Qualidade e acesso à água para consumo humano: um olhar sobre o estado do Amazonas, Brasil

Mayline Menezes da Mata André Bento Chaves Santana Flavio Pinheiro Martins Maria Angélica Tavares de Medeiros Sobre os autores

Resumo

Analisaram-se indicadores de vigilância da qualidade da água para consumo humano no Amazonas, de 2016 a 2020, utilizando 185.528 amostras provenientes de 11 microrregiões. Das amostras analisadas, 93,20% são da área urbana, 66,65% provinham do sistema público (SAA), 31,02% da Solução Alternativa Coletiva (SAC) e 2,33% da Solução de Alternativa Individual (SAI). Observou-se aumento do número de registros pelo SAA, com tendência de queda e oscilações de registros para a SAC e a SAI. Os indicadores de qualidade dos parâmetros químicos e físicos da área urbana foram superiores aos das áreas rurais e de comunidades tradicionais. A maior parte das amostras apresentou valores de pH abaixo do recomendado. Na quantificação dos parâmetros microbiológicos, identificou-se maior presença de coliformes totais e E.coli na área rural e em comunidades tradicionais. Em conclusão, verificaram-se inadequações nos parâmetros químicos, físicos e microbiológicos, assim como problemas relativos ao abastecimento, armazenamento e à vigilância da água distribuída para consumo humano. Tais achados indicam a necessidade de construir uma agenda, pela gestão pública, para o enfrentamento da insegurança hídrica e seus prováveis efeitos sobre a insegurança alimentar existente na região.

Palavras-chave:
Água potável; Insegurança hídrica; Abastecimento de água; Sistemas de informação em saúde; Vigilância sanitária ambiental

Introdução

A água potável é um direito humano fundamental e compõe o sexto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030, proposta pelas Nações Unidas em 2015, da qual o Brasil é signatário, consistindo na garantia universal da gestão sustentável da água e do esgotamento sanitário11 World Health Organization (WHO). Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. New York: WHO; 2015.. Nesse contexto geral, insere-se o Amazonas, que, apesar de ser um dos estados brasileiros com maior abundância em recursos hídricos, não dispõe de serviço público suficiente que permita a igualdade de acesso a água para a população22 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Rede PENSSAN; 2022., comprometendo os parâmetros de qualidade (químicos, físicos e microbiológicos), segundo os critérios preconizados pelos órgãos regulamentadores33 Fortes ACC, Barrocas PRG, Kligerman DC. A vigilância da qualidade da água e o papel da informação na garantia do acesso. Saude Debate 2020; 43(Esp. 3):20-34.,44 Santana ABC, Lopes AF, Mendes AP, Yamaguchi KKL. Análise de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) no estado do Amazonas, 2016-2020. Vigil Sanit Debate 2021; 9(4):25-34..

Desde 1997, tal direito está resguardado pela Política de Recursos Hídricos (PNRH) [Lei Federal nº 9.433/1997], a partir da qual se estabeleceram ações para mitigar os problemas relacionados ao acesso à água potável, em quantidade suficiente e em qualidade compatível com o padrão de potabilidade previsto (Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, e Portaria GM/MS nº 888, de 4 de maio de 2021)55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE cidades [Internet]. 2022. [acessado 2022 jun 11]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/panorama
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/pa...
. Destaca-se o Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Vigiagua), cujo principal instrumento é o Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), que possibilita aos gestores locais o acompanhamento dos dados sobre a qualidade da água para consumo humano e o gerenciamento dos riscos à saúde55 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE cidades [Internet]. 2022. [acessado 2022 jun 11]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/panorama
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/am/pa...
,66 Oliveira Júnior A, Magalhães TB, Mata RND, Santos FSGD, Oliveira DC, Carvalho JLB, Araújo WN. Sistema de informac¸a~o de vigila^ncia da qualidade da a´gua para consumo humano (Sisagua): caracteri´sticas, evoluc¸a~o e aplicabilidade. Epidemiol Serv Saude. 2019; 28(1) :e2018117..

Além do Sisagua, as informações sobre o abastecimento de água estão disponíveis via Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) ou por inquéritos populacionais, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e, recentemente, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil22 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Rede PENSSAN; 2022., no qual identificou-se, em 2022, 12% de restrição de acesso à água domiciliar (insegurança hídrica - IH). Registre-se que 65% desses domicílios também conviviam com o flagelo da insegurança alimentar moderada e grave (restrição quantitativa de alimentos), com maior impacto na região Norte (48,3%)22 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional - PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Rede PENSSAN; 2022..

Segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN - nº 11.346, de 15 de setembro de 2006), o acesso a água e as medidas para minimizar o risco de escassez de água potável são premissas para a promoção da segurança alimentar e nutricional (SAN) e para a garantia do direito humano à alimentação adequada (DHAA)77 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigilância e controle da qualidade da água para consumo humano. Brasília: Ministério da Saúde; 2006.. Com base nas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), a vigilância da água baseia-se na construção de um sistema de informações que viabilizem o acompanhamento dos indicadores e facultem a participação social na garantia da qualidade da água, sendo este um dos grandes desafios do monitoramento33 Fortes ACC, Barrocas PRG, Kligerman DC. A vigilância da qualidade da água e o papel da informação na garantia do acesso. Saude Debate 2020; 43(Esp. 3):20-34..

A inter-relação entre IH e IA abriga potenciais ameaças ao acesso seguro aos alimentos, ampliando as chances de ocorrência de doenças transmitidas por alimentos (DTA)88 Miller JD, Workman CL, Panchang SV, Sneegas G, Adams EA, Young SL, Thompson AL. Water security and nutrition: current knowledge and research opportunities. Adv Nutr 2021; 2525-2539. e de danos à saúde física e mental e ao estado nutricional99 Miller JD, Workman CL, Panchang SV, Sneegas G, Adams EA, Young SL, Thompson AL. Water security and nutrition: current knowledge and research opportunities. Adv Nutr 2021; 12(6):2525-2539., comprometendo a prevenção e o controle da COVID-1910, 11. Dessa forma, a segurança hídrica, conceito incipiente no campo da alimentação e nutrição, desempenha papel importante para a garantia do DHAA1212 Young SL, Frongillo EA, Jamaluddine Z, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R, Ringler C, Rosinger AY. Perspective: the importance of water security for ensuring food security, good nutrition, and well-being. Adv Nutr 2021; 30;12(4):1058-1073.. Assim, a vigilância da qualidade da água para consumo humano no Brasil é estratégica para a gestão das condições de acesso a este recurso natural, com o monitoramento de agentes nocivos à potabilidade33 Fortes ACC, Barrocas PRG, Kligerman DC. A vigilância da qualidade da água e o papel da informação na garantia do acesso. Saude Debate 2020; 43(Esp. 3):20-34.,1313 Freitas MB, Freitas CM. A vigilância da qualidade da água para consumo humano: desafios e perspectivas para o Sistema Único de Saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(4):993-1004..

O objetivo deste estudo foi analisar indicadores de vigilância da qualidade da água para consumo humano no estado do Amazonas de 2016 a 2020, buscando identificar conexões com a insegurança hídrica dessa população.

O caráter inédito desta pesquisa reside no fato de ser a primeira a tematizar a segurança hídrica populacional quanto aos aspectos microbiológicos, de abastecimento, distribuição e vigilância, valendo-se de informações disponíveis em bancos de dados públicos nacionais. Parte-se da premissa de que a disponibilidade da água, em quantidade e qualidade, constitui importante fator de proteção contra a insegurança alimentar, especialmente nas populações vulnerabilizadas do Amazonas, já submetidas a tal situação. Esta investigação, portanto, possibilita o preenchimento de uma lacuna do conhecimento ao revelar o paradoxo da inexistência de água potável suficiente para consumo humano na região de maior abundância hídrica do país.

Métodos

Desenho do estudo

Estudo transversal, exploratório-descritivo e analítico, com dados secundários de amostras de água distribuída para o consumo humano no estado do Amazonas, compreendendo o período de 2016 a 2020.

Área do estudo

O território do Amazonas tem 1.559.167,878 km², com população estimada, em 2021, de 4.269.995 habitantes1414 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades e estados [Internet]. 2021. [acessado 2021 ago 3]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/am.html
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estado...
, distribuída entre os 62 municípios que o integram.

Base de dados

Foram utilizados bancos de dados públicos de livre acesso do Sisagua, disponibilizados pelo Ministério da Saúde. O conjunto de dados e o dicionário de variáveis do Sisagua foram obtidos por meio de consulta e busca no Portal Brasileiro de Dados Abertos (disponível em https://dados.gov.br/dataset?tags=SISAGUA - acessos realizados em 13/12/2021 e 15/12/2021). Foram incluídos dados de 185.528 amostras em 2021, época da coleta de dados (Figura 1).

Figura 1
Microrregiões do estado do Amazonas com registros de informações no Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano - Sisagua no período de 2016 a 2020, Amazonas, Brasil, 2023.

Análises estatísticas

Foram feitas análises descritivas para as variáveis, mediante cálculos de frequências absolutas (N) e relativas (%), categorizadas, respectivamente, em: forma de abastecimento (Sistema de Abastecimento de Água - SAA; Solução Alternativa Coletiva - SAC; Solução Alternativa Individual - SAI); área (urbana, rural, comunidades tradicionais e informação não identificada); local (instituições públicas/privadas, domicílios, estabelecimentos comerciais, outros e informação não identificada); procedência da coleta (estação de tratamento da água, intradomiciliar/predial, ponto de captação, sistema de distribuição e solução alternativa); motivo da coleta (rotina, denúncia, desastre e surto); e instituição responsável pela gestão onde foi coletada a amostra (públicas, privadas, organização não governamental - ONG e informação não identificada).

Os parâmetros químicos, físicos e microbiológicos selecionados estão consonantes com os estabelecidos na Portaria de Consolidação nº 5/2017 (Brasil, 2017), sendo aplicadas as classificações a seguir.

  1. a) Cloro residual livre (mg/L) - adequado, considerando a faixa ideal recomendada com valores entre 0,2 mg/L e 5 mg/L; ou inadequado, com valores inferiores a 0,2 mg/mg ou acima de 5 mg/L.

  2. b) Fluoreto (mg/L) - adequado, considerando a faixa ideal recomendada, correspondendo a valores entre 0,6 mg/L e 1,5 mg/L; ou inadequado, com valores inferiores a 0,6 mg/L ou acima de 1,5 mg/L.

  3. c) Cor aparente (uH) - adequado, com o valor máximo permitido de 15 uH; ou inadequado, quando acima do valor máximo permitido.

  4. d) Turbidez (uT) - adequado, com valor máximo permitido de 5 uT; ou inadequado quando acima do valor máximo permitido.

  5. e) pH - adequado, considerando a faixa ideal recomendada, para valores entre 6,0 e 9,5; ou inadequado, com valores inferiores a 6,0 ou acima de 9,5.

  6. f) Coliformes totais - a classificação considera a ausência ou presença de microrganismos.

  7. g) Escherichia coli - a classificação considera a ausência ou presença de microrganismos.

Os dados dos parâmetros químicos e físicos não apresentam distribuição normal, conforme verificado pela aplicação de testes de Shapiro-Wilk. Portanto, para mensurar a diferença entre as medianas dos parâmetros foram aplicados testes de Mann-Whitney, de modo a avaliar possíveis diferenças entre as amostras analisadas, de acordo com a área.

O modelo de regressão linear generalizada de Prais-Winsten foi utilizado para avaliação das tendências de variação temporal para os percentuais das formas de abastecimento e área. No delineamento dos modelos de regressão, as classificações das formas de abastecimento e área foram definidas como variáveis dependentes, enquanto o ano de registro foi definido como a variável independente. Calculou-se a variação percentual anual para a estimativa quantitativa da tendência e determinação do intervalo de confiança de 95% (IC95%), considerando os coeficientes b mínimo e b máximo, utilizando-se, respectivamente, as equações:

VPA=[1+eb]*100%

IC95%=[1+10bmínimo]*100%[1+10bmáximo]*100%

Todas as análises estatísticas foram efetuadas no programa Stata, versão 15.1 (StataCorp - College Station, Texas, USA), adotando-se o nível de significância de 5% (p ≤ 0,05).

Aspectos éticos

Por se tratar de pesquisa com bancos de dados secundários de domínio público, sem a possibilidade de identificação individual, este estudo é dispensado de análise pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP), em conformidade com a Resolução n° 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

Resultados

Características das amostras de água registradas no Sisagua

Foram analisadas 185.528 amostras de água para consumo humano, oriundas das 11 microrregiões do estado do Amazonas, a partir dos registros do Sisagua, no período de 2016 a 2020. Não foram encontrados registros de informações para as localidades de Japurá (2) e Boca do Acre (11) (Tabela 1). Verificou-se que a maioria das amostras era proveniente da área urbana (93,20%), comparativamente às amostras das áreas rural (2,74%) e de comunidades tradicionais (1,25%). Quanto à forma de abastecimento, o SAA - sistema público - respondeu por 66,65% das amostras; a SAC por 31,02% e a SAI por 2,33%.

Tabela 1
Análise de tendência dos percentuais de coleta de amostras, por tipo abastecimento e área de distribuição da água para consumo humano cadastrados no Sisagua de 2016 a 2020. Amazonas, Brasil, 2023.

Ratificado pela análise de tendência, observou-se aumento do número de registros da SAA, com variação percentual anual (VPA) de 2,57%, enquanto para o registro de amostras obtidas da SAC houve tendência de queda (VPA = -2,58%) em igual período. Verificaram-se ainda oscilações para a SAI, áreas urbana e rural, em relação ao número de registros, e queda do número de registros de coleta de amostra em comunidades tradicionais (Tabela 1).

Qualidade das amostras de água registradas do Sisagua, segundo parâmetros químicos, físicos e microbiológicos

Na Tabela 2 encontram-se as classificações dos parâmetros químicos e físicos das amostras de água coletadas no Amazonas, estratificadas de acordo com a área e a forma de abastecimento. Identificou-se o elevado percentual de amostras classificadas como inadequadas para cloro residual livre, sobretudo na zona rural (83,22%) e em comunidades tradicionais (74,11%). As amostras coletadas via SAA e SAC apresentaram percentuais de adequação da ordem de 52,16% e 52,26%, respectivamente. Constatou-se que 72,41% das amostras oriundas da SAA estavam adequadas para concentração de fluoreto, diferentemente daquelas obtidas da SAC, 99,83% das quais classificadas como inadequadas para o mesmo parâmetro. Para a avaliação segundo a localidade, 65,04% das amostras da área urbana apresentavam teores de fluoreto adequados. Não foram constatados registros para fluoreto em amostras da zona rural e em comunidades tradicionais (Tabela 2).

Tabela 2
Classificação dos parâmetros químicos e físico-químicos de qualidade da água, de acordo com a forma de abastecimento e a área, de 2016 a 2020. Amazonas, Brasil, 2023.

Em relação aos parâmetros físicos de potabilidade da água, as amostras coletadas de SAI exibiram maiores percentuais de adequação para cor aparente (98,59%), em comparação com as provenientes de SAA (96,73%) e SAC (94,62%). Na análise por localidade, 97,10% das amostras coletadas na zona urbana apresentaram classificação adequada para cor aparente, na zona rural e em comunidades tradicionais os percentuais de adequação alcançaram 82,01% e 89,13%, respectivamente (Tabela 2).

Para as análises de turbidez, constatou-se que 95,47% das amostras obtidas do SAA estavam adequadas. Na avaliação do mesmo parâmetro para amostras coletadas em SAC e SAI, os percentuais de adequação foram de 95,18% e 94,62%, respectivamente. A maioria das amostras oriundas da área urbana (96,34%) apresentou turbidez adequada em comparação com as demais localidades (Tabela 2). A maior parte das amostras obtidas da SAA (62,15%) e da zona urbana (59,92%) não condizia com a faixa de pH recomendada pela legislação brasileira (Tabela 2).

Na quantificação dos parâmetros microbiológicos das amostras de água coletadas no Amazonas, apresentada na Tabela 3, observou-se maior presença de coliformes totais em amostras oriundas da SAC (31,59%) e da SAI (32,74%), em comparação com as amostras do SAA (16,77%). Quando analisadas as amostras segundo a área de distribuição, a presença de coliformes totais foi maior na área rural (20,86%) e em comunidades tradicionais (55,97%). Para a E.coli, a presença foi maior em amostras provenientes da SAI (11,79%) e de comunidades tradicionais (21,52%).

Tabela 3
Classificação dos parâmetros microbiológicos de qualidade da água no Amazonas, de acordo com a forma de abastecimento e a área, de 2016 a 2020. Amazonas, Brasil, 2023.

Discussão

Aspectos da qualidade da água distribuída para consumo humano no estado do Amazonas

Das 185.528 amostras de água para consumo humano analisadas entre 2016 e 2020, em duas das 13 microrregiões do estado do Amazonas houve sub-registros de informações junto ao Sisagua. Tais localidades compreendem os municípios de Japurá e Maraã, com, aproximadamente, 20.979 habitantes e densidade demográfica correspondente a 0,3 hab/km², e os municípios de Boca do Acre e Pauini, com população de 53.734 habitantes e densidade demográfica de 0,8 hab/km²1515 Brasil Cidades. Amazonas [Internet]. 2023. [acessado 2023 out 13]. Disponível em: https://www.cidade-brasil.com.br/estado-amazonas.html
https://www.cidade-brasil.com.br/estado-...
. Este achado preocupa, já que o registro de informações é de especial relevância para a orientação das ações e a tomada de decisão inerentes à gestão pública, favorecendo o acesso seguro a água, em termos físico-químicos e econômicos, para o uso individual e domiciliar1616 Usman Y, Reuben A, Olaide AS. Analysis of spatial inequality in access to public water supply in Minna. Int J Innov Res Adv Studies 2022; 9(8):72-82..

Na região Norte, apenas 57,5% da população é coberta pelo serviço público de abastecimento de água, em contraste com as demais regiões do país, em que, aproximadamente, 90% da população é atendida1717 Araujo LF, Camargo FP, Torres Netto A, Vernin NS, Andrade RC. Ana´lise da cobertura de abastecimento e da qualidade da a´gua distribui´da em diferentes regio~es do Brasil no ano de 2019. Cien Saude Colet 2022; 27(7):2935-2947.. Refletidas nos resultados do presente estudo, falhas no serviço de abastecimento de água e saneamento básico no estado do Amazonas revelam disparidades históricas entre as regiões geográficas brasileiras, que confluem para o distanciamento da garantia da universalização dos serviços de saneamento.

A maioria das amostras analisadas proveio da zona urbana e a forma de abastecimento com maior número de registros foi do sistema público - Sistema de Abastecimento de Água, seguida da Solução Alternativa Coletiva. Ressalta-se que o registro de ambas as formas é de responsabilidade dos prestadores de serviço de abastecimento, cujos dados são repassados ao setor saúde ou inseridos diretamente no Sisagua. Já os dados provenientes da Solução Alternativa Individual são de responsabilidade dos profissionais do Vigiagua no município, sugerindo a incipiência das ações do programa no estado do Amazonas.

Ao identificarem a baixa proporção de registros de municípios do interior do Amazonas no Sisagua, comparativamente à microrregião geográfica de Manaus, autores denotaram entraves técnico-operacionais, problemas relativos à gestão, ao baixo número de coletas de amostras, à insuficiência nas análises dos dados e à aplicabilidade de instrumentos para georreferenciamento das informações44 Santana ABC, Lopes AF, Mendes AP, Yamaguchi KKL. Análise de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua) no estado do Amazonas, 2016-2020. Vigil Sanit Debate 2021; 9(4):25-34.. Frise-se que, deficiências nos registros de informações interferem diretamente na construção de indicadores para o acompanhamento dos ODS e das metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB)1818 Brasil. Ministério das Cidades (MC). Plano Nacional de Saneamento Ba´sico (PLANSAB). Brasi´lia: MC; 2013..

Na região do Médio Solimões, no estado do Amazonas, a implantação de sistemas de abastecimento de água para atender comunidades ribeirinhas contribui para diminuir a veiculação de doenças de origem hídrica, além de promover melhorias para a realização de tarefas domésticas e a higiene pessoal1919 Pacífico ACN, Nascimento ACS, Corrêa DSS, Penteado IM, Pedro JPB, Gomes MCRL, Gomes UAF. Tecnologia para acesso à água na várzea amazônica: impactos positivos na vida de comunidades ribeirinhas do Médio Solimões, Amazonas, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(3):e00084520..

No interior do estado do Amazonas, localidades como o município de Benjamin Constant dependem da Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama) para captação, tratamento e distribuição de água para consumo humano. Todavia, a rede de dutos antigos, o avanço do desenvolvimento urbano desordenado e o crescimento de comunidades são alguns dos desafios enfrentados para o abastecimento adequado de água2020 Hermenegildo ER, Souza JAS, Parente RS, Silva IRS, Brito JA, Ribeiro PFS. Análise do processo de captação, tratamento e distribuição de água na companhia de saneamento da cidade de Benjamin Constant - AM. Itegam-Jetia 2019; 5(19):177-183.. Em estudo de base populacional, realizado no interior do Amazonas, no qual se analisou a situação de insegurança alimentar (IA), também foram identificadas adversidades relativas ao acesso a água, alertando para um cenário de insegurança hídrica, com possíveis influências sobre o desencadeamento dos níveis mais severos de IA na população estudada2121 Da Mata MM, Neves JA, Medeiros MAT. Hunger and its associated factors in the western Brazilian Amazon: a population-based study. J Health Popul Nutr 2022; 41(1):36..

A cor aparente e a turbidez são parâmetros que mensuram a reflexão de partículas de coloides dispersas e o grau de interferência na passagem da luz, respectivamente. Estes são indicativos da presença de partículas em suspensão, por exemplo pelo lançamento de esgoto doméstico ou industrial, sendo reduzida pela sedimentação. A baixa turbidez facilita o processo de desinfecção, ao diminuir o efeito escudo que favorece os microrganismos patogênicos. O aumento da turbidez pode ser causado pela má qualidade da água desde a fonte, passando pelo tratamento deficiente e pela formação de sedimentos e de biopelículas nos sistemas de distribuição2222 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 15 set.,2323 Organización Mundial de la Salud (OMS). Guías para la calidad del agua de consumo humano. Guía. Genebra: OMS; 2011..

Com base na legislação oficial2424 Brasil. Ministe´rio da Sau´de (MS). Portaria de Consolidac¸a~o nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidac¸a~o das normas sobre as ac¸o~es e os servic¸os de sau´de do Sistema U´nico de Sau´de. Dia´rio Oficial Unia~o 2017; 29 set., é possível constatar o não cumprimento das normativas que regulamentam os parâmetros de qualidade da água. As alterações de pH podem ser de origem natural ou decorrentes da ação humana, envolvendo despejo de esgoto doméstico e industrial. Entretanto, a acidificação da água pode ocorrer nos cursos d’água na planície amazônica, com valores entre 4 a 62222 Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 15 set.. Os achados desta pesquisa corroboram o encontrado em residências localizadas em favelas urbanas brasileiras, que em grande parte excedem os limites dos padrões de qualidade de potabilidade da água, aumentando os riscos à saúde das populações, constituindo um alerta para as políticas públicas1111 Hannah D, Lynch I, Mao F, Miller J, Young SL, Krause S. Water and sanitation for all in a pandemic. Nature Sustain 2020; 3(10):773-775..

A garantia de inocuidade microbiana da água de abastecimento para o consumo humano depende da aplicação de barreiras, com a implantação e a operação correta de uma série de etapas para o tratamento e a gestão do sistema de distribuição. A desinfecção é uma barreira crucial contra inúmeros agentes patogênicos, especialmente as bactérias, para o quê são utilizados agentes químicos saneantes à base de cloro, geradores de subprodutos tóxicos, como trihalometanos e os ácidos haloacéticos2323 Organización Mundial de la Salud (OMS). Guías para la calidad del agua de consumo humano. Guía. Genebra: OMS; 2011.. As normas sobre controle de qualidade da água de consumo humano podem diferir em natureza e forma entre países e regiões, inexistindo, portanto, um único método de análise e avaliação a ser adotado universalmente2323 Organización Mundial de la Salud (OMS). Guías para la calidad del agua de consumo humano. Guía. Genebra: OMS; 2011..

No Brasil, a vigilância da qualidade da água para o consumo humano só se consolidou a partir da criação do Sistema Nacional de Vigilância Ambiental em Saúde (Sinvas), com base no Decreto nº 3.450, de 9 de maio de 20002525 Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Vigilância ambiental em saúde [Internet]. 2002. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_sinvas.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, atrelada à operacionalização do Sisagua. A alimentação dos dados sobre parâmetros químicos, físicos e microbiológicos, teoricamente, subsidia a gestão pública para agir sobre os sistemas de abastecimento coletivos e alternativos, demandando intervenções quando detectadas não conformidades hídricas1313 Freitas MB, Freitas CM. A vigilância da qualidade da água para consumo humano: desafios e perspectivas para o Sistema Único de Saúde. Cien Saude Colet 2005; 10(4):993-1004..

O paradoxo da (in)segurança hídrica no estado do Amazonas

A Amazônia é detentora de uma das maiores bacias hidrográficas de água doce do Brasil, o que paradoxalmente, não implica acesso seguro para a população2626 Jesus FO, Bentes VS, Segura-Mun~oz SI, Meschede MSC. Efica´cia das medidas domiciliares de desinfecc¸a~o da a´gua para consumo humano: enfoque para o contexto de Santare´m, Para´, Brasil. Cad Saude Publica 2023; 39(2):e00205322.. Isso porque o estado do Amazonas, assim como os demais que integram a região, padece de um conjunto de problemas relacionados à disponibilidade de água de qualidade para consumo humano, decorrentes, por exemplo, de desmatamentos, queimadas, atividades agrícolas desordenadas e garimpo, capazes de produzir rejeitos e resíduos com potencial para tornar essas águas insalubres2727 Cardozo M, Diniz MB, Szlafsztein CF. Amazon Basin water resources ecosystem services on the approach of Global Public Goods. AYT-WAL 2022; 21:103-119.. Nesse cenário são especialmente afetadas as populações localizadas em territórios líquidos, habitados por comunidades tradicionais2828 Martins FM, Schweickardt KH, Schweickardt JC, Ferla AA, Moreira MA, Medeiros JS. Produc¸a~o de existe^ncias em ato na Amazo^nia: "territo´rio li´quido" que se mostra a` pesquisa como travessia de fronteiras. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210361.. Tal constatação representa um grande desafio para o enfrentamento desse quadro.

A insegurança hídrica ocorre nos casos em que quaisquer pessoas ou grupos populacionais apresentam insuficiência, de acesso físico, social ou econômico, a quantidades seguras e suficientes de água para o consumo ou para a utilização em culturas, seja por barreiras ao acesso a água ou pela real indisponibilidade deste recurso natural2929 Koren O, Benjamin E, Bagozzi Thomas SB. Food and water insecurity as causes of social unrest: Evidence from geolocated Twitter data. J Peace Res 2021; 58(1):67-82.. Coexiste cronicamente com a insegurança alimentar, sendo resultado do estresse ambiental, associado às mudanças climáticas, à ação humana regida pela lógica de interesses privados e às dinâmicas populacionais2929 Koren O, Benjamin E, Bagozzi Thomas SB. Food and water insecurity as causes of social unrest: Evidence from geolocated Twitter data. J Peace Res 2021; 58(1):67-82.. Modelos de estudos transversais indicam que, à medida que a disponibilidade e a qualidade da água para consumo doméstico diminuem, a insegurança alimentar aumenta3030 Brewis A, Choudhary N, Wutich A. Household water insecurity may influence common mental disorders directly and indirectly through multiple pathways: evidence from Haiti. Soc Sci Med 2019; 238:112520.. Além disso, o nexo sindêmico entre a insegurança hídrica e a insegurança alimentar pode ocasionar desfechos nocivos à saúde humana, tais como desnutrição, estresse psicoemocional e aumento do risco de doenças infecciosas e crônicas3131 Workman CL, Brewis A, Wutich A, Young S, Stoler J, Kearns J. Understanding biopsychosocial health outcomes of syndemic water and food insecurity: applications for global health. Am J Trop Med Hyg 2021; 104(1):8.,3232 Boateng GO, Workman CL, Miller JD, Onono M, Neilands TB, Young SL. The syndemic effects of food insecurity, water insecurity, and HIV on depressive symptomatology among Kenyan women. Soc Sci Med 2022; 295:113043..

Dada a existência de milhões de pessoas suscetíveis à insegurança hídrica e à insegurança alimentar, são consideráveis os efeitos deletérios desses fenômenos evitáveis sobre a saúde pública global. Em países de baixa e média renda do Sul global, são recorrentes as repercussões sindêmicas entre acesso a água e insegurança alimentar, representando uma carga complexa para a infraestrutura de saúde3333 Brewis A, Workman C, Wutich A, Jepson W, Young S; Household Water Insecurity Experiences - Research Coordination Network (HWISE-RCN), 2020. Household water insecurity is strongly associated with food insecurity: evidence from 27 sites in low- and middle-income countries. Am J Hum Biol 2020; 32(1):e23309..

Em estudo realizado no Quênia, descobriu-se que a insegurança hídrica e a insegurança alimentar, em associação com doenças, como o HIV, pode resultar em transtornos depressivos99 Miller JD, Workman CL, Panchang SV, Sneegas G, Adams EA, Young SL, Thompson AL. Water security and nutrition: current knowledge and research opportunities. Adv Nutr 2021; 12(6):2525-2539.,3232 Boateng GO, Workman CL, Miller JD, Onono M, Neilands TB, Young SL. The syndemic effects of food insecurity, water insecurity, and HIV on depressive symptomatology among Kenyan women. Soc Sci Med 2022; 295:113043.. Abordagens sindêmicas sugerem que as questões de alimentos e de água devem ser tratadas de maneira combinada. Nesse sentido, Koyratty et al.3434 Koyratty N, Jones AD, Schuster R, Kordas K, Li C-S, Mbuya MN, Boateng GO, Ntozini R, Chasekwa B, Humphrey JH, Smith LE, On Behalf Of The Shine Trial Team. Food insecurity and water insecurity in rural Zimbabwe: development of multidimensional household measures. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(11):6020. indicam que ambas as dimensões têm indicadores muito discretos e podem ser avaliadas separadamente. Por outro lado, a insegurança hídrica parece ser um impulsionador da insegurança alimentar, o que exige abordagem a partir de intervenções combinadas3333 Brewis A, Workman C, Wutich A, Jepson W, Young S; Household Water Insecurity Experiences - Research Coordination Network (HWISE-RCN), 2020. Household water insecurity is strongly associated with food insecurity: evidence from 27 sites in low- and middle-income countries. Am J Hum Biol 2020; 32(1):e23309..

Nexos entre inseguranças hídrica, alimentar e Agenda 2030

Argumentamos aqui que vínculos muito semelhantes entre insegurança alimentar e hídrica acontecem na região amazônica, e que dimensões transversais também estão presentes e podem ser retratadas por quadros interdisciplinares, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030. Brewis et al.3333 Brewis A, Workman C, Wutich A, Jepson W, Young S; Household Water Insecurity Experiences - Research Coordination Network (HWISE-RCN), 2020. Household water insecurity is strongly associated with food insecurity: evidence from 27 sites in low- and middle-income countries. Am J Hum Biol 2020; 32(1):e23309. propõem um modelo com vínculos sindêmicos contextuais para países de baixa e média renda, apoiado em blocos fundamentais para a segurança hídrica, a saber: aspectos socioeconômicos e ambientais e aspectos e apelos à ação, considerando as dimensões interdisciplinares para o desenho de políticas públicas, como governança e gestão integrada dos recursos hídricos.

A complexidade demandada pela perspectiva da insegurança hídrica pode ser decodificada por meio de sistemas de indicadores interdisciplinares, tais como os presentes na Agenda 203011 World Health Organization (WHO). Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. New York: WHO; 2015.. O sistema de indicadores é composto pelos 17 ODS e por 169 alvos específicos. Na Figura 2, sintetizam-se as dimensões da segurança hídrica em suas conexões sinérgicas, traçando elos entre as duas temáticas e as 169 metas da Agenda 2030. Ainda são sugeridas ligações sistêmicas entre a insegurança hídrica e a insegurança alimentar, bem como possíveis abordagens para a mitigação dessa problemática.

Figura 2
Modelo conceitual do nexo sindêmico entre segurança hídrica e segurança alimentar. Amazonas, Brasil, 2023.

Os aspectos macro da questão, abarcados pela Agenda 2030, condicionam o acesso à água potável (meta 6.1). Tais dimensões podem ser categorizadas em aspectos socioeconômicos e ambientais. Do ponto de vista socioeconômico, elencamos: I) eficiência e equidade no uso dos recursos hídricos entre diferentes setores econômicos (meta 6.4), II) inclusão de incentivos fiscais na agenda governamental (meta 6.a) e III) abordagem contextualizada e integrada para diferentes contextos populacionais (ex., rural e urbano) (meta 11.1). No âmbito ambiental, destacamos a relação da disponibilidade e do acesso a água com os impactos causados pelas mudanças climáticas (meta 13.1) e por eventos extremos (meta 11.5), uso sustentável dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos (metas 6.4 e 15.1).

As macro dimensões conectam o acesso à água potável, de forma equânime e universal (meta 6.1), com as principais conexões da agenda alimentar e nutricional: o acesso ao alimento e aos meios de produção de alimentos (meta 2.1) e o combate a todas as formas de má nutrição (meta 2.2). As principais conexões sistêmicas identificadas por este estudo, considerando a lente de análise da Agenda 2030, relacionam-se aos parâmetros microbiológicos das amostras (metas 3.3 e 3.9) e seu impacto desproporcional em diferentes contextos populacionais (urbano, rural, comunidades tradicionais) (meta 11.1), bem como à peculiaridade da gestão dos recursos hídricos, em consonância com a preservação de serviços ecossistêmicos (meta 15.1) proporcionados, no caso, pela floresta tropical.

O alinhamento dos resultados também indica caminhos para a redução dos efeitos da pandemia de COVID-19, pelos quais os alvos dos ODS podem atuar como modelo orientativo para a tomada de decisão em políticas públicas. As principais relações identificadas no escopo da Agenda 2030 são descritas pelos seguintes alvos do ODS 6, que se propõem a assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos.

Meta 6.1: até 2030, alcançar o acesso universal e equitativo à água potável acessível para todos;

Meta 6.5: até 2030, implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive por meio da cooperação transfronteiriça conforme apropriado;

Meta 6.b: apoiar e fortalecer a participação de comunidades na melhoria da gestão da água e do saneamento.

Alcance e limitações do estudo

Em termos de alcance, este é o primeiro estudo a analisar as implicações da insegurança hídrica no que diz respeito à forma de abastecimento, à localidade de distribuição e à qualidade da água no estado do Amazonas, valendo-se de informações disponíveis em bancos públicos nacionais, e este é o ponto forte da investigação. Embora tenha sido evidenciado o número limitado de informações registradas no Sisagua no período pesquisado, foi possível apontar fragilidades no abastecimento e na qualidade da água disponibilizada para o consumo humano no plano estadual.

Por outro lado, o estudo trouxe à tona limites relativos ao registro de informações no banco de dados do Sisagua que podem se relacionar à amostragem adotada. Faria et al.3535 Faria CP, Almendra R, Dias GS, Santana P, Sousa MC, Freitas MB. Evaluation of the drinking water quality surveillance system in the metropolitan region of Rio de Janeiro. J Water Health 2021; 19(2):306-321. verificaram inconsistências quanto ao número mínimo de amostras coletas e à representatividade de pontos de amostragem no sistema de distribuição, ao analisarem dados do Sisagua na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.

Pesquisas baseadas em análise de dados secundários estão sujeitas a vieses de seleção relativos à qualidade, ao número de registros de informações e à capacidade de extração de informações. Entretanto, essa limitação não fragiliza as análises empregadas para a avaliação da potabilidade das amostras de água inseridas no Sisagua3636 Santana ABC, Lopes AF, Mendes AP, Yamaguchi KKL. Um olhar para a vigilância da qualidade da água e para as pesquisas realizadas no interior do Amazonas: resposta para a carta "Interpretação da distribuição de valores de concentração de fluoreto requer cuidado". Vigil Sanit Debate 2022; 10(3):135-137.. Além disso, o estudo dos indicadores regionais favoreceu o aprofundamento da discussão, o que poderá auxiliar na tomada de decisão por parte dos serviços públicos de vigilância em saúde, assim como para o desenvolvimento de investigações futuras.

Considerações finais

Em um plano mais amplo, verificou-se que a água distribuída para consumo humano no Amazonas apresenta sérios problemas de ordem química, física e microbiológica que comprometem sua qualidade e potabilidade, principalmente em localidades distantes das áreas urbanas ou sujeitas a formas de abastecimento alternativo ao ofertado pelo sistema público. A isso se somam óbices no abastecimento, armazenamento e na vigilância, resultando em um cenário de insegurança hídrica, que pode repercutir negativamente sobre o quadro grave de insegurança alimentar já vivenciado por essa população.

Evidenciam-se disparidades quanto à cobertura territorial e ao número de registros de informações para a vigilância da qualidade da água no estado do Amazonas. Além disso, pela análise de dados do Sisagua, são verificadas diferenças notórias da qualidade hídrica, de acordo com o tipo de serviço de abastecimento e a localidade da distribuição.

Espera-se que o conjunto de resultados apresentados e discutidos neste trabalho embase ações que fomentem a vigilância e o controle da água para consumo humano, sobretudo para o aprimoramento da capacidade de registros e a maior cobertura territorial no Amazonas. Cabe declarar o apelo para que sejam empreendidos programas e ampliadas as ações para o abastecimento de água por sistemas públicos, a serem desenvolvidas pelos municípios amazonenses com vistas a reduzir a insegurança hídrica regional, qualificando o monitoramento da qualidade hídrica.

Adicionalmente, sugere-se o desenvolvimento de novas pesquisas, utilizando-se outros métodos de investigação, a exemplo da escala internacional Household Water InSecurity Experiences (HWISE), capazes de identificar e quantificar a insegurança hídrica domiciliar.

Agradecimentos

À agência de fomento Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM, pela bolsa de doutorado concedida.

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  • Financiamento

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) - Edital 012/2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Publicado
    23 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br