Ações de assistência à saúde ofertadas à população em situação de rua: estado da arte

Daniele Carmo Queiroz Renata Meira Veras Ananda Evelin Genonádio da Silva Menezes Sobre os autores

Resumo

A população em situação de rua (PSR) vem aumentando nos últimos anos. Ações governamentais são implementadas para melhorar as condições de vida dessa população, especialmente as voltadas à assistência à saúde. Este estudo tem como questão norteadora: quais são as estratégias de atenção à saúde dos serviços e programas voltados à população em situação de rua no Brasil? O objetivo é analisar quais são as estratégias de atenção à saúde adotadas pelos serviços e programas voltados à população em situação de rua no Brasil. Foi realizada uma revisão sistemática da literatura nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Scientific Eletronic Library Online (SciELO), tendo como resultado 21 artigos. A análise revelou os alcances e desafios das redes de atenção à saúde, indicando o uso de drogas como principal motivo para busca dos serviços, sendo o Consultório na Rua (CnaR) um dispositivo importante, capaz de promover a criação de vínculos entre a PSR e os demais setores de saúde. A importância do trabalho em rede e a complexidade do cuidado com a saúde de populações foram temas recorrentes nas discussões, pois tratam de ações destinadas a pessoas vulnerabilizadas, estigmatizadas, apresentando necessidades e singularidades no modo de viver em sociedade.

Palavras-chave:
População de rua; Saúde; Assistência à saúde

Introdução

A existência de pessoas que fazem das ruas seu espaço de sobrevivência é uma realidade comum no Brasil. Esse fenômeno se justifica a partir da constituição da sociedade brasileira. Esta foi fundada a partir de um processo colonial escravocrata, racista e violento, sem medidas reparatórias após seu fim, deixando grandes fissuras no modo como o país se organiza econômica e culturalmente11 Paixão DS, Rocha RVS, Rodrigues ILS. A psicologia da libertação e o aquilombamento da população em situação de rua em Salvador/BA: reflexões através do Programa Corra pro Abraço. Bol Conjunt (BOCA) 2021; 15(14):9-20.,22 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao COVID-19: abismo social brasileiro, o racismo e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. Rev NAU Soc 2020; 11(20):131-136.. As desigualdades social e econômica são marcantes, com milhares de pessoas vivendo em situação de rua11 Paixão DS, Rocha RVS, Rodrigues ILS. A psicologia da libertação e o aquilombamento da população em situação de rua em Salvador/BA: reflexões através do Programa Corra pro Abraço. Bol Conjunt (BOCA) 2021; 15(14):9-20.,22 Calmon TVL. As condições objetivas para o enfrentamento ao COVID-19: abismo social brasileiro, o racismo e as perspectivas de desenvolvimento social como determinantes. Rev NAU Soc 2020; 11(20):131-136.. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada33 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Estimativa da população em situação de rua no Brasil [Internet]. 2012. [acessado 2023 jun 11]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10074/1/NT_73_Disoc_Estimativa%20da%20populacao%20em%20situacao%20de%20rua%20no%20Brasil.pdf
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
estimou que, em março de 2020, existiam 221.869 pessoas vivendo em situação de rua no Brasil. Significa que um grupo heterogêneo, composto por milhares de pessoas, vive em extrema pobreza. Essas pessoas se sustentam, de forma temporária ou permanente, em logradouros públicos e áreas degradadas ou em unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória, com vínculos familiares interrompidos ou fragilizados44 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez..

A vivência nas ruas, permeada por alegria, inteligência, muito trabalho e senso de comunidade, também revela uma série de privações de direitos. Suas vidas são marcadas pela imprevisibilidade. Na rua, ficam expostas a mudanças climáticas, agressões e insegurança alimentar, entre outras situações. Muitas vezes, o uso de substâncias psicoativas passa a ser uma estratégia para lidar com as adversidades55 Souza TP, Macerata I. A clínica nos consultórios na rua: territórios, coletivos e transversalidades. Ayvu Rev Psicol 2015; 1(2):3-23.,66 Genonádio A, Tedesqui NSB, Aires, S. COVID-19 e a população em situação de rua: práticas e cuidados desenvolvidos em Salvador - BA. In: Lima M, Coutinho D, Bustamante V, Aires S, Patiño R, organizadores. Pensar junto/fazer com. Salvador: Edufba; 2021. p. 425-439..

Esse contexto gera diversos impactos em suas vidas e influencia diretamente seus processos de saúde-doença, inclusive na possibilidade de acesso aos serviços de saúde. Em 2009, foi instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR) - Decreto Presidencial 7.053/200944 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 24 dez.. A PNPR busca garantir que a população em situação de rua tenha acesso amplo, simplificado e seguro às redes de saúde, assistência social e moradia. Entretanto, reconhece-se a complexidade envolvida no acesso e manutenção da PSR nos serviços de saúde, seja pelas especificidades que a vulnerabilização da vida oferece ou pelo estigma social e o racismo estrutural, que impactam na forma como essas pessoas são percebidas e tratadas nos serviços66 Genonádio A, Tedesqui NSB, Aires, S. COVID-19 e a população em situação de rua: práticas e cuidados desenvolvidos em Salvador - BA. In: Lima M, Coutinho D, Bustamante V, Aires S, Patiño R, organizadores. Pensar junto/fazer com. Salvador: Edufba; 2021. p. 425-439..

Considerando a gestão descentralizada do Sistema Único de Saúde (SUS) e a possibilidade de participação do setor privado em muitas ações, diversos programas e serviços complementares, principalmente na atenção primária à saúde, atendem essa população. Portanto, o objetivo é analisar as estratégias de atenção à saúde desenvolvidas nos serviços e programas voltados à população em situação de rua no Brasil. Nesse sentido, este estudo tem como questão norteadora: quais são as estratégias de atenção à saúde dos serviços e programas voltados à população em situação de rua?

Metodologia

A opção metodológica é uma revisão sistemática da literatura - o desdobramento de uma revisão cujo objetivo é caracterizar as ações políticas dirigidas à PSR77 Queiroz D, Veras R, Genonádio A, Costa Filho A. A população em situação de rua: as estratégias de planejamento intersetorial para o cuidado em saúde. NTQR 2022; 13:e707.. Formulou-se uma pergunta e, a partir da utilização de métodos sistemáticos e explícitos, foi possível identificar, selecionar e avaliar criticamente pesquisas relevantes, coletar e analisar dados do material desta revisão.

Os estudos se baseiam na recomendação PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), conforme modelo atualizado de flow diagram88 Galvão TF, Andrade TS, Harrad D. Principais itens para relatar revisões sistemáticas e meta-análises: a recomendação PRISMA. Epidemiol Serv Saude 2015; 24(2):335-342.. A questão foi: quais são as estratégias de atenção à saúde dos serviços e programas voltados à população em situação de rua?

O PRISMA auxilia os pesquisadores a melhorarem o relato das revisões sistemáticas e meta-análises. Consiste em um checklist e um fluxograma de quatro etapas que organiza e orienta o relato das revisões, oferecendo maior transparência ao processo de coleta e análise de dados. Os documentos analisados são de domínio público, oriundos de instituições de ensino superior e centros de pesquisa, com o intuito de demonstrar quais os projetos e as propostas desenvolvidos, no âmbito da saúde, para e com a população em situação de rua no Brasil.

As buscas foram realizadas no mês de março de 2023, nas seguintes bases e portais de dados: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Scientific Eletronic Library Online (SciELO). Foram utilizados os seguintes descritores e operadores booleanos (em maiúsculo): população de rua AND saúde AND projeto OR programa.

Após a inserção dos descritores, os resultados totalizaram 337 documentos - 199 na BVS, 70 na Lilacs e 68 na SciELO. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: artigos completos e revisados por pares, publicados nos últimos dez anos em português e relacionados ao tema.

Após a leitura de títulos, descritores e resumos pelas pesquisadoras, foram excluídos aqueles que não correspondiam ao objetivo da pesquisa. Dos 199 estudos da BVS, 179 foram excluídos, restando 20, dos 70 da Lilacs, 41 foram excluídos, restando 29, dos 68 da SciELO, 47 foram excluídos, restando 21. Entre os artigos encontrados na BVS, 6 foram excluídos por repetição em outras bases de dados, outros 6 foram excluídos na SciELO, totalizando 12 artigos duplicados e excluídos nessas bases.

Desse modo, 58 estudos foram lidos na íntegra pelas pesquisadoras. Os artigos que não tratavam dos serviços e ações direcionadas para a PSR no campo da saúde foram excluídos nesta etapa. Desses 58, foram excluídos 10 da BVS, 22 da Lilacs e 5 da SciELO por não corresponderem ao objetivo da pesquisa. Sendo assim, no total, 21 textos foram incluídos no estudo, sendo 5 oriundos da BVS, 6 da Lilacs e 10 da SciELO. A Figura 1 representa as etapas de seleção dos documentos analisados.

Figura 1
Identificação dos estudos por bases de dados.

No Quadro 1 estão os artigos incluídos, informando título, ano de publicação, autores, local de realização, metodologia utilizada e categoria de análise.

Quadro 1
Apresentação dos artigos analisados.

O processo de organização e validação das categorias contou com o auxílio de um terceiro investigador. Após a categorização inicial dos resultados, estes foram apresentados e discutidos entre os demais autores e mais um terceiro investigador, assim definida a categorização final do estudo. Na próxima seção, descrevemos como os trabalhos pesquisados se relacionam com essas categorias e posterior discussão.

Resultados e discussão

A análise dos 21 artigos que compuseram o banco de dados deste estudo (Quadro 1) indicou que as publicações acerca do tema se concentram na região Sudeste, com destaque para o estado do Rio de Janeiro (seis artigos). A maioria das pesquisas é qualitativa, utilizando técnicas diversas de coleta e exploração dos dados.

A partir da leitura dos artigos, foi possível agrupá-los mediante as estratégias de atenção à saúde adotadas pelos programas que atendem a PSR no Brasil. Para Minayo1010 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social - teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2021., uma das funções da análise de conteúdo é a busca por respostas às perguntas formuladas. Nesse processo, a elaboração de categorias é indicada por compilar conteúdos, ideias e/ou expressões comuns para serem melhor apresentadas e discutidas. Assim, foram identificadas três categorias principais para as análises, conforme o Quadro 2.

Quadro 2
Categorias de análise.

Acesso da PSR à rede de saúde

A primeira categoria versa sobre o acesso da PSR à rede de saúde, incluindo as estratégias dos serviços e os desafios encontrados nesse âmbito.

A Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010, estabelece as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS) no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. A RAS é definida como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”1111 Brasil. Presidência da República. Portaria 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez.. Nessa perspectiva, os serviços de saúde são organizados em dois principais níveis.

1) Atenção primária em saúde (APS): geralmente é representada pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), que oferecem consultas de rotina, exames, práticas integrativas em saúde, oficinas, entre outras atividades. A APS tem por característica estar próxima das pessoas, prevenindo doenças e promovendo saúde e qualidade de vida, garantindo a atenção integral à saúde nos territórios1111 Brasil. Presidência da República. Portaria 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez..

2) Atenção especializada: caracterizada por ações mais complexas e composta pela atenção secundária (média complexidade) e terciária (alta complexidade). Na média complexidade estão presentes serviços especializados, como ambulatórios, hospitais, unidades de pronto atendimento e policlínicas. Na alta complexidade, tem-se hospitais de grande porte com tecnologia de ponta e desenvolvimento de pesquisas1111 Brasil. Presidência da República. Portaria 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez..

Nessa categoria, os trabalhos tiveram os seguintes enfoques: acesso da PSR à rede de atenção; barreiras e desafios que se apresentam nesse acesso; e articulação entre os serviços de saúde e as políticas públicas voltadas a essa população. Quanto ao acesso à rede de atenção à saúde, a maioria dos estudos destacou a atenção primária, principalmente porque esta é apontada como a porta de entrada da PSR nos serviços de saúde, por meio dos Consultórios na Rua.

Paiva e Guimarães1212 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis 2022; 32(4):e320408. avaliaram vários serviços ofertados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para a PSR: Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF); equipes de CnaR; Centro de Convivência; Unidade de Estratégia de Saúde da Família (ESF); Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD) tipo II e tipo III; CAPS tipo III; Unidade de Pronto Atendimento 24 horas (UPA); e Unidade de Atenção Psicossocial localizada em um Hospital Geral.

Assim como outros autores1313 Rossi CCS, Tucci AM. Acesso ao tratamento para dependentes de crack em situação de rua. Psicol Soc 2020; 32:e170161.

14 Araújo E. Funcionamentos de instituições em cenas de uso de crack: um estudo etnográfico. Trab Educ Saude 2019; 17(2):e0019529.
-1515 Viana LS, Oliveira EN, Costa MS, Aguiar CC, Moreira RM, Cunha AA. Política de redução de danos e o cuidado à pessoa em situação de rua. Rev Eletr Saude Mental Alcool Drog 2020; 16(2):57-65., Paiva e Guimarães1212 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis 2022; 32(4):e320408. destacaram o uso abusivo de drogas por parte da PSR, evidenciando que anteriormente à “suposta epidemia de crack” essa população seguia invisível no âmbito da RAPS. Todavia, como desdobramento dessa epidemia, as autoras alegam que a criação de projetos e políticas voltadas à PSR foi mais uma estratégia de controle e estigmatização do que propriamente uma estratégia de saúde. Na desassistência e ausência de políticas públicas, a PSR busca apoio social com entidades e pessoas ligadas a organizações não governamentais, comunidades e coletivos religiosos, que na maioria das vezes têm um caráter caritativo, o que obscurece o direito à saúde.

A pesquisa denuncia ainda a desarticulação da RAPS, “que ao invés de ser integrada, tem linhas desconectas (sic) e pontos isolados formados por serviços que mal se conhecem e fluxos mal definidos”1212 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis 2022; 32(4):e320408.. Essas autoras argumentam que este sistema ainda está ancorado na psiquiatrização e na lógica manicomial, haja vista o fortalecimento e a ampliação de serviços como as Comunidades Terapêuticas, fora o cuidado centrar-se nos hospitais psiquiátricos. Junte-se o fato de se associar a doença mental a um desvio de moralidade e periculosidade social, sob o estigma de “viciado” e “drogado”, indo na contramão da lógica da redução de danos.

É constante a presença da polícia como forma de higienização desses espaços públicos, na tentativa de tornar essa população invisível. Araújo1414 Araújo E. Funcionamentos de instituições em cenas de uso de crack: um estudo etnográfico. Trab Educ Saude 2019; 17(2):e0019529. estudou a relação entre a polícia e a assistência social. Para o autor, essa relação se retroalimenta com o estabelecimento e a manutenção de estigmas em relação à PSR, justificando a violência por parte da polícia. Por outro lado, situa as equipes de CnaR como integrantes de uma rede de serviços e circunscrições administrativas. No entanto, apresentam um caráter solidário e humanizado, conseguindo realmente exercer a função de constituir vínculos e pontes entre a PSR e as demais instituições de maneira menos estigmatizada e violenta.

Compartilhando dessa perspectiva, Viana et al.1515 Viana LS, Oliveira EN, Costa MS, Aguiar CC, Moreira RM, Cunha AA. Política de redução de danos e o cuidado à pessoa em situação de rua. Rev Eletr Saude Mental Alcool Drog 2020; 16(2):57-65. investigaram o processo de trabalho em saúde por meio de uma pesquisa-intervenção sobre as práticas de redução de danos no Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (CENTRO POP) e no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad) em um município do Ceará. As pesquisadoras concluíram que o atendimento à PSR envolve um complexo cuidado que requer o afastamento das ideias estigmatizadas em relação a essa população. Reforçaram a articulação desses espaços com a atenção primária à saúde, considerada a porta de entrada para o atendimento mais focado nas demandas da situação de rua. Essa constatação foi feita pela maioria dos estudos analisados1313 Rossi CCS, Tucci AM. Acesso ao tratamento para dependentes de crack em situação de rua. Psicol Soc 2020; 32:e170161.,1414 Araújo E. Funcionamentos de instituições em cenas de uso de crack: um estudo etnográfico. Trab Educ Saude 2019; 17(2):e0019529.,1616 Wijk LB, Mângia EF. O cuidado a pessoas em situação de rua pela Rede de Atenção Psicossocial da Sé. Saude Debate 2017; 41(115):1130-1142.,1717 Couto JGA, Godoi H, Finkler M, Mello ALS. Atenção à saúde bucal da população em situação de rua: a percepção de trabalhadores da saúde da região Sul do Brasil. Cad Saude Colet 2021; 29(4):518-527..

Para Rossi e Tussi1313 Rossi CCS, Tucci AM. Acesso ao tratamento para dependentes de crack em situação de rua. Psicol Soc 2020; 32:e170161., a rede de atenção primária à saúde não está preparada para atender a PSR, uma vez que a maioria dos serviços oferta abordagens terapêuticas pautadas na abstinência total, com exceção dos CAPS ad, que funciona sob a ótica antiproibicionista da redução de danos. As autoras ainda concluíram que as Comunidades Terapêuticas foram os serviços mais acessados para o cuidado à PSR que faz uso de drogas; no entanto, a metodologia de funcionamento desses serviços é religiosa, proibicionista e marcada pela ausência de tratamento técnico adequado.

O estudo de Lira et al.1818 Lira CDG, Justino JMR, Paiva IKS, Miranda MGO, Saraiva AKM. O acesso da população em situação de rua é um direito negado? REME 2019; 23:e-1157. foi desenvolvido com profissionais das equipes de saúde da família, UPA e do pronto-socorro de um hospital regional. Seus resultados apontaram os empecilhos no atendimento à PSR nos serviços de urgência e emergência devido à exigência de documento de identificação, endereço fixo e cartão do SUS. Destacaram inclusive a baixa quantidade de profissionais e a desvalorização social que direcionam a esta população, criando dificuldades na formação do vínculo.

Como resposta a essas dificuldades e barreiras no acesso aos serviços de saúde, autores indicam o CAPS ad e o Consultório na Rua como de extrema importância para o acesso à PSR e ao seu cuidado, uma vez que a metodologia da redução de danos tem caráter antiproibicionista e contribui para o estímulo da autonomia dos sujeitos1212 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis 2022; 32(4):e320408.,1616 Wijk LB, Mângia EF. O cuidado a pessoas em situação de rua pela Rede de Atenção Psicossocial da Sé. Saude Debate 2017; 41(115):1130-1142.,1717 Couto JGA, Godoi H, Finkler M, Mello ALS. Atenção à saúde bucal da população em situação de rua: a percepção de trabalhadores da saúde da região Sul do Brasil. Cad Saude Colet 2021; 29(4):518-527.. O CnaR se destaca na maioria dos artigos analisados como porta de entrada para essa população, muitas vezes sendo o único serviço que a PSR efetivamente tem acesso e serve como ponte para outros serviços da rede. Couto, Godoi e Melo1717 Couto JGA, Godoi H, Finkler M, Mello ALS. Atenção à saúde bucal da população em situação de rua: a percepção de trabalhadores da saúde da região Sul do Brasil. Cad Saude Colet 2021; 29(4):518-527. ampliaram a discussão sobre o CnaR, atentando para a importância do profissional da saúde bucal nesses espaços, pois aparece entre os problemas mais comuns dessa população, sendo também um serviço requisitado com frequência.

Paiva e Guimarães1212 Paiva IKS, Guimarães J. População em situação de rua e Rede de Atenção Psicossocial: na corda bamba do cuidado. Physis 2022; 32(4):e320408. concluíram que o trabalho do CnaR compreende a construção de vínculos, escuta qualificada, relação dialógica, intersetorialidade, trabalho interdisciplinar e compartilhamento do cuidado. Apesar da potência do CnaR, há ainda muitos desafios, como falta de insumos materiais, grande esforço dos profissionais para responder às demandas dos usuários, ausência de uma sala própria para a equipe do CnaR, dificuldades do trabalho intersetorial e de acesso da PSR aos demais serviços da RAPS e fragilidade do vínculo trabalhista dos profissionais de saúde que atuam nessa área, devido à ausência de concursos e plano de carreira para a área.

Para Wijka e Mângia1616 Wijk LB, Mângia EF. O cuidado a pessoas em situação de rua pela Rede de Atenção Psicossocial da Sé. Saude Debate 2017; 41(115):1130-1142., os atendimentos realizados pela eCnaR podem ser considerados intersetoriais e as relações desenvolvidas na sua atuação são humanizadas e contribuem para ações pautadas no afeto, sendo especialmente importantes por lidarem com uma população vulnerável e estigmatizada.

O trabalho do Consultório na Rua

A segunda categoria aborda as questões do trabalho da equipe que atua no Consultório na Rua, instituído a partir do Movimento da População de Rua para legitimar o princípio da equidade. Assim, foi publicada em 2011 a Portaria nº 1221919 Brasil. Presidência da República. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União 2011; 26 jan., que institui as equipes de Consultório na Rua (eCnaR), vinculadas à Rede de Atenção Psicossocial (atenção primária à saúde). Essas equipes são multiprofissionais, pois lidam com as diversas demandas e necessidades da população assistida. O diferencial das eCnaR é o trabalho in loco, nas ruas, com o desafio de promover cuidados e ações de saúde da PSR. Além disso, torna-se essencial o trabalho de articular toda a rede de saúde - UBS, UPA, CAPS, entre outros serviços - para um atendimento integral a essas pessoas. O trabalho intersetorial também é comum, devido à complexidade do fenômeno, sendo necessário desenvolver planos em conjunto com a rede socioassistencial1919 Brasil. Presidência da República. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União 2011; 26 jan..

A maioria dos estudos analisados destaca e faz referência às diversas experiências das eCnaRs espalhadas pelo Brasil, tanto por sua importância em promover a acessibilidade da PSR aos demais serviços, como porta de entrada na rede de atenção, quanto pelo trabalho exitoso e resolutivo que realizam nos espaços da rua, promovendo equidade e garantindo o direito à saúde. Nessa categoria, foram incluídos artigos que descrevem o trabalho do CnaR como locus exclusivo da pesquisa.

No que diz respeito ao funcionamento dos Consultórios na Rua, alguns dos estudos2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026.

21 Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saude Debate 2015; 39(Esp.):246-256.

22 Viegas SMF, Nitschke RG, Bernardo LA, Tholl AD, Borrego MAR, Soto PJL, Tafner DPOV. Quotidiano de equipes de consultório na rua: tecendo redes para a promoção da saúde. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200222.

23 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultório na Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1839-1848.

24 Engstrom EM, Lacerda A, Belmonte P, Teixeira MB. A dimensão do cuidado pelas equipes de Consultório na Rua: desafios da clínica em defesa da vida. Saude Debate 2019; 43(Esp. 7):50-61.

25 Friedrich MA, Wetzel C, Camatta MW, Olschowsky A, Schneider JF, Pinho LB, Pavani FM. Barreiras de acesso à saúde pelos usuários de drogas do consultório na rua. J Nurs Health 2019; 9(2):e199202.

26 Machado MPM, Rabello ET. Competências para o trabalho nos Consultórios na Rua. Physis 2019; 28(4):e280413.

27 Marques LS, Costa JHM, Gomes MM, Silva MM. Saberes, territórios e uso de drogas: modos de vida na rua e reinvenção do cuidado. Cienc Saude Colet 2022; 27(1):123-132.
-2828 Camargo BP. Vivência em Consultório na Rua do Rio de Janeiro: a situação de rua sob uma nova perspectiva. Rev Bras Med Fam Comunidade 2016; 11(38):1269. destacam principalmente o conhecimento do território, o trabalho itinerante e a promoção da acessibilidade da PSR aos serviços de saúde, seja pela própria eCnaR ou quando garante o atendimento das necessidades de saúde (inclusive assistência social e jurídica) em outros dispositivos. Isso destaca o trabalho interdisciplinar e em rede, além de promover o desenvolvimento de ações que estejam baseadas na promoção da saúde e da equidade e na continuidade do cuidado integral.

Alecrim et al.2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026. apontam que o conhecimento do território figura como primordial no desenvolvimento das ações do CnaR, pois contribui para organizar os processos de trabalho e a vigilância em saúde. As autoras ressaltam a especial importância do território para a PSR.

Na rua, o território é dinâmico e independe dos limites geográficos. Ele acontece diuturnamente nos locais de passagem, nos pontos de fixação, nas diversas formas de subsistências, nos encontros e desencontros. Assim, é essencial considerar a relação que o indivíduo estabelece com esse espaço territorial, compreendendo que diante das dificuldades, fragilidades e riscos de cada território, faz-se imprescindível conhecer também suas potencialidades e seus recursos2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026..

Alecrim et al.2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026. e Viegas et al.2222 Viegas SMF, Nitschke RG, Bernardo LA, Tholl AD, Borrego MAR, Soto PJL, Tafner DPOV. Quotidiano de equipes de consultório na rua: tecendo redes para a promoção da saúde. Esc Anna Nery 2021; 25(3):e20200222. recomendam que é preciso pensar em intervenções em rede e intersetoriais nos setores sociais, políticos e técnicos do processo saúde-doença. Dessa forma, promover saúde se relaciona às condições de vida, trabalho, educação, alimentação, moradia, segurança, sono/repouso e lazer, entre outras questões, tendo em vista que muitas vezes os aspectos sociais se sobrepõem às demandas assistenciais. Nessa direção, muitas equipes investem em ações culturais e de lazer, tais como: cinema, brinquedoteca, oficina de desenho, visitas a pontos turísticos e oficina de malabares2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026..

O trabalho na rua, portanto, deve considerar os desafios do imprevisível e contar com a flexibilidade e a criatividade da equipe, já que não é possível prever ou organizar de uma forma rígida a rotina de trabalho. Além disso, as equipes dos CnaR lidam com a dupla estigmatização da população em situação de rua que faz uso de drogas, tanto por parte dos serviços de saúde quanto da sociedade em geral. Sobre o assunto, os trabalhos de Machado e Rabello2626 Machado MPM, Rabello ET. Competências para o trabalho nos Consultórios na Rua. Physis 2019; 28(4):e280413., Marques et al.2727 Marques LS, Costa JHM, Gomes MM, Silva MM. Saberes, territórios e uso de drogas: modos de vida na rua e reinvenção do cuidado. Cienc Saude Colet 2022; 27(1):123-132., Camargo2828 Camargo BP. Vivência em Consultório na Rua do Rio de Janeiro: a situação de rua sob uma nova perspectiva. Rev Bras Med Fam Comunidade 2016; 11(38):1269. e Lima e Seidl2929 Lima HS, Seidl EMF. Consultório na Rua: Atenção a pessoas em uso de substâncias psicoativas. Psicol Estud 2015; 20(1):57-69. evidenciam o trabalho em redução de danos, que se baseia no cuidado em liberdade, no protagonismo do usuário na relação de cuidado e no respeito às escolhas dos sujeitos.

Nessa direção, Marques et al.2727 Marques LS, Costa JHM, Gomes MM, Silva MM. Saberes, territórios e uso de drogas: modos de vida na rua e reinvenção do cuidado. Cienc Saude Colet 2022; 27(1):123-132. apontam que o Consultório na Rua precisa lidar com a imprevisibilidade do serviço; considerar a cultura e o conhecimento dos locais de cuidado; delinear problemáticas e objetivos concretos que dialoguem com diferentes realidades e sujeitos; realizar uma abordagem participativa que garanta o protagonismo dos sujeitos; e compreender a unicidade da relação entre o sujeito e suas práticas de uso.

Embora o CnaR cumpra um importante papel como porta de entrada da rede e na garantia do cuidado à PSR, além das diversas potencialidades na oferta desse serviço, alguns autores2323 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultório na Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Cien Saude Colet 2016; 21(6):1839-1848.

24 Engstrom EM, Lacerda A, Belmonte P, Teixeira MB. A dimensão do cuidado pelas equipes de Consultório na Rua: desafios da clínica em defesa da vida. Saude Debate 2019; 43(Esp. 7):50-61.
-2525 Friedrich MA, Wetzel C, Camatta MW, Olschowsky A, Schneider JF, Pinho LB, Pavani FM. Barreiras de acesso à saúde pelos usuários de drogas do consultório na rua. J Nurs Health 2019; 9(2):e199202.,2929 Lima HS, Seidl EMF. Consultório na Rua: Atenção a pessoas em uso de substâncias psicoativas. Psicol Estud 2015; 20(1):57-69.,3030 Silva LMA, Monteiro IS, Araújo ABVL. Saúde bucal e consultório na rua: o acesso como questão central da discussão. Cad Saude Colet 2018; 26(3):285. apontam limitações e dificuldades no desenvolvimento do trabalho. Friedrich et al.2525 Friedrich MA, Wetzel C, Camatta MW, Olschowsky A, Schneider JF, Pinho LB, Pavani FM. Barreiras de acesso à saúde pelos usuários de drogas do consultório na rua. J Nurs Health 2019; 9(2):e199202. identificaram as seguintes barreiras no cuidado em saúde: estigmas, rede de serviços fragmentada, burocracia dos processos de cuidado e falta de recursos/serviços de saúde mental. Apesar de reconhecer o CnaR como uma estratégia inovadora, eficiente no cuidado e na inserção da PSR nos demais serviços, ela se torna insuficiente frente a uma rede ainda compartimentalizada, com processos rígidos e burocráticos. Lima e Seidl2929 Lima HS, Seidl EMF. Consultório na Rua: Atenção a pessoas em uso de substâncias psicoativas. Psicol Estud 2015; 20(1):57-69. destacam como dificuldades para o desenvolvimento dos atendimentos no CnaR: preconceito, falta de insumos e atuação agressiva da força policial.

Silva et al.3030 Silva LMA, Monteiro IS, Araújo ABVL. Saúde bucal e consultório na rua: o acesso como questão central da discussão. Cad Saude Colet 2018; 26(3):285., ao investigarem o cuidado com a saúde bucal da PSR, evidenciaram a estigmatização como “usuários de drogas, revoltados, fugitivos, entre outros” e a falta de preparo dos profissionais de saúde no atendimento a essa população. Esses estereótipos contribuem como empecilhos para a busca e a não adesão da PSR ao tratamento. Os CnaRs enfrentam dificuldades no atendimento de procedimentos odontológicos, já que não contam com um profissional especialista nas equipes, tampouco os serviços de referência estão disponíveis para atender a essas demandas. As autoras compreendem que as eCnaR devem estar atentas à identificação das demandas de saúde bucal, pois são elas que lidam diariamente com essa população. Nesse estudo, constata-se fragilidade de conhecimento da equipe nessa temática, o que pode comprometer tentativas de construção de fluxos para atendimento odontológico à PSR. As autoras3030 Silva LMA, Monteiro IS, Araújo ABVL. Saúde bucal e consultório na rua: o acesso como questão central da discussão. Cad Saude Colet 2018; 26(3):285. recomendam que as equipes devem passar por atividades de educação permanente.

Por fim, faz-se necessário ressaltar o desenvolvimento de tecnologias de cuidado pelas equipes do CnaR que se tornam diferenciais e definem o trabalho com a PSR. Alecrim et al.2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026., Silva, Cruz e Vargas2121 Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saude Debate 2015; 39(Esp.):246-256., Machado e Rabello2626 Machado MPM, Rabello ET. Competências para o trabalho nos Consultórios na Rua. Physis 2019; 28(4):e280413., Camargo2828 Camargo BP. Vivência em Consultório na Rua do Rio de Janeiro: a situação de rua sob uma nova perspectiva. Rev Bras Med Fam Comunidade 2016; 11(38):1269., Lima e Seidl2929 Lima HS, Seidl EMF. Consultório na Rua: Atenção a pessoas em uso de substâncias psicoativas. Psicol Estud 2015; 20(1):57-69. e Hallais e Barros3131 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad Saude Publica 2015; 31(7):1497-504. identificaram que as equipes do CnaR lançam mão do material mais básico, porém escasso nos serviços de saúde de modo geral, que é o material humano. De acordo com os autores2020 Alecrim TFA, Palha PF, Ballestero JGA, Protti-Zanatta ST. Advisory teams on the streets: a nurse's experience report. Rev Esc Enferm USP 2022; 56:e20220026.,2121 Silva CC, Cruz MM, Vargas EP. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saude Debate 2015; 39(Esp.):246-256.,2626 Machado MPM, Rabello ET. Competências para o trabalho nos Consultórios na Rua. Physis 2019; 28(4):e280413.,2828 Camargo BP. Vivência em Consultório na Rua do Rio de Janeiro: a situação de rua sob uma nova perspectiva. Rev Bras Med Fam Comunidade 2016; 11(38):1269.,2929 Lima HS, Seidl EMF. Consultório na Rua: Atenção a pessoas em uso de substâncias psicoativas. Psicol Estud 2015; 20(1):57-69.,3131 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad Saude Publica 2015; 31(7):1497-504., os profissionais do CnaR apresentam uma escuta empática e acolhimento diferenciados, constroem vínculos e relações horizontais de cuidado, compreendem os casos a partir da singularidade de cada sujeito e se esforçam para incluir sem estigmatizar e revitimizar os usuários. Essa é a maior marca do CnaR, que permite que a PSR se sinta acolhida em suas reais necessidades, o que muitas vezes se relaciona com o “ser vista e humanizada”, produzindo, em última instância, o exercício da cidadania.

Hallais e Barros3131 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad Saude Publica 2015; 31(7):1497-504. constataram que a escuta é utilizada no CnaR como um instrumento político, na medida em que aproxima as pessoas em condição de igualdade, rompendo com o saber-poder colonizador presente constantemente nas relações de cuidado nos serviços de saúde.

Outras iniciativas

Entre as categorias de análise, evidenciaram-se outras iniciativas que contribuem para a melhoria do acesso e do acolhimento da PSR na RAPS. Algumas estratégias inovadoras foram descritas em dois artigos analisados3232 Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. O PalhaSUS e a saúde em Movimento nas Ruas: relato de um encontro. Interface (Botucatu) 2014; 18(2):1529-1536.,3333 Silva SS, Skalinski LM, Calmon TVL, Araújo GS, Nery JS. Coletivo Nós nas Ruas e Programa Corra pro Abraço: ações para o enfrentamento da COVID-19 em Salvador, BA, Brasil. Interface (Botucatu) 2021; 25(Supl. 1):e200690..

O PalhaSUS foi um projeto criado em um estudo de doutorado realizado na Fiocruz, baseado na educação popular em saúde com o objetivo de aproximar as equipes de Saúde da Família e a população3232 Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. O PalhaSUS e a saúde em Movimento nas Ruas: relato de um encontro. Interface (Botucatu) 2014; 18(2):1529-1536.. Para os autores3232 Matraca MVC, Araújo-Jorge TC, Wimmer G. O PalhaSUS e a saúde em Movimento nas Ruas: relato de um encontro. Interface (Botucatu) 2014; 18(2):1529-1536., essa experiência denota uma real necessidade de reflexão acerca da incorporação da educação popular e das artes nas políticas públicas de saúde voltadas para a PSR.

Outras ações apresentadas por Silva et al.3333 Silva SS, Skalinski LM, Calmon TVL, Araújo GS, Nery JS. Coletivo Nós nas Ruas e Programa Corra pro Abraço: ações para o enfrentamento da COVID-19 em Salvador, BA, Brasil. Interface (Botucatu) 2021; 25(Supl. 1):e200690. foram o Coletivo Nós nas Ruas e o Programa Corra pro Abraço. Este último existe desde 2013, em Salvador, alicerçado na estratégia de redução de danos, tendo como objetivo a promoção da cidadania da PSR que faz uso de drogas. Já o Coletivo Nós nas Ruas, criado em 2020 por um grupo de professores e estudantes da UFBA e da Uneb, articulou estratégias emergenciais de enfrentamento à COVID-19 voltadas à PSR de Salvador. Para isso, propuseram a implementação de um Plano de Contingenciamento da pandemia do coronavírus (COVID-19) voltado à PSR, no intuito de ultrapassar as recomendações pautadas em ações individualizadas ou segregacionistas para se atentar à sensibilização dos diferentes grupos sociais (sociedade civil, comunidade acadêmica e gestão) em relação às lacunas que envolvem a complexidade e a visibilização social das PSR. Os autores3131 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad Saude Publica 2015; 31(7):1497-504. defendem a articulação intersetorial entre atores sociais e trabalhadores da saúde de diferentes áreas que atuam com a PSR, especialmente as equipes de saúde e assistência social.

Considerações finais

Os trabalhos analisados nesta revisão sistemática de literatura apresentaram, em sua maioria, descrições dos serviços de saúde oferecidos à PSR. As discussões giram em torno do uso de drogas, apontando a estratégia de redução de danos como viável para se trabalhar com essa população. Além disso, muitos relataram as consequências da estigmatização, gerando barreiras tanto para o acesso dos pacientes aos serviços de saúde quanto para um atendimento humanizado dos profissionais que atuam nesses espaços.

Uma importante estratégia alternativa às barreiras e limitações no acesso da PSR à RAPS apontada por muitos artigos é o Consultório na Rua, que vem se configurando como um articulador importante entre os serviços de atenção primária à saúde e a população assistida. Por meio da redução de danos, a equipe de Consultório na Rua constrói vínculos, desmistifica estigmas e contribui para a autonomia dessa população vulnerabilizada. Poucos estudos, porém, evidenciaram a efetividade de projetos e programas intersetoriais.

Conclui-se, portanto, que é importante pensar em uma mudança, frente ao cenário atual, por meio de uma ampla contribuição intersetorial que envolva ações voltadas à PSR alicerçadas em estratégias culturais, educacionais, sociais e de saúde, visando uma prática em saúde adequada e integral.

Este é um estudo de revisão e suas limitações se relacionam à utilização dos descritores e à escolha das bases de dados. A opção por outros descritores e em outras bases de dados poderia ampliar o número de trabalhos encontrados. No entanto, o estudo apresenta a potencialidade de revelar estratégias que estão sendo utilizadas, suas barreiras e seus desafios para promover o atendimento em saúde da população em situação de rua de maneira integral, garantindo seus direitos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    01 Abr 2024
  • Publicado
    03 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br