Homofobia internalizada e depressão em mulheres e homens homossexuais e bissexuais: Inquérito de saúde LGBT+, 2020

Thales Santos Batista Filipe Marques de Pinho Tavares Gabriela Persio Gonçalves Juliana Lustosa Torres Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar a associação entre homofobia internalizada e seus domínios e a depressão em indivíduos homossexuais e bissexuais e quantificar o resultado da sua diminuição na depressão. Trata-se de um estudo transversal baseado em dados do inquérito de saúde LGBT+, realizado no Brasil entre agosto e novembro de 2020, de forma on-line e anônima, totalizado 926 participantes. A depressão foi avaliada por autorrelato. A homofobia internalizada foi medida pela Escala de Homofobia Internalizada para Gays e Lésbicas Brasileiros, adotando-se como escores elevados total e por domínio os percentis de 80%. A análise estatística baseou-se na regressão de Poisson com variância robusta. A prevalência de depressão foi de 23,7%. Os resultados mostraram que a homofobia internalizada associou-se positivamente à depressão apenas entre os homossexuais (Razão de Prevalência (RP) = 1,80; intervalo de confiança de 95% (IC95%) 1,12-2,90). Não houve associação com os domínios isolados de estigma e opressão. A fração atribuível populacional de depressão foi de 2,3% (IC95% 0,1-4,5) em relação à homofobia internalizada. Esses achados destacam a importância do combate à homofobia que é internalizada para a diminuição da depressão em indivíduos homossexuais.

Palavras-chave:
Saúde Mental; Depressão; Minorias sexuais e de gênero; Sexismo; Homofobia

Introdução

A saúde mental é um problema de saúde pública que vem ganhando destaque principalmente após a pandemia de COVID-19 iniciada em 2020, já que sua principal medida de prevenção, antes da implantação da vacinação, em 2021, foi o distanciamento social11 Brasil. Portaria no 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19). Diário Oficial Da União; 2020.. Apesar disso, em minorias sexuais e de gênero, que englobam pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Trans e com identidades relacionadas (LGBT+), a saúde mental já vêm sendo estudada bem antes da pandemia, com destaque para a depressão, com uma prevalência de 35% em mulheres cis bissexuais, comparada a uma prevalência de 16% mulheres cis heterossexuais22 Chaudhry AB, Reisner SL. Disparities by Sexual Orientation Persist for Major Depressive Episode and Substance Abuse or Dependence: Findings from a National Probability Study of Adults in the United States. LGBT Health 2019; 6(5):261-266.. Dentre os homens cis gays, a prevalência chega a 20% ao longo da vida, quase 2,4 vezes maior em comparação a homens cis heterossexuais22 Chaudhry AB, Reisner SL. Disparities by Sexual Orientation Persist for Major Depressive Episode and Substance Abuse or Dependence: Findings from a National Probability Study of Adults in the United States. LGBT Health 2019; 6(5):261-266..

Na população de minorias sexuais e de gênero, uma das teorias que tentam explicar esse excesso de prevalência de depressão é a Teoria do Estresse de Minorias33 Meyer IH. Prejudice, Social Stress, and Mental Health in Lesbian, Gay, and Bisexual Populations: Conceptual Issues and Research Evidence. Psychol Bull 2003; 129(5):674-697.. O conceito de “estresse de minorias”, proposto por Meyer33 Meyer IH. Prejudice, Social Stress, and Mental Health in Lesbian, Gay, and Bisexual Populations: Conceptual Issues and Research Evidence. Psychol Bull 2003; 129(5):674-697., pode ser aplicado aos grupos que são considerados minoritários, não por sua prevalência na população, mas por não deterem o poder hegemônico de controlar a narrativa sobre si: a população negra, mulheres, pessoas economicamente vulneráveis e a população de minorias sexuais e de gênero. Quando se utiliza o termo “estresse de minorias sexuais e de gênero”, faz-se referência a essa condição, que impacta na formação da subjetividade, na construção de autopercepção e autocuidado, bem como na construção de relações sociais por parte desses indivíduos, considerando os aspectos externos e internos de estresse a que estão submetidos33 Meyer IH. Prejudice, Social Stress, and Mental Health in Lesbian, Gay, and Bisexual Populations: Conceptual Issues and Research Evidence. Psychol Bull 2003; 129(5):674-697..

Segundo a teoria do estresse de minorias, situações constantes de estigma e preconceito podem levar a deterioração da saúde mental, que além do diagnóstico de depressão, pode ser caracterizada por estresse psicológico44 Gonzales G, Loret de Mola E, Gavulic KA, McKay T, Purcell C. Mental Health Needs Among Lesbian, Gay, Bisexual, and Transgender College Students During the COVID-19 Pandemic. J Adolesc Health 2020; 67(5):645-648.,55 Salerno JP, Devadas J, Pease M, Nketia B, Fish JN. Sexual and Gender Minority Stress Amid the COVID-19 Pandemic: Implications for LGBTQ Young Persons' Mental Health and Well-Being. Public Health Rep 2020; 135(6):721-727., solidão, isolamento social e/ou baixo apoio emocional66 Pedrosa AL, Bitencourt L, Fróes ACF, Cazumbá MLB, Campos RGB, de Brito SBCS, Simões E Silva AC. Emotional, Behavioral, and Psychological Impact of the COVID-19 Pandemic. Front Psychol. 2020; 11:566212.

7 Kneale D, Bécares L. Discrimination as a predictor of poor mental health among LGBTQ+ people during the COVID-19 pandemic: Cross-sectional analysis of the online Queerantine study. BMJ Open 2021; 11:e049405. 8. #Voltelgbt. Diagnóstico LGBT+ Na Pandemia: Desafios Da Comunidade LGBT+ No Contexto de Isolamento Social Em Enfrentamento à Pandemia de Coronavírus [Internet]. São Paulo: #votelgbt; 2020 [acessado 2023 ago 1]. Disponível em https://sinapse.gife.org.br/download/diagnostico-lgbt-na-pandemia.
-88 #Voltelgbt. Diagnóstico LGBT+ Na Pandemia: Desafios Da Comunidade LGBT+ No Contexto de Isolamento Social Em Enfrentamento à Pandemia de Coronavírus [Internet]. São Paulo: #votelgbt; 2020 [acessado 2023 ago 1]. Disponível em https://sinapse.gife.org.br/download/diagnostico-lgbt-na-pandemia.
https://sinapse.gife.org.br/download/dia...
. Dados apontam que 65% das minorias sexuais e de gênero já sofreram discriminação devido a sua orientação afetiva não heterossexual por familiares e vizinhos99 Magno L, Silva LAVD, Guimarães MDC, Veras MASM, Deus LFA, Leal AF, Knauth DR, Brito AM, Rocha GM, Lima LNGC, Kendall C, Motta-Castro ARC, Kerr LRFS, Mota RMS, Merchan-Hamann E, Dourado IC; Brazilian HIV/MSM Surveillance Group. Discrimination based on sexual orientation against MSM in Brazil: a latent class analysis. Rev Bras Epiemiol 2019; 22(Supl. 1):e190003., sendo que o domicílio é o principal lugar de ocorrência, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação de 2015-20171010 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, Correia RSB, Polidoro M, Canavese D. Profile of notification of violence against lesbiangay, bisexual, transvestite and transsexual people recorded in the national information system on notifiable diseases, Brazil, 2015-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200006.. Ainda, tais situações podem afetar a percepção desses indivíduos na sociedade, de modo que eles podem rejeitar sua própria identidade (estresse de minorias proximal), causando sentimentos negativos e angustiantes conhecidos como homofobia internalizada1111 Williamson IR. Internalized homophobia and health issues affecting lesbians and gay men. Health Educ Res 2000; 15(1):97-107..

Revisões sistemáticas consistentemente mostraram que pelo menos um componente da teoria do estresse de minorias é relacionado a desfechos biológicos1212 Flentje A, Heck NC, Brennan JM, Meyer IH. The relationship between minority stress and biological outcomes: A systematic review. J Behav Med 2020; 43(5):673-694. e mentais1313 Camp J, Vitoratou S, Rimes KA. LGBQ+ Self-Acceptance and Its Relationship with Minority Stressors and Mental Health: A Systematic Literature Review. Arch Sex Behav 2020; 49(7):2353.. Em relação à homofobia internalizada, um estudo conduzido no Chipre com 110 adultos (18 anos ou mais) mostrou uma associação positiva entre homofobia internalizada e depressão na análise univariada1414 Yolaç E, Meriç M. Internalized homophobia and depression levels in LGBT individuals. Perspect Psychiatr Care 2021; 57(1):304-310.. Dados de 543 casais de homens homossexuais dos Estados Unidos também comprovaram essa correlação positiva1515 Curtis MG, Kogan S, Mitchell JW, Stephenson R. Dyadic effects of enacted stigma, internalized homophobia, and communal coping on depressive symptoms among cisgender sexual minority male couples. Fam Process 2022; 61(4):1541-1558.. Resultados semelhantes foram encontrados em 2.178 adultos (19 anos ou mais) da Coreia do Sul1616 Lee H, Operario D, Yi H, Choo S, Kim SS. Internalized homophobia, depressive symptoms, and suicidal ideation among lesbian, gay, and bisexual adults in South Korea: An age-stratified analysis. LGBT Health 2019; 6(8):393-399. e em 581 mulheres adultas de Taiwan (20 anos ou mais), após os ajustes pertinentes1717 Wang YC, Miao NF, Chang SR. Internalized homophobia, self-esteem, social support and depressive symptoms among sexual and gender minority women in Taiwan: An online survey. J Psychiatr Ment Health Nurs 2021; 28(4):601-610..

Apesar das evidências internacionais citadas acima1212 Flentje A, Heck NC, Brennan JM, Meyer IH. The relationship between minority stress and biological outcomes: A systematic review. J Behav Med 2020; 43(5):673-694.

13 Camp J, Vitoratou S, Rimes KA. LGBQ+ Self-Acceptance and Its Relationship with Minority Stressors and Mental Health: A Systematic Literature Review. Arch Sex Behav 2020; 49(7):2353.

14 Yolaç E, Meriç M. Internalized homophobia and depression levels in LGBT individuals. Perspect Psychiatr Care 2021; 57(1):304-310.

15 Curtis MG, Kogan S, Mitchell JW, Stephenson R. Dyadic effects of enacted stigma, internalized homophobia, and communal coping on depressive symptoms among cisgender sexual minority male couples. Fam Process 2022; 61(4):1541-1558.

16 Lee H, Operario D, Yi H, Choo S, Kim SS. Internalized homophobia, depressive symptoms, and suicidal ideation among lesbian, gay, and bisexual adults in South Korea: An age-stratified analysis. LGBT Health 2019; 6(8):393-399.
-1717 Wang YC, Miao NF, Chang SR. Internalized homophobia, self-esteem, social support and depressive symptoms among sexual and gender minority women in Taiwan: An online survey. J Psychiatr Ment Health Nurs 2021; 28(4):601-610., nem todos os estudos demostraram independência da associação entre a homofobia internalizada e a depressão1414 Yolaç E, Meriç M. Internalized homophobia and depression levels in LGBT individuals. Perspect Psychiatr Care 2021; 57(1):304-310.,1515 Curtis MG, Kogan S, Mitchell JW, Stephenson R. Dyadic effects of enacted stigma, internalized homophobia, and communal coping on depressive symptoms among cisgender sexual minority male couples. Fam Process 2022; 61(4):1541-1558.. No Brasil, nenhum estudo foi encontrado com essa temática, apesar do país apresentar uma sociedade marcada por altos índices de violência contra minorias sexuais e de gênero, chegando a quase uma notificação de violência contra essas pessoas por hora1010 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, Correia RSB, Polidoro M, Canavese D. Profile of notification of violence against lesbiangay, bisexual, transvestite and transsexual people recorded in the national information system on notifiable diseases, Brazil, 2015-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200006.. Deste modo, o objetivo deste estudo foi analisar a associação entre a homofobia internalizada, seus domínios e o diagnóstico de depressão em mulheres e homens homossexuais e bissexuais vivendo no Brasil e quantificar o resultado da sua diminuição na prevalência de depressão.

Métodos

Delineamento e amostragem

Trata-se de um estudo transversal baseado em dados do inquérito de saúde LGBT+, realizado no Brasil de agosto a novembro de 2020, através de um link autopreenchível de forma on-line e anônima, com perguntas individuais e questionários padronizados acerca de características sociodemográficas e relacionadas à saúde. Ainda que não representativo de toda a população, por se tratar de uma amostra não probabilística, o inquérito foi divulgado nacionalmente em redes sociais, como Facebook, Instagram e WhatsApp, por um link, através da disseminação tipo bola de neve. Maiores informações sobre o estudo e equipe de pesquisa podem ser consultadas em outra publicação1818 Torres JL, Goncalves GP, Pinho AA, Souza MHN. The Brazilian LGBT+ Health Survey: methodology and descriptive results. Cad Saude Publica 2021; 37(9):e00069521.. Os critérios de inclusão foram: ter 18 anos e mais, morar em uma das cinco regiões brasileiras, autodeclarar-se como um indivíduo da população de minorias sexuais e de gênero, ter acesso à internet para preencher o questionário e concordar em participar da pesquisa. Para a presente análise, foram excluídos os indivíduos que relataram orientação afetiva diferente de homossexual ou bissexual (n=39), devido à característica da variável independente, totalizando 937 participantes.

O inquérito de saúde LGBT+ foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE 34123920.9.0000.5149) e seguiu todas as recomendações do Conselho Nacional de Saúde.

Variável dependente

A variável dependente deste estudo foi o autorrelato de diagnóstico médico de depressão (sim, não), avaliado através da pergunta “Algum médico ou profissional da saúde já disse que você tem depressão?”.

Variável independente

A variável independente foi a homofobia internalizada, medida através da escala validada de Homofobia Internalizada para Gays e Lésbicas Brasileiros1919 Lira AN, Morais NA. Validity evidences of the Internalized Homophobia Scale for Brazilian gays and Lesbians. Psico USF 2019; 24(2):361-372., composta por 19 itens com escore de até 57 pontos. Cada item varia de 0-3 pontos (de “concordo totalmente” a “discordo totalmente”), sendo que os maiores escores representam maiores níveis de homofobia internalizada. A escala é dividida em dois domínios, sendo 15 itens relacionados à percepção interna de estigma (escore máximo de 45 pontos), como os itens “a homossexualidade é moralmente aceitável” e “sinto-me confortável ao falar sobre homossexualidade/bissexualidade num local público” e 4 itens relacionados à percepção social de opressão (escore máximo de 12 pontos), como os itens “a maioria das pessoas tem reações negativas à homossexualidade/bissexualidade” e “a discriminação contra gays e lésbicas ainda é comum”. Utilizou-se como ponto de corte os percentis de 80% para classificar o escore total e os escores por domínio em elevado ou não elevado.

Potenciais variáveis de confusão

Potenciais variáveis de confusão do estudo foram divididas em blocos de variáveis, nomeados de acordo com a teoria de estresse de minorias, conforme a seguir: (1) Circunstâncias socioeconômicas e tipo de minoria: orientação afetiva (homossexual ou bissexual), identidade de gênero (mulher cisgênero, homem cisgênero ou outras minorias de gênero), faixa etária (18-29 anos, 30-49 anos, ≥50 anos), escolaridade (ensino médio ou inferior, graduação incompleta ou completa, pós-graduação incompleta ou completa), raça/cor (preta/parda/outras, branca); (2) Estressores gerais e de minorias: solidão, classificada de acordo com o escore obtido pela 3-item UCLA Loneliness Scale2020 Kuznier TP, Oliveira F, Mata LRF, Chianca TCM. Translation and Cross-Cultural Adaptation of Ucla Loneliness Scale - (Version 3) for the Elderly in Brazil. REME 2016; 20:e950., que varia de 3 a 9, sendo que quanto maior o escore, maior o nível solidão (nenhuma (escore 3/4), leve (escore 5/7), severa (escore 8/9)), discriminação relacionada à orientação afetiva por familiares próximos, avaliada pela frequência de percepção de atitudes discriminatórias (nunca/algumas vezes, frequente); (3) Estratégias de enfrentamento e apoio social de profissionais: consumo de álcool, avaliado através da frequência semanal de consumo e doses em cada ocasião (não consume, até 2x/semana em doses baixas, até 2x/semana em doses elevadas (acima de 3 doses em uma ocasião), 3x/semana ou mais), tabagismo, considerando-se o consumo atual de cigarros (sim, não), sentir-se à vontade para se abrir com profissionais de saúde (sim, não), perceber interesse dos profissionais da saúde na qualidade do cuidado (sim, não).

Análise estatística

Para a análise de dados, primeiramente, foi realizada uma análise descritiva da amostra, considerando-se o teste qui-quadrado de Pearson para avaliar diferenças entre as frequências em cada categoria de depressão. A regressão de Poisson com variância robusta foi usada para estimar Razões de Prevalência (RP) brutas e ajustadas e seus intervalos de confiança de 95% (IC95%) para investigar a associação entre o escore elevado de homofobia internalizada e seus domínios e a depressão em minorias sexuais e de gênero. Todas as variáveis do estudo foram mantidas nos modelos ajustados, independentemente de significância estatística, adotando-se como critério a adequação ao modelo teórico proposto.

Baseado nos modelos ajustados, foram estimadas a diminuição da prevalência de depressão em cenários com escores de homofobia internalizada abaixo de 80% e cada um de seus domínios, através da fração atribuível populacional, a qual considera além da força de associação entre as variáveis, a prevalência da variável independente na população estudada. Todas as análises incluíram o procedimento de pós-estratificação com pesos por região geográfica, de acordo com a estimativa populacional da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019)2121 Macedo Neto AO, Silva SAG, Gonçalves GP, Torres JL. COVID-19 vulnerability among Brazilian sexual and gender minorities: a cross-sectional study. Cad Saude Publica 2022; 38(8):e00234421.. Adicionalmente, analisou-se separadamente as categorias de orientação afetiva homossexual e bissexual, já que elas podem diferir em relação à homofobia. Todas as análises estatísticas foram realizadas através do software Stata 17.0 SE (Stata-Corp., College Station, Texas, EUA).

Resultados

Dos 937 participantes incluídos neste trabalho, 11 não tinham informação acerca da depressão, perfazendo uma amostra final de 926 participantes. Destes, 219 (23,7%; IC95% 19,0-29,1) relataram ter diagnóstico médico para depressão. Os participantes eram principalmente homossexuais (75%) e homens cisgênero (57,2%). Todas as características sociodemográficas dos respondentes podem ser consultadas na Tabela 1. As características sociodemográficas que variaram de acordo com o convívio com filhos foram a faixa etária, raça/cor e presença de companheiro, sendo mais frequentes na faixa etária de 30-49 anos, entre pretos, pardos ou outra raça cor diferente de branca e naqueles que apresentam companheiro(a).

Tabela 1
Características dos participantes de acordo com o diagnóstico de depressão. Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

A Tabela 2 mostra os resultados dos modelos brutos e ajustados da associação entre homofobia internalizada e seus domínios e o diagnóstico de depressão em minorias sexuais e de gênero brasileiras. Considerando-se os modelos finais, somente o escore de homofobia internalizada total elevado foi positivamente associado à depressão (RP=1,70; IC95% 1,09-2,65).

Tabela 2
Modelos brutos e ajustados da associação entre homofobia internalizada e seus domínios e o diagnóstico de depressão em mulheres e homens homossexuais e bissexuais. Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

Apesar de não ter sido apresentado na Tabela 2, houve uma diferença significativa entre a prevalência de depressão nos indivíduos homossexuais e bissexuais (RP=0,54; IC95% 0,33-0,90, dados não mostrados), a qual foi menor entre os indivíduos bissexuais em relação aos homossexuais. Considerando isso e que a homofobia internalizada pode impactar mais frequentemente os indivíduos homossexuais do que os bissexuais, realizou-se os mesmos modelos sequenciais separadamente para cada categoria de orientação afetiva (homossexuais e bissexuais). Conforme mostrado pelos modelos finais apresentados na Tabela 3, a homofobia internalizada total associou-se positivamente à depressão apenas entre os indivíduos homossexuais (RP=1,80; IC95% 1,12-2,90). Nenhum dos domínios da homofobia internalizada associou-se independentemente à depressão.

Tabela 3
Modelos brutos e ajustados da associação entre homofobia internalizada e seus domínios e o diagnóstico de depressão segundo a orientação afetiva homossexual e bissexual. Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020.

A fim de quantificar a modificação na prevalência de depressão devido a uma diminuição do escore da homofobia internalizada total e seus domínios, foi plotado na Figura 1 a diferença da prevalência de depressão considerando o cenário observado e cenários com escores de homofobia internalizada abaixo de 80%. Em um cenário com escores de homofobia internalizada abaixo de 80%, a prevalência de depressão nos homossexuais tem um potencial de diminuição de 2,30% (IC95% 0,14-4,46), passando de 23,37% para 21,07%. Prevalências menores de depressão não foram observadas em cenários com escores de cada um dos domínios de homofobia internalizada abaixo de 80%.

Figura 1
Diminuição da prevalência de depressão considerando-se o cenário observado e cenários ideais com níveis mais baixos de homofobia internalizada e cada um de seus domínios entre mulheres e homens homossexuais. Inquérito de saúde LGBT+, Brasil, agosto-novembro, 2020, N=686.

Discussão

Este estudo encontrou uma alta prevalência de diagnóstico de depressão na população estudada, independentemente do nível de homofobia internalizada, e semelhante à prevalência reportada nos Estados Unidos22 Chaudhry AB, Reisner SL. Disparities by Sexual Orientation Persist for Major Depressive Episode and Substance Abuse or Dependence: Findings from a National Probability Study of Adults in the United States. LGBT Health 2019; 6(5):261-266.. Ainda, aqueles indivíduos com homofobia internalizada elevada foram mais propensos a apresentarem depressão, mostrando que escores de homofobia internalizada acima de 80% associam-se a maior prevalência de depressão nos indivíduos homossexuais.

Os principais achados deste estudo corroboram estudos anteriores, que evidenciaram uma associação positiva entre a homofobia internalizada e a depressão1414 Yolaç E, Meriç M. Internalized homophobia and depression levels in LGBT individuals. Perspect Psychiatr Care 2021; 57(1):304-310.

15 Curtis MG, Kogan S, Mitchell JW, Stephenson R. Dyadic effects of enacted stigma, internalized homophobia, and communal coping on depressive symptoms among cisgender sexual minority male couples. Fam Process 2022; 61(4):1541-1558.

16 Lee H, Operario D, Yi H, Choo S, Kim SS. Internalized homophobia, depressive symptoms, and suicidal ideation among lesbian, gay, and bisexual adults in South Korea: An age-stratified analysis. LGBT Health 2019; 6(8):393-399.
-1717 Wang YC, Miao NF, Chang SR. Internalized homophobia, self-esteem, social support and depressive symptoms among sexual and gender minority women in Taiwan: An online survey. J Psychiatr Ment Health Nurs 2021; 28(4):601-610.. A explicação biológica para esta associação é pautada no fato de que experiências de estigma e preconceito geram sentimentos negativos e angustiantes (estresse)33 Meyer IH. Prejudice, Social Stress, and Mental Health in Lesbian, Gay, and Bisexual Populations: Conceptual Issues and Research Evidence. Psychol Bull 2003; 129(5):674-697., que são moderados por respostas psicológicas e comportamentais adaptativas, reguladas pelo sistema nervoso2222 Mcewen BS. Protection and Damage from Acute and Chronic Stress: Allostasis and Allostatic Overload and Relevance to the Pathophysiology of Psychiatric Disorders. Ann N Y Acad Sci 2004; 1032:1-7.. A regulação do sistema nervoso fica comprometida quando há depressão, causando uma desregulação hormonal2222 Mcewen BS. Protection and Damage from Acute and Chronic Stress: Allostasis and Allostatic Overload and Relevance to the Pathophysiology of Psychiatric Disorders. Ann N Y Acad Sci 2004; 1032:1-7., e gera um ciclo entre desregulação hormonal, estresse crônico e início e desenvolvimento da depressão2323 Tafet G, Smolovic J. Psychoneuroendocrinological Studies on Chronic Stress and Depression. Ann N Y Acad Sci 2004; 1032:276-278.. Esse ciclo gera uma piora da saúde física1212 Flentje A, Heck NC, Brennan JM, Meyer IH. The relationship between minority stress and biological outcomes: A systematic review. J Behav Med 2020; 43(5):673-694. e mental1313 Camp J, Vitoratou S, Rimes KA. LGBQ+ Self-Acceptance and Its Relationship with Minority Stressors and Mental Health: A Systematic Literature Review. Arch Sex Behav 2020; 49(7):2353., caso não haja controle do mecanismo de estresse ou controle dos danos causados pela depressão.

Baseada nessa explicação, a ciência médica, ainda muito influenciada pelo paradigma biomédico, por vezes oferece soluções para a depressão de forma não integralizada, utilizando medicamentos de diversas classes2424 Cipriani A, Furukawa T, Salanti G, Chaimani A, Atkinson LZ, Ogawa Y, Leucht S, Ruhe HG, Turner EH, Higgins JPT, Egger M, Takeshima N, Hayasaka Y, Imai H, Shinohara K, Tajika A, Ioannidis JPA, Geddes JR. Comparative efficacy and acceptability of 21 antidepressant drugs for the acute treatment of adults with major depressive disorder: a systematic review and network meta-analysis. Lancet 2018; 391(10128):1357-1366. e/ou psicoterapia (psicanálise, cognitivo comportamental e várias outras linhas). Entretanto, a partir de avanços no entendimento do ser humano através do paradigma da complexidade biopsicosocioespiritual2525 Anderson MIP, Rodrigues RD. O paradigma da complexidade e os conceitos da medicina integral: saúde, adoecimento e integralidade. Rev Hosp Univ Pedro Ernesto 2017; 15(3):242-252., no qual os processos de adoecimento são entendidos como resultado de uma interação de fatores (biológicos, espirituais, socioculturais, psicológicos, existenciais e ambientais), entende-se que os mecanismos para reduzir a depressão devem ser múltiplos.

Neste sentido, considerando fatores socioculturais e ambientais, este estudo demostra que ações de saúde coletiva precisam ser focadas no combate à homofobia internalizada de modo geral. Essas ações não devem ser apenas a nível individual, tratando consequências biológicas da homofobia internalizada, e, sim, ampliar seu escopo a organismos sociais. Afinal, a homofobia é internalizada a partir das vivências homofóbicas vividas em família e sociedade.

É válido lembrar que a sociedade engloba os serviços de saúde. Deste modo, reforça-se o uso da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, implantada em 2011, cujos objetivos englobam a eliminação da discriminação e do preconceito institucional2626 Brasil. Portaria nº 2.836, de 1° de Dezembro de 2011. Política Nacional de SaúdeIntegral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Diário Oficial da União; 2011.. Além do nível nacional, ações mais regionalizadas que respondam às especificidades locais também são importantes, como a Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais de Minas Gerais2727 Minas Gerais. Deliberação CIB-SUS/MG no 3.202, de 14 de agosto de 2020. Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) [Internet]. 2020 [acessado 2023 ago 1]. Disponível em https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/Del%203202%20-%20SUBPAS_SAPS%20%20-%20Pol%C3%ADtica%20Sa%C3%BAde%20LGBT%20-%20alterada%20-%20revis%C3%A3o%20DPAPS%20-%20alt.%202%20-%20rev%20DPAPS2%20-%20final%20(1).pdf.
https://www.saude.mg.gov.br/images/docum...
, que ampliou o financiamento de ações em saúde voltadas para esta população.

Contudo, as populações de minorias sexuais e de gênero nem sempre são semelhantes em todas as suas características. Explorando mais a homofobia internalizada entre homossexuais e bissexuais, verificou-se que a homofobia internalizada associou-se positivamente à depressão apenas em indivíduos homossexuais. Diferentemente desses achados, um estudo anterior não encontrou diferença entre mulheres homossexuais e mulheres bissexuais1717 Wang YC, Miao NF, Chang SR. Internalized homophobia, self-esteem, social support and depressive symptoms among sexual and gender minority women in Taiwan: An online survey. J Psychiatr Ment Health Nurs 2021; 28(4):601-610., enquanto outro estudo não encontrou níveis diferentes de homofobia internalizada entre homens homossexuais e bissexuais2828 Lin HC, Chang CC, Chang YP, Chen YL, Yen CF. Associations among Perceived Sexual Stigma from Family and Peers, Internalized Homonegativity, Loneliness, Depression, and Anxiety among Gay and Bisexual Men in Taiwan. Int J Environ Res Public Health 2022; 19(10):6225.. Apesar disso, um estudo conduzido na Holanda que avaliou os níveis gerais de saúde mental de indivíduos heterossexuais, bissexuais e homossexuais encontrou que os níveis gerais de saúde mental dos indivíduos bissexuais eram similares aos heterossexuais, que, por sua vez, eram melhores que os níveis dos indivíduos homossexuais2929 Sandfort TGM, Bakker F, Schellevis FG, Vanwesenbeeck I. Sexual orientation and mental and physical health status: Findings from a Dutch population survey. Am J Public Health 2006; 96(6):1119-1125..

Algumas características podem explicar as diferenças encontradas entre homossexuais e bissexuais em relação à depressão, apesar de nem sempre serem encontradas na literatura, e, por vezes, serem divergentes3030 Ross LE, Salway T, Tarasoff LA, MacKay JM, Hawkins BW, Fehr CP. Prevalence of Depression and Anxiety Among Bisexual People Compared to Gay, Lesbian, and Heterosexual Individuals:A Systematic Review and Meta-Analysis. J Sex Res 2018; 55(4-5):435-456.. A principal delas é o tipo de relacionamento social. Por pertencerem a uma sociedade cisheteronormativa, indivíduos bissexuais podem apresentar relacionamentos afetivos heterossexuais mais regularmente e, casualmente relacionar-se homoafetivamente3131 Muñoz-Laboy M, Garcia J, Wilson P, Parker R, Severson N. Heteronormativity and Sexual Partnering Among Bisexual Latino Men. Arch Sex Behav 2015; 44(4):895-902.. Deste modo, a orientação afetiva bissexual é parcialmente escondida, fazendo com que esses indivíduos sofram menos episódios de discriminação do que indivíduos homossexuais, explicando parcialmente a ausência de associação entre homofobia internalizada e depressão em indivíduos bissexuais no presente estudo.

Ainda, os achados apontam que ações preventivas relacionadas à homofobia internalizada tem o potencial de diminuir 2,3% a depressão nas mulheres e homens homossexuais. Um estudo realizado em países da Europa demostrou que a falta de aceitação da sexualidade a nível da sociedade é um dos fatores que diminui o bem-estar subjetivo de indivíduos em relacionamento homoafetivo3232 Van Der Star A, Bränström R. Acceptance of sexual minorities, discrimination, social capital and health and well-being: A cross-European study among members of same-sex and opposite-sex couples. BMC Public Health 2015; 15:812.. Além disso, o estigma familiar está diretamente associado a maior homofobia internalizada3333 Lin CY, Griffiths MD, Pakpour AH, Tsai CS, Yen CF. Relationships of familial sexual stigma and family support with internalized homonegativity among lesbian, gay and bisexual individuals: The mediating effect of self-identity disturbance and moderating effect of gender. BMC Public Health 2022; 22(1):1465. e ambos aumentam a depressão em indivíduos homossexuais2828 Lin HC, Chang CC, Chang YP, Chen YL, Yen CF. Associations among Perceived Sexual Stigma from Family and Peers, Internalized Homonegativity, Loneliness, Depression, and Anxiety among Gay and Bisexual Men in Taiwan. Int J Environ Res Public Health 2022; 19(10):6225. e podem culminar em ideação suicida3434 Costa AB, Pasley A, Machado WDL, Alvarado E, Dutra-thomé L, Koller SH. The Experience of Sexual Stigma and the Increased Risk of Attempted Suicide in Young Brazilian People from Low Socioeconomic Group. Front Psychol 2017; 8:192..

A partir desses achados, algumas intervenções a nível estrutural já foram propostas para reduzir efeitos do estresse de minorias. Destaca-se a criação de organizações que gerem “espaços seguros” para homossexuais, o aumento da visibilidade de minorias sexuais nas mídias e espaços físicos e o ensinamento sobre o “privilégio heterossexual” em escolas e universidades3535 Chaudoir SR, Wang K, Pachankins J. What reduces sexual minority stress? A review of the intervention "toolkit." J Soc Issues 2017; 73(3):586-617.. Por fim, considerando que no Brasil, o domicílio principal local de ocorrência de violência devido à orientação afetiva1010 Pinto IV, Andrade SSA, Rodrigues LL, Santos MAS, Marinho MMA, Benício LA, Correia RSB, Polidoro M, Canavese D. Profile of notification of violence against lesbiangay, bisexual, transvestite and transsexual people recorded in the national information system on notifiable diseases, Brazil, 2015-2017. Rev Bras Epidemiol 2020; 23(Supl. 1):e200006., fazer valer o atributo da atenção primária à saúde da orientação familiar é fundamental para a prevenção da homofobia internalizada e criação de mecanismos mais efetivos para lidar com o estigma e opressão.

Pontos fortes e limitações

Como pontos fortes, destaca-se o ineditismo da pesquisa em avaliar implicações da homofobia internalizada em minorias sexuais e de gênero brasileiras, considerando-se uma pesquisa realizada com participantes das cinco regiões brasileiras e uso de pós-estratificação na análise estatística.

Entretanto, como as limitações deste estudo, destaca-se o uso de uma amostra proveniente de uma pesquisa on-line, que se limita a participação da população em menor vulnerabilidade social devido ao acesso à internet, apesar de ser um método recorrente para acessar populações de difícil acesso. Segundo, a depressão foi avaliada através de autorrelato e, por isso, não se pode descartar a possibilidade de viés de informação gerando classificação erronia nos grupos de depressão ausente ou presente, no sentido de diminuição da força de associação. Terceiro, não se pode eliminar a possibilidade de causalidade reversa devido ao desenho do estudo, apesar de o modelo explicativo pressupor uma desregulação hormonal em ciclo, permitindo inferir a bidirecionalidade da associação encontrada. E, por último, como as diferenças das proporções de depressão em cada um dos domínios de homofobia internalizada foram pequenas, a ausência de associações por domínio, no presente estudo, pode ter sido pelo poder do teste insuficiente para o tamanho da amostra (<0,80). Deste modo, recomenda-se que estudos futuros com amostras maiores de minorias sexuais e de gênero explorem a associação entre depressão e os domínios da homofobia internalizada.

Conclusões

Os achados do presente estudo reforçam o papel crucial da homofobia internalizada na prevalência da depressão entre os indivíduos homossexuais. Deste modo, políticas públicas devem conter mecanismos que promovam sociedades com níveis reduzidos de homofobia entre os indivíduos homossexuais para promover a melhora da saúde mental de desses indivíduos.

Agradecimentos

TS Batista e FMP Tavares são bolsistas de iniciação científica financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
  • Publicado
    29 Nov 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br