Perceções dos tutores sobre o papel do cão na dinâmica familiar durante a pandemia

Cristiana Isabel da Cruz Furtado Firmino Filipa Alexandra Coelho Pinto Nídia Sofia Tavares Varela Débora Bianca Sancho Westermann João José Rolo Longo Maria João Sousa Fernandes Sobre os autores

Resumo

Com o confinamento imposto pelo SARS-CoV-2, houve mudanças na dinâmica familiar. Para os estudantes de enfermagem este foi um assunto que gerou interesse em investigar. Partindo da questão: Qual o papel do cão na dinâmica familiar em tempo de pandemia? e do objetivo: identificar as perceções dos tutores sobre o papel do cão na dinâmica familiar num período de confinamento, enveredámos por um estudo qualitativo, descritivo, com recurso a focus group e amostra de seis membros de famílias diferentes. O tratamento e análise de dados seguiu o protocolo de Bardin. Identificámos que a existência de cão numa família influencia a sua dinâmica através dos benefícios obtidos quer a nível da saúde mental e bem-estar psicológico, quer a nível da saúde física. Igualmente, destacaram-se vantagens, apesar de algumas desvantagens. O vínculo afetivo entre cão e família, advém da reflexão sobre legislação portuguesa, proteção dos direitos dos animais, responsabilidades dos tutores e configuração familiar. Concluímos que na enfermagem, é necessário relevar a presença do cão na família uma vez que traz benefícios para a sua dinâmica. Esta torna-se uma visão inovadora quando pretendemos contribuir para a manutenção da saúde familiar focada nas necessidades de cada indivíduo, família e comunidade.

Palavras-chave:
Animais de Companhia; Enfermagem; Saúde da Família

Introdução

Com o aparecimento, em 2020, de uma nova estirpe de coronavírus, o Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavírus 2 (SARS-CoV-2), responsável pela doença COVID-19, foram tomadas várias medidas extraordinárias com implicações em termos de restrições, confinamentos, isolamento e distanciamento social, de forma a conter a propagação da doença11 Sinclair RR, Allen T, Barber L, Bergma M, Britt T, Butler A, Ford M, Hammer L, Kath, Probst T. Occupational Health Science in the Time of COVID-19: Now more than Ever. Occup Health Sci 2020; 4:1-22.. De repente, na maioria dos países, e onde Portugal também se se inclui, estas medidas modificaram o modo de vida da população. Esta situação levou a alterações na rotina diária da população, diminuindo as interações sociais, alterando métodos de trabalho e estudo, confinando a família à sua casa22 Fine AH. The Year That Has Passed Us By: Animals in Our Life of COVID-19. Animals 2021; 1(2):395.. A habitação, que, em muitos casos, era um lugar onde a família se juntava para diversas dinâmicas familiares, tornou-se num local de trabalho ou numa sala de aula, dificultando os limites da separação entre a vida pessoal e familiar com a vida profissional.

O animal de companhia (especialmente o cão) teve um papel vital como estratégia do indivíduo para diminuir a restrição de sair, dada a possibilidade de ter de os passear33 Applebaum JW, Zsembik BA. Pet attachment in the context of family conflict. Anthrozoös 2020; 33(3):361-370.. Sabemos que a relação do Homem com os animais começou na pré-história. Desde sempre, a humanidade dependeu de interações com outras espécies para a sua sobrevivência. Essa interação foi estabelecida, primeiro, pelo recurso à caça e proteção para a sua própria sobrevivência. Mais tarde, com a relação de proximidade que foi sucedendo, deu-se a inclusão do animal na sua própria habitação e a pessoa e o animal foram formando vínculos que permanecem até à atualidade33 Applebaum JW, Zsembik BA. Pet attachment in the context of family conflict. Anthrozoös 2020; 33(3):361-370.. Este vínculo entre a humanidade e o animal de companhia é considerado benéfico e dinâmico, pois tem uma influência direta no bem-estar e na saúde de ambos, bem como na própria comunidade onde estão inseridos. Ter um animal de companhia transmite segurança e estimula o contacto físico e a comunicação em todo o ciclo de vida dos humanos. Ao longo de todo o seu ciclo de vida - e seja tanto em contexto familiar, como da comunidade - a humanidade, procura criar estratégias para seu benefício, através do conhecimento da informação disponível, recorrendo aos recursos sociais, económicos e culturais44 Murdaugh CP. Health Promotion in Nursing Pratice. 8ª ed. Boston: Pearson; 2019..

O conceito de família foi variando ao longo do tempo e do lugar. Atualmente, a família não tem por base apenas a consanguinidade, também considera a adoção, onde se inclui o próprio animal de companhia55 Mossoi AC, Vieira TR. Direito à saúde, animais domésticos e o bem-estar da família multiespécie. Rev Biodireito Direito Animais 2020; 6(2):56-78.. Cabe à família cuidar da saúde do seu animal de companhia, contribuindo para a prevenção de doenças, através do cumprimento do esquema de vacinação e proporcionando-lhe um ambiente salubre e saudável55 Mossoi AC, Vieira TR. Direito à saúde, animais domésticos e o bem-estar da família multiespécie. Rev Biodireito Direito Animais 2020; 6(2):56-78. pois, quando tal não acontece, a possibilidade de surgirem patologias derivadas dessa interação animal-humanidade pode aumentar. É dever da humanidade providenciar as necessidades de alimento, higiene, afeto e cuidados de saúde ao seu animal de companhia55 Mossoi AC, Vieira TR. Direito à saúde, animais domésticos e o bem-estar da família multiespécie. Rev Biodireito Direito Animais 2020; 6(2):56-78..

Neste contexto, a Enfermagem desempenha funções de educação e de promoção de saúde, uma vez que tem em consideração todos os riscos e benefícios que a humanidade possa ter no ambiente em que estiver inserido. Compreender estas relações dinâmicas intrafamiliares - quer na sua estrutura, quer no seu funcionamento, tanto na perspetiva de promoção da saúde como na gestão de doença66 Brás M, Neves C. 1º Congresso Internacional de Enfermagem de Saúde Familiar - livro de resumos. In: Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Familiar. 1º Congresso Internacional de Enfermagem de Saúde Familiar [Internet]. 2019 [acessado 2023 jun 10]. Disponível em: www.spesf.pt.
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,77 Figueiredo MH. Modelo Dinâmico de Avaliação e Intervenção Familiar: Uma abordagem colaborativa em Enfermagem de Família. Lisboa: Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2012. - faz parte das áreas de intervenção da profissão de enfermagem.

Como docentes numa Escola Superior de Saúde na área da Enfermagem, consideramos que a investigação é uma área primordial no processo de formação dos estudantes de enfermagem, com impacto tanto a nível da sua aprendizagem, como da melhoria dos cuidados prestados88 Einarsen KA, Giske T. Nursing students' longitudinal learning outcomes after participation in a research project in a hospital. IPDJ 2019; 9(1):1-4..

Partindo desta premissa, foi solicitado aos estudantes do Curso de Licenciatura em Enfermagem (na Unidade Curricular de Investigação) o desenvolvimento de um trabalho de investigação, com o seguinte objetivo: Identificar as perceções dos tutores sobre o papel do cão na dinâmica familiar em tempo de pandemia. Este tema gerou interesse junto dos estudantes, por um lado, por ir ao encontro das suas próprias vivências numa época tão conturbada. Por outro lado, porque comtempla a introdução das aprendizagens em investigação com foco na metodologia qualitativa, tal como é preconizado no currículo académico deste curso. Para os estudantes, como principiantes na investigação, é excelente a utilização da Investigação Qualitativa porque proporciona uma adequada vivência da experiência com a implementação de todas as fases no decorrer do trabalho de investigação, permitindo aprender a investigar e a aquisição de competências práticas nesta área99 Amado J. Ensinar e aprender a investigar - reflexões a pretexto de um programa de iniciação à pesquisa qualitativa. Rev Portuguesa Pedago 2010; 44(1):119-142..

Métodos

O estudo realizado foi de natureza qualitativa, exploratório e descritivo. As metodologias qualitativas na área da saúde têm como objetivo fulcral a descrição com força argumentativa na inclusão da perspetiva dos indivíduos. Foi utilizado o Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ), mantendo os critérios de credibilidade e transparência1010 Raskind IG, Shelton RC, Comeau DL, Cooper HL, Griffith DM, Kegler MC. A review of qualitative data analysis practices in health education and health behavior research. Health Educ Behav 2019; 46(1):32-39.. A evidência com base em metodologia qualitativa possibilita uma humanização dos processos de tomada de decisão ao garantir uma perspetiva subjetiva dos diversos atores sociais envolvidos1111 Baixinho CL, Ferreira Ó, Marques FM, Oliveira ES, Presado MH, Cardoso M, Sousa AD, Nascimento T. Síntese, transferência e implementação de evidência qualitativa para a melhoria das práticas e da decisão clínica. New Trends Qualitative Res 2022; 13:568..

Como técnica de recolha dados foi selecionada o Focus Group (FG) pois tem como principal vantagem permitir fornecer dados de um determinado grupo de participantes, de forma mais rápida e com menos custo, permitindo abordar temas em profundidade1212 Walston JT, Lissitz RW. Computer-mediated focus groups. Evaluation Rev 2000; 24(5):457-483.. Consiste numa técnica de pesquisa qualitativa baseada em questões, realizada em grupos, com o objetivo de captar o entendimento dos participantes sobre a temática específica que está em investigação1313 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: A pratical guide for applied research. 4ª ed. California: Sage; 2009.,1414 Stewart DW, Shamdasani PN, Rook DW. Focus groups: Theory and practice. 2ª ed. California: Sage; 2007.. Neste estudo, a recolha de dados foi feita através de e-Fócus Group (electronic focus groups), realizado via online, uma vez que o ciberespaço ocupa cada vez mais um lugar na vida social e este tipo de interação alcança novos significados e padrões1515 Kim JY. Social interaction in computer-mediated communication. Bull Am Soc Inform Sci 2020; 26(3):15-17.. De forma prática e confortável, os participantes expõem as suas opiniões, com maior participação e de forma mais equitativa, pois tendem a ser mais espontâneos, o que leva também a resultados mais confiáveis e com produção de orientações, com riqueza e profundidade pela visão dos participantes1616 Schröeder CDS, Klerin LR. On-line focus group: uma possibilidade para a pesquisa qualitativa em administração. Cad EBAPE BR 2009; 7:332-348.. Foi elaborado um protocolo de guião de FG, de forma a conseguir reorientar a discussão caso fosse necessário1313 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: A pratical guide for applied research. 4ª ed. California: Sage; 2009.. Neste estudo não houve essa necessidade. Na discussão de grupo, e para além dos participantes e investigadoras estudantes, também esteve presente online a professora como facilitadora deste processo.

Optou-se por entregar aos participantes, presencialmente e em mãos, o termo de consentimento informado, livre e esclarecido. No que diz respeito à confidencialidade dos dados fornecidos, as investigadoras enviaram o endereço de email de forma individual para cada um dos participantes evitando, assim, o acesso e a identificação por outros. No início da sessão foi reforçada a importância da confidencialidade da discussão que se iria iniciar e foi também pedido que as informações fornecidas não fossem relatadas a terceiros1717 Kralik D, Price K, Warren J, Koch T. Issues in Data Generation using Email Group Conversations for Nursing Research. J Adv Nurs 2006; 53(2):213-220.. Regra geral, um FG realiza-se com um grupo de seis a oito participantes, propositadamente selecionados com base em características que partilham, que participam de uma discussão sobre a temática escolhida entre 60 e 120 minutos1313 Krueger RA, Casey MA. Focus groups: A pratical guide for applied research. 4ª ed. California: Sage; 2009..

Os participantes deste estudo foram seis tutores adultos, selecionados de forma intencional, de acordo com os critérios de inclusão: adultos com pelo menos um filho e um cão; ter permanecido pelo menos um mês em casa na altura de confinamento; residentes em Portugal na época da pandemia; e com acesso a computador e com competências para utilizar plataformas digitais.

O período de recolha de dados foi em dezembro de 2022, com duração de cerca de 80 minutos. A sessão foi integralmente gravada e apenas as investigadoras têm acesso à mesma. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Escola, e foram respeitados todos os procedimentos contidos na Declaração de Helsínquia e na Convenção de Oviedo.

A análise de dados do FG foi feita através da técnica de análise de conteúdo, entendida como um conjunto de técnicas com a finalidade de analisar diferentes conteúdos, de forma estruturada e sistematizada1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. Seguiram-se as etapas de pré-análise1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. (seleção do corpus, leitura flutuante e definição de estrutura de codificação), exploração do material1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. (definição de categorias de análise privilegiando os significados, pensamentos e pressupostos à luz dos objetivos do estudo) e tratamento dos dados, inferência e interpretação1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. (operação de descontextualização das unidades de análise, de acordo com as regras estabelecidas, relativamente ao discurso inicial, seguida de operação de contextualização das mesmas no interior dos temas, num processo recursivo de interpelação e de comparabilidade, que deu por fim origem à matriz de análise definitiva). Importa realçar que a análise destes dados obedeceu aos princípios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência para a temática em estudo1818 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..

Após a realização do e-FG, foi feita uma transcrição literal e integral da gravação, com vários momentos de audição, de forma a garantir a qualidade das informações fornecidas por cada participante. De forma a garantir a total confidencialidade dos participantes, procedeu-se à codificação, utilizando a letra F (por representarem a sua família) seguida de um número atribuído de acordo com a ordem de entrada na videoconferência, culminando na seguinte ordenação: F1 (mulher de 43 anos), F2 (mulher de 55 anos), F3 (pessoa de 30 anos), F4 (homem de 50 anos); F5 (mulher de 32 anos) e F6 (mulher de 46 anos). De forma a garantir o rigor do estudo, todos os procedimentos metodológicos foram monitorizados pelos professores da Unidade de Investigação1919 Marques FM, Pinheiro MJ, Alves PV. Estudante de enfermagem em ensino clínico: estudo qualitativo da tipologia de decisão. New Trends Qualitative Res 2021; 8:121-129.,2020 Óscar RF, Baixinho CL, Medeiros M, Oliveira ESF. Aprender a usar evidência no curso de licenciatura em enfermagem: Resultados de um Focus Group. New Trends Qualitative Res 2021; 8:35-43..

Resultados/discussão

No estudo participaram seis tutores adultos, quatro do género feminino e dois do género masculino, com idades compreendidas entre os 30 e 55 anos. Verificou-se que todos tinham conhecimentos e competências para trabalhar plataformas digitais com facilidade, pela necessidade diária em época de confinamento. Dois deles eram professores do ensino básico e secundário; os restantes quatro da área dos recursos humanos. A partir da análise de conteúdo ao FG, emergiram 54 Unidades de Registo (UR), oito subcategorias organizadas em três Categorias: Influência do cão na dinâmica familiar; Presença do cão na família em contexto pandémico e Vínculo afetivo entre o cão e a família (Quadro 1).

Quadro 1
Categorias e subcategorias, sobre o papel do cão na dinâmica familiar em tempo de pandemia.

Os resultados obtidos, permitem inferir que a subcategoria mais numerada foi Saúde mental e bem-estar psicológico (com 15 UR) e a menos numerada Desvantagens (com 2 UR).

Na Categoria Influência do cão na dinâmica familiar, podemos verificar que na subcategoria da saúde mental e bem-estar psicológico da família, os participantes F1 e F3 partilham opiniões positivas: “Dar o passeio com a minha cadela sempre aliviava um bocadinho a pressão de estar sempre fechada em casa” (F1); “Em termos de saúde mental melhorou imenso e o facto de ter a companhia da cadela foi muito importante” (F3). São vários os estudos que descrevem a existência de um aumento dos níveis de oxitocina, endorfina e dopamina e a diminuição dos níveis de cortisol, quando existe interação entre um animal de companhia e o seu tutor, diminuindo os picos de stress e solidão2121 Bowen J, Bulbena A, Fatjó J. The Value of Companion Dogs as a Source of Social Support for Their Owners: Findings From a Pre-pandemic Representative Sample and a Convenience Sample Obtained During the COVID-19 Lockdown in Spain. Frontiers Psychiatry 2021; 12:622060.. No que diz respeito à saúde física, outros participantes demonstraram essa relação com maior significância para um dos filhos, quando refere “Foi benéfico para o meu filho mais novo, porque estava sempre fechado, quando lhe diziam ‘vamos passear a cadela!’ para ele era uma alegria porque podia ir correr” (F4); mas também para as suas próprias vivências: “Acabei por fazer circuitos maiores […] o corpo acabava por sentir um pouco a falta das caminhadas para o trabalho […]. Com a cadela ajudou a resolver” (F5). Esta relação entre o animal e o melhoramento da saúde física da família vai ao encontro do que está descrito em vários estudos nomeadamente pelo aumento da atividade física2121 Bowen J, Bulbena A, Fatjó J. The Value of Companion Dogs as a Source of Social Support for Their Owners: Findings From a Pre-pandemic Representative Sample and a Convenience Sample Obtained During the COVID-19 Lockdown in Spain. Frontiers Psychiatry 2021; 12:622060.,2222 Bussolari C, Currin-McCulloch J, Packman W, Kogan L, Erdman P. I Couldn't Have Asked for a Better Quarantine Partner!: Experiences with Companion Dogs during Covid-19. Animals 2021; 11:330.. Por outro lado, houve um participante que não observou alterações na saúde física na época de confinamento:Não notámos muita diferença, temos um terraço grande” (F2). Esta experiência está em linha com um outro estudo que nos refere que, apesar do confinamento, não houve alterações na dinâmica familiar por diversos aspetos, sendo um deles o espaço físico existente antes da pandemia2323 Jezierski T, Camerlink I, Peden RS, Chou JY, Marchewka J. Changes in the health and behaviour of pet dogs during the COVID-19 pandemic as reported by the owners. Applied Animal Behav Sci 2021; 241:105395..

Na Categoria Presença do cão em contexto pandémico, as opiniões dos participantes acerca das vantagens do cão são várias: “[…] ir com ela [cadela] à rua ajudou a sair um pouco daquela rotina que todos nós tínhamos de respeitar [isolamento]” (F3). Foi possível compreender que o cão alterou alguns comportamentos familiares: “[…] já não calhava sempre ao mesmo ir com ela à rua, já dividíamos o tempo” (F2); “[…] acabávamos por ir todos juntos [passear a cadela], coisa que antes não acontecia, normalmente eu ia sozinha para ser um passeio mais rápido, para fazer outras coisas em casa, e acabamos por fazer essa rotina de manhã, ao almoço e depois do jantar […]” (F6). Nestas reflexões entende-se que existiram mais momentos de brincadeira com os cães, incluindo, em alguns casos, um aumento do número de passeios à rua, algo que está descrito em vários artigos sobre a temática dos animais de companhia em tempos de pandemia2121 Bowen J, Bulbena A, Fatjó J. The Value of Companion Dogs as a Source of Social Support for Their Owners: Findings From a Pre-pandemic Representative Sample and a Convenience Sample Obtained During the COVID-19 Lockdown in Spain. Frontiers Psychiatry 2021; 12:622060.,2222 Bussolari C, Currin-McCulloch J, Packman W, Kogan L, Erdman P. I Couldn't Have Asked for a Better Quarantine Partner!: Experiences with Companion Dogs during Covid-19. Animals 2021; 11:330.,2424 Evans-Wilday AS, Hall SS, Hogue TE, Mills DS. Self-disclosure with dogs: dog owners' and non- dog owners' willingness to disclose emotional topics. Anthrozoos 2018; 31:353-366.. Observando a subcategoria direcionada para as desvantagens do cão na família em contexto pandémico: “Manteve-se tudo igual” (F2); e houve relatos de um participante acerca da inquietude do seu cão como sendo um elemento negativo nas atividades realizadas em casa, quando expressou: “Ela [cadela] não pode ver ninguém quieto, vai logo ter com a pessoa e enquanto não se brinca com ela, não para, não sossega” (F1). Em bibliografia consultada, podemos constatar que existem fatores de stress nos animais quando alteram as suas rotinas diárias, quer pela necessidade de maior atenção do cão por ter o seu tutor mais tempo em casa, quer pelo maior barulho que resulta dessa nova rotina2121 Bowen J, Bulbena A, Fatjó J. The Value of Companion Dogs as a Source of Social Support for Their Owners: Findings From a Pre-pandemic Representative Sample and a Convenience Sample Obtained During the COVID-19 Lockdown in Spain. Frontiers Psychiatry 2021; 12:622060.,2222 Bussolari C, Currin-McCulloch J, Packman W, Kogan L, Erdman P. I Couldn't Have Asked for a Better Quarantine Partner!: Experiences with Companion Dogs during Covid-19. Animals 2021; 11:330..

Na última Categoria que emergiu deste estudo, Vínculo afetivo entre o cão e a família, podemos encontrar a subcategoria menos numerada pelos participantes, aquela que diz respeito ao conhecimento das leis portuguesas relacionadas com os animais de estimação: “Não sabia das leis” (F2); “Não tinha conhecimento do regulamento existente para adoção e consequências do abandono dos animais de companhia” (F2). Já um dos participantes apresentava conhecimento vasto das leis aplicadas em Portugal e das formas de controlo e proteção animal existentes nos canis municipais e respetivas Câmaras: “O canil é muito rígido, tem as visitas domiciliárias para que possam ver o espaço em que a pessoa quer ter o animal e se estiver tudo de acordo avançam com a adoção […]” (F3). Quando se menciona os direitos dos animais, o assunto é debatido em torno da utilização do cão para sair durante o confinamento e a perceção de abandono dos cães após o alívio das restrições: “Só tinham cães para ter um pretexto para sair à rua. […] Agora vemos muitos mais cães abandonados” (F2); “Acho que as pessoas se aproveitaram um bocadinho do animal para benefício próprio” (F4). Outro ponto de vista foi: “Não tenho essa perceção, aqui onde vivo, porque a Câmara anda muito em cima disso” (F3). Atualmente, estão em debate na esfera pública normas sobre o bem-estar animal não humano, nomeadamente sobre o animal de companhia. Portugal reconhece o estatuto jurídico, através do código civil e penal (com coimas), caso não haja cumprimentos da lei no que diz respeito à prática de abandono, de atos que infligem dor ou até morte. O Decreto-Lei N.º 82/2019, de 27 de junho2525 Portugal. Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural. Diário da República; 2019. [Série I], estabelece ainda a regulamentação de cumprimento da adoção responsável, a necessidade do seu registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) e a identificação do titular. Relativamente à subcategoria responsabilidade do tutor: “Assim como descalçávamos os nossos sapatos, também se tratava das patinhas da cadela” (F3); “O cão, não é só chegar e ficar ali, é preciso cuidar, dar-lhe de comer, beber, vacinar, dar afeto e tratar bem” (F6).

O conceito de família foi variando ao longo do tempo e do lugar. Atualmente, a família não tem por base apenas a consanguinidade, mas também considera a adoção, onde se inclui o animal de companhia2424 Evans-Wilday AS, Hall SS, Hogue TE, Mills DS. Self-disclosure with dogs: dog owners' and non- dog owners' willingness to disclose emotional topics. Anthrozoos 2018; 31:353-366.,2626 Kumar A, Nayar KR. COVID 19 and its mental health consequences. J Mental Health 2021; 30(1):1-2.. Compete à família cuidar da saúde do seu animal de companhia, contribuindo para a prevenção de doenças, e providenciar as necessidades de alimento, higiene, afeto e cuidados de saúde55 Mossoi AC, Vieira TR. Direito à saúde, animais domésticos e o bem-estar da família multiespécie. Rev Biodireito Direito Animais 2020; 6(2):56-78.. Outro assunto de debate situou-se em torno da importância do cão na configuração familiar. Todos os participantes referiram que fazem parte da família, que são tratados como membros e, em alguns casos, até são mesmo tratados como as crianças: “Muitas vezes digo ‘eu estou a passear a minha filha’” (F3); “Eu sou a favor das faltas justificadas para poder ir com o cão ao veterinário, como faço com os meus filhos” (F4); “Hoje vou trabalhar e penso muito mais nele até trago uns docinhos” (F1).

A forma como, hoje, vemos a relação entre a humanidade e o animal de companhia mudou. Aliás, acabou mesmo por ser amplamente vivenciada num contexto bastante específico: em plena época de crise pandémica (e com os respetivos períodos de confinamento) a relação mantida com o seu animal de companhia ajudou as pessoas a compensar os momentos de solidão2626 Kumar A, Nayar KR. COVID 19 and its mental health consequences. J Mental Health 2021; 30(1):1-2. e a diminuir níveis de stress, foi uma fonte de conforto e contribui para um aumento da qualidade de vida do tutor e do animal2727 Martins SM, Jesus ML, Santos AA, Amorim LD, Vieira ACA, Araujo KN, Santos BQR, Schräder JR, Silva E, Jesus CS. The productions of animal-assisted activities as an alternative therapy in cancer patients. Res Soc Develop 2022; 11(13):7.. Estudos identificam uma relação de melhoria no bem-estar entre os animais de companhia e os seus tutores, neste continuum de saúde/doença, ajudando-os na sua recuperação2626 Kumar A, Nayar KR. COVID 19 and its mental health consequences. J Mental Health 2021; 30(1):1-2.,2727 Martins SM, Jesus ML, Santos AA, Amorim LD, Vieira ACA, Araujo KN, Santos BQR, Schräder JR, Silva E, Jesus CS. The productions of animal-assisted activities as an alternative therapy in cancer patients. Res Soc Develop 2022; 11(13):7.. Faz parte da profissão de Enfermagem compreender estas relações dinâmicas intrafamiliares (quer na sua estrutura, quer no seu funcionamento), assim como o seu envolvimento na comunidade e na sociedade, mas, também, na promoção da saúde e gestão da doença44 Murdaugh CP. Health Promotion in Nursing Pratice. 8ª ed. Boston: Pearson; 2019.,77 Figueiredo MH. Modelo Dinâmico de Avaliação e Intervenção Familiar: Uma abordagem colaborativa em Enfermagem de Família. Lisboa: Lusociência - Edições Técnicas e Científicas; 2012..

Conclusões

De toda a pesquisa que foi efetuada, pudemos identificar os benefícios da presença do animal de estimação, neste caso o cão, na família durante o confinamento. Este vínculo entre a humanidade e o animal de companhia é considerado benéfico e dinâmico, pois tem uma influência direta no bem-estar e na saúde de ambos, bem como na própria comunidade onde estão inseridos. Ter um animal de companhia transmite segurança e estimula o contacto físico e a comunicação em todo o ciclo de vida dos humanos. Estamos em plena transformação de paradigma relativamente à atribuição de direitos a todos os animais. Dado que os Enfermeiros são, habitualmente, os profissionais de saúde que estão mais próximos da população, pois têm como foco os cuidados de saúde primários baseados na comunidade (tanto a nível de riscos infeciosos, ambientais e alterações no comportamento e estilos de vida), faz todo o sentido este cuidar com uma tomada de decisão baseada na evidência, com partilha de conhecimentos e informação de forma interdisciplinar tendo a família como fonte do controlo. Acresce ainda salientar que tendo em consideração a natureza do objeto de estudo, que remete a conceções crenças e valores, a abordagem qualitativa emergiu como a mais indicada à clarificação do “vivido do ponto de vista de quem o vive”, no caso, os benefícios do cão na família em tempo de pandemia.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
  • Publicado
    17 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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