Este editorial sobre “violência de gênero” traz dois destaques: o primeiro, um estudo que aponta cerca de 12 mil ocorrências de gravidez em crianças menores de 14 anos a cada ano no Brasil, sendo a maioria composta por meninas negras, residentes na região Norte, com piores desfechos no pré-natal, parto e condições dos nascidos vivos (baixo peso e Apgar). Grande parte delas foi vítima de estupro presumido e não teve acesso ao aborto legal, previsto em lei desde o Código Civil de 1940. O segundo é o crescimento de movimentos conservadores que tentam limitar os direitos das mulheres, especialmente, no campo da saúde reprodutiva e sexual. Muitos o fazem invocando o nome de Deus! Por exemplo, na Câmara dos Deputados tramita em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 1.904, de 2024, que condena com pena de homicídio os casos de abortamento, penalizando principalmente meninas de 10 a 14 anos, já vulnerabilizadas pela dupla carga de violência sexual e gravidez indesejada11 Pinto IV, Bernal RTI, Souza JB, Andrade GN, Araújo LF, Felisbino-Mendes MS, Souza MFM, Montenegro M, Vasconcelos N, Malta DC. Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021. Cien Saude Colet [periódico na internet]; 2024 [acessado 2024 jun 23]. Disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/gravidez-em-meninas-menores-de-14-anos-analise-espacial-no-brasil-2011-a-2021/19292?id=19292&id=19292. Felizmente há um levante dos movimentos sociais contra esse retrocesso e em defesa das meninas e mulheres.
Este número temático, porém, é muito mais amplo. Trata da violência de gênero contra as mulheres como um fenômeno complexo que retrata a dinâmica da sociedade, relacionada a iniquidades sociais e profundas desigualdades que limitam seu acesso à noção de dignidade22 Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. In: Oxford Research Encyclopedia of Global Public Health. London: Oxford University Press; 2018.. Estudo sobre vítimas de estupro em Minas Gerais, entre 2013 e 2021 mostra que o Estado reduziu o acesso aos tratamentos de emergência, “Lei do Minuto Seguinte” garantido pela Lei nº 12.845/2013, e diminuiu a probabilidade de menores de idade e indígenas, agredidas por conhecidos, receberem tratamento. Apesar de todos os avanços, a sociedade brasileira continua sob o predomínio do machismo e do racismo estrutural, panos de fundo dos naturalizados retrocessos.
Pesquisas de natureza qualitativa que investigam percepções das vítimas de violência, indicam piora na saúde, depressão, síndrome do pânico, insônia, distúrbios alimentares, além de consumo de bebidas alcoólicas. Análises sobre violência obstétrica destacam que a ocorrência destes eventos está permeada por questões de raça, gênero e classe. Por exemplo, mulheres de baixa renda que autoinduziram o aborto retardaram a busca por serviços e enfrentaram atitudes agressivas, constrangedoras e preconceituosas de profissionais de saúde.
Esta edição inclui ainda estudos sobre a Pesquisa Nacional de Saúde dos Escolares (PeNSE), amostra com mais de 150 mil adolescentes, que mostram outras formas contemporâneas de violência, como o cyberbullying, referido por 13,2% dos estudantes. Esse tipo de agressão ocorre mais frequentemente com meninas e se associa à piora de sua saúde mental e ao uso de drogas e tabaco. Os resultados alertam sobre o aumento da prevalência de tabagismo entre escolares, em função da oferta de produtos como cigarro eletrônico e narguilé. Nesse particular, considera-se uma ameaça ao futuro, a lei defendida pela indústria que libera a comercialização do cigarro eletrônico.
As contribuições deste número temático ampliam evidências sobre vários pontos que precisam de ação do setor saúde e da sociedade, visando aos compromissos da Agenda 2030 da ONU que propõe a eliminação de todas as formas de violência contra meninas e mulheres! Torna-se imperativo avançar na defesa de seus direitos, estruturando políticas de proteção, prevenção e de acesso aos serviços que realizam o aborto legal. Por tudo que foi dito, é urgente derrotar o PL 1.904/2024 que hoje está em tramitação no Congresso Nacional. “Criança Não É Mãe”! É um ser humano sujeito de direitos que deve ser protegido pela família e pelo Estado.
Referências
- 1Pinto IV, Bernal RTI, Souza JB, Andrade GN, Araújo LF, Felisbino-Mendes MS, Souza MFM, Montenegro M, Vasconcelos N, Malta DC. Gravidez em meninas menores de 14 anos: análise espacial no Brasil, 2011 a 2021. Cien Saude Colet [periódico na internet]; 2024 [acessado 2024 jun 23]. Disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/gravidez-em-meninas-menores-de-14-anos-analise-espacial-no-brasil-2011-a-2021/19292?id=19292&id=19292
- 2Minayo MCS, Franco S. Violence and Health. In: Oxford Research Encyclopedia of Global Public Health. London: Oxford University Press; 2018.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 - Data do Fascículo
Set 2024