O acidente normal de Le Coze: integrando complexidade à teoria de Charles Perrow

Raoni Rocha Sobre o autor
2023

Este artigo é uma resenha do livro Trinta anos de acidentes: a nova face dos riscos sociotecnológicos (do original Trente ans d’accidents: le nouveau visage des risques sociologiques, de 2016) de Jean-Christophe Le Coze, lançado em português em 2023 pela editora Blucher.

O livro faz uma releitura de teses e ferramentas no campo da segurança industrial desenvolvidas nas últimas décadas. Embora apresente uma densa discussão teórica, o autor busca responder a questões bastante pragmáticas: “onde, quem, o quê, como e quando questionar ou observar os múltiplos atores e entidades heterogêneas que compõem esses sistemas para melhor compreender, mas também para antecipar e prevenir desastres industriais?”

Com essa proposta, o livro traz contribuições que podem ser divididas em três grandes partes.

A primeira delas é uma profunda análise do desenvolvimento teórico de diferentes campos disciplinares que estudam riscos tecnológicos maiores e segurança industrial. Para isso, Le Coze utiliza quatro dimensões de análise.

Inicialmente, a chamada “instalação” se refere aos métodos clássicos de análise de riscos desenvolvidos nos anos 1990, como HAZOP (hazard and operability study) ou FMECA (failure mode and effect analysis), que se baseiam na avaliação e controle dos riscos por meio de análises lineares e quantitativas dos eventos, trazendo o operador sobretudo como probabilidade de fracasso.

Em seguida, a “cognição” se refere aos estudos seminais de Jens Rasmussen11 Rasmussen J. The human as a system component. In: Smith HT, Green TRG, editors. Human interaction with computers. London: Academic Press; 1980. p. 67-96. e sua proposta de modelos de erro humano. A partir dele, diversos outros autores aparecem e desenvolvem suas pesquisas, como Erik Hollnagel, René Amalberti e Sidney Dekker, defendendo os aspectos positivos do erro, como sua capacidade de desenvolver a expertise dos indivíduos e gerar aprendizagem.

A terceira dimensão de análise é a “organização”, ou seja, a responsabilidade da gestão para proteger ou fragilizar a segurança. Para isso, Le Coze mobiliza, entre outras, as noções de “acoplamento” e “entrelaçamento complexo” dos sistemas de Charles Perrow22 Perrow C. Normal accidents. Living with high risk technologies. New York: Basic Books; 1984., assim como as de “redundância organizacional” ou a “capacidade de auto-organização” das organizações de alta confiabilidade.

Por fim, como último critério de análise, o autor traz a “regulação”, ou uma reflexão sobre os instrumentos da ação pública e de controle do Estado para fins de prevenção nas organizações.

A segunda grande contribuição do livro de Le Coze é a original relação entre complexidade e segurança. Para isso, ele mobiliza o trabalho do filósofo e sociólogo Edgar Morin, que desenvolve, a partir dos anos 1970, um pensamento não compartimentalizado sobre o protagonismo do sujeito na ação.

Morin33 Morin E. Sociologie. Paris, France: Le Seuil; 1994. defende que, por diferentes razões, a ciência nunca é capaz de alcançar a realidade. Em primeiro lugar, porque a realidade varia de acordo com o contexto, uma vez que é composta por uma grande diversidade de elementos interligados, que influenciam uns aos outros de maneira intricada. Em seguida, pela constante presença de incerteza e ambiguidade na realidade, fazendo com que os fenômenos sejam intrinsecamente incertos. Assim, para lidar com a sociedade complexa, é necessário contemplar tal imprevisibilidade nos sistemas, buscando o “enfraquecimento ou apagamento dos princípios rígidos de programação, hierarquização e especialização em benefício de estratégias criativas ou inventivas, de polivalência funcional (das unidades básicas ou dos subsistemas), de policentrismo no controle da tomada de decisões”33 Morin E. Sociologie. Paris, France: Le Seuil; 1994. (p. 192). Por fim, a ciência não alcança a realidade porque costuma tratar eventos causais de forma linear, em relações relativamente simples de causa e efeito, negligenciando que “a) as mesmas causas podem levar a efeitos diferentes ou divergentes [...]; b) causas diferentes podem produzir os mesmos efeitos [...]; c) causas pequenas podem levar a efeitos muito grandes [...]; d) causas grandes podem levar a efeitos minúsculos [...]; e) causas são seguidas por efeitos opostos [...] os efeitos de causas antagônicas são incertos”44 Morin E. La méthode, tome I: la nature de la nature. Paris, France: Le Seuil; 1977. (p. 269).

Com isso, a ciência não alcança a realidade complexa e multifacetada, mas apenas dialoga com ela através de modelos muito frequentemente limitados e parciais. Como consequência, é necessário aceitar que o erro humano sempre ocorrerá, mesmo entre os mais experientes, e que, portanto, é necessária uma constante reflexão a esse respeito nas organizações.

Quando o pensamento descobre o gigantesco problema dos erros e ilusões que nunca cessam de se impor como verdade no curso da história humana, quando [o pensamento] consequentemente descobre que carrega dentro de si o risco permanente de erro e ilusão, [ele, o pensamento] deve então procurar conhecer a si mesmo55 Morin E. La méthode, tome III: la connaissance de la connaissance. Paris: Le Seuil; 1986. (p. 9).

Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico que pretende eliminar erros e, assim, excluir as pessoas dos processos, deve ser repensado. Fractais, algoritmos e autômatos que buscam captar dados para simular situações futuras nunca conseguirão contemplar a complexidade em sua plenitude. Foi assim que Robert Laughlin, Prêmio Nobel em física em 1998, afirmou que “essas abstrações são um pacto com o diabo, porque frequentemente distorcem as coisas tão grotescamente que não se tem mais nenhuma representação fiel da realidade”66 Laughlin RB. A different universe: reinventing physics from the bottom down. New York: Basic Books; 2005. (p. 131).

A complexidade, então, está relacionada com a interação entre as pessoas, o trabalho e o ambiente. Analisar um evento demanda que o analista se coloque em situação, para compreender as informações disponíveis e as possíveis interpretações geradas pelos indivíduos no calor da ação. Caso contrário, caímos na armadilha do viés retrospectivo, na qual reatribuímos ao passado a incerteza do futuro, ou seja, analisamos fatos passados com dados do presente, gerando conclusões que normalmente recaem sobre a responsabilização do comportamento da vítima.

A partir dessa contextualização em Morin, Le Coze propõe avanços na relação entre complexidade e segurança, o que é a terceira grande contribuição do livro aqui analisado. A natureza incompleta e interconectada do conhecimento científico requer uma abordagem mais integradora, que considere a complexidade e a inter-relação de diversos elementos. Sistemas complexos devem, assim, sair de uma estrutura de forte centralização, hierarquia e coerção, com baixa autonomia dos indivíduos, e avançar em direção a outra baseada no policentrismo, na descentralização, autonomia, polivalência, múltiplas interações entre indivíduos e grupos, bem como na tolerância a desvios e não-conformidades. Da mesma forma, análises de acidentes requerem abordagens mais sofisticadas, que levem em consideração os elementos da complexidade, em vez daquelas baseadas em árvores de análise, com esquemas lineares de causas e consequências, associados em cálculos probabilísticos.

Nesse contexto, Le Coze faz uma análise crítica sobre modelos de análise clássicos, como o Queijo Suíço de James Reason e o Modelo de Migração de Jens Rasmussen, propondo outros modelos. O seu Modelo Sistêmico e Dinâmico de Construção da Segurança Industrial traz mais explicitamente as dimensões gerencial, sociológica e política da segurança industrial na geração ou prevenção de acidentes. Já o Sistema Sociotecnológico Modificado propõe uma nova abordagem da visão de Rasmussen sobre o sistema sociotécnico, inspirado por considerações de fundo, de natureza mais epistemológica e filosófica.

A partir dessas três grandes contribuições, o autor propõe uma reformulação do conceito de “acidente normal” de Charles Perrow22 Perrow C. Normal accidents. Living with high risk technologies. New York: Basic Books; 1984., incorporando nele a noção de complexidade. Para Le Coze, um acidente é normal por razões mais contemporâneas: 1ª) sistemas de risco operam com pressões e restrições tecnológicas, competitivas, sociais e financeiras que implicam equilíbrios e processos de tomada de decisão complexos; 2ª) operadores e gestores se adaptam, decidem e constroem a segurança em universos constituídos por incertezas tecnológicas no projeto, na operação, nas instalações, organizações e mercados; 3ª) ninguém pode pretender ter uma visão global do sistema porque nossa racionalidade é limitada diante de causalidades complexas; 4ª) limites operacionais de segurança são provavelmente muito mais ambíguos e menos claros do que muitos atores públicos e privados estão dispostos a admitir.

A obra de Le Coze traz, assim, contribuições teóricas e práticas fundamentais para a reflexão contemporânea acerca da prevenção de acidentes industriais em todo o mundo. Como consequência, o autor também traz contribuições para o campo da saúde coletiva. Especificamente no Brasil, pesquisas que relacionam complexidade e segurança ainda são raras. Mesmo estudos que discutem cultura e relações de poder na segurança77 Rocha R, Pucci F, Walter J. Cultura de segurança e relações de poder nas organizações. Rev Bras. Saude Ocup 2023; 48:edcinq12. ainda tratam pouco a complexidade. Ao discutir profundamente essa relação, Le Coze constrói reflexões originais que ajudam a abandonar abordagens clássicas que desassociam unidades de análise entre sistemas técnicos (máquinas, processos ou padrões) e humanos (comportamentos e desvios). Com isso, a obra pavimenta um importante caminho na geração de prevenção e na preservação de vidas no mundo da indústria moderna. Uma obra, portanto, fundamental para os dias atuais.

Agradecimentos

Esta resenha é fruto direto da atividade de lançamento em português do livro aqui citado. O evento, ocorrido em novembro de 2023 e que contou com a presença de Jean-Christophe Le Coze, foi promovido pelo Forum AT, especialmente representado nas pessoas de Ildeberto Almeida, Rodolfo Vilela e Sandra Beltran. Expresso aqui meu sincero agradecimento aos três, que me convidaram para fazer a presente reflexão sobre o livro.

Referências

  • 1
    Rasmussen J. The human as a system component. In: Smith HT, Green TRG, editors. Human interaction with computers. London: Academic Press; 1980. p. 67-96.
  • 2
    Perrow C. Normal accidents. Living with high risk technologies. New York: Basic Books; 1984.
  • 3
    Morin E. Sociologie. Paris, France: Le Seuil; 1994.
  • 4
    Morin E. La méthode, tome I: la nature de la nature. Paris, France: Le Seuil; 1977.
  • 5
    Morin E. La méthode, tome III: la connaissance de la connaissance. Paris: Le Seuil; 1986.
  • 6
    Laughlin RB. A different universe: reinventing physics from the bottom down. New York: Basic Books; 2005.
  • 7
    Rocha R, Pucci F, Walter J. Cultura de segurança e relações de poder nas organizações. Rev Bras. Saude Ocup 2023; 48:edcinq12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2023
  • Aceito
    05 Abr 2024
  • Publicado
    07 Abr 2024
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