Racismo obstétrico, um debate em construção no Brasil: percepções de mulheres negras sobre a violência obstétrica

Ariane Teixeira de Santana Telmara Menezes Couto Keury Thaisana Rodrigues dos Santos Lima Patricia Santos de Oliveira Aiara Nascimento Amaral Bomfim Lilian Conceição Guimarães Almeida Lúcia Cristina Santos Rusmando Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é conhecer a percepção de mulheres sobre a violência obstétrica em uma perspectiva racial. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada em uma maternidade pública, com 25 mulheres, no município de Salvador, Bahia, Brasil. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e observação participante, no período de novembro de 2021 a fevereiro de 2022. Utilizou-se, para organização dos dados obtidos através das entrevistas, a análise de conteúdo. Os resultados foram analisados através das contribuições teóricas da interseccionalidade, tendo como foco a interação entre violência obstétrica e racismo obstétrico. As narrativas discorrem sobre questões da violência obstétrica, racismo institucional, e como essas vivências são permeadas pelas questões de raça, gênero e classe. Foram apontadas também questões relacionadas aos sentimentos dessas mulheres frente a vivência da violência no momento da assistência ao parto. O racismo obstétrico nega os direitos reprodutivos e dificulta o acesso a uma assistência respeitosa e equânime as mulheres negras.

Palavras-chave:
Violência obstétrica; Racismo obstétrico; Racismo institucional; Interseccionalidade; Direitos Reprodutivos

Introdução

O presente artigo busca apontar os aspectos contextuais sobre a violência obstétrica amparada pela raça, ou racismo obstétrico, a partir de percepções de mulheres negras, tendo como foco de análise a correlação com os principais marcadores de opressão social. Para isso, utilizou-se o arcabouço teórico-filosófico sobre epistemologia da interseccionalidade.

É importante salientar que garantir uma vida livre de violência e discriminação racial para todas as mulheres e pessoas com útero é um dever do Estado brasileiro11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Direito a uma vida livre de violência. Brasília: MS; 2013.

2 Organização das Nações Unidas (ONU). Abordagem de abuso baseada em direitos humanos e violência contra a mulher nos serviços de saúde reprodutiva, com ênfase especial no cuidado ao parto e violência obstétrica. Assembleia Geral n º74/137. Genebra: ONU; 2019.
-33 Organização das Nações Unidas (ONU). Technical guidance on the application of a human rights based approach to the implementation of policies and programmes to reduce preventable maternal morbidity and mortality. UM General Assembly. Geneva: ONU; 2012.. Entretanto, o Estado não honrou, quando não garantiu a Alyne da Silva Pimentel Teixeira, seu direito a uma assistência digna, violando o artigo 12, do parágrafo 2º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. A vítima era uma jovem mulher de origem negra, que morreu em decorrência de complicações obstétricas44 Organização das Nações Unidas (ONU). Relatório Alyne da Silva Pimentel Teixeira (falecida). Brasília: Comitê CEDAW; 2011.,55 Organização das Nações Unidas (ONU). Abordagem de abuso baseada em direitos humanos e violência contra a mulher nos serviços de saúde reprodutiva, com ênfase especial no cuidado ao parto e violência obstétrica. Genebra: ONU; 2019..

Para a Organização das Nações Unidas (ONU), a violência contra as mulheres no campo da saúde sexual e reprodutiva é uma questão de direitos humanos e viola as disposições da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da qual o Brasil é signatário55 Organização das Nações Unidas (ONU). Abordagem de abuso baseada em direitos humanos e violência contra a mulher nos serviços de saúde reprodutiva, com ênfase especial no cuidado ao parto e violência obstétrica. Genebra: ONU; 2019.. O caso Alyne Pimentel é emblemático sobre racismo, violência obstétrica, negligência e má assistência, onde torna o Brasil o primeiro país do mundo a responder em uma corte internacional, por uma morte materna.

A violência obstétrica afeta as mulheres de diferentes formas, entretanto, as mulheres negras são as que mais sofrem esse tipo de violência no país, conforme dados apontados no estudo da pesquisa de base populacional “Nascer no Brasil”. Tal pesquisa evidenciou que mulheres negras possuem 62% maior razão de chance de terem pré-natal inadequado, 23% de falta de vinculação à maternidade, 67% de ausência de acompanhante no parto e 33% de peregrinação anteparto66 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1)..

Não obstante, episiotomia, analgesia peridural e cesariana eletiva, são procedimentos realizados com mais frequência em mulheres brancas e com alta escolaridade. Vale ressaltar, que 49% das episiotomias realizadas em mulheres negras, foram feitas sem anestesia local. A princípio, parece um contrassenso, mas na verdade isso é mais uma evidência de violência e racismo obstétrico, frutos das disparidades raciais na atenção à gestação e ao parto, que mulheres negras vivenciam nas maternidades do país66 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1)..

O termo racismo obstétrico foi cunhado recentemente pela pesquisadora estadunidense Dána-Ain Davis77 Davis DA. Obstetric Racism: The Racial Politics of Pregnancy, Labor, and Birthing. Med Anthropol 2019; 38(7):560-573., para ela o racismo obstétrico tem lugar na intersecção entre a violência obstétrica e o racismo médico. Ela traz que, assim como a violência obstétrica é uma violência baseada no gênero, o racismo obstétrico é uma violência que se situa na interseção da violência obstétrica entre raça e gênero. Assim, o termo sugere que a violência institucional e a violência contra as mulheres se fundem ao racismo estrutural na saúde reprodutiva da mulher, além de colocar as mulheres negras e seus filhos em risco77 Davis DA. Obstetric Racism: The Racial Politics of Pregnancy, Labor, and Birthing. Med Anthropol 2019; 38(7):560-573..

Segundo Davis, existem sete dimensões do racismo obstétrico: lapsos diagnósticos; negligência, descaso ou desrespeito; causar dor intencionalmente; coerção; cerimônias de degradação; abuso médico. Esta violação caracteriza situações em que pacientes obstétricas experimentam dominância reprodutiva por profissionais e equipe de saúde, agravada pela raça da paciente ou pela história de crenças raciais que influenciam o tratamento ou as decisões diagnósticas77 Davis DA. Obstetric Racism: The Racial Politics of Pregnancy, Labor, and Birthing. Med Anthropol 2019; 38(7):560-573..

No Brasil, cerca de 60% das mulheres que morrem por causas obstétricas, são negras. É importante observar que as mortes por causas obstétricas são, na sua maioria, possíveis de serem evitadas em 90% dos casos se as mulheres e pessoas gestantes tivessem um atendimento de saúde adequado. É de suma importância que o racismo nas instituições de saúde seja aniquilado, para possibilitar e garantir a equidade na saúde de mulheres negras e não negras no país88 Goes EF, Ramos DO, Ferreira AJ. Fortes Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00278110..

De acordo com os dados apresentados pela pesquisa “Nascer no Brasil”, ainda que a violência obstétrica atinja irrestritamente todas as mulheres, são as negras aquelas mais acometidas. Os estudos demonstram que os indicadores de qualidade da atenção ao parto, quando comparadas a assistência recebida por mulheres brancas, são piores avaliados por mulheres negras99 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1):e00078816.. Portanto, as dificuldades geradas pelo racismo institucional são significativas para que as mulheres negras sejam privadas de condições dignas de vida e, em particular, de saúde, ao dificultar seu pleno acesso aos serviços e a uma atenção integral voltada às suas reais necessidades88 Goes EF, Ramos DO, Ferreira AJ. Fortes Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trab Educ Saude 2020; 18(3):e00278110..

Este estudo desponta em relevância, uma vez que busca dirimir as lacunas existentes na literatura quanto a uma abordagem antirracista da assistência obstétrica, apontando caminhos para o cuidado digno, respeitoso e equânime. Além disso, realça um convite às instituições e a(o)s profissionais envolvidas(o)s na assistência obstétrica para refletirem sobre a qualidade da assistência prestada às mulheres, em especial as negras.

No intuito de contribuir na discussão para uma assistência digna e respeitosa, este estudo tem como objetivo conhecer a percepção de mulheres sobre a violência obstétrica em uma perspectiva racial.

Método

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa. O cenário do estudo escolhido foi uma maternidade pública da cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Esta seleção ocorreu devido à unidade prestar atendimento obstétrico à população do distrito da Liberdade, o qual possui o maior número de pessoas negras da cidade de Salvador, conforme apontam os dados do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE)1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Além disso, a escolha desta instituição esteve motivada por esta ser referência para assistência obstétrica ao parto de risco habitual na rede estadual de saúde. Quanto a preferência do município de estudo, esta esteve condicionada em razão de Salvador ser considerada a cidade de maior número de negro(a)s no Brasil1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010..

O universo empírico deste estudo foi composto por 25 mulheres admitidas na maternidade no momento da assistência ao parto, as quais foram incluídas gestantes e/ou puérperas mediante classificação de duas ou mais variáveis (ex.: presença de acompanhante, de livre, manobra de Kristeller, episiotomia, dentre outras) correspondente a violência obstétrica. Estas variáveis foram descritas em instrumento, também utilizado para coleta de dados, construído pela autora principal deste estudo. As participantes foram contatadas por meio da identificação em prontuário de duas ou mais variáveis de violência obstétrica. Após essa seleção, as mulheres eram localizadas nas enfermarias e convidadas a participarem do estudo. Não houve dificuldade para a realização deste estudo. Foram excluídas mulheres que não tiveram condições físicas e emocionais de participarem da pesquisa, tendo alguma dificuldade que impossibilitasse as respostas técnicas ao instrumento da produção de dados.

Os dados foram produzidos a partir de entrevistas norteadas por instrumento semiestruturado entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022, utilizando-se a técnica da observação participante e entrevista guiada. Quanto à observação participante, houve livre circulação da pesquisadora principal deste estudo em todos os espaços de atendimento obstétrico (centro cirúrgico, obstétrico e enfermarias), em expediente administrativo. O instrumento continha dados sociodemográficos e obstétricos guiados por questões norteadoras abertas direcionadas para as experiências das mulheres quanto a episódios de violência obstétrica, além das variáveis que caracterizam este tipo de violência.

As entrevistas foram realizadas em espaço institucional privativo, pela pesquisadora principal, com apoio de uma integrante do Grupo de Pesquisa denominado Grupo de Estudos sobre saúde da mulher no período gravídico-puerperal (GESTAR) devidamente treinada. Estas tiveram duração média de 30 minutos e foram gravadas com auxílio do gravador de áudio de aparelho telefônico e transcritas na íntegra, para tanto utilizou-se a ferramenta do Microsoft Word. As entrevistas foram arquivadas no computador pertencente ao GESTAR, e serão descartadas após cinco anos.

Para a análise dos resultados, utilizou-se a Análise Temática de Conteúdo proposta por Laurence Bardin1111 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., a qual decorre das seguintes etapas: organização da análise; codificação; categorização; tratamento dos resultados, inferência e a interpretação dos resultados.

As categorias temáticas foram criadas e incorporadas as contribuições teóricas sobre os conceitos de interseccionalidade, que fornece subsídio epistêmico para compreender como raça, gênero e classe contribuem como marcadores estruturantes nas condições de saúde de mulheres negras.

Em relação aos aspectos éticos, respeitou-se os princípios da bioética, que garantem o anonimato. Assim, as participantes desse estudo foram identificadas com nomes de mulheres negras que se destacaram na história de luta e resistência brasileira contra o racismo. Este estudo foi inserido na Plataforma Brasil e avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, obtendo parecer favorável consubstanciado de número 4.447.699/2020.

Resultados

Neste estudo, participaram 25 mulheres na faixa etária entre 16 e 34 anos, sendo que 100% delas declararam-se da raça/cor negra. Quanto à escolaridade, 80% das mulheres possuíam ensino fundamental e médio (incompleto ou completo); e 20% apenas tinham ensino superior incompleto ou completo. Em relação à ocupação, a maioria da população (60%) possui atividade relacionada ao trabalho invisível e marginalizado (dona de casa, babá, serviços gerais, lavradora e atendente de caixa). Além disso, cerca de 52% das mulheres não exerciam atividades remuneradas.

A análise de conteúdo fez emergir duas categorias temáticas: percepção de mulheres negras sobre a violência obstétrica na perspectiva da interseccionalidade de raça, gênero e classe social; e percepção de mulheres negras sobre os sentimentos gerados pela vivência da violência obstétrica. Estas categorias demonstram quanto o racismo obstétrico está inserido nos cenários das práticas em saúde, institucionalizado no cuidado profissional, sentido e percebido nas vivências das mulheres que são assistidas nos serviços. Esta configuração ressalta a perspectiva da violência obstétrica permeada pela racialidade no sistema de saúde e, sobretudo, a opressão experienciada pelas mulheres em um momento tão vulnerável como o processo de parto.

Por meio da observação participante, foram reconhecidas situações de racismo institucional, no que tange a estética corporal de mulheres negras. Com destaque especial para mulheres que estavam utilizando tranças sintéticas no momento que adentravam o centro cirúrgico. Foram presenciadas falas e comportamentos discriminatórios de profissionais médicos com essas pacientes.

Percepção de mulheres negras sobre a violência obstétrica na perspectiva da interseccionalidade de raça, gênero e classe social

De acordo com as narrativas abaixo, apreendemos como as mulheres percebem que os determinantes de raça, gênero e classe social se estabelecem enquanto um sistema de opressão em um ambiente de assistência obstétrica.

[...] descaso, por causa da cor? Por que com umas tinha tanto suporte, comigo nada? Por que sou de cor provavelmente? Fica a pergunta, entendeu? (Elsa Soares).

Sim, meu marido é preto [...] moreno. Ele veio ver o filho, não deixaram entrar, quando chamaram a assistente social eles deixaram, já é o fato da cor dele, por causa da cor dele, porque a mesma coisa aconteceu com outro pai de uma criança aqui (Adelina).

[...] meu companheiro usa dread no cabelo [...] fomos ignorados principalmente no centro cirúrgico que não o deixaram entrar [...]. Além disso, a maioria das pessoas que estão nesse cenário são mulheres, e muitas delas estavam insensíveis em meu atendimento. Essas mulheres deveriam estar fortalecendo as outras mulheres a vivenciarem o protagonismo de seus partos e não ajudando a colocar as mulheres em uma posição de submissão [...] (Aqualtune).

As mulheres conseguem perceber as violências vivenciadas por elas. A cor é padrão determinante do cuidado, conforme apontou uma das participantes em sua fala. Observamos ainda como o gênero se relaciona com a raça, gerando uma ideia de corpo resistente à dor. O corpo que suporta, e do qual ninguém se importa.

Essa observação também pode ser constatada pela pesquisadora, onde em um momento em que uma paciente estava sendo tratada por um choque hemorrágico, uma das médicas que estava prestando assistência debochou sobre a situação da paciente.

Eu acho que esperam que a gente seja a mulher maravilha e que aguente tudo, mas não é assim. Cada mulher sente de um jeito (Dandara de Palmares).

A gente é fraca de dinheiro, por isso que eles fazem esses maus-tratos, acham que não temos como fazer nada (Adelina).

Sinto raiva desse lugar, porque eu não pude fazer nada e é uma coisa que a gente tem que ficar passando, porque somos de uma classe inferior e não tem como recorrer, infelizmente a gente tem que ficar, abafar e não fazer mais nada [...] (Carolina de Jesus).

Essas violências acontecem porque somos pobres, ninguém liga para a gente não [...] (Ruth de Souza).

Esses discursos estão impregnados pelos sentimentos de invisibilidade que ancorados no viés da classe e raça, trazem consigo o pertencimento primário da raça e do gênero. Aqui podemos observar como os marcadores sociais se relacionam em uma estrutura opressiva que propulsiona e perpetua a violência obstétrica, através da subjugação e vulnerabilização de mulheres negras.

Percepção de mulheres negras sobre os sentimentos gerado pela vivência da violência obstétrica

Esta segunda categoria está relacionada à percepção dessas mulheres sobre os sentimentos gerados e experienciados pela vivência da violência obstétrica, quando relacionados a procedimentos abusivos, de caráter humilhante, desrespeitosos, negligentes e omissos, que foram vividos por elas durante a assistência obstétrica.

Me senti oprimida, desesperada, coagida e tratada de forma desumana naquele local (Aqualtune).

Foi horrível, me sentir agredida. Não consegui falar [...] minha mãe só fazia chorar. O que custava ela perguntar se podia tirar meu bebê de dentro de mim? [...] (Zeferina).

Eu sinto raiva. Tem alguns médicos que para eles é só mais um, é mais uma mãe, é mais um bebê. Mas para a gente é um momento único, e a gente quer que seja especial. Então assim, para mim foi um momento muito doloroso, eu queria que sumisse logo, queria isso (Dandara de Palmares).

[...] Depois de tudo que fizeram comigo [...] se eu tivesse poder, eu iria adiante e processaria o hospital, mas eu não tenho financeiro, não tenho inteligência para fazer essas coisas não (Carolina de Jesus).

Simplesmente eu não tive nenhuma autonomia sobre meu corpo e nenhum protagonismo no nascimento do meu filho. Me senti um pedaço de carne, sem vida, sem dignidade sobre uma maca [...] (Aqualtune).

Inferimos, através dos discursos, como a violência obstétrica gera sentimentos negativos para as mulheres que vivenciam o processo de parto. Apesar dos múltiplos relatos trazerem suas histórias de forma singular, sobre suas percepções da violência obstétrica, identificamos sentimentos negativos ao se lembrarem de suas histórias de parto.

Discussão

Os resultados demonstraram que as mulheres perceberam a violência obstétrica, permeada pelos marcadores estruturais e estruturantes de opressão social, como instrumentos de perpetuação de poder e colonialidade corporal. Assim, a interseccionalidade se revela como uma teoria transdisciplinar que alcança o potencial analítico para compreender as identidades presentes nas desigualdades sociais dos grandes eixos de opressão, que se encontram nas categorias de raça, gênero e classe1212 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Para compreendermos como esses marcadores de opressão operam na nossa sociedade, precisamos nos debruçar em direção ao componente biológico presente nas categorias de raça e gênero. E como essas diferenças são utilizadas para subjugação e obtenção de poder ao longo dos anos pelo opressor.

O racismo tem sua origem no colonialismo e no sistema escravocrata, mas o fim do regime de exploração racial não foi o suficiente para abolir a construção social de inferiorização de pessoas negras. Deste modo, o racismo é um efeito estrutural da sociedade, que regula e estabelece como verdade padrões e regras baseadas em princípios discriminatórios de raça. Assim, o racismo é parte de um processo social, histórico e político, que forja estruturas para que pessoas ou grupos sejam discriminados de maneira sistemática1313 Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra; 2019..

Historicamente, no Brasil, a pobreza ocupa um status racial. Segue impondo seus efeitos coloniais de exploração da miséria, fruto da expropriação de pessoas escravizadas. Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a violência obstétrica, observamos, com o resultado desta pesquisa, que as mulheres negras se percebem mais afetadas pela violência, e em maior vulnerabilidade, quando analisamos sob a perspectiva interseccional.

Tal situação encontra-se reforçada pelo perfil sociodemográfico apresentado no estudo, corroborando com dados do Instituto Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), demonstrando que nos últimos anos, a escala de remuneração manteve-se inalterada em toda a série histórica, onde: homens brancos têm os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras1414 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Retrato das desigualdades de gênero e raça [Internet]. 2017 [acessado 2022 maio 11]. Disponível em: http://ipea.gov.br/retrato/.
http://ipea.gov.br/retrato...
. Essa situação de vulnerabilidade econômica é um grande expoente de diversas situações de violências para as mulheres em espaços públicos e privados, em função de sua condição de raça e gênero.

É importante refletir que, apesar de muitos debates na atualidade abordarem raça e gênero como questões paralelas, faz-se necessário dizer que estas não são categorias que se equiparam. A realidade das mulheres negras é um fenômeno híbrido, atravessado pela vivência racial e pelo gênero1414 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Retrato das desigualdades de gênero e raça [Internet]. 2017 [acessado 2022 maio 11]. Disponível em: http://ipea.gov.br/retrato/.
http://ipea.gov.br/retrato...
. A mulher negra é o outro do outro, ou seja, nem é branca nem é homem, uma antítese, ocupando uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Assim, podemos compreender que raça e gênero se articulam dialeticamente nas expressões dispostas pelo patriarcado.

Em suas narrativas, as mulheres desta pesquisa trouxeram a desvalorização de seus corpos pretos no cenário da assistência obstétrica. Estas refletem, ainda, a violência de gênero praticada pelas profissionais de saúde como agentes que operacionalizam as relações assimétricas de poder. Visto que tais práticas de saúde seguem naturalizadas através dos significados culturais e estereotipados, onde há desvalorização e submissão da mulher horizontalizadas pela ideologia colonizadora e patriarcal1515 Kilomba G. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019..

Os corpos de mulheres negras estão postos como invisíveis, apontados pela desimportância da vida, segundo a racialidade, que imprime e determina o descaso e a desatenção para com esses corpos. Sendo estes atravessados pela zona da desumanização corpórea e estereotipados pelo olhar colonizado. A invisibilidade estrategicamente utilizada pela branquitude é aquela em que define os termos da relação, uma dialética de apagamento racial cotidiano. Portanto, é importante ressaltar que o racismo obstétrico dificulta o cuidado à saúde reprodutiva das mulheres negras, além de ser uma ameaça aos resultados satisfatórios do parto77 Davis DA. Obstetric Racism: The Racial Politics of Pregnancy, Labor, and Birthing. Med Anthropol 2019; 38(7):560-573.,1616 Zanardo GLP, Uribe MC, Nadal AHR, Habigzang LF. Violência Obstétrica no Brasil: Uma Revisão Narrativa. Psicol Soc 2017; 29:e155043..

É importante compreender que muito do conhecimento médico em obstetrícia adquirido e praticado ainda hoje, foi desenvolvido a partir da experiência com mulheres pobres ou escravizadas da época. Um exemplo conhecido é a respeito do médico americano James Marion Sims, considerado como “pai da ginecologia moderna”. Sims realizava cirurgias nas mulheres sem anestesia, pois segundo ele, as mulheres pretas tinham uma tolerância fisiológica incomum para a dor1717 Hooks b. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 2020.. O mito de que a mulher negra é resistente à dor surge através dessas experiências de intervenções cruéis e desumanas. Essa teoria é usada até hoje para refutar a execução de condutas abusivas e violentas na prestação de assistência às mulheres negras no parto. Vale ressaltar que neste panorama, além de vivenciar racismo obstétrico e violência, as mulheres de modo geral perderam espaço e autonomia, pois o parto passa a ser centrado na figura hegemônica médica.

A desvalorização e desumanidade ligada à mulher negra é uma construção racista e sexista da nossa herança colonial, que se legitima nas relações de biopoder, muito vista na prática em saúde, expressas através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos a serviço da colonização, domesticação, eugenia e repressão1818 Wasington HA. Medical apartheid: The dark history of medical experimentation on black americans from colonial times to the present. New York: Harlem Moon; 2007.,1919 Carneiro AS. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005.. Não distante desta relação de subjugação dos corpos com foco no controle, ampara-se o cuidado da mulher no período gravídico puerperal.

As instituições são compostas por hierarquias de dominação, onde essa relação intrínseca de poder contribui para a hegemonia de determinados grupos sociais em detrimento de outros. O racismo institucional, produz e mantém essas estruturas hierárquicas de dominação racial de matriz discriminatória para manutenção de seus interesses sociais, políticos e econômicos, definindo regras e condutas que são naturalizadas. Essas condutas discriminatórias são produzidas e difundidas sistematicamente, a ponto de eliminar o debate sobre as desigualdades raciais e de gênero presentes nas instituições1313 Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra; 2019..

As mulheres negras têm piores resultados assistenciais, menos acesso aos serviços de saúde e piores indicadores de qualidade na assistência, em toda a sua trajetória obstétrica, comparada às mulheres brancas99 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 1):e00078816.. Sentimentos de desespero, coação, agressão, desumanização e raiva são percebidos por mulheres não brancas, por meio de expressões que caracterizam sentimentos de opressão. As mulheres do estudo ainda se percebem impotentes, privadas de autonomia e dignidade, tais sentimentos estão mediados por relações de poder e classe2020 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora; 2020..

No Brasil, é importante reconhecer o racismo como um dos fatores centrais na produção das iniquidades em saúde por mulheres negras, como determinantes estruturais que moldam as piores condições de vida e de trabalho, bem como a falta de acesso à saúde e a falta de oportunidades da população negra, particularmente das mulheres. A organização estrutural da sociedade brasileira e as diversas formas de marginalização das mulheres negras continuam a criar barreiras de acesso e, consequentemente, limitar essas mulheres a serviços de saúde de segunda ou terceira ordem2121 Adebayo CT, Parcell ES, Valhmu LM, Olukotun O. African American Women's Maternal Healthcare Experiences: A Critical Race Theory Perspective. Health Commun 2022; 37(9):1135-1146..

Considerações finais

Raça é uma categoria social não uma condição biológica que eleva o risco de certos diagnósticos e disparidades de saúde. O racismo foi, e continua a ser, sistematicamente, incorporado em nossa sociedade e na prática de saúde. Sendo uma estatura de pressão e subjugação pela raça. Assim, ele está presente nas instituições de poder, onde o ambiente hospitalar está fortemente representado. Ademais, se reflete nas relações de opressões sociais pela lógica do biopoder e, consequentemente, desvela nas práticas de assistência reprodutiva em nossa sociedade. O que se reflete na invisibilidade dos corpos de mulheres negras tornando-as mais vulneráveis ao fenômeno da violência na assistência obstétrica.

A desigualdade entre raça, gênero e classe produzem profundas disparidades na saúde de mulheres e pessoas com útero no nosso país. Esses marcadores sociais considerados estruturantes, estão diretamente relacionadas às injustiças sexuais e reprodutivas vividas por essa população. Por esta razão, torna-se fundamental conectar as lutas contra o racismo institucional, a violência de gênero e a violência obstétrica, para produzir um efeito mais profundo no combate a essas iniquidades na assistência obstétrica.

É fundamental compreender que o corpo de uma mulher negra é forjado por um acumulado de dores que se intersecionam, dores essas, pautada pelo gênero e pelo componente racial. Por tanto, faz-se necessário pensar estratégias que incluam no cuidado, a percepção dos determinantes sociais para um atendimento integral e respeitoso. É preciso estabelecer medidas facilitadoras de aproximação e acesso, de modo a superar as barreiras interpostas ao exercício do direito à saúde pelas mulheres negras, fortalecendo políticas públicas antirracista.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2023
  • Aceito
    04 Dez 2023
  • Publicado
    06 Dez 2023
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