Análise qualitativa sobre a atuação e as experiências dos enfermeiros na gestão hospitalar frente à COVID-19

Patzy Dias Rebello Sabrina da Costa Machado Duarte Janieiry Lima de Araújo Cristina Lavareda Baixinho Andreia Costa Marcelle Miranda da Silva Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar a atuação dos enfermeiros na gestão hospitalar frente à COVID-19. O estudo teve uma abordagem qualitativa, do tipo descritivo e exploratório. O cenário foi um hospital que se transformou totalmente para atendimento de pacientes com COVID-19. No momento da coleta de dados, dez enfermeiros estavam à frente da gestão dos serviços, e todos participaram da entrevista semiestruturada. Os dados, após análise temática, foram apresentados em três categorias representativas dos elementos da tríade de Donabedian, ou seja, estrutura, processo e resultado. A categoria 1 realçou a reconfiguração da estrutura hospitalar a partir da gestão de materiais e das pessoas; a categoria 2 abordou a reestruturação do processo de trabalho para alcance das metas com segurança e qualidade; e a categoria 3 focou nas experiências dos enfermeiros na descrição dos resultados alcançados e esperados. A análise evidenciou a importância do trabalho em equipe, do envolvimento e da adaptação do gestor diante dos desafios da doença nova e ameaçadora da vida, dos recursos escassos e da complexidade das relações humanas na crise. Na liderança transformacional esses enfermeiros incentivaram a mudança de comportamento, o crescimento profissional, e resiliência.

Palavras-chave:
Centro Hospitalar; Infecção por SARS-CoV-2; Modelo de Donabedian; Enfermeiras Chefe; Organização e Administração

Introdução

A grande demanda por atendimentos e a complexidade gerencial atrelada ao colapso do sistema de saúde pela COVID-19 (sigla originária do termo em inglês Coronavirus Disease 2019) destacaram a atuação do enfermeiro gestor, que precisou planejar e implementar estratégias emergenciais, como a reestruturação de hospitais gerais e a criação de hospitais de campanha, a partir do recrutamento de pessoal, capacitação, revisão dos fluxos de atendimento, elaboração de novos protocolos e rotinas, gestão de recursos materiais, principalmente em relação aos equipamentos, insumos e leitos, dentre outros aspectos de recursos humanos que precisaram ser adequados para esta realidade assistencial11 Ardakani ES, Larimi NG, Nejad MO, Hosseini MM, Zargoush M. A resilient, robust transformation of healthcare systems to cope with COVID-19 through alternative resources. Omega 2023; 114:102750.,22 Asmaningrum N, Ferguson C, Ridla AZ, Kurniawati D. Indonesian hospital's preparedness for handling COVID-19 in the early onset of an outbreak: a qualitative study of nurse managers. Australas Emerg Care 2022; 25(3):253-258..

Como enfermeiro gestor assumimos a definição que reconhece neste profissional as competências e habilidades técnicas e sociais necessárias para abordar os desafios organizacionais e dar respostas com rigor, eficiência e eficácia, que a exemplo das demandas geradas pela pandemia da COVID-19, reúnem estratégias para segurança e qualidade do cuidado prestado33 Paulina K. Gerenciamento em enfermagem. 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016..

Foram muitos os desafios vivenciados e que precisam ser investigados, considerando-se a percepção dos profissionais envolvidos, como os enfermeiros gestores, que atuaram como mentores diante do senso de responsabilidade e motivação da equipe44 Liu Y, Wang H, Chen J, Zhang X, Yue X, Ke J, Wang B, Peng C. Emergency management of nursing human resources and supplies to respond to coronavirus disease 2019 epidemic. Int J Nurs Sci 2020; 7(2):135-138.. As deliberações no campo da saúde precisaram estar alinhadas aos preceitos da gestão da qualidade, a fim de manter os padrões de atendimento em resposta às novas demandas geradas na pandemia da COVID-19. Os processos de reestruturação de instituições de assistência à saúde, como os hospitais de referência, podem ser discutidos à luz da tríade proposta por Donabedian para a avaliação dos cuidados de saúde: estrutura, processo e resultado55 Donabedian A. Quality assessment and monitoring. Retrospect and prospect. Eval Health Prof 1983; 6(3): 363-375..

A estrutura compreende os fatores referentes às condições sob as quais o cuidado é prestado, englobando a estrutura física, recursos materiais, humanos e financeiros. O processo se refere às etapas que constituem o cuidado de saúde, ou seja, as atividades desenvolvidas pelos profissionais no cuidado ao paciente. O resultado compreende as mudanças, desejáveis ou indesejáveis, no estado de saúde do paciente, indivíduos ou populações55 Donabedian A. Quality assessment and monitoring. Retrospect and prospect. Eval Health Prof 1983; 6(3): 363-375..

Considerando-se o pressuposto de que existe uma relação causal entre estrutura, processo e resultado, de forma que a estrutura disponível precisa ser suficiente para apoiar a execução dos processos inerentes aos planos, que desencadeiam diferentes resultados55 Donabedian A. Quality assessment and monitoring. Retrospect and prospect. Eval Health Prof 1983; 6(3): 363-375., questiona-se: como se deu a atuação dos enfermeiros gestores na reestruturação de uma instituição hospitalar para atendimento exclusivo de pacientes com COVID-19?

Para responder esta questão, objetivamos analisar a atuação dos enfermeiros na gestão hospitalar frente à COVID-19.

Métodos

Pesquisa descritiva e exploratória, qualitativa, guiada pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research para organizar a redação dos aspectos metodológicos. A abordagem qualitativa justificou-se diante de objetivos alcançáveis por visões subjetivas sobre o fenômeno, que envolvem opiniões, valores e crenças, construídas a partir da experiência vivenciada por cada indivíduo, ou seja, que parte da reflexão pessoal daquilo que foi e que está sendo vivido, no ato de pensar, sentir, relacionar e agir para a gestão do cuidado de enfermagem66 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626.,77 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. 13ª ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2012..

O cenário foi um hospital municipal, localizado na zona Norte do Rio de Janeiro, Brasil. Essa unidade, originalmente realizava atendimento às mais diversas especialidades, porém, com a pandemia, passou a atender exclusivamente pacientes com COVID-19, ampliando o número de leitos de 269 para 432, sendo 207 de clínica médica e 225 de terapia intensiva. Esse número foi alterado algumas vezes devido a constante ampliação de leitos de acordo com a demanda de atendimentos nos diferentes ciclos da pandemia.

A coleta de dados ocorreu entre janeiro e maio de 2021. A amostragem foi intencional, por exaustão, de modo que participaram do estudo todos os dez enfermeiros gestores, que atenderam aos critérios de inclusão: enfermeiros com vínculo empregatício de qualquer natureza no cenário, atuando na dimensão gerencial do processo de trabalho da enfermagem durante a pandemia da COVID-19. Nenhum enfermeiro gestor esteve afastado por licença de qualquer natureza ou férias no período de coleta de dados. Não se aplicou como critério o tempo de atuação do profissional no cargo, tendo em vista que alguns foram contratados de acordo com a reestruturação do hospital, ou foram remanejados para a gestão.

O contato inicial foi realizado com a superintendente de enfermagem, que viabilizou a aproximação da pesquisadora com os enfermeiros gestores. Essa aproximação foi realizada individualmente por meio da plataforma de mensagens WhatsApp®, e posteriormente formalizada pela carta convite enviada por e-mail a cada participante.

A carta convite continha o resumo do projeto e um link para Formulário Google®, onde o participante era direcionado para o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e optava em aceitar ou não participar da pesquisa. Caso aceitasse, o questionário seguia com a caracterização do perfil profissional, e ao final, optava por realizar entrevista on-line ou presencial. Todos optaram pela entrevista presencial, que foi realizada no centro de estudos do hospital, individualmente, garantindo-se a privacidade e o bem-estar dos participantes.

As entrevistas foram realizadas pela primeira autora, que recebeu treinamento para aplicação desta técnica e estava cursando o mestrado acadêmico. Foram gravadas em áudio com autorização dos participantes, sendo utilizado o seguinte roteiro: “fale um pouco da sua experiência atuando no cargo de gestão. Como você participou da gestão de enfermagem para enfrentamento da COVID-19? Em quais ações? Quais as dificuldades percebidas na implantação e na execução do plano de contingência? E facilidades? Quais os desafios você tem enfrentado na gestão de enfermagem? Qual a sua visão sobre como o hospital se organizou para o enfrentamento da pandemia?”. Perguntas circulares foram realizadas sempre que necessário aprofundar o tema face o objetivo proposto.

Embora as entrevistas tenham sido realizadas individualmente, todos os enfermeiros gestores, diante da realidade em comum, apresentaram uma visão intersubjetiva, que por meio da análise de conteúdo temática, foram objetivadas, percorrendo as fases de pré-análise, exploração do material, e tratamento dos resultados, inferência e interpretação66 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626.. Todas as fases foram realizadas manualmente, contando com a presença das autoras em cada uma delas, de forma sistemática e aprofundada, para avançar no processo de dedução e indução, e desenvolver as três categorias temáticas derivadas dos próprios dados.

Assim, salientamos que a análise qualitativa buscou objetivar o conhecimento, que partiu dos dados subjetivos dos participantes e da perspectiva das autoras sobre a narrativa coletiva construída pelos depoimentos que se completavam pelas vivências compartilhadas, facilitando a identificação do grau de saturação66 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet 2012; 17(3):621-626.. E para estruturar a análise, aplicamos os conceitos da tríade de Donabedian (estrutura-processo-resultado)55 Donabedian A. Quality assessment and monitoring. Retrospect and prospect. Eval Health Prof 1983; 6(3): 363-375..

As entrevistas perfizeram 2 horas e 50 minutos de duração, com tempo médio de 17 minutos. Foram transcritas na íntegra e reapresentadas a cada participante, por e-mail, sendo todas validadas sem alteração do conteúdo.

O estudo respeitou as diretrizes de ética, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery em dezembro de 2020, com parecer nº 4.447.739. O Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido de todos os participantes do estudo por meio escrito. Os depoimentos foram identificados por códigos (P = participantes, seguido do número em ordem das entrevistas).

Resultados

A Tabela 1 apresenta a caracterização do perfil profissional dos participantes.

Tabela 1
Caracterização dos Participantes (n=10).

O tempo de atuação dos participantes na instituição variou entre dois meses e 18 anos; no cargo de gestão entre dois meses e cinco anos, com média de 56 meses. Todos os participantes informaram cumprir 40 horas semanais. Sete possuíam apenas este vínculo de trabalho, e os demais possuíam o segundo vínculo, porém sem funções relacionadas à gestão.

Da análise temática emergiram três categorias (Quadro 1), organizadas de acordo com os conceitos da tríade de Donabedian, estando a categoria 1 relacionada à estrutura, a categoria 2 ao processo, e a categoria 3 aos resultados. Esses dados foram apresentados no 12º Congresso Ibero-Americano de Investigação Qualitativa (CIAIQ) na forma de resumo88 Baixinho C, Freitas F, editores. Livro de Resumos do 12º Congresso Ibero-americano em Investigação Qualitativa. Lisboa: Ludomedia; 2023 jul 11-13..

Quadro 1
Categorias temáticas. Rio de Janeiro-RJ, Brasil, 2021.

Com base nos temas frequentes, destacamos os componentes que se relacionam com a gestão em enfermagem em cada elemento da tríade de Donabedian (Figura 1).

Figura 1
Enquadramento dos Resultados de acordo com a Tríade de Donabedian.

Categoria 1: Reconfiguração da estrutura hospitalar para o atendimento exclusivo de pacientes com COVID-19

O hospital passou por reorganizações, dentre elas a transferência de todos os pacientes que não tinham COVID-19 para outros hospitais da rede, pois a instituição passou a ser exclusiva para esta demanda.

Em poucos dias transferimos todos os pacientes que não tinham COVID-19. Na época estávamos com cerca de 109 pacientes. Tínhamos maternidade, UTI neonatal, saúde mental, clínica cirúrgica, ambulatório [...]. Antes da pandemia, tínhamos apenas 18 leitos de terapia intensiva, e passamos a ter 225. Foi um trabalho árduo, motivado pela responsabilidade (P6).

O aumento da demanda e a mudança do perfil de atendimento exigiu dos enfermeiros atuar na gestão de pessoas numa escala bem maior, somada às demandas de qualificação profissional, pois muitos não apresentavam experiência prévia.

Eu tinha uma equipe com 70 funcionários, e acabei abraçando uma equipe de 388. Recebemos funcionários de hospitais de campanha, federais, ou das UPA [Unidade de Pronto Atendimento]. Tivemos chamamento dos concursados [...]. Estou sempre recebendo novos funcionários, às vezes sem nenhuma experiência, e todos os dias a gente está treinando alguém (P2).

Dentre os desafios em meio às transformações, tanto das estruturas, como das próprias pessoas, o agravamento da pandemia, as novas “ondas” decorrentes do surgimento de novas variantes do vírus, reflexo da baixa adesão ao distanciamento social, que consequentemente aumentou o número de infectados que necessitavam de atendimento hospitalar, refletiram na necessidade de reorientações do planejamento tático e operacional da rede hospitalar de cuidados aos pacientes com COVID-19.

Categoria 2: Reestruturação dos processos de trabalho da enfermagem para o cuidado exclusivo a pacientes com COVID-19

A Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) coordenou a educação dos enfermeiros gestores para que cada um replicasse os conhecimentos com suas equipes in loco. Os enfermeiros gestores responsabilizaram-se pela gestão do conhecimento, planejamento da educação, resiliência e motivação da equipe.

A gente aprendeu a atuar com a chegada do paciente, com os protocolos que a gente ia treinando, atualizando e treinando de novo. E o maior desafio é capacitar toda a equipe [...]. Fomos construindo e aprendendo, porque estávamos falando de uma pandemia, em que tinham muitas atualizações e modificações de protocolos, então à medida em que fomos fazendo, fomos aprendendo a lidar com a doença e todos os protocolos da unidade (P6).

Independente do estilo de liderança, para enfrentar a situação foi preciso equilíbrio, confiança e saber reconhecer limites, especialmente, emocionais.

O maior desafio enquanto gestão é manter o equilíbrio emocional da equipe, onde muitos adoeceram, e ainda estão adoecendo. Conseguir prestar um atendimento de qualidade diante de tantas perdas, inclusive de profissionais. E acima de tudo, você mesmo estar equilibrado mental e fisicamente. É você conseguir se estruturar dentro de uma demanda totalmente nova, que não esperávamos [...] (P8).

Apesar dos pacientes chegarem ao hospital pela central de regulação de vaga com a orientação se deveriam ir para um leito clínico ou terapia intensiva, a rápida evolução da doença exigia cuidados de maior densidade tecnológica. Implementou-se, assim, o Time de Resposta Rápida (TRR).

[...] identificamos a necessidade de fazer o TRR, que admite o paciente num fluxo correto, onde ele chega e faz uma gasometria e uma tomografia. Temos uma equipe multidisciplinar de anestesista, cirurgião, clínico, enfermeiro, técnico de enfermagem e fisioterapia, que fazem a estabilização clínica do paciente, e o transferem para o setor a que veio regulado ou não, buscando garantir a segurança do paciente e melhorar a gestão de leitos (P6).

A rotina de comunicação com a família também precisou ser revisada. Os enfermeiros gestores, junto à equipe de saúde, testaram diferentes fluxos de comunicação, até alcançarem um modelo que empiricamente trouxe bons resultados.

E como a informação chega até a família? Pensamos em três fluxos diferentes, e aí quando começamos, um não deu certo, tentamos outro, não deu certo, até chegar num fluxo que atendeu melhor a família (P4).

Assim, o hospital contava com uma linha exclusiva para comunicação com as famílias, que funcionava 24 horas por dia, levando informações do quadro clínico individualmente.

Categoria 3: Experiências dos enfermeiros gestores na reestruturação hospitalar: relatos dos resultados alcançados

O trabalho em equipe facilitou a atuação dos enfermeiros gestores, inclusive, por contarem com a parceria da direção geral, que também empenhou esforços para facilitar os processos, reduzir burocracias e agilizar respostas.

A facilidade aqui é a questão da equipe, isso vale para CCIH, núcleo de segurança do paciente, as coordenações [...]. Aqui sempre tivemos uma equipe muito unida, então se vamos montar uma UTI nova, não seria a coordenação que iria montar, e sim “vamos montar”, todos juntos! Eu acho que o maior facilitador foi essa união que a equipe demonstrou [...] (P7).

Como o hospital originalmente possuía um outro perfil, boa parte dos enfermeiros gestores se viu em uma realidade diferente da que estava adaptada.

Enquanto gestor, é a minha primeira oportunidade, eu tinha uma carreira aqui assistencial, e estava há alguns meses exercendo a função de educação permanente. Aí surgiu a oportunidade de coordenação, foi com certeza o maior desafio, de estar aprendendo e praticando ao mesmo tempo (P3).

Porém, apreende-se que, após pouco mais de um ano desde o início da pandemia, todo aprendizado sedimentou um conhecimento estrutural e em constante desenvolvimento, para ajustar os planos aos diferentes ciclos da pandemia.

Estávamos enfrentando um desconhecido e hoje estamos um pouco mais acostumados. Sabemos o que contamina, o que não contamina, claro que as coisas evoluem muito rápido, estamos sempre aprendendo algo diferente com a COVID-19. Mas imagina há um ano, uma equipe onde estávamos todos em uma zona de conforto, onde o hospital não era referência de COVID-19 [...]. E a gente teve que estudar, ler, ficar atento a todas as normas. Mas acredito que hoje a equipe está mais bem treinada, já se passou um ano, e estamos vivendo muita coisa, tudo totalmente diferente, até do que a gente viveu em 2020 (P10).

A pandemia da COVID-19 trouxe os mais diversos tipos de emoções e vivências, o que foi um importante contributo para o desenvolvimento profissional, resiliência e qualificação dos processos de trabalho.

Discussão

A reestruturação do hospital para o atendimento exclusivo de pacientes com COVID-19 exigiu um completo rearranjo da infraestrutura, como a reconfiguração dos leitos e conversão de espaços não clínicos para clínicos. Este trabalho foi planejado e executado juntamente com os enfermeiros gestores, sendo a readequação e a resiliência da equipe elementos-chave para ressaltar a capacidade de adaptação, principalmente diante da transformação acontecendo em 100% dos espaços, mesmo naqueles antes ofuscados, e num curto espaço de tempo99 Kim HR, Yang HM. Nursing experience during COVID-19 pandemic in Korea: a qualitative analysis based on critical components of the professional practice models. BMC Nurs 2022; 21:288.,1010 Gupta S, Federman DG. Hospital preparedness for COVID-19 pandemic: experience from department of medicine at Veterans Affairs Connecticut Healthcare System. Postgrad Med 2020; 132(6):489-494..

Apesar dos enfermeiros gestores terem sentido dificuldade em manter o equilíbrio e ser o espelho para a equipe, e assim motivá-la, o trabalho em equipe pôde atenuar os sentimentos negativos, sustentado pela parceria, equidade, responsabilidade e perícia profissional1111 Baptista PC, Lourenção DC, Silvestre Silva-Junior J, Cunha AA, Gallasch CH. Distress and pleasure indicators in health care workers on the COVID-19 front line. Rev Latino-Am Enferm 2022; 30:e3555.,1212 Nishio EA, Cardoso MLAP, Salvador ME, D'Innocenzo M. Evaluation of Nursing Service Management Model applied in hospitals managed by social health organization. Rev Bras Enferm 2021; 74:e20200876..

Esta transformação destaca o pilar da “estrutura” dos serviços, no qual a disponibilidade de recursos materiais e humanos em quantidade e qualidade suficientes está diretamente relacionada ao sucesso da operação. Quanto maior os esforços para a adaptação da estrutura disponível, maiores os prejuízos na cadeia humana, marcados pelo esgotamento, adoecimento, conflitos éticos e baixa satisfação profissional55 Donabedian A. Quality assessment and monitoring. Retrospect and prospect. Eval Health Prof 1983; 6(3): 363-375.,1313 Gab Allah AR. Challenges facing nurse managers during and beyond COVID-19 pandemic in relation to perceived organizational support. Nurs Forum 2021; 56(3):539-549., o que pôde ser destacado em nossos dados.

Para os profissionais da linha de frente, a falta de suprimentos teve consequências devastadoras, o que aumenta a complexidade das relações e dos desafios vivenciados pelos gestores, porque envolve vulnerabilidades psicoemocionais, trazendo à tona uma série de transtornos que podem afetar a produtividade e o nível de satisfação dos profissionais1414 Abdi Z, Lega F, Ebeid N, Ravaghi H. Role of hospital leadership in combating the COVID-19 pandemic. Health Serv Manage Res 2022; 35(1):2-6..

Com a contratação temporária autorizada, os enfermeiros gestores passaram a observar que muitos dos novos funcionários estavam acumulando vínculos, causa de esgotamento, sobrecarga e interrupção precoce dos contratos de trabalho.

Dentre as ações para otimizar o uso dos recursos, a assistência e a segurança do profissional, os enfermeiros gestores responsabilizaram-se pelos constantes processos de educação da equipe de enfermagem e gestão do conhecimento, a partir do diálogo e da aprendizagem significativa no cotidiano do trabalho, em alinhamento ao marco conceitual da educação permanente. Essa atribuição é elementar à profissão e ao cargo, uma vez que em situações de crise, os enfermeiros são um dos primeiros profissionais a gerenciar suas consequências, embora muitas vezes possam não se sentir preparados para isto1313 Gab Allah AR. Challenges facing nurse managers during and beyond COVID-19 pandemic in relation to perceived organizational support. Nurs Forum 2021; 56(3):539-549..

Para planejar adequadamente a assistência foi preciso repensar o processo de trabalho, privilegiando-se, por exemplo, a auditoria interna de resposta hospitalar para a identificação do que precisava constantemente ser melhorado1515 Fouogue JT, Noubom M, Kenfack B, Dongmo NT, Tabeu M, Megozeu L, Alima JM, Fogang YF, Rim LC, Fouelifack FY, Fouedjio JH, Manebou PL, Bibou Ze CD, Kouam BF, Fomete LN, Tebeu PM, Kemfang JD, Foumane P, Sando Z, Orock GE. Poor knowledge of COVID-19 and unfavourable perception of the response to the pandemic by healthcare workers at the Bafoussam Regional Hospital (West Region-Cameroon). Pan African Med J 2020; 37(1):19.. Operacionalmente, destacamos o TRR, que já apresentava evidências de boas práticas para resposta efetiva em tempo oportuno1616 Jones D, Lippert A, DeVita M, Hillman K. What's new with rapid response systems? Intensive Care Med 2015; 41(2):315-317.,1717 Silva VGF, Silva BN, Pinto ÉSG, Menezes RMP. The nurse's work in the context of COVID-19 pandemic. Rev Bras Enferm 2021; 74:e20200594.. O TRR contou com a participação ativa dos enfermeiros gestores, que demarcaram espaço de atuação profissional na elaboração de fluxos e rotinas.

Levando em conta as especificidades de uma doença com manejo clínico ainda pouco conhecido como a COVID-19 (principalmente no primeiro ano da pandemia), o ajuste dos fluxos estabelecidos para admissão dos pacientes pelo TRR contribuiu para a sistematização dessa atividade, impactando positivamente o uso dos recursos1616 Jones D, Lippert A, DeVita M, Hillman K. What's new with rapid response systems? Intensive Care Med 2015; 41(2):315-317.,1717 Silva VGF, Silva BN, Pinto ÉSG, Menezes RMP. The nurse's work in the context of COVID-19 pandemic. Rev Bras Enferm 2021; 74:e20200594..

Embora os pacientes já chegassem com vagas determinadas pela central de regulação, sejam clínicas ou de terapia intensiva, muitos desestabilizavam no caminho, ou até mesmo, durante os minutos iniciais de sua internação, requerendo mudança na indicação da terapia desde a sua avaliação inicial, e isso perturbava a dinâmica do serviço, principalmente a gestão de leitos de terapia intensiva, e conferia risco para os pacientes.

Além do TRR, os enfermeiros gestores também participaram ativamente do plano de comunicação com familiares, sendo necessária a adequação de medidas, até que fosse de fato exequível, alcançando-se os objetivos, de forma humanizada. Destacamos, empiricamente, o papel dos enfermeiros gestores na avaliação das estratégias adotadas e na satisfação dos familiares e pacientes.

No âmbito da perícia, a forma inesperada dos acontecimentos fez com que os enfermeiros, que inclusive, até então, poderiam não ter tido experiência em gestão, tivessem que se reinventar e assumir novos cargos, sendo capacitados ao longo do curso das próprias ações. E o problema encontra-se neste eixo: a defasagem na educação.

Os acontecimentos e a taxa de mortalidade pela COVID-19 anunciaram que as pandemias não podem ser lugares principais de aprendizagem. Embora possuam importância no espectro de educação e vivência, o profissional precisa estar minimamente preparado antes, e não apenas durante. Todavia, diante da situação, toda a força de trabalho foi bem empenhada, e mesmo que alguns não tivessem o devido preparo, relataram que conseguiram êxito na gestão de seus processos e recursos.

No trabalho em equipe, o enfermeiro gestor assumiu comumente a figura de líder. Reforçamos com nossos dados que, embora existam vários tipos de liderança, um bom líder não possui um estilo único, e sim, um estilo que pode ser ajustado à necessidade. Em crises de saúde pública, como na COVID-19, algumas competências do líder foram de suma importância como: resolução de conflitos; planejamento estratégico, tático e operacional; tomada de decisão, diagnóstico situacional, comunicação, estabelecimento de redes, planejamento e organização dos recursos materiais e humanos, e de educação e motivação da equipe1414 Abdi Z, Lega F, Ebeid N, Ravaghi H. Role of hospital leadership in combating the COVID-19 pandemic. Health Serv Manage Res 2022; 35(1):2-6..

Os enfermeiros gestores que prestaram apoio e comunicação por meio da liderança transformacional contribuíram positivamente para o envolvimento no trabalho dos profissionais de enfermagem e, assim, melhoraram os resultados organizacionais, seguindo uma linha de intervenção a partir do planejamento estratégico e diagnóstico situacional, principalmente para imprimir nos envolvidos um objetivo comum e o senso de responsabilidade.

Os enfermeiros gestores assumiram posturas motivacionais, buscando percepções da equipe sobre suas práticas, equilibrando a força de trabalho a partir das diferentes perícias e condicionamento físico e mental, ao considerar, por exemplo, escalas com profissionais experientes e recém-formados, e entre aqueles com um vínculo empregatício e outros com mais. Trata-se de uma condução centrada na pessoa que está cuidando, numa relação de proteção mútua, de uma enfermagem transformacional, apesar dos desafios da carente estrutura1414 Abdi Z, Lega F, Ebeid N, Ravaghi H. Role of hospital leadership in combating the COVID-19 pandemic. Health Serv Manage Res 2022; 35(1):2-6.,1818 Lyman B, Horton MK, Oman A. Organizational learning during COVID-19: A qualitative study of nurses' experiences. J Nurs Manag 2022; 30(1):4-14..

A pandemia mostrou a extrema fragilidade dos sistemas de saúde em geral, evidenciando o quanto são necessárias reformulações em vários âmbitos, sejam reformas estruturais, nos modelos assistenciais, nos mecanismos de financiamento, no investimento de força de trabalho, dentre outros1919 Angeli-Silva L, Santos JV, Esperidião MA. Sistema de saúde e vigilância na França e a resposta à pandemia de COVID-19. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1313-1324.. Mas mesmo diante de todo esse quadro, certamente a experiência dos enfermeiros gestores traz uma relação subjetiva que demonstra que quanto maior o desenvolvimento e a competência no campo da gestão, maior será a capacidade de lidar com as situações difíceis2020 Alves JS, Gonçalves AMS, Bittencourt MN, Alves VM, Mendes DT, Nóbrega MPSS. Psychopathological symptoms and work status of Southeastern Brazilian nursing in the context of COVID-19. Rev Latino-Am Enferm 2022; 30:e3518.,2121 Soares SS, Lisboa MT, Queiroz AB, Silva KG, Leite JC, Souza NV. Double working hours in nursing: difficulties faced in the labor market and daily work. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200380..

E a partir dos processos descritos na reestruturação do hospital, destacamos, com base nas experiências vivenciadas pelos enfermeiros gestores, possíveis indicadores de resultados, como: (i) a satisfação de pacientes e familiares frente as estratégias de comunicação; (ii) a constante atualização de normas, rotinas e protocolos assistenciais, acompanhando a evolução do conhecimento científico e das normatizações legais e oficiais; (iii) e o impacto positivo da avaliação clínica do paciente de forma precoce e criteriosa pelo TRR para adequada gestão de leitos e segurança.

Considerações finais

Os depoimentos dos enfermeiros gestores, em sua totalidade, evidenciaram as suas colaborações na operação da restruturação do hospital para atendimento exclusivo de pacientes com COVID-19 no segundo maior município brasileiro em densidade populacional. Destacaram a inspiração constante para automotivação, e principalmente, motivação da equipe para manutenção do foco, no necessário ciclo de ação-reflexão-ação frente à situação, o que só foi possível a partir da aplicação da abordagem qualitativa.

Assim, destacamos a importância da abordagem qualitativa para revelar a autopercepção dos enfermeiros gestores como peças fundamentais para esta restruturação hospitalar, a partir das experiências vivenciadas como alicerce para compreensão das ações desenvolvidas e do lugar de destaque desses profissionais no campo da gestão frente aos desafios da pandemia da COVID-19.

Com a pandemia da COVID-19 já em curso, a falta de tempo para pensar o plano de contingência foi um dos maiores desafios, sendo fundamental a capacidade de tomada de decisão e rápida reação às mudanças, o que exigiu inteligência emocional, resiliência, senso de coletividade e de compromisso para com a equipe gerida e a população.

As mudanças no perfil assistencial do hospital, que implicaram em específica perícia técnica para atuação, como na terapia intensiva, exigiram dos enfermeiros gestores conhecimento da equipe gerida para o melhor dimensionamento de pessoal e atenção aos aspectos psicoemocionais, a partir da liderança transformacional, para motivar, reduzir o turnover e garantir segurança por meio da gestão do conhecimento e da educação.

Dentre os processos desenvolvidos, foram positivos o TRR e o fluxo de comunicação entre os profissionais, pacientes e famílias. Em ambos os exemplos, o trabalho em equipe fez a diferença para resolutividade e qualidade. Em situações de crise, os resultados apontaram para a importância do trabalho interprofissional, da educação permanente, da gestão do conhecimento, da liderança transformacional, e da aplicação dos princípios da tríade estrutura-processo-resultado na gestão em enfermagem e saúde.

Este estudo apresentou limitações por ter sido realizado apenas com os enfermeiros gestores, uma vez que entendemos que suas ações impactaram todo o funcionamento do hospital, sendo limitante a ausência da visão daqueles que foram impactados, e que também operacionalizaram processos. Apesar de papel estratégico, a escolha de um único cenário conferiu outra limitação, pois não permite a generalização dos resultados, além da necessária crítica de que toda compreensão é inacabada.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    26 Mar 2024
  • Publicado
    28 Mar 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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