Quando corpos dissidentes proclamam seus lugares como corpos diz-sonantes

Reginaldo Moreira Mara Lisiane de Moraes dos Santos Nathalia Silva Fontana Rosa Débora Cristina Bertussi Helvo Slomp Junior Emerson Elias Merhy Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste ensaio é apresentar o conceito de corpos diz-sonantes e dar visibilidade a esses corpos no campo da saúde coletiva, a partir de perspectivas anti-coloniais e queers. São corpos muitas vezes considerados dissidentes, cujas existências consideradas abjetas, descartáveis e marginalizadas, pela sociedade neoliberal e necropolítica são apresentadas como outras possibilidades frente às lógicas e estratégias políticas de reprodução hegemônica da vida-capital e nas políticas de saúde. Debate tensionamentos de novas possibilidades e alternativas de modos outros de existências e de mundos inclusivos, em que todas as vidas sejam consideradas, em suas singularidades e diferenças, radicalmente iguais na validação dos seus modos de viver.

Palavras-chave:
Populações minoritárias; vulneráveis e desiguais em saúde; Políticas inclusivas de gênero; Saúde de gênero; Minorias sexuais e de gênero; Valor da vida

Uma introdução

Qual o valor do valor da vida? Toda vida é precária, uma vez que todos somos matáveis, porém, a distribuição de precariedade é desigual. Algumas vidas são mais matáveis que outras, numa sociedade que normaliza que travestis e mulheres transexuais morram aos 35 anos11 Associação Nacional de Travestis e Transexuais [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://antrabrasil.org/.
https://antrabrasil.org...
, que 0,5% dos estudantes de graduação sejam pessoas com deficiência (PcD)22 Sallit M. As maiores representatividades de pessoas com deficiência nas universidades do Brasil [Internet]. Quero Bolsa; 2019 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://querobolsa.com.br/revista/maiores-representatividades-de-pessoas-com-deficiencia-nas-universidades-do-brasil.
https://querobolsa.com.br/revista/maiore...
, que menos de 1% dos trabalhadores formais no Brasil sejam PcD33 Silva LAMG, Silva SVM, Resende EA. A inclusão da pessoa com deficiência no mercado do trabalho no Brasil: em busca da efetividade das agências do Sistema Nacional de Emprego. Rev Jur 2018; 3(52):306-325., e quem será escolhido para respirar no tratamento agudo da COVID-1944 G1 Amazonas. Documentos mostram que mais de 30 morreram nos dois dias de colapso por falta de oxigênio em Manaus [Internet]. 2021 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/25/documentos-mostram-que-mais-de-30-morreram-nos-dois-dias-de-colapso-por-falta-de-oxigenio-em-manaus.ghtml.
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia...
. Quem pode respirar nas abordagens policiais?55 UOL. Homem é morto asfixiado após ser preso em viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal em SE [Internet]. 2022 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/homem-morre-asfixiado-em-viatura-da-policia-rodoviaria-federal-em-se.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
Quem pode viver e quem deve morrer? Como nos alertou Judith Butler66 Butler J. Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n-1 edições; 2020., quais as precariedades, as políticas públicas relativas à educação, trabalho, alimentação, saúde, e estatuto jurídico, são desenvolvidas para equidade e igualdade sociais? Quais são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são as vidas dignas de luto?

Este ensaio traz para o debate a perspectiva de que as vidas, para viver, precisam de seus corpos. Desta maneira, usaremos ao longo do texto a noção de “corpos”, em todas suas variantes na língua portuguesa, ao invés de “sujeitos”. A noção de “sujeito” utilizada mais frequentemente no campo da saúde coletiva já é um grande avanço se compararmos com indivíduos como unidades de uma coletividade. Sujeitos como aqueles que agem, agem porque pensam, pensam, mas também sentem, e assumem seus valores e suas identidades sexuais, profissionais, familiares e sociais77 Minayo MCS. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001; 6(1):7-19.,88 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(1):63-72..

Entretanto, entendemos a necessidade de se produzir, desde dentro deste mesmo espaço da saúde coletiva, um debate a partir dos corpos e suas singularidades para enriquecer este campo que, historicamente, é produtor de outras formas de entender as necessidades e os problemas de saúde da sociedade, e as estratégias de afrontamento mais adequadas. “O que pode um corpo é a natureza e o limite do seu poder de ser afetado”99 Deleuze G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Editora 34; 2017. (p.147). Partimos do princípio de que cada corpo é singularidade e multiplicidade, é novidade, é fluxo de intensidades com processos contínuos e ilimitados de subjetivação, é movimento constante - ainda que não se movimente, como alguns corpos que são chamados “deficientes”1010 Santos ML, Rosa NSF, Bertussi DC, Coelho KSC, Merhy EE. Pessoas com deficiência. Corpos políticos e insurgentes, existências singulares. In: Bertussi DC, Merhy EE, Coelho KSC, Santos ML, Rosa NSF, organizadores. O Cer que Precisa Ser: os desafios de ser rede viva com o outro. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021. p.13-16..

Ao longo dos séculos foram forjados padrões do que seria um corpo normal, aceitável, e os corpos que ficam fora desse “padrão” são considerados corpos anormais1111 Merhy EE, Cruz KT, Gomes MPC. Sinais que vêm da rua: o outro no seu modo de existir como pesquisador-intercessor. In: Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS, organizadores. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2019. p. 175-207., e certos corpos são invisibilizados em suas singularidades e diferenças porque produzem desconfortos. Um corpo com potência de agir e potência de vida se expressa pelos afetos de que é capaz, é um corpo ético-estético-político e não um corpo moral na perspectiva encarceradora, prescritiva e julgadora, que desdenha, segrega, amedronta, agride, humilha, despreza, mata, que categoriza tais corpos como não válidos, sem direito à existência.

Os corpos são projetos em construção, em constante produção e por descobrir: exercício de poderes, práticas discursivas, relações de saberes, instauração singular e plural de diferentes modos de existir, como obras abertas. “Já a instauração de cada um deles implica sempre inúmeras experimentações singulares (a liberdade), sucessivas determinações (a eficácia) e uma profusão de equívocos (a errabilidade)”1212 Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições; 2013. (p.394). Mas, essa produção é capturada por uma produção de corpos subalternos, uma lógica imperativa de poder sobre a existência do outro. Uma produção de corpos-mercado catalogados dentro de uma normalidade interessada em cumprir uma função social na lógica neoliberal.

Em uma lógica inversa e perversa, a instauração dos modos de existir como corpos no mundo foi confiscada, e está pré-concebida dentro do lugar onde nascemos, na cor marcada na pele, no sexo biológico, em cada “ausência de normalidade” que emerge em nossos corpos. A construção está dada, diminui, mata, escolhe.

A naturalização que vimos diante das pessoas mortas pela COVID-19, por exemplo, revela como corpos que não são dignos(as) de luto pois estavam mesmo condenadas à morte. Corpos de idosos, com comorbidades, com deficiência, pobres, pretos, favelados, quilombolas, presidiários, indígenas, mulheres, transexuais, travestis, queers... corpos que já não possuíam uma vida vivível pela maquinaria do capital, que resistem, insurgem pela própria sorte ou pelo poder dos movimentos sociais. Corpos negligenciados pelo poder público hegemônico, higienista, fascista, destituidor de direitos, massacrador de sonhos e novos possíveis.

Aqui, nos interessa colocar em evidência o enquadramento dos corpos considerados fracassados, abjetos, dissidentes, não tão bem-sucedidos como se espera no mundo neoliberal. Neste sentido, ofertar e problematizar outras possibilidades de narrativas, suas potências, suas diferenças, suas contribuições, utopias, alternativas, para vidas vivíveis em plenitude e outras possibilidades de mundo. Além disso, acionar os plugs necessários para ampliação dos volumes da diversidade dessas vozes, a fim de se abrir possibilidades de se confrontar “as iniquidades grotescas da vida cotidiana”1313 Halberstam J. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe; 2020. (p.23). Os queer sempre foram vistos como fracassados, mas estes fracassos são sua potência, pois se inadequar, em determinadas circunstâncias, pode ser exatamente a possibilidade de vida mais cooperativa, mais criativa, mais surpreendente nos modos de existência individual e coletivamente.

Nestas composições relacionais possíveis nos jogos de poder, olhar para como os corpos classificados dissidentes tocam suas vidas nesse baile, é só olharmos, por exemplo, para corpos LGBTIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Intersexuais, Assexuais e outros mais), os corpos queers, ou considerados deficientes, loucos, negros, mulheres, pobres, gordos, crianças, idosos, indígenas, e outros mais corpos descartáveis, segundo as classificações necropolíticas que tentam incidir vertical e impiedosamente sobre essas existências, discipliná-las, padronizá-las e exterminá-las.

Nestes sentidos, a utilização da palavra corpo artigo, está incorporada dos sentidos das palavras corpas e os corpes, contemplando as justas reivindicações de diferentes segmentos sociais, na tentativa de desconstruir e ressignificar a naturalização da gramática verticalizada e colonizadora. O tensionamento de gênero da própria palavra traz para a cena construções linguísticas de controle e exclusão. A nomenclatura corpa é uma reivindicação das travestis e mulheres transexuais, que cunham a feminização da palavra11 Associação Nacional de Travestis e Transexuais [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://antrabrasil.org/.
https://antrabrasil.org...
. Já, corpe tem sido proposto pelo movimento de linguagem não binária, em disputa por uma linguagem inclusiva. A opção pela utilização das variantes de gênero da palavra corpo neste artigo, alternadamente, objetiva elucidar os tensionamentos às normas da língua portuguesa pelas corpas e corpes não contemplados na dita norma culta, já que nossa língua é viva e está em constante construção.

O Brasil é o país que mais mata a população LGBT e de Transexuais e Travestis no mundo1414 Observatório de mortes e violências LGBTIA+ no Brasil [Internet]. 2022 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/orgulho-lgbt/junho-2022/.
https://observatoriomorteseviolenciaslgb...
. É um dos países que mais mata ativistas de movimentos sociais e mulheres por feminicídio1515 TV Senado. Feminicídio cresce no Brasil. Saiba como o poder público pode ajudar mulheres vítimas de violência [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/tv/programas/inclusao/2023/05/feminicidio-cresce-no-brasil-saiba-como-o-poder-publico-pode-ajudar-mulheres-vitimas-de-violencia.
https://www12.senado.leg.br/tv/programas...
. Há uma naturalização das mortes destes corpos. Não há, geralmente, um luto, um espanto diante da violência praticada todos os dias. Envelhecer seria um sonho de vidas que lutam para se manter vivas desde sempre, da hora que acordam até a hora em que se deitam. A ameaça de morte é uma constante, e a morte social vai implicando em destituições de inúmeros sonhos, inclusive o de envelhecer. E, quando envelhecem, esses corpos/corpas/corpes são invisibilizados e jogadas à própria sorte.

Trazer para o debate a necessidade de ver estes corpos considerados dissidentes é uma aposta em produzir outras maneiras de compreender as existências e suas produções e necessidades várias, como suas necessidades de saúde. É uma aposta em trazer diferentes elementos para produzir estratégias de enfretamento em harmonia com estes corpos, e não uma prática de enfrentamento que siga descartando e produzindo para estes corpos narrativas diz-sonantes.

Os corpos diz-sonantes

Este artigo apresenta o conceito corpo diz-sonante para corpos que o mundo neoliberal, patriarcal e necropolítico posiciona como menos valorados, mais ou menos humanos ou inumanos, selvagens, monstros, aberrações, queer, sem valia, abjetos. O conceito de corpos diz-sonantes, ao invés de dissidentes, traz outros acordes de novos arranjos que nos acordem, socialmente, que façam despertar em nós outras visões e possibilidades de mundos, em composições musicais em que acordes “perfeitos”, aqueles que se restringem aos intervalos clássicos entre as notas (terças maiores e menores, quintas e sétimas justas), necessitam dos dissonantes, os que experimentam todos os demais intervalos, já que a beleza da composição se faz também com eles, em um convívio harmônico com as diferenças numa outra estética musical das existências. No som produzido pelas cordas-corpo quando são esticadas e vibram, sem arrebentar, é que se faz possível extrair os acordes. Neste limite entre o esticar para encontrar o outro na sua diferença, nos alongamentos necessários para flexibilidades em resistência, como a corda bamba da equilibrista, que só consegue suportá-la quando esticada no ponto justo, afinada. Diz-sonante porque soa dizendo.

A invisibilização dos corpos diz-sonantes em produções de suas singularidades e diferenças, são, por outro lado, muito visíveis nos incômodos que produzem. Os corpos diz-sonantes forjam possibilidades de cartografias outras, nas entrelinhas, nos interstícios, nos entre, rizomática e vibratilmente.

Um rizoma não começa, nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. “[...] É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”1616 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 1995. (p.37).

Estes intermezzos são imaterializáveis, mas habitáveis pelos corpos dissonantes, e podem corresponder aos silêncios na música. Em muitos tipos de música, como no samba, com frequência acentua-se a música antes do tempo forte, e se chega no tempo forte já soando as notas que vinham crescendo em intensidade, antecipando o tempo forte e abrindo caminho para ele. Esta é a síncope, que desconstrói a rigidez do quatro por quatro - tipo de compasso típico das músicas ocidentais. É uma quebra do ritmo.

No samba temos um instrumento que é a cuíca: uma haste presa numa pele que produz som no deslizar sobre esta haste, vibrando a pele da cuíca que chora feliz, com seu som também deslizando ao longo do quatro por quatro do tempo, não discriminando fortes e fracos, assim como os corpos diz-sonantes deslizam chorando felizes no entre das marcações dos compassos. Nem todo corpo é silêncio ou síncope o tempo todo, e nem todo corpo é tempo, o tempo todo. Os corpos diz-sonantes, em movimento, vão sendo valorados de acordo com os interesses que atravessam os jogos de poder que se dão em ato, sendo o tempo todo capturados em nossa existência ultraliberal. Quando isso acontece, o samba é atravessado, mas se pode fazer um novo breque, subvertendo-se os interesses, fazendo-se ruir as estruturas de poder aos poucos e retomando a levada musical. Há um jogo de capturar e vazar que é constante nos corpos dissidentes, pois nenhuma moldura dá conta de enquadrar um corpo que vaza, numa produção existência ativista.

Trans-portando as lógicas da síncope do samba para o texto, não há possibilidade de leituras das linhas sem as entrelinhas. As entrelinhas são o respiro das letras, das palavras, o vão, o branco, o inter-valo, a vala do “entre” que possibilita uma compreensão outra das escrituras. Num processo de diagramação textual, sem o entre, sem o branco, sem as entrelinhas, não seria a mesma leitura. Corpos-discursividade necessitam dos vácuos, dos vazios, dos contratempos, dos entres, para que possam ler e serem lidos. Corpos diz-sonantes são aqueles que nunca se encontram estáticos, catatônicos, enquadrados e sem reação. Ao contrário, naquilo que de pior lhes estigmatizam, em suas diferenças mais singulares, eis onde pulsam suas dissidências, a fim de desenquadrar e subverter as imposições que tentam aprisioná-lo66 Butler J. Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n-1 edições; 2020..

Seus desejos de ser/estar no mundo, com suas diferenças valoradas em plenitude, fazem com que os corpos diz-sonantes subvertam as molduras impostas. Não que seja opcional a subversão, mas é questão de sobrevivência. Ou subvertem ou morrem. E quando esses corpos decidem viver, a subversão é um tsunami inevitável disruptivo e desestruturante da ordem imposta sobre si, para reconstruir uma vida para si. O que era desvalorado pelo sistema aprisionador e necropolítico das normalizações e normatizações, passa a ser, a partir da potência queer dissonante, o diferencial propulsor da virada de chave. A diferença como propulsora, como potência disruptiva para uma humanidade menos reprodutora de normas, repetições sistêmicas de modelos padronizados na esteira das produções de vida em série, como numa fábrica de pessoas e relações que não fujam ao padrão do controle de qualidade. E qualidade aqui compreendida como corpos dóceis e normatizados que respondem às lógicas de assujeitamentos e submissões. Ser fora de série, deixa de ser defeito de fábrica e passar a ser diferencial contributivo da criatividade deslocadora e necessária para novas possibilidades e experimentares e de produção de vida e de saúde, numa busca-outra fora dos padrões em série, das caixinhas, dos encaixes, mas olhando para encontros inusitados novos estados-outros.

A questão que permeia tais possibilidades de subversão é saber qual musicalidade pode produzir uma dissonância em corpos capturados pelos enquadramentos esmagadores. Quais acordes acordam no corpo dissidente suas dissonâncias? Como despertar os corpos desvalorados, como subverter os defeitos em potências? Como trans-torná-los para que, o que antes era considerado defeito, passe a ser sua principal valoração de singularidade constitutiva de outras lógicas deslocadoras, questionadoras e disruptivas?

O que podem os corpos diz-sonantes? Compor somente com outros corpos diz-sonantes? Talvez não formassem, só eles, as harmonias necessárias para composição estética e eticamente imprescindíveis para mundos outros possíveis. A estética do possível necessita de todos os corpos, corpos aliás que não são sempre a mesma coisa, ora vibram diz-sonantes, ora também “perfeitos”, como os acordes convencionais, e assim vão se produzindo no desejo, nas imanências existenciais...

A composição só ganha sentido quando toca, vibra: corpo vibrátil. Quando toca no sentido de execução sonora. Quando toca no sentido dos afetos que aumentam a potência de existir, já que o...

...corpo vibrátil - é tocado pelo invisível, e sabe: aciona-se, já, um primeiro movimento do desejo. No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se repelem. Dos movimentos de atração e repulsa geram-se efeitos: os corpos são tomados por uma mistura de afetos. Eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos... E seu corpo vibrátil vai mais longe: tais intensidades, no próprio momento em que surgem, já traçam um segundo movimento do desejo, tão imperceptível quanto o primeiro. Ficam ensaiando, mesmo que desajeitadamente, jeitos e trejeitos, gestos, expressões de rosto, palavras... É que, você sabe, intensidades buscam formar máscaras para se apresentarem [...] Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam1717 Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; 2007. (p.31).

Quando toca, no sentido do toque vibrátil. Quando toca, no sentido abrigo. Corpos diz-sonantes são corpos tocáveis. É necessário instaurar em nós novos modos de existência num movimento-arte, corpos-música. Não aquelas disciplinares, mas aquele movimento-corpo que vem do seu essencial, modos de se mover, de se co-mover, o movimentar dos corpos a partir da musicalidade e movimento genuíno de cada um, cada uma, com outros corpos/corpas/corpes em suas multiplicidades. De cada corpo/corpa/corpe, cordas que soam, couros estirados que produzem a batucada.

Capturas e rupturas - outras composições

Para Canguilhem, ainda nos anos 1940, o “normal” já então não poderia mais ser restrito a uma média estatística, pois, quando se trata da vida, o que importa é a capacidade plástica e autopoiética de estabelecer novas normas adaptativas para si, sempre que novas situações assim o peçam1818 Bezerra Junior B. O normal e o patológico: uma discussão atual. In: Souza AN, Pitanguy J, organizadores. Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; 2006. p. 91-109.. A “normalidade”, aquela ainda imposta nos dias de hoje, é a de certa média estatística de ser que interessa aos grupos sociais que a impõem, uma produção deles, uma captura branca, elitista, eurocêntrica, colonizadora, interditora de existências, de direitos, de possibilidades de ser e viver na diferença. A norma assim colocada é calcada no domínio e controle dos corpos normalizando-os, com o objetivo de perpetuação do poder no neoliberalismo.

Este ensaio pretende dar visibilidade aos corpos/corpas/corpes atirados para fora de uma certa normalidade, não são aceitos como corpos potentes, mas vistos como corpos devedores, abjetos e que, assim, devem ficar à margem, escondidos, calados, mas que se apegam ao direito à própria existência, em suas dissonâncias em relação aos corpos serializados ditos “normais”. São corpos que “maculam” o mundo apenas por existirem, e por isso suas existências são “permitidas” em alguns lugares pontuais, como nos centros de reabilitação e nas escolas “especiais” para os corpos com deficiência, nos espaços de shows para os corpos travestis, nas prisões, nas favelas e nas valas para os corpos pretos. Ao mesmo tempo são naturalizadas as ausências desses corpos em outros lugares onde as vidas acontecem, como nas escolas, universidades, nas esferas legislativas, executivas e judiciárias, nos locais de trabalho, lazer e todos os demais. São corpos considerados menos competentes para a vida e, portanto, existências recusáveis e descartáveis.

Portanto, a produção, controle e vigilância desses corpos é uma produção política como disputa dos modos de viver e das políticas das existências, ao pretender fabricar corpos docilizados que devem ter uma função normativa e normalizadora para a sociedade capitalista, dispositivos de um biopoder voltado para o controle dos indivíduos e das populações, de corpos dóceis e fragmentados1919 Foucault M. Corpos dóceis. In: Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20ª ed. Petrópolis: Vozes; 1999..

Assim, essa consonância compulsória de cada corpo aos olhos normativos, disciplinadores, reguladores e classificatórios, é enquadrado como dissonância, des-concerto, des-afinação, des-medida, mas se afirma, em seu caráter genuíno e singular. Estigmatizados, quando deveriam ser somente matizados, sem que quem classifica se dê conta de que o estigma é na verdade um sinal constitutivo do corpo. Qual corpo não possui cicatriz? Só o da bailarina, lembrando a canção de Chico Buarque.

Des-contra-colonizando os corpos

O debate sobre decolonialidade e contracolinialidade nos ajuda a entender a preocupante indiferença da sociedade frente às violências que sistematicamente são infringidas contra o “diferente”, o “não humano”, o “sem cultura”, o “sem saber” e o “sem poder”, o diz-sonante.

A colonialidade não desapareceu com o fim do colonialismo histórico, ela permanece como base nas formas de pensar, nas preferências-comportamentos-atitudes que circulam em nossa sociedade, e, mais que isso, é a representação de um pensamento que permanece ofuscando e reprimindo qualquer outra forma de pensar, de ver e de agir fora dos padrões. Pura produção de saber-poder que se mantém viva e produz “sombra” no saber, na política, na organização social, nas relações de trabalho, na produção do pensamento, na educação, na saúde, no cotidiano, na cultura, nas crenças, no senso comum, na autoimagem, ou seja, no modo de produção da vida.

O colonialismo consiste em um movimento de dominação para o estabelecimento de colônias e, mesmo depois de proclamadas as “independências”, permanece vivo e intenso nas relações sociais, mas agora atualizado em uma “nova roupagem”. A colonialidade nesta perspectiva é mais permanente, uma “marca” contínua nos discursos e consolidando-se em preferências-comportamentos-atitudes e práticas, que tem como principal objetivo a subalternização eterna dos povos colonizados.

A “Colonialidade” é um conceito importante na discussão dos corpos diz-sonantes, na medida em que não se refere apenas à classificação racial, mas é um fenômeno mais amplo, um dos eixos do sistema de saber-poder, porque, como tal, atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade2020 Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, organização. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.. María Lugones propõe também a colonialidade de gênero, que é relacional, e por este motivo, um modo subjetivo de dominação, atravessado pela interseccionalidade de gênero e raça2020 Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, organização. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020..

É necessário contestar todas as formas de colonização para que os corpos possam “virar o jogo”, descolonizar os saberes e os seres abrindo-se possibilidades de se escutar as vozes dos não humanos, dos invisíveis, das mulheres, dos negros, das pessoas com deficiência, dos povos originários, dos LGBTIs+2020 Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, organização. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020..

Bocas que aprisionam

Há de se destacar que as bocas-enunciadoras que ordenam, disciplinarizam, classificam, vigiam e punem tais corpos são as dos colonizadores e seus serviçais, dos detentores dos poderes instituídos, que deliberam punições às vidas que consideram fugir às regras que impõem. Operam em um sistema de produtividade calcado na repetição de vidas serializadas, para existências que se adequam às lógicas e estratégias políticas de reprodução hegemônica da vida-capital, sem tensionar ou demandar outras possibilidades e alternativas utópicas de modos outros de existências e de mundos inclusivos, em que todas as vidas sejam consideradas em suas singularidades e diferenças, radicalmente iguais na validação dos seus modos de viverem.

A boca que diz sobre o corpo do outro é uma boca que coloniza e aprisiona, com suas palavras de ordem, utilizando-se de toda a maquinaria e artefatos disponíveis para publicamente castigá-los, deixando evidente nas discursividades que implicam ações de estigmatizações, negações, exclusões e mortes. Para além de pensarmos de quem é a boca que fala, consideremos como essa boca diz, quais funcionamentos ela opera, a partir de que lugares e o que está sendo engendrado por e com essa boca. Qual o tom, o ritmo que determina as sonâncias e as dissonâncias, marcando quais espaços rítmicos e quais lentidões. O que diz e o que cala a boca normatizadora do mundo liberal? Muitos são os ferramentais utilizados nestes processos, que engendram inacessibilidade e classificações nos campos da saúde integral, embarreirando direitos a vidas no exercício de suas cidadanias. A boca que diz e classifica o outro como “dissidente” nunca é a boca categorizada como tal, colocando-se numa posição de superioridade em relação ao classificado, agora subalternizado. Portanto, é necessário tensionar as ordens colocadas em jogo, como também destacar a potência das bocas, dos dizeres, dos discursos, das existências consideradas fracassadas. Como aponta Butler11 Associação Nacional de Travestis e Transexuais [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://antrabrasil.org/.
https://antrabrasil.org...
, a própria construção do humano também produz o mais ou menos humano ou inumano, o humanamente inconcebível, os corpos ininteligíveis, os corpos abjetos.

Esse repúdio fundacional retratado por Butler se conecta ao imperativo do sucesso e do fracasso calcado nos cenários neoliberais, que imprimem regras de jogos de relações de poder e ressaltam falsamente a noção de esforços aos corpos que conseguirão ser bem sucedidos, seja por dedicação, superação ou méritos, e segundo os diferentes ideais mercadológicos, colonizadores, eurocentrados, nortecentrados, brancos, cristãos, ou seja, segundo lógicas disciplinadoras, enquadramentos que normalizam/normatizam certos corpos como corpos-capitais. Os corpos dos não iguais não têm ou merecem os mesmos lugares no jogo relacional de poder, já que não alcançaram o mérito. Nesta lógica de produção de abismos sociais, muitos morrem tentando se enquadrar, para que possam pertencer a um lugar que nunca acessarão. O foco é o abandono das lógicas coletivas e comunitárias para centrar-se no individualismo, na superação pessoal, no esforço, na autoajuda que o sistema tenta impor como substitutivo da solidariedade1313 Halberstam J. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe; 2020..

Como as bocas classificam os corpos/corpas/corpes como diz-sonantes? Pelas próprias bocas, sim, porém muito mais repetindo o que dizem as bocas da mídia hegemônica, da medicina, das leis, do sistema jurídico, do norte global, dos brancos, colonizadores, burgueses. Lançam mão de estratégias tóxicas de superação, de convencimento e alienação, no esforço pessoal desmedido para atingir um determinado fim exitoso, e fazem com que vidas se desmantelem subjetivamente, ofertando-se a uma servidão voluntária de sacrifícios sem fim, que não as levam para lugares de produção de sentidos comuns e mundos possíveis, mas de vidas monetariamente contempladas no jogo perverso do mundo liberal. Os corpos que alcançam o sucesso e o lugar bem-sucedido mercadologicamente almejado produzem, em contrapartida, fracassados. Por cima de quantos corpos precisa passar, de quantos insucessos se produz este ideal? Para o teórico queer Jack Halberstam, o fracasso permite linhas de fuga às normas punitivas, nas fugas de vidas controladas, disciplinarizadas, realizando furos na positividade tóxica da vida contemporânea, que é calcada no sucesso individualizado a custo do desequilíbrio intersecccional de raça, classe, gênero, etnia e localização geopolítica1313 Halberstam J. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe; 2020..

A saúde, os corpos e mundos outros

Uma jovem de 21 anos é atendida em um hospital do interior do Brasil em risco de vida. O médico percebe que se tratava de complicações de aborto, e, à revelia da lei e, principalmente, do seu código de ética, a denunciou à polícia e depôs contra sua paciente, conseguindo fazer com que a jovem fosse algemada ainda no hospital e respondesse por homicídio duplamente qualificado2121 Preite Sobrinho W. Algemada no hospital: médicos ignoram lei e denunciam mulheres que abortam [Internet]. UOL; 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2023/07/07/aborto-mulher-algemada-medicos-quebram-sigilo-medico.htm.
https://noticias.uol.com.br/saude/ultima...
. A saúde, um dos maiores campos de necessidades da vida, paradoxalmente carrega essa marca da colonialidade, de marcar corpos, de manejar a produção dos corpos a partir de um conjunto de bio-saberes pretensamente imparciais, com suas tecnologias de manipulação da vida, vem, ao longo do tempo, construindo grandes estratégias para vigiar e controlar alguns grupos societários: ordenar, disciplinar, regrar. Esse aparato de guerra do qual a saúde é parte produz uma lógica necropolítica no sentido de corpos que podem e devem ser eliminados, e exponencialmente infla uma imensa população profundamente vulnerabilizada pelo modo neoliberal de construir as políticas societárias e empobrecer as vidas.

Embora exista essa captura e desejo de colonizar e cancelar essas existências, os corpos/corpas/corpes diz-sonantes, em suas produções de vida, vazam do exercício da soberania dos disciplinadores2222 Mbembe A. Crítica da razão negra. Trad.: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições; 2018.. Ao mesmo tempo em que as forças para a subalternização e docilidade dos corpos operam, há outros lugares em que as forças de produção de vida escapam, há devires, criação de redes de existências para viver, produção de mais vida na vida, na precariedade. São corpas que afetam e são afetados, que produzem força de existir e potência de agir, são movimento e composição2323 Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2009 [1677]., são resistência.

Os corpos ditos “deficientes” ou dissidentes que ousam romper as amarras das cordas normativas, ou que rompem essas amarras pelo simples fato de existirem enquanto raça, gênero ou classe, esses corpos podem aproveitar das cordas como dispositivos de ressignificação, de produção de outras sonoridades por fora das amarras das negações que lhes foram impostas para, autenticamente, criar mais vidas nas suas vidas vividas, produzindo outros sentidos para si no campo relacional com outros.

Esses novos sons são produzidos a todo instante, porém nem sempre são ouvidos. E quando ouvidos nem sempre são considerados, num processo de reprodução do poder hegemônico que está como que impregnado em nosso código genético, mas que necessitamos romper com uma arte de instaurar novos modos de existência, como nos propõe Peter Pál Pelbart1212 Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições; 2013.. Sim, os corpos podem vazar no entre, na dobra, em uma outra instauração de modos de existir que surgem na resistência, nas fissuras. Outros mundos possíveis que buscam instaurar outras perspectivas para a existência que não respondam a um padrão natural evolutivo e universal. O que pode fazer um corpo dissonante na sociedade? Até onde ele pode chegar? A existência escapa, a produção da vida escapa, os devires escapam, novas autenticidades se instauram. Processos de rebeldias, resistências, insurgências, subversões, movimento essencial na produção de mais vida em si, estranheza que produza outros conceitos estéticos.

Que esses corpos diz-sonantes produzindo-se em ato pela vida nas grafias do coração, que digam e soem em composições necessárias para novas estéticas dos porvires, mediante a potencialização das precariedades e fragilidades: eis a força motriz para produções de dobras, furos e linhas de fuga.

Concluindo, abrindo

A diz-sonância está ligada à classificação do corpo que fala, da fala que vale, dos corpos que valem. Quem pode trabalhar? Quem pode viver? Quem pode respirar? Quem merece castigo? Quem merece morrer? Quem representa despesa para o Estado? Quem é o corpo pecador? Quem pode viver? As bocas dos corpos decoloniais podem e devem falar por si mesmas. Mas por quais meios, quais veículos, se os de massa são das bocas coloniais? Por isso a necessidade de tensionar o domínio nos mais diversos campos, com a produção de outros regimes discursivos: nas mídias radicais, no midiativismo, no midialivrismo, na comunicação popular, comunitária, colaborativa, participativa e democrática. Nas medicinas outras tantas. Nos humanos direitos. Nos direitos a uma saúde integral, à seguridade social, à participação política. Na política dos acessos, em todos os campos dos direitos. Na coletividade da saúde coletiva.

Bocas descolonizadas que disputem sentidos e espaços. Que disputem o poder de poder falar sobre si na produção, circulação e reconhecimento dessas narrativas. Participando não em uma relação passiva de sujeito e objeto, mas de espaço legítimo de produção das suas existências em circulação com outros saberes e fazeres. Em uma relação de simetria, como propõe Latour2424 Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34; 2019., na diferença e nas singularidades. Reconhecer as multiplicidades e reconhecer essas bocas, corpos/corpas/corpes, essas outras narratividades, essas outras tantas existências. Que o campo da saúde coletiva possa também trazer para o debate essas outras narrativas para a produção do cuidado de todos as possibilidades de corpos.

Que os corpos diz-sonantes possam viver plenamente, numa composição de arte que instaure modos de existência diversos e plurais. Para além dos terrorismos capacitistas, sexistas, feminicistas, classistas, machistas, racistas, LGBTfóbicos, transfóbicos, coloniais.

O jogo ideal é sem regras, sem vencedor e sem vencido. É a afirmação de todos os acasos. É o jogo do contra-senso, pois não põe um conjunto de objetos distintos, cujo agenciamento organizaria um sentido, sob o signo da boa estrela ou a boa sorte. Os objetos do jogo ideal são impessoais, não se organizam pela fórmula ganhadora que daria os dados, mas pelos lances de dados a cada vez. O mar não tem gramática, apenas alfabeto órfão: sua única verdade é a efemeridade da verdade. Essa negação do jogo tradicional impõe a afirmação do acaso proscrito, sem aniquilar, porém, o jogo: eleva-o a sua plena potência do acaso. A onda é o acaso do surfista, como o tubo é para ele o experimento da imanência. O surfista é a onda com a onda, e não onda sobre a onda; ele não existe apenas para aquilo que o tornará vencedor, mas se realiza afirmando o acaso; temos aqui certamente uma bela definição do ser, sempre em devir. É um puro sensitivo à escuta do meio no qual ele dança com seu corpo-onda para não “dançar” na vida. Escorregar é antes de tudo reduzir o esfregão, o caldo, a “vaca”2525 Lins D. Deleuze, surfista da imanência [Internet]. Clinicand; 2019 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://clinicand.com/deleuze-surfista-da-imanencia/.
https://clinicand.com/deleuze-surfista-d...
.

Declaramos que há que persistir no re-existir, com produções de vidas múltiplas e diversas! Ali, onde as normatizações normalizadoras só enxergam fragilidades e falhas, revelar que são também potências! De corpos dissidentes a corpos que vivem pelas grafias do coração, diz-sonantes, decoloniais, deslocadores. Que quaisquer corpos possam explorar suas potências intensivas para inventarem modos de vida anti-capital.

Referências

  • 1
    Associação Nacional de Travestis e Transexuais [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://antrabrasil.org/.
    » https://antrabrasil.org
  • 2
    Sallit M. As maiores representatividades de pessoas com deficiência nas universidades do Brasil [Internet]. Quero Bolsa; 2019 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://querobolsa.com.br/revista/maiores-representatividades-de-pessoas-com-deficiencia-nas-universidades-do-brasil
    » https://querobolsa.com.br/revista/maiores-representatividades-de-pessoas-com-deficiencia-nas-universidades-do-brasil
  • 3
    Silva LAMG, Silva SVM, Resende EA. A inclusão da pessoa com deficiência no mercado do trabalho no Brasil: em busca da efetividade das agências do Sistema Nacional de Emprego. Rev Jur 2018; 3(52):306-325.
  • 4
    G1 Amazonas. Documentos mostram que mais de 30 morreram nos dois dias de colapso por falta de oxigênio em Manaus [Internet]. 2021 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/25/documentos-mostram-que-mais-de-30-morreram-nos-dois-dias-de-colapso-por-falta-de-oxigenio-em-manaus.ghtml
    » https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/25/documentos-mostram-que-mais-de-30-morreram-nos-dois-dias-de-colapso-por-falta-de-oxigenio-em-manaus.ghtml
  • 5
    UOL. Homem é morto asfixiado após ser preso em viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal em SE [Internet]. 2022 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/homem-morre-asfixiado-em-viatura-da-policia-rodoviaria-federal-em-se.shtml
    » https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/05/homem-morre-asfixiado-em-viatura-da-policia-rodoviaria-federal-em-se.shtml
  • 6
    Butler J. Corpos que importam: os limites discursivos do "sexo". São Paulo: n-1 edições; 2020.
  • 7
    Minayo MCS. Estrutura e sujeito, determinismo e protagonismo histórico: uma reflexão sobre a práxis da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001; 6(1):7-19.
  • 8
    Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(1):63-72.
  • 9
    Deleuze G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Editora 34; 2017.
  • 10
    Santos ML, Rosa NSF, Bertussi DC, Coelho KSC, Merhy EE. Pessoas com deficiência. Corpos políticos e insurgentes, existências singulares. In: Bertussi DC, Merhy EE, Coelho KSC, Santos ML, Rosa NSF, organizadores. O Cer que Precisa Ser: os desafios de ser rede viva com o outro. Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2021. p.13-16.
  • 11
    Merhy EE, Cruz KT, Gomes MPC. Sinais que vêm da rua: o outro no seu modo de existir como pesquisador-intercessor. In: Carvalho SR, Oliveira CF, Andrade HS, Cheida RS, organizadores. Vivências do cuidado na rua: produção de vida em territórios marginais. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2019. p. 175-207.
  • 12
    Pelbart PP. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições; 2013.
  • 13
    Halberstam J. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe; 2020.
  • 14
    Observatório de mortes e violências LGBTIA+ no Brasil [Internet]. 2022 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/orgulho-lgbt/junho-2022/.
    » https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/orgulho-lgbt/junho-2022
  • 15
    TV Senado. Feminicídio cresce no Brasil. Saiba como o poder público pode ajudar mulheres vítimas de violência [Internet]. 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/tv/programas/inclusao/2023/05/feminicidio-cresce-no-brasil-saiba-como-o-poder-publico-pode-ajudar-mulheres-vitimas-de-violencia
    » https://www12.senado.leg.br/tv/programas/inclusao/2023/05/feminicidio-cresce-no-brasil-saiba-como-o-poder-publico-pode-ajudar-mulheres-vitimas-de-violencia
  • 16
    Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34; 1995.
  • 17
    Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; 2007.
  • 18
    Bezerra Junior B. O normal e o patológico: uma discussão atual. In: Souza AN, Pitanguy J, organizadores. Saúde, corpo e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; 2006. p. 91-109.
  • 19
    Foucault M. Corpos dóceis. In: Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20ª ed. Petrópolis: Vozes; 1999.
  • 20
    Lugones M. Colonialidade e gênero. In: Hollanda HB, organização. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020.
  • 21
    Preite Sobrinho W. Algemada no hospital: médicos ignoram lei e denunciam mulheres que abortam [Internet]. UOL; 2023 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2023/07/07/aborto-mulher-algemada-medicos-quebram-sigilo-medico.htm
    » https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2023/07/07/aborto-mulher-algemada-medicos-quebram-sigilo-medico.htm
  • 22
    Mbembe A. Crítica da razão negra. Trad.: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições; 2018.
  • 23
    Spinoza B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica; 2009 [1677].
  • 24
    Latour B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34; 2019.
  • 25
    Lins D. Deleuze, surfista da imanência [Internet]. Clinicand; 2019 [acessado 2023 jul 11]. Disponível em: https://clinicand.com/deleuze-surfista-da-imanencia/.
    » https://clinicand.com/deleuze-surfista-da-imanencia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2023
  • Aceito
    18 Dez 2023
  • Publicado
    20 Dez 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br