Estupro e lei do minuto seguinte em Minas Gerais, Brasil: fatores sociodemográficos associados às profilaxias de emergência

Rape and the “minute-after” law in Minas Gerais, Brazil: socio-demographic factors associated with emergency prophylaxis

Ane Caroline Alves Vieira Gustavo Carvalho Moreira Aline Cristina da Cruz Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa investigou a relação entre características sociodemográficas das meninas e mulheres vítimas de estupro em Minas Gerais, no período de 2013 a 2021, e a probabilidade de receberem tratamentos de emergência, conforme estabelecido na Lei nº 12.845/2013, conhecida como Lei do Minuto Seguinte. Utilizou-se os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) para casos de estupro para estimação de modelos de escolhas binárias. Os resultados indicam que fatores sociodemográficos das vítimas, alinhados à teoria e à prática da interseccionalidade (raça, idade, local de residência dentro das regiões de saúde, relação com o agressor e ano do registro do crime) influenciam, negativamente, a probabilidade de receberem o tratamento de emergência. Em particular, vítimas indígenas, menores de idade, agredidas por conhecidos e residentes em determinadas regiões de saúde demonstraram ter menor probabilidade de receber cuidados médicos imediatos. após o estupro. Além disso, constatou-se que a implementação da política pública não resultou em melhoria, já que, desde a promulgação da Lei, em 2013, até o ano 2021, houve diminuição no número de atendimentos médicos realizados.

Key words:
Unified Health System; Violence against women; Post-exposure prophylaxis

Abstract

This research project investigated the relationship between sociodemographic characteristics of girls and women who were the victims of rape of in Minas Gerais between 2013 and 2021, and the likelihood of receiving emergency treatment as stipulated in Law No. 12,845/2013, known as the "Minute-After" (Minuto Seguinte) Law. Data from the Notifiable Diseases Information System (SINAN) for rape cases were used to estimate binary choice models. The results indicate that the sociodemographic factors of the victims, aligned with the theory and practice of intersectionality (race, age, place of residence within health regions, relationship with the perpetrator, and year of crime registration), negatively influence the probability of receiving emergency treatment. Specifically, indigenous victims, minors, those raped by acquaintances, and residents in certain health regions, were found to have a lower probability of receiving immediate medical care after rape. Furthermore, it was found that the implementation of public policy did not result in an improvement, as there has been a decrease in the number of medical appointments since the enactment of the law in 2013 through to the year 2021.

Key words:
Unified Health System; Violence against women; Post-exposure prophylaxis

Introdução

O Brasil ostenta dados alarmantes de violência sexual e, diariamente, milhares de pessoas, principalmente, meninas e mulheres, são vítimas do crime de estupro, que consiste no ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com este se pratique outro ato libidinoso11 Bitencourt CR. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 4: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. 12ª ed. São Paulo: Saraiva Educação; 2018.. Também há a ocorrência de referido ilícito, quando a ofendida é menor de quatorze anos ou, por causa transitória ou permanente, não tem o necessário discernimento para a realização do ato sexual ou não consegue oferecer resistência22 Mirabete JF, Fabbrini RN. Manual de Direito Penal. São Paulo: Grupo GEN; 2021..

Depreende-se do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) que, dos anos de 2012 a 2021, 583.156 pessoas foram vítimas de citada forma de violência sexual no país33 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP; 2022.. Somente, em 2021, foram registrados 66.020 boletins de ocorrência, subsistindo a taxa de 30,9 por 100 mil habitantes, ou seja, um estupro a cada 10 minutos, sendo as mulheres 88,2% das vítimas e 52% da raça negra44 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP; 2021..

O estupro é uma grave violação aos direitos humanos e pode acarretar diversas implicações negativas às meninas e mulheres, como gravidez não planejada; aborto inseguro; disfunção sexual; infecções sexualmente transmissíveis - incluindo HIV; fístula traumática; depressão; transtorno por estresse pós-traumático; ansiedade; dificuldade para dormir; sintomas somáticos; comportamento suicida e transtorno de pânico55 Organização Mundial de Saúde (OMS). OMS Aborda as consequências da violência sexual para a saúde das mulheres [Internet]. 2018 [acessado 2023 set 10]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/80616-oms-aborda-consequências-da-violência-sexual-para-saúde-das-mulheres.
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. Assim, no intuito de conferir dignidade às vítimas e dirimir os efeitos da agressão, em 2013, entrou em vigor a Lei nº 12.845, a “Lei do Minuto Seguinte”66 Brasil. Casa Civil. Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Diário Oficial da União 2013; 2 ago.. Esta norma perfaz um instrumento de política pública de assistência às pessoas em situação de violência sexual, prelecionando que é dever do Estado, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), oferecer-lhes atendimento médico o mais rápido possível, de forma gratuita e universal77 Pessoa GS. Mulheres têm que viajar a São Paulo por aborto legal [Internet]. Folha de São Paulo; 2024 [acessado 2024 jan 14]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/02/mulheres-tem-que-viajar-a-sao-paulo-por-aborto-legal.shtml.
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, concernente à contracepção de emergência, ao tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, do HIV e da Hepatite B.

O Estado brasileiro, todavia, é marcado por desigualdades, as quais podem repercutir sobre a efetivação de tais atos médicos. Segundo levantamento do Ministério da Saúde (2021), em 2018, somente 40% das vítimas de estupro foram atendidas pelo SUS. E, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), em 2016, apenas 20,2 mil das 49,5 mil vítimas de estupros foram socorridas por equipe médica e, em 2017, apenas 24 mil dos 60 mil casos de estupro receberam tratamento em algum hospital.

Já a pesquisa realizada pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, no ano de 2022, pontua que, após os episódios de violência, apenas 5% das mulheres vítimas foram à polícia e a uma unidade de saúde, e oito, em cada dez, afirmaram não ter procurado nenhuma forma de atendimento88 Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva. Violência contra mulheres em dados. 81% das mulheres não procuram nenhum serviço de atendimento após estupro [Internet]. 2024 [acessado 2024 jan 14]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/81-das-mulheres-nao-procuram-nenhum-servico-de-atendimento-apos-estupro/.
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, com o agravante de que 51% dos brasileiros informaram não ter conhecimento da Lei do Minuto Seguinte99 Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva. Dossiê violência contra as mulheres. [Internet]. 2024 [acessado 2024 jan 14]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-sexual/.
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.

Diante de tal cenário, este estudo buscou resposta à seguinte indagação: “Fatores sociodemográficos das meninas e mulheres vítimas de estupro afetam a probabilidade de realização das medidas terapêuticas de emergência previstas na Lei do Minuto Seguinte, consistentes em profilaxias HIV, IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Hepatite B e contracepção de emergência?”. Para tal, a hipótese é de que: fatores sociodemográficos das vítimas de estupro afetam a probabilidade de acesso às medidas terapêuticas de emergência, disciplinadas na Lei do Minuto Seguinte, após o episódio de violência sexual.

Dito isso, o objetivo deste estudo foi analisar a relação entre fatores sociodemográficos das vítimas de estupro do gênero feminino, sob a perspectiva interseccional (raça, faixa etária, vínculo com o agressor, macrorregião de saúde de residência, município que conta com atendimento médico especializado e ano de registro da ocorrência do crime) e a probabilidade de acesso às profilaxias de emergência, após a agressão sexual. A área de estudo é o estado de Minas Gerais, no período de 2013 a 2021, posto que, além de ter o maior número de municípios no país, é um dos entes mais populosos1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades e Estados [Internet]. 2024 [acessado 2023 out 14]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados.
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e possui grande diversidade econômica, cultural e social, podendo ilustrar algumas peculiaridades da Federação.

Metodologia

Delimitação do objeto de estudo e fonte de dados

Apesar de não se olvidar que a Lei do Minuto Seguinte é uma norma de aplicabilidade em todo o território nacional, é preciso fazer uma delimitação geográfica para o presente questionamento pelo fato de o Brasil ter dimensões continentais. O marco temporal compreende os anos de 2013 a 2021, por conta da data em que a lei entrou em vigor (2013) e dos dados mais atuais disponibilizados (2021), de forma a abranger também parte do período referente à pandemia da COVID-19 (2020 e 2021).

O estudo foi baseado em dados secundários referentes a casos de ocorrência de conjunção carnal (penetração completa ou incompleta do pênis na vagina) ou de ato libidinoso diverso do coito vagínico, correspondente a toda ação atentatória contra o pudor perpetrada com o propósito lascivo, havendo contato físico entre o agente e a vítima, como sexo oral e anal. A amostra engloba toda a população feminina de Minas Gerais que recorreu ao SUS, após o ato de violência: meninas (de 0 a 18 anos de idade), ou seja, crianças, adolescentes e mulheres (maiores de 18 anos). Para tal, foi utilizado o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN), módulo “violência interpessoal/autoprovocada”, disponibilizado pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus).

Análise empírica e variáveis selecionadas

Foram utilizados Modelos de Resposta Qualitativa Binária (Probit) para estimar a probabilidade condicional de uma pessoa do sexo feminino, que recorreu ao SUS após ser vítima de violência sexual, ter acesso a cada uma das seguintes profilaxias de emergência: profilaxia IST/DST, profilaxia HIV, profilaxia hepatite B e contracepção de emergência - profilaxia gravidez; e com base nas suas características sociodemográficas observáveis representadas pelo vetor x i , ou seja, P (y i = 1|x i ). O cômputo da probabilidade é dado pela Equação (1)1111 Cameron AC, Trivedi PK. Microeconometrics: methods and applications. Cambridge: Cambridge University Press; 2005.:

pi=P(yi=1xi)=φ(xiβ)(1)

Em que x i representa o vetor de variáveis explicativas presentes no Quadro 1; y i assume valor 1 se foi realizado o procedimento profilático j na pessoa i; β representa os parâmetros a serem estimados; e φ(.) é a função de distribuição acumulada da normal.

Quadro 1
Variáveis independentes utilizadas para explicar a probabilidade de acesso às profilaxias de emergência pelas vítimas de estupro.

Os efeitos marginais obtidos para a interpretação das probabilidades estimadas são descritos conforme Equação (2), sendo que, como usualmente feito em modelos de probabilidade, os parâmetros são estimados por Máxima Verossimilhança:

pixij=φ(xiβ)βj=φ(φ1(pi))βj(2)

Em que p i = φ (x' i β). Cabe frisar, portanto, que foram estimados 4 modelos Probit, separadamente, para cada um dos procedimentos profiláticos e com o mesmo vetor de variáveis explicativas, cujas descrições se encontram no Quadro 1.

As variáveis independentes representam os fatores sociodemográficos das meninas e mulheres vítimas de estupro, associados à perspectiva interseccional, permitindo, assim, a leitura do problema, através das consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A proposta é salientar como o racismo, o patriarcalismo e outros sistemas discriminatórios criam cenários de desigualdade na sociedade, relativizando a posição da mulher e como tal qualificação contribui para que esta seja vítima de violência e encontre dificuldades de concretização dos seus direitos1212 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem 2002; 10(1):171-188., como o acesso à saúde.

Segundo a filósofa Sueli Carneiro1313 Carneiro S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígena - Universidade Católica de Pernambuco [Internet]. 2017 [acessado 2023 out 14]. Disponível em: https://www1.unicap.br/neabi/?page_id=137.
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, raça e gênero são categorias que justificam discriminações e subalternidades construídas, historicamente, capazes de produzir desigualdades, utilizadas como justificativas para as assimetrias sociais. As barreiras impostas de acordo com esses marcadores sociais (raça e gênero) têm sido determinantes no processo saúde-cuidado das mulheres1414 Goes EF, Nascimento ER. Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saude Debate 2013; 37(99):571-579., portanto, é válido analisar se estes fatores sociodemográficos influenciam, negativamente, o acesso às profilaxias de emergência.

Ao cruzar dados de estupro e de nascimento, entre 2011 e 2016, o Ministério da Saúde (2016) identificou 4.262 vítimas, de 10 a 19 anos, que tiveram gestação resultante de referido ilícito. Em pesquisa mais recente, o cenário não se revelou diferente e, em 2021, mais de 17 mil garotas de até 14 anos foram mães1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Norma Técnica: Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. 3ª ed. Brasília: MS; 2012.. Esses numerários apontam a não realização da contracepção de emergência, ou sua ocorrência de forma tardia, o que contribui para a sua ineficácia. Quanto à incidência de IST, o estudo de Cerqueira e Coelho1616 Cerqueira DRC, Coelho DSC. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar) [nota técnica] [Internet]. 2014 [acessado 2024 abr 7]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5780.
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,1717 Cerqueira DRC, Coelho DSC, Ferreira H. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Rev Bras Segur Publica 2017; 11(1):24-48. indica que quanto mais jovem a vítima, maiores as chances de contrair infecção. Por tais razões, deve ser observado se a característica etária das vítimas compromete a ocorrência das profilaxias de emergência.

Grande parte dos casos de estupro envolvem pessoas conhecidas, sendo o autor algum familiar ou pessoa do ciclo de convivência da vítima. O agressor aproveita-se da relação existente para evitar que o crime chegue ao conhecimento do Poder Público, o que contribui para a subnotificação33 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP; 2022. e pode afetar também a busca de atendimento médico junto ao sistema de saúde.

O diálogo entre território e saúde é importante, pois oferta uma metodologia para a operação do modelo assistencial e das práticas sanitárias vigentes, desenhando configurações loco-regional baseadas no reconhecimento e esquadrinhamento do espaço, levando em conta as relações entre ambiente, condições de vida e acesso ao atendimento médico1818 Teixeira CF, Paim JS, Vilasbôas AL. SUS, modelos assistenciais e vigilância da saúde. Inf Epidemiol SUS 1998; 7(2):7-28.. Desta forma, as variáveis que representam essa relação, macrorregião de saúde na qual a vítima reside e município com atendimento especializado, devem ser investigadas quanto à probabilidade de realização das profilaxias de emergência pelas vítimas de estupro. Vítimas residentes em macrorregiões de saúde menos desenvolvidas e em localidades não ofertantes de atendimento especializado tendem a ter menor probabilidade de acesso às medidas terapêuticas, após a agressão sexual.

Por fim, através da variável ano do registro da ocorrência do crime, é possível analisar se houve melhora da política pública instituída, ou seja, se com a entrada em vigor da Lei do Minuto Seguinte, no ano de 2013, a probabilidade de realização dos atos médicos de urgência aumentou, ao longo dos anos. Também é possível verificar se a pandemia da COVID-19, nos anos de 2020 e 2021, que impôs medidas de isolamento social, afetou, negativamente, o acesso das profilaxias de emergência pelas vítimas de estupro.

Resultados e discussão

Na Tabela 1, são apresentados os resultados dos efeitos marginais das variáveis independentes (Quadro 1) do modelo Probit para explicar a probabilidade de acesso à determinada medida terapêutica, após o estupro.

Tabela 1
Efeitos marginais da probabilidade de acesso às profilaxias de emergência, após estupro. Minas Gerais, 2013-2021.

No tocante aos fatores sociodemográficos associados à raça negra (mulheres pretas e pardas), em consonância com o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) e à raça amarela, estes não se mostraram estatisticamente significantes para a probabilidade de acesso às profilaxias IST, HIV, hepatite B e contracepção de emergência. Desta forma, verifica-se oferta igual, independentemente do número absoluto, tendo meninas e mulheres negras e amarelas probabilidades semelhantes às brancas para serem atendidas em tais procedimentos. Contudo, em relação às meninas e mulheres indígenas, essas apresentaram menor probabilidade de receber tratamento para a contracepção de emergência, em relação às mulheres brancas, portanto, os processos discriminatórios vivenciados por este grupo populacional e as dificuldades enfrentadas quanto à realização de direitos básicos, como saúde, educação, informação e serviços sociais, acentuam os obstáculos linguístico, econômico, cultural, institucional e geográfico, fazendo com que se encontrem em estado de hipervulnerabilidade1919 Santos LAS. Violência Doméstica contra Mulheres Indígenas Guatós Um estudo de caso [monografia]. Brasília: Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento do delinquente, Senado Federal, Câmara dos Deputados e Tribunal de Contas da União; 2019., o que prejudica a realização das profilaxias de emergência.

Quanto ao vínculo entre agressor e vítima, percebeu-se que, quando os ofensores são pessoas conhecidas, a probabilidade de ter acesso às medidas terapêuticas é impactada negativamente para todas as profilaxias analisadas. Esses resultados evidenciam as influências de uma sociedade machista e patriarcal, que vislumbra o ser masculino como detentor das vidas e dos corpos femininos2020 Silva CK, Silva ICM. A influência do machismo no feminicídio, nos crimes sexuais e na violência contra a mulher. Themis Rev Esmec 2021; 19(1):47-74., prejudicando assim a realização das profilaxias de emergência.

O fator idade também se evidenciou estatisticamente significante para explicar a probabilidade de acesso às profilaxias HIV, IST, hepatite B e contracepção de emergência. Vítimas menores de idade (inferior a 13 anos e entre 13 e 17 anos) possuem menor probabilidade de receberem tratamentos de profilaxia, se comparadas com as vítimas das demais faixas etárias. Tal fenômeno associa-se ao fato de muitas conviverem com seus agressores; não terem conhecimento de que fazem jus aos atendimentos médicos supramencionados, independentemente do registro de ocorrência ou instauração de inquérito policial; ou quando reportam o ocorrido a familiares ou pessoas de sua convivência, estes são coniventes com o agressor ou não acreditam nas suas alegações, perecendo a rede de apoio referência1616 Cerqueira DRC, Coelho DSC. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar) [nota técnica] [Internet]. 2014 [acessado 2024 abr 7]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5780.
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,1717 Cerqueira DRC, Coelho DSC, Ferreira H. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Rev Bras Segur Publica 2017; 11(1):24-48.,2121 Bocks J, Ianoski WS, Menon JS, Silva T, Lobo, AMC. Lei do Minuto Seguinte: os desafios de sua efetivação e o desrespeito às mulheres brasileiras vítimas de estupro. Anais EVINCI-UniBrasil 2020; 6(1):64..

O atendimento especializado, que diz respeito à atuação do Poder Público em criar hospitais de referência nos territórios para o tratamento multiprofissional das vítimas de violência sexual, também é um fator que repercute no acesso aos serviços de saúde. Atualmente, apenas 98 municípios mineiros possuem hospitais de referência2222 Minas Gerais. Secretaria de Estado de Saúde. Atenção Integral às vítimas de violência sexual [Internet]. 2022 [acessado 2022 out 3]. Disponível em: https://www.saude.mg.gov.br/component/gmg/page/1869-atencao-integral-as-vitimas-de-violencia-sexual.
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e muito precisa ser feito no intuito de garantir tratamento mais humanizado e interdisciplinar. Em que pese a ausência de efeito positivo da variável município contar com atendimento especializado para majorar a probabilidade de acesso às profilaxias, após o estupro, tal resultado vincula-se com a necessidade de maior divulgação e conscientização da população sobre os serviços ofertados nesses hospitais de referência. A desinformação contribui para a não ocorrência da procura desse atendimento especializado2323 Oliveira EM, Barbosa RM, Moura AAVM, Kossel K, Morelli K, Botelho LCFB, Soianov M. Atendimento às mulheres vítimas de violência sexual: um estudo qualitativo. Rev Saude Publica 2005; 39(3):376-382..

O ano de registro da ocorrência do crime é outro fator que tem impacto estatisticamente significativo sobre a probabilidade de acesso ao atendimento médico. Com a entrada em vigor da Lei do Minuto Seguinte, no ano de 2013, os números referentes à probabilidade de acesso aos procedimentos médicos de urgência deveriam ter aumentado, ao longo dos anos, o que não ocorreu. Do período de implantação da legislação supracitada até 2021, todas as probabilidades das vítimas de realizar os serviços médicos em análise diminuíram, o que evidencia ausência de eficácia social da norma, bem como da política pública instituída.

A pandemia da COVID-19, nos anos de 2020 e 2021, também contribuiu para a ineficácia da norma, por conta da imposição de isolamento social nas residências. Por consequência, meninas e mulheres foram forçadas a estar na presença dos seus abusadores, por mais tempo que o habitual, o que deveria ter ensejado o aumento dos casos de notificação de estupro2424 Solano JF. A subnotificação de casos de estupro de vulnerável durante a pandemia de Covid-19 no Distrito Federal [monografia]. Brasília: Centro Universitário de Brasília; 2022., todavia, ocorreu a diminuição da notificação de casos, fenômeno da subnotificação, decorrente das dificuldades enfrentadas pelas ofendidas em denunciar seu ofensor e buscar serviços de saúde2525 Cunha PM. Violência contra mulheres brasileiras: estimação de subnotificações e impacto da COVID-19 sobre estupros, lesões corporais e feminicídios [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba; 2022.. A proximidade com o agressor e a falta de adaptações de resposta dos gestores públicos para o atendimento de meninas e mulheres em situação de violência no período pandêmico2626 Vieira PR, Garcia LP, Maciel ELN. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Rev Bras Epidemiol 2020; 23(1):1-4. concorreu para a diminuição da probabilidade de acesso aos procedimentos de emergência, previstos na Lei do Minuto Seguinte.

As probabilidades de realização das profilaxias de emergência são menores, em algumas macrorregiões de saúde, confirmando que o território é um fator sociodemográfico que influencia na chance de acesso ao atendimento médico, após a agressão sexual. Tomando por base a macrorregião Centro, que concentra os serviços de saúde, observou-se que boa parte dos territórios mineiros apresentaram diminuições das probabilidades de realização das medidas terapêuticas de emergência. O destaque segue para as macrorregiões Jequitinhonha, Leste, Leste do Sul, Norte, Nordeste, Oeste, Sudeste, Triângulo do Sul e Vale do Aço, que perfazem localidades menos desenvolvidas e sem concentração dos serviços de saúde2727 Bastos SQA, Gomes BS, Bonioli RS. Uma avaliação para média complexidade do plano diretor de regionalização da saúde de Minas Gerais (PDR-MG). RDE Rev Desenv Econ 2019; 2(43):111-135..

Por fim, pesquisas nacionais de referência sobre o crime de estupro1616 Cerqueira DRC, Coelho DSC. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão preliminar) [nota técnica] [Internet]. 2014 [acessado 2024 abr 7]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/5780.
https://repositorio.ipea.gov.br/handle/1...
,1717 Cerqueira DRC, Coelho DSC, Ferreira H. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Rev Bras Segur Publica 2017; 11(1):24-48. apresentam um diagnóstico acerca de sua incidência, apontando as principais vítimas, autores, fatores situacionais, evolução das notificações e confirmam que muitas vítimas não realizam os procedimentos de emergência, após vivenciarem situação de violência sexual. Tais estudos, entretanto, não se concentram em discutir o que contribui para tal cenário negativo, sendo esta a principal diferença em relação ao presente trabalho, que identifica os fatores sociodemográficos das meninas e mulheres que problematizam o acesso aos atos médicos, após serem vítimas de tal modalidade de violência sexual.

Considerações finais

A hipótese que norteou a presente pesquisa não foi rejeitada, tendo fatores sociodemográficos das meninas e mulheres, como raça, faixa etária, vínculo com o agressor, macrorregião de saúde na qual reside, município com atendimento médico especializado e ano de registro da ocorrência crime, afetado a probabilidade de realização das profilaxias de emergência, disciplinadas na Lei do Minuto Seguinte, após o episódio de agressão sexual.

Vítimas indígenas, menores de idade, com agressor conhecido e residentes em macrorregiões de saúde menos desenvolvidas apresentaram menores probabilidades de realização das medidas terapêuticas emergenciais (profilaxia HIV, IST, gravidez e Hepatite B). Isso evidencia distinções quanto ao acesso ao direito à saúde e atesta que não houve melhora da política de atenção às pessoas em situação de violência sexual ao longo dos anos, carecendo esta de efetividade.

Tais resultados são importantes para o diagnóstico do problema e sua inserção e discussão na agenda pública. Assim, tem-se subsídios para a confecção de ações mais eficazes dos gestores públicos e da sociedade civil para auxiliar no enfrentamento das desigualdades de acesso à saúde, com o objetivo de assegurar maior cuidado e atenção às meninas e mulheres que tiveram seus corpos e liberdade violados. São necessárias ações educacionais de conscientização das garantias previstas em referida norma, a capacitação dos agentes responsáveis pelo atendimento às vítimas e a luta contra a cultura de culpabilização destas pela ocorrência do estupro.

Depreende-se deste estudo uma limitação das análises, uma vez que laboraram com dados do SINAN, uma base de registro administrativo, ou seja, que depende da vontade da vítima ou do seu responsável (quando incapaz) de buscar ajuda no SUS. Desta forma, é essencial a confecção de mais pesquisas sobre o crime de estupro, bem como sobre o atendimento médico ofertado às vítimas em todo o território brasileiro, levando-se em consideração as especificidades de cada estado da federação, o que pode ser apreciado em trabalhos futuros, perfazendo uma questão de saúde coletiva e necessária para a promoção do desenvolvimento humano.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2023
  • Aceito
    10 Abr 2024
  • Publicado
    12 Abr 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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