipais. Enquanto o coeficiente de variação dos valores per capita de emendas foi de 72,6% no Sudeste e 69,3% no país, o mesmo indicador foi de 45,2% na mesma região e 40,6% nacionalmente para as transferências regulares. Apenas no Ceará a variação dos valores per capita foi maior para as transferências regulares, sendo o único caso em que a alocação de recursos por EP foi mais homogênea entre os municípios.

O Gráfico 1 compara a distribuição de recursos por EP com as transferências regulares do SUS, evidenciando modalidades diferentes de partilha entre os entes subnacionais. Destaca-se que enquanto a participação da região Sudeste é preponderante nas transferências regulares (39,3%), o Nordeste é a região que capta mais recursos de emendas, 41,9%. Em valores absolutos, observa-se o predomínio de repasses para a MAC nas transferências regulares e da APS no contexto das EP.

Gráfico 1
Transferências federais aos municípios para o financiamento de ações e serviços públicos de saúde segundo região. Brasil, 2016 a 2021.

No âmbito do financiamento da APS, o Nordeste apresenta as maiores proporções nas duas modalidades de alocação, contudo, no que se refere às EP, a região responde por quase metade dos recursos (47%). Em relação aos recursos federais para MAC, a região Sudeste apresenta as mais altas participações nas duas modalidades, ambas superiores a 40%. Nos três recortes apresentados, as regiões Norte e Nordeste apresentam maiores participações na partilha de recursos por EP.

Embora as EP apresentem crescimento e certa regularidade no âmbito das despesas do MS, a distribuição de recursos entre os municípios é marcada por maior instabilidade e descontinuidade do que os demais repasses federais no SUS. A Figura 1 apresenta a redução proporcional de recursos entre um ano e outro em âmbito municipal a partir da maior variação negativa entre os valores repassados em anos subsequentes. Quanto maiores as reduções de recursos anuais, mais escura é a tonalidade apresentada nos mapas.

Figura 1
Maiores variações percentuais negativas entre os valores per capita transferidos aos municípios para ações e serviços públicos de saúde (ASPS) em dois anos subsequentes no período 2016-2021.

Enquanto entre as transferências regulares (Figura 1A) observa-se maior concentração de municípios com menores quedas nos repasses e um padrão mais homogêneo, no âmbito das EP (Figura 1B) predominam reduções superiores a 50%, resultando no mapa com tonalidades mais escuras e diversidade entre os padrões apresentados pelos municípios.

Discussão

O período abordado neste estudo reafirma o destaque das transferências de recursos aos municípios na condução da política de saúde no Brasil, marcada pelo processo de descentralização de ASPS2626 Santos RJM, Luiz VR. Transferências federais no financiamento da descentralização. In: Marques RS, Piola SF, Roa AC, organizadores. Sistema de Saúde no Brasil: organização e funcionamento. Rio de Janeiro, Brasília: ABrES, Ministério da Saúde, Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento, OPAS/OMS; 2016.. É no contexto das transferências federais que as EP ganham maior relevo no financiamento do SUS, sendo também a principal modalidade de aplicação desses recursos. A retração da participação das transferências aos municípios nas despesas do Ministério da Saúde em 2021 não contradiz essa direção, sendo atribuída à aquisição de vacinas contra a COVID-192727 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Saúde. Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise, n. 29. Brasília: Ipea; 2022.. A relevância da participação das emendas se mantém no período subsequente ao estudo. Em relação ao ano de 2022, Funcia e Benevides2828 Funcia F, Benevides R. Boletim COFIN 2021/12/31 (dados até 31/12/2021) [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Saúde (COFIN); 2022 [acessado 2024 fev 8]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
http://conselho.saude.gov.br/boletim-cof...
,2929 Funcia F, Benevides R. Boletim COFIN 2022/12/31 (execução até 31/12/2022) [Internet]. Brasília: Conselho Nacional de Saúde (COFIN); 2023 [acessado 2024 fev 8]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin.
http://conselho.saude.gov.br/boletim-cof...
identificam a expansão, tanto nos montantes destinados às EP, quanto no percentual em relação ao gasto total com ASPS pelo governo federal, que passou de 7,8%, em 2021, para 9,9% no ano seguinte.

O estudo evidenciou a participação crescente e com distribuição diferenciada das EP frente aos repasses regulares do MS. Enquanto nas transferências regulares predominam os recursos destinados à MAC, nas transferências por EP a APS se destaca. Por sua vez, na comparação entre municípios, os valores per capita de EP apresentam maior variação, indicando maiores discrepâncias dos recursos alocados em relação às demais transferências. Destaca-se ainda o expressivo predomínio das EP destinadas ao custeio de ASPS. Quanto à distribuição, as regiões Nordeste e Norte são as que apresentam os maiores valores per capita e maior peso em relação ao total de transferências. Entretanto, a maior instabilidade dos repasses por EP merece destaque, pois os recursos alocados aos municípios variam de forma expressiva entre um ano e outro, não sendo também um repasse que contemple as mesmas administrações locais em todos os anos.

O maior peso dos recursos de EP no Norte e Nordeste sugere maior dependência desta fonte dos municípios localizados nessas regiões. Este quadro é preocupante quando se observam os resultados do estudo conduzido por Piola et al.3030 Piola SF, Benevides RPS, Vieira FS. Consolidação do gasto com ações e serviços públicos de saúde: trajetória e percalços no período de 2003 a 2017. Brasília: Ipea; 2018., que evidenciou menores patamares de gasto público em saúde nos municípios do Norte e Nordeste, de 2004 a 2017. Destaca-se ainda o caso da região Norte, que apresenta as menores despesas federais regionalizadas em saúde em praticamente todo o período abordado pelos autores. Se em alguma medida, as EP representam fontes adicionais de recursos para essas regiões, isto ocorre de maneira instável, sem uma contribuição real para a sustentabilidade do financiamento do SUS.

A ampla abrangência de municípios contemplados por EP é um aspecto destacado por Vieira e Lima66 Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica 2022; 56:123., que observaram que 92,1% dos municípios receberam emendas na modalidade de incremento de piso da atenção básica em 2019, correspondendo a praticamente todo o território nacional e se configurando como uma importante estratégia de captação de recursos para as gestões municipais. Quanto ao valor per capita, Piola e Vieira1313 Piola SF, Vieira F. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2019. identificaram alocação de recursos federais ao SUS por EP como inversamente proporcional ao tamanho do município.

Configura-se, portanto, uma modalidade de alocação de recursos amplamente difundida entre os municípios. Na base desta dinâmica está a retomada da prerrogativa de proposição de emendas ao orçamento da União pelos parlamentares, a partir da Constituição Federal de 1988. Naquele contexto de redemocratização do país, visava-se assegurar maior participação do poder legislativo no processo decisório e alocação de recursos federais para o financiamento de políticas públicas. Em tese, apostava-se que os deputados poderiam conferir maior proximidade da realidade dos estados que representam e, assim, contribuir para o enfrentamento de iniquidades3131 Baptista TWF, Garcia M, Lima LD, Machado CV, Andrade CLT. O orçamento federal e as emendas parlamentares da saúde no PPA 2004-2007: uma discussão a partir das regras institucionais. In: Melamed C, Piola SF, organizadores. Políticas públicas e financiamento federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ipea; 2011..

No contexto internacional, a participação de emendas parlamentares no financiamento de políticas públicas se expressa no debate sobre a origem e o direcionamento desses recursos. Críticas são feitas ao caráter distributivo das emendas3232 Firpo S, Ponczek V, Sanfelice V. The relationship between federal budget amendments and local electoral power. J Develop Econom 2015; 116:186-198. que concentram benefícios em localidades específicas, por meio de impostos gerais que envolvem a contribuição de todos no financiamento de seus custos, gerando mais impactos individuais do que coletivos3333 Lowi T. American business, public policy, case studies and political theory. World Politics 1964; 16:677-715.. Por outro lado, abordagens como a de Tromborg e Schwindt-Bayer3434 Tromborg MW, Schwindt-Bayer LA. Constituent Demand and District-Focused Legislative Representation. Legislative Stud Quarterly 2019; 44:35-64. identificam as necessidades sociais das localidades como elemento de destaque para a destinação de recursos pelos congressistas.

No Brasil, o debate sobre o tema também não encontra consenso. Parte dos estudos realizados nos anos 2000 enfatizaram as EP como “moeda de troca”, estratégia eleitoral e instrumento para atendimento de interesses individuais e privados, que contribuíam para a iniquidade na alocação de recursos3535 Ames B. Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2003.. Outros trabalhos apontaram para um processo orçamentário organizado com dominância do poder executivo e uma negociação em bases partidárias com acordos de longo prazo3636 Limongi F, Figueiredo AC. Processo orçamentário e comportamento legislativo: emendas individuais, apoio ao executivo e programas de governo. Dados 2005; 48(4):737-776.. Uma visão positiva também é encontrada quanto aos reflexos nas políticas públicas. Para Souza3737 Souza CMD. Federalismo e conflitos distributivos: disputa dos estados por recursos orçamentários. Dados 2003; 46(2):345-384., as emendas ao orçamento são incentivos para parlamentares aumentarem a captação de recursos federais para seus estados frente à deficiência do federalismo brasileiro em promover a equalização fiscal entre os entes subnacionais. Almeida3838 Almeida DPB. O mito da ineficiência alocativa das emendas parlamentares. Rev Bras Cien Polit 2021; 34:e239518. segue na mesma direção ao desenhar um modelo teórico, no qual associa as EP aos ganhos de bem-estar da população, mas salienta a necessidade de testes empíricos para um entendimento mais amplo acerca da participação do legislativo na questão orçamentária. Contudo, com o advento do orçamento impositivo, são necessárias análises políticas mais profundas, que investiguem as mudanças na dinâmica das relações entre os poderes executivo e legislativo, bem como suas consequências para o financiamento de políticas públicas.

Nesse sentido, os achados deste estudo ajudam a reacender o debate sobre as EP. O predomínio dos repasses para a APS, mais do que a indução do fortalecimento deste nível de atenção, aponta para uma busca de maior capilaridade dos parlamentares junto às suas bases eleitorais. Se as transferências regulares para MAC são predominantemente destinadas para os municípios com maior oferta desses serviços, a APS é difundida em todo o país, e segue orientações definidas no âmbito de políticas específicas do MS. Dessa forma, a preferência dos parlamentares em direcionar recursos para a APS parece representar uma estratégia para alcançar municípios que não dispõem de serviços de média e alta complexidade e não necessariamente um olhar para necessidades e prioridades em saúde.

Entre as regras para os repasses de incremento temporário, há o limite para captação pelos municípios do total de recursos obtidos por transferências regulares em anos anteriores2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Fundo Nacional de Saúde (FNS). Cartilha para apresentação de propostas ao Ministério da Saúde - 2023. Brasília: MS; 2023., ou seja, é possível dobrar o montante recebido por meio de repasses do MS. Entretanto, ainda que no processo de execução de EP estejam contemplados alguns parâmetros estabelecidos pelo executivo federal, são nas negociações entre parlamentares e prefeituras que o destino dos recursos é definido.

Neste cenário, destacam-se implicações para as relações intergovernamentais no âmbito do SUS. As transferências de recursos federais se consolidaram historicamente como importante mecanismo de coordenação da política de saúde entre diferentes níveis de governo, combinando critérios epidemiológicos, demográficos e de oferta de ASPS para a alocação de recursos99 Jaccoud L, Vieira FS. Federalismo, integralidade e autonomia no SUS: desvinculação da aplicação de recursos federais e os desafios da coordenação. Rio de Janeiro: Ipea; 2018.. Atualmente, as EP fragilizam esse mecanismo em prol de critérios eminentemente políticos para direcionamento dos repasses3939 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Saúde. Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise, n. 30. Brasília: Ipea; 2023..

Mesmo anteriormente à obrigatoriedade de destinar metade dos recursos das emendas individuais para a saúde, Baptista et al.4040 Baptista TWF, Machado CV, Lima LD, Garcia M, Andrade CLT, Gerassi CD. As emendas parlamentares no orçamento federal da saúde. Cad Saude Publica 2012; 28(12):2267-2279. já destacavam o grande interesse pela destinação de emendas para o setor. Segundo as autoras, isso se deve tanto à magnitude do orçamento do MS, quanto à natureza de suas ações que apresentam maior visibilidade e são facilmente destinadas a localidades, unidades e projetos específicos, públicos ou privados. A destinação de recursos de emendas aos municípios em detrimento dos estados ou de ações diretas do governo federal, parece reforçar essa lógica e uma tentativa dos parlamentares de alocarem recursos a partir do seu desempenho eleitoral.

Dado o volume e a instabilidade de captação de recursos, o predomínio das EP de custeio impõe grandes riscos para a manutenção de ASPS pelos municípios. Conforme Piola e Vieira1313 Piola SF, Vieira F. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2019., os recursos de EP que eram predominantemente direcionados à construção e ampliação de unidades de saúde ou à aquisição de equipamentos, passam a ter, a partir de 2016, o custeio como natureza de despesa principal, com aumento da participação desse grupo no contexto do teto de gastos. Em um cenário como este, a redução de recursos pode acarretar descontinuidade ou retração na oferta de serviços. Neste quadro, as ASPS que deveriam contar com fontes de recursos regulares para sua manutenção, passam a depender de negociações políticas entre representantes dos poderes executivo e legislativo. Amplia-se, assim, o desafio das gestões municipais de planejamento do seu gasto e de desenvolvimento de estratégias contínuas para manutenção do patamar de recursos recebidos por EP.

O volume de recursos no orçamento, o número de parlamentares por unidade da federação, a preferência pela destinação das emendas para municípios, e os critérios já estabelecidos para os demais repasses do MS são aspectos que repercutem nos diferentes pesos de recursos de EP em relação ao total de transferências federais do SUS. Como casos extremos, tem-se o Amapá, em que as emendas representam mais de 30% das transferências SUS, e São Paulo em que as emendas representaram apenas pouco mais de 5%.

Mais do que uma alocação mais equitativa, os maiores valores per capita de EP para os municípios das regiões Norte e Nordeste refletem nosso sistema político. Cintra et al.4141 Cintra AO, Lemos LB, Lacombe ARVP. O Poder Legislativo na Nova República: a visão da Ciência Política. In: Avelar LA, Cintra AO, organizadores. Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 3ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Konrad Adenauer Stiftung, Editora Unesp; 2015. p. 143-182. refutam a ideia de que 513 deputados federais representariam o povo brasileiro e 81 senadores estariam em defesa de seus estados, sob o argumento de não existir deputados eleitos em circunscrição nacional, motivo pelo qual estes parlamentares também se veriam como representantes de seus estados. A divisão das cadeiras entre as unidades federadas tampouco refletiria uma “proporcionalidade perfeita” com os portes populacionais. A definição de um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados, bem como o número comum de oito senadores, manteria um caráter desproporcional entre população e representação.

No que se refere ao PAB-Fixo, vigente na política de saúde até 2019, Vieira e Lima66 Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica 2022; 56:123. identificaram que as EP distorceram a alocação equitativa desses repasses, ao destinar proporções muito superiores de recursos a um grupo de municípios com menor porte populacional e não contemplar todos os municípios com maior vulnerabilidade socioeconômica. Tal análise é reforçada por estudo do IPEA3939 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Saúde. Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise, n. 30. Brasília: Ipea; 2023. que destaca que os repasses para custeio da APS por EP aumentam a desigualdade no financiamento do SUS para os municípios e alerta para o risco de ampliação das iniquidades em saúde.

Além disso, a ampla variação dos valores recebidos evidencia a produção de novas distorções e assimetrias na alocação de recursos no SUS. Esse aspecto é muito relevante dado o contexto em que esta pesquisa se insere, de severa restrição orçamentária ao MS. Tal cenário se mantém na atualidade, pois mesmo que o teto de gastos tenha sido revogado de forma definitiva com a implantação do novo arcabouço fiscal em 20232121 Brasil. Emenda constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022. Altera a Constituição Federal, para dispor sobre as emendas individuais ao projeto de lei orçamentária. Diário Oficial da União 2022; 22 dez.,4242 Brasil. Lei Complementar n° 200, de 30 de agosto de 2023. Institui regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País. Diário Oficial da União 2023; 31 ago., o financiamento da saúde ainda sofre restrições. Em uma federação como a brasileira, marcada por importantes iniquidades, há expectativa de que os recursos federais sejam suficientes e adequados para equalização de capacidades desiguais de financiamento de políticas públicas entre os entes subnacionais. Acende-se, portanto, um alerta para que outros estudos investiguem a relação entre a alocação de recursos por EP e as necessidades de saúde da população.

Por fim, destaca-se que este estudo tem algumas limitações inerentes à fonte de informação utilizada, como apontado anteriormente. A falta de transparência na alocação de recursos por EP, especialmente das emendas de relator, impossibilitou a identificação de todos os municípios beneficiados com esses recursos, especialmente em 2016. Ainda assim, o ano de 2016 foi incluído no cálculo dos indicadores, tendo em vista que se trata do primeiro ano da entrada em vigor da alteração da Constituição Federal de 1988 para instituir obrigatoriedade de execução de EP individuais. Como resultado, observou-se um salto na execução orçamentária das emendas como um todo - de 31,7% em 2015 para 80,6% em 20161616 Vieira FS. Emendas Parlamentares ao Orçamento Federal do SUS: método para estimação dos repasses a cada município favorecido, segundo áreas de alocação dos recursos (2015-2020). Brasília, Rio de Janeiro: Ipea; 2022.. Nos anos mais recentes da série analisada, identificaram-se os beneficiários para a quase totalidade dos recursos alocados.

Apesar dessas limitações, a fonte de informação utilizada é a melhor disponível e os dados obtidos são suficientes para a análise empreendida, sustentando as conclusões deste trabalho. Cabe ressaltar a necessidade da garantia da manutenção e aprimoramento dos sistemas de informação sobre o orçamento público no Brasil para realização de pesquisas sobre o tema. O artigo reforça a importância das EP como fonte de recursos para o custeio do SUS no âmbito municipal e sua ampla difusão no território nacional, por meio de repasses instáveis do MS, com grandes variações de municípios beneficiados entre os anos e predomínio da destinação para a APS.

Agradecimentos

AS Silva foi bolsista CAPES-Print. LD Lima é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ, e conta com o apoio dessas agências para o desenvolvimento de estudos sobre o tema.

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  • Financiamento

    Este estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo n° 309295/2021-1; pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), processo n° SEI E-26/201.123/2021; e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - Programa de Políticas Públicas, Modelos de Atenção e Gestão do Sistema e Serviços de Saúde (PMA), processo n° 25380.101539/2019- 05.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    26 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br