Caracterização da assistência farmacêutica no sistema prisional: estudo transversal

Caracterización de la asistencia farmacéutica en el sistema penitenciario: estudio cruzado

Michele Berger Ferreira Pauline Schwarzbold Samantha Lopes de Moraes Longo Renata Maria Dotta Lia Gonçalves Possuelo Isabela Heineck Sobre os autores

Resumo

O objetivo do estudo é caracterizar a assistência farmacêutica (AF) no sistema prisional do Rio Grande do Sul em termos de organização e infraestrutura no âmbito da atenção primária à saúde. Trata-se de um estudo descritivo, com desenho transversal, conduzido entre agosto e setembro de 2022. A coleta de dados ocorreu de forma remota, utilizando um questionário elaborado e adaptado com base na Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM). Um total de 51 unidades prisionais participaram da pesquisa. Não há área específica destinada à farmácia na maioria das unidades prisionais, sendo predominante apenas um local para guarda de medicamentos. Inexistem procedimentos operacionais padrão para atividades de AF em 78,4% das unidades prisionais. Em 9,8% dos estabelecimentos prisionais foi referida a presença de farmacêutico. Nenhuma condição de armazenamento dos medicamentos é monitorada em 31,4% dos locais. O fracionamento de medicamentos foi referido por 78,4% das unidades prisionais. Já a dispensação de medicamentos é realizada em 3,9% das unidades prisionais. O panorama da AF no contexto prisional se revela com importantes fragilidades e necessidade de adequação às regulamentações vigentes.

Palavras-chave:
Assistência farmacêutica; Farmácia; Prisões; Assistência integral à saúde

Resumen

Este artículo tuvo como objetivo caracterizar la Asistencia Farmacéutica (AP) en el sistema penitenciario de Rio Grande do Sul en términos de organización e infraestructura en el ámbito de la atención primaria de salud. Se trata de un estudio descriptivo, con diseño transversal realizado entre agosto y septiembre de 2022. Los datos se recogieron de forma remota mediante un cuestionario diseñado y adaptado con base en la Encuesta Nacional de Acceso, Uso y Promoción del Uso Racional de Medicamentos en Brasil (PNAUM). En la investigación participaron un total de 51 unidades penitenciarias. No existe un área específica designada para farmacia en la mayoría de las unidades penitenciarias, existiendo solo un lugar para almacenar medicamentos. No existen procedimientos operativos estándar para las actividades de AF en el 78,4% de las unidades penitenciarias. Se reportó la presencia de Farmacéutico en el 9,8% de los establecimientos penitenciarios y se controlan las condiciones de almacenamiento de medicamentos en el 31,4% de los locales. El fraccionamiento de medicamentos fue reportado por el 78,4% de las unidades penitenciarias. Los medicamentos se dispensan en el 3,9% de las unidades penitenciarias. El panorama de la AF en el contexto penitenciario revela importantes debilidades y la necesidad de adaptarse a la normativa actual.

Palabras clave:
Asistencia farmacéutica; Farmacia; Centros penitenciarios; Atención integral de salud

Introdução

A saúde é um direito garantido a todo cidadão pela Constituição Federal, sendo um dever do Estado prover o acesso universal e igualitário às ações e serviços. Nesse contexto, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) constitui um marco importante, contudo, o acesso equitativo aos bens e serviços de saúde não é uma realidade para a população, especialmente entre os grupos mais vulneráveis11 Stopa SR, Malta DC, Monteiro CN, Szwarcwald CL, Goldbaum M, Cesar CLG. Use of and access to health services in Brazil, 2013 National Health Survey. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 1):3s.,22 Palmeira NC, Moro JP, Getulino FDA, Vieira YP, Soares Junior ADO, Saes MDO. Análise do acesso a serviços de saúde no Brasil segundo perfil sociodemográfico: Pesquisa Nacional de Saúde, 2019. Epidemiol Serv Saude 2022; 31(3):e2022966..

A assistência farmacêutica (AF) é parte da assistência terapêutica ofertada pelo SUS, apresentando papel estratégico e transversal na integralidade do cuidado, tendo o medicamento como insumo essencial, visando o acesso e uso racional33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 19 set.,44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União, 2004; 6 maio.. Apesar do acesso aos medicamentos ser considerado um dos indicadores que mensuram os avanços na concretização do direito à saúde55 World Health Organization (WHO). Measuring medicine prices, availability, affordability and price components. Geneva: WHO; 2008., esse ainda permanece um desafio global, e obviamente também para o SUS, que enfrenta importantes disparidades entre as regiões do país e os grupos populacionais66 Álvares J, Guerra Junior AA, Araújo VE, Almeida AM, Dias CZ, Ascef BO, Costa EA, Guibu IA, Soeiro OM, Leite SN, Karnikowski MGO, Costa KS, Acúrcio FA. Access to medicines by patients of the primary health care in the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):20s.

7 Drummond ED, Simões TC, Andrade FB. Acesso da população brasileira adulta a medicamentos prescritos. Rev Bras Epidemiol 2018; 21:e180007.
-88 Boing AC, Andrade FB, Bertoldi AD, Peres KGA, Massuda A, Boing AF. Prevalências e desigualdades no acesso aos medicamentos por usuários do Sistema Único de Saúde no Brasil em 2013 e 2019. Cad Saude Publica 2022; 38(6):e00114721..

A população privada de liberdade (PPL) constitui uma parcela da sociedade altamente vulnerável à aquisição, à transmissão e aos agravos de doenças, devido às estruturas carcerárias inadequadas e superlotadas, ao uso de drogas, à higiene insuficiente e à assistência à saúde precária99 Rezende GR, Lago BVD, Puga MA, Bandeira LM, Pompilio MA, Tanaka TS, Cesar GA, Oliveira SMVL, Yassuda RTS, Simionatto S, Weis SMS, Basílio SF, Croda J, Motta-Castro ARC. Prevalence, incidence and associated factors for HBV infection among male and female prisoners in Central Brazil: a multicenter study. Int J Infect Dis 2020; 96:298-307.

10 Bai JR, Befus M, Mukherjee DV, Lowy FD, Larson EL. Prevalence and Predictors of Chronic Health Conditions of Inmates Newly Admitted to Maximum Security Prisons. J Correct Health Care 2015; 21(3):255-264.
-1111 Job Neto F, Miranda RB, Coelho RA, Gonçalves CP, Zandonade E, Miranda AE. Health morbidity in Brazilian prisons: a time trends study from national databases. BMJ Open 2019; 9(5):e026853.. O Brasil é o terceiro país com maior população prisional no mundo, superando 800 mil pessoas privadas de liberdade, e com uma das maiores taxas de aprisionamento1212 Fair H, Walmsley R. World Prison Population List [Internet]. [cited 2023 fev 3]. Available from: https://www.prisonstudies.org/sites/default/files/resources/downloads/world_prison_population_list_13th_edition.pdf
https://www.prisonstudies.org/sites/defa...
. A PPL enfrenta de maneira desproporcional problemas de saúde complexos e muitas vezes concomitantes, como doença mental, HIV/Aids, sífilis, hepatites, tuberculose, além de doenças não transmissíveis1313 World Health Organization (WHO). Status report on prison health in the WHO European Region. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2019..

Apesar do olhar estigmatizado da sociedade sobre a PPL, a privação de liberdade não implica a redução dos direitos fundamentais do indivíduo, sendo previsto desde a década de 1980, na Lei de Execução Penal, atendimento médico, farmacêutico e odontológico. Contudo, houve uma importante reorientação das ações de saúde a partir da instituição da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), em 2014. A PNAISP visa atender à heterogeneidade do sistema carcerário, garantindo à PPL o acesso e a integralidade ao cuidado consonante à lógica do SUS, sendo as unidades prisionais consideradas portas de entrada e pontos de atenção da Rede de Atenção à Saúde1414 Lermen HS, Gil BL, Cúnico SD, Jesus LO. Saúde no cárcere: análise das políticas sociais de saúde voltadas à população prisional brasileira. Physis 2015; 25(3):905-924.,1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Brasília: MS; 2014..

No que se refere à AF, a partir da PNAISP foram estabelecidas normas para o financiamento e a execução do componente básico da AF (CBAF), sendo a oferta de medicamentos embasada na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). O Ministério da Saúde (MS) é responsável pelo financiamento do CBAF no âmbito da PNAISP, no valor de R$ 17,73 por pessoa privada de liberdade anualmente, sendo a execução descentralizada nos estados ou municípios, conforme pactuação1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Brasília: MS; 2014..

Estudos acerca da AF em instituições prisionais são globalmente limitados, e também se verifica uma concentração de pesquisas realizadas em países de alta renda1616 Costa APAM, Queiroz LMD, Soler O. Assistência farmacêutica em sistemas penitenciários: revisão sistemática. Braz J Develop 2020; 6(10):77670-77689.. Ainda assim, destaca-se o impacto positivo de intervenções farmacêuticas no âmbito prisional, por meio da adoção de indicadores de segurança em prescrições e melhora de desfechos clínicos, como controle do diabetes, redução de risco cardiovascular e aumento da adesão à farmacoterapia1717 Lin CH, Tran NT, Muradian IK, Do NH, Lu QD, Tesema L, Henderson SO. Impact of a Pharmacist-Led Diabetes Clinic in a Correctional Setting. J Pharm Pract 2021; 34(4):596-599.,1818 Abuzour AS, Magola-Makina E, Dunlop J, O'Brien A, Khawagi WY, Ashcroft DM, Brown P, Keers RN. Implementing prescribing safety indicators in prisons: a mixed methods study. Br J Clin Pharmacol 2022; 88(4):1866-1884..

A concretização do modelo de AF proposto pelas políticas públicas de saúde requer articulação e sinergia entre as ações logísticas e assistenciais44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União, 2004; 6 maio.,1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. 1998. Diário Oficial da União 1998; 30 out.,2020 Correr CJ, Otuki MF, Soler O. Assistência farmacêutica integrada ao processo de cuidado em saúde: gestão clínica do medicamento. Rev Pan-Amaz Saude 2011; 2(3):41-49.. A AF no SUS tem sido foco de estudos, porém verifica-se uma importante lacuna no que se refere à temática no âmbito prisional2121 Gerlack LF, Karnikowski MG de O, Areda CA, Galato D, Oliveira AG de, Álvares J, Leite SN, Costa EA, Guibu IA, Soeiro OM, Costa KS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA. Management of pharmaceutical services in the Brazilian primary health care. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):15s.,2222 Souza GS, Costa EA, Barros RD, Pereira MT, Barreto JL, Guerra AA Junior, Acurcio FA, Guibu IA, Álvares J, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Leite SN. Characterization of the institutionalization of pharmaceutical services in Brazilian primary health care. Rev Saude Publica 2017;51(Supl. 2):7s. Diante disso, considerando as premissas da PNAISP, bem como o papel da AF na garantia de integralidade do cuidado e resolutividade das ações em saúde, o objetivo deste estudo foi caracterizar a AF no sistema prisional em termos de organização e infraestrutura no nível da atenção primária à saúde (APS).

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo, com desenho transversal, reportado de acordo com a diretriz STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology)2323 Vandenbroucke JP, von Elm E, Altman DG, Gøtzsche PC, Mulrow CD, Pocock SJ, Poole C, Schlesselman JJ, Egger M; STROBE Initiative. Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE): explanation and elaboration. Int J Surg 2014; 12(12):1500-1524..

O estudo foi desenvolvido no contexto da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) e da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS), no âmbito da saúde prisional, especificamente na AF no Sistema Prisional do Rio Grande do Sul (RS). Foram elencadas para o estudo todas as unidades prisionais (UPs) em atividade no RS, localizadas em 78 municípios, totalizando 101 estabelecimentos que integram as dez Delegacias Penitenciárias Regionais (DPR). Atualmente o RS tem uma PPL de aproximadamente 43.521, sendo 41.031 homens e 2.490 mulheres2424 Rio Grande do Sul. Superintendência dos Serviços Penitenciários. Institucional/Presídios - Delegacias Penitenciárias [Internet]. [acessado 2023 abr 3]. Disponível em: Disponível em: http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php?cod_menu=7
http://www.susepe.rs.gov.br/conteudo.php...
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Para a caracterização da AF, foi aplicado um questionário semiestruturado, elaborado e adaptado com base no instrumento da Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) - componente avaliação dos serviços de assistência farmacêutica básica -, questionário para o responsável pela AF, com questões voltadas a gestão, estrutura, organização, processos e qualificação da AF2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Componente Avaliação dos Serviços de Assistência Farmacêutica Básica: introdução, método e instrumentos. Brasília: MS; 2016.. O questionário foi inicialmente submetido a dois profissionais que atuam no sistema prisional, a fim de aprimorar o conteúdo e a adequabilidade das questões, considerando o contexto em estudo. O instrumento de pesquisa finalizado foi direcionado ao profissional diretamente envolvido na organização e/ou execução das atividades de AF em cada UP, podendo este ser integrante da equipe de saúde prisional ou não, conforme as diferentes realidades do sistema. Não foram incluídos no estudo questionários preenchidos de forma incompleta.

Em atenção à situação de saúde devido à pandemia de COVID-19, bem como pelas diferentes dinâmicas de trabalho no sistema prisional e pela logística, a aplicação dos questionários ocorreu de forma remota, utilizando um formulário eletrônico na plataforma Google Forms. Assim, o convite, as orientações para participação no estudo e o acesso ao formulário ocorreram através do envio individual de e-mails às UPs, obtidos na página da SUSEPE. Além disso, também foi realizado contato prévio com as coordenações técnicas das dez DPR para informar sobre o estudo e promover a colaboração na divulgação entre os profissionais das UPs. A coleta de dados se deu no período de agosto e setembro de 2022.

Considerando os critérios éticos, todos os convidados no estudo eram inicialmente direcionados ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) online, de forma que só prosseguiram para a pesquisa os indivíduos que registraram seu aceite de participação. O estudo foi autorizado pela Secretaria Estadual de Saúde do RS (SES/RS) e pela Escola do Serviço Penitenciário (ESP), tendo sido submetido e aprovado pelos comitês de ética em pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/SES/RS), sob os pareceres nº 5.260.815 e 5.469.526, respectivamente.

Os dados foram organizados e tabulados inicialmente em planilha utilizando o Microsoft Excel, e posteriormente as análises descritivas e a distribuição de frequências absoluta e relativa foram feitas no software Jamovi, versão 2.2.5.

Resultados e discussão

Um total de 53 (52,47%) respostas ao formulário eletrônico foram recebidas, sendo considerados para análise um total de 51 (96,22%) questionários, conforme critérios de exclusão. A taxa de retorno correspondeu a 50,5% do total de UPs em atividade no RS. Todas as DPRs tiveram UPs participantes no estudo (Figura 1).

Figura 1
Representação das unidades prisionais observadas (n = 51) segundo localização por Delegacia Penitenciária Regional. Rio Grande do Sul, 2022.

Em relação ao perfil das UPs participantes do estudo, observou-se que 39,2% têm entre 100 e 300 detentos, 54,9% dos estabelecimentos têm Unidade Básica de Saúde prisional (UBSp) e 52,9% contam com equipe de Atenção Primária Prisional (eAPP) habilitada (Tabela 1). Conforme Dotta e colaboradores2626 Dotta RM, Ely KZ, Schultz ALV, Filho MMS, Nunes OS, Busatto C, Possuelo LG. Equipes de Atenção Primária Prisional e a notificação de tuberculose no Rio Grande do Sul/Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(12):4415-4422., em 2021 havia 45 eAPP em unidades carcerárias de regime fechado no RS, representando uma cobertura de 54,5% da PPL assistida, todavia, cabe destacar que em 2017 houve a flexibilização do número de pessoas privadas de liberdade atendidas por cada equipe, bem como do quadro de profissionais, o que leva a observar com cautela as reais e potenciais ações de cobertura das eAPP2727 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria GM/MS nº 2.298, de 9 de setembro de 2021. Dispõe sobre as normas para a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2021; 10 set..

Tabela 1
Caracterização das unidades prisionais (n = 51). Rio Grande do Sul, 2022.

Em relação ao perfil dos profissionais atuantes nas atividades de AF no sistema prisional do RS, foi observado elevado grau de instrução, ampla variação na área de formação, porém maior referência à enfermagem (56,9%) e vínculo mais frequente com a SUSEPE. A área de formação “farmácia” foi referida por uma baixo percentual (7,8%), sendo possível inferir que o farmacêutico ainda é um profissional pouco inserido no contexto da atenção à saúde prisional (Tabela 2).

Tabela 2
Perfil dos profissionais atuantes nas atividades de AF (n = 51). Rio Grande do Sul, 2022.

A AF tem caráter multidisciplinar, contudo, o farmacêutico é o profissional imprescindível para o desenvolvimento das atividades logísticas e ações assistenciais da farmácia clínica e de vigilância2828 Brasil. Assistência Farmacêutica no SUS/Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Brasília: CONASS; 2011.,2929 Manzini F, Alencar LBO, Sales L, Bezerra MB, Campanha P, Macedo R, Mendes SJ, Contezini SNL, Santos SCM, Uehara WHO. O farmacêutico na assistência farmacêutica do SUS: diretrizes para ação. Brasília: Conselho Federal de Farmácia; 2015.. É válido destacar que está previsto no Quadro Especial de Servidores Penitenciários do Estado do Rio Grande do Sul o cargo de técnico superior penitenciário com graduação em farmácia3030 Rio Grande do Sul. Lei Complementar n.º 13.259, de 20 de outubro de 2009. Dispõe sobre o Quadro Especial de Servidores Penitenciários do Estado do Rio Grande do Sul, da Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE -, criado pela Lei n.º 9.228, de 1º de fevereiro de 1991, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado 2009; 21 out., fato que reforça a necessidade de diálogo junto ao poder público, a fim de dar visibilidade a essa demanda e buscar a efetiva inclusão do farmacêutico entre os trabalhadores do sistema prisional.

A Tabela 3 apresenta os dados relacionados à caracterização da AF nas UPs. Em relação à estrutura e à organização da AF, é possível verificar que a área destinada aos medicamentos nas UPs configura-se principalmente como um local para guarda, ou seja, apenas um armário e/ou prateleira (58,8%).

Tabela 3
Caracterização da AF nas unidades prisionais. Rio Grande do Sul, 2022.

Esse dado vai ao encontro do observado por Cardins e colaboradores3131 Cardins KKB, Freitas CHSM, Costa GMC. Dispensação de medicamentos no sistema prisional: garantia de assistência farmacêutica? Cien Saude Colet 2022; 27(12):4589-4598., em recente estudo qualitativo realizado em penitenciárias da Paraíba, que também constatou a inexistência de estrutura física que abrigue a farmácia, sendo a guarda dos medicamentos feita em gavetas e armários.

O medicamento constitui um dos recursos terapêuticos mais utilizados, porém sua inserção como elemento do sistema e insumo essencial para a resolutividade da atenção à saúde ocorreu em etapas e tardiamente na trajetória do SUS44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 338, de 6 de maio de 2004. Dispõe sobre a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União, 2004; 6 maio.,1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. 1998. Diário Oficial da União 1998; 30 out.,3232 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez.. Tal fato é especialmente verificado pela realidade das condições deficientes na infraestrutura das farmácias nas Unidades Básicas de Saúde do País2121 Gerlack LF, Karnikowski MG de O, Areda CA, Galato D, Oliveira AG de, Álvares J, Leite SN, Costa EA, Guibu IA, Soeiro OM, Costa KS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA. Management of pharmaceutical services in the Brazilian primary health care. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):15s.,3333 Monteiro ER, Lacerda JT, Natal S. Avaliação da gestão municipal na promoção do uso racional de medicamentos em municípios de médio e grande porte de Santa Catarina, Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(5):e00112920.. Contudo, ressalta-se que a estruturação das farmácias no âmbito do SUS é minimamente orientada por documentos do MS, com descrição dos ambientes, mobiliários e equipamentos recomendados, além de 14 m2 de área mínima3434 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2009.,3535 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.903, de 4 de setembro de 2013. Altera os artigos 4º, 6º, 10, 25 e o Anexo I da Portaria nº 340/GM/MS, de 4 de março de 2013 que redefine o Componente Construção do Programa de Requalificação de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Diário Oficial da União 2013; 4 set..

O MS incentiva o uso de um sistema informatizado para apoiar as atividades de gestão da AF, através da disponibilização gratuita do Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica - Hórus, que é igualmente ofertado no âmbito da PNAISP3434 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes para estruturação de farmácias no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília: MS; 2009.,3636 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.765, de 12 de dezembro de 2014. Dispõe sobre as normas para financiamento e execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), e dá outras providências. Diário Oficial da União 2014; 12 dez.. Todavia, um pequeno percentual das UPs observadas (31,4%) referiu ter sistema informatizado. Tal fato reforça o cenário de carência de dados sobre medicamentos distribuídos e dispensados, demanda atendida, recursos financeiros investidos, entre outros indicadores da AF prisional, expondo a necessidade de reflexão e aprofundamento sobre as reais circunstâncias de emprego e a efetividade dessa ferramenta nas UPs.

Observou-se que predomina a inexistência de procedimento operacional padrão (POP) para as atividades de AF (78,4%) nas UPs, sendo um ponto de alerta, já que o serviço final disponibilizado é diretamente relacionado à qualidade de cada procedimento. Em estudo nacional sobre a gestão da AF na APS, em aproximadamente 50% dos municípios foi verificada a inexistência de POPs para as atividades de AF, revelando uma fragilidade, visto que a ausência ou deficiência nos processos da AF pode desencadear falhas subsequentes que poderão acarretar desperdícios de recursos e impactar negativamente o acesso aos medicamentos2121 Gerlack LF, Karnikowski MG de O, Areda CA, Galato D, Oliveira AG de, Álvares J, Leite SN, Costa EA, Guibu IA, Soeiro OM, Costa KS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA. Management of pharmaceutical services in the Brazilian primary health care. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):15s..

Apesar da RENAME ser estabelecida como base para a operacionalização do CBAF no contexto prisional, a disponibilidade de Lista Padronizada de Medicamentos para consulta nas UPs foi observada em 54,9% dos locais. Assim, é possível constatar que ainda há subutilização do instrumento, representando uma lacuna, principalmente porque a RENAME tem papel fundamental para as etapas de seleção e aquisição de medicamentos, contribuindo para racionalizar a prescrição e o uso deles3737 Pereira RM. Planejamento, programação e aquisição: prever para prover [Internet]. 2016. [acessado 2023 mar 4]. Disponível em: http://www.rets.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/arquivos/biblioteca/fasciculo_10.pdf
http://www.rets.epsjv.fiocruz.br/sites/d...
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O acesso aos medicamentos resulta da interação entre várias dimensões, como a disponibilidade, que se refere à relação entre o tipo e a quantidade de produtos necessários e ofertados, de maneira que os medicamentos precisam estar em acordo com o quadro epidemiológico, com suficiência, regularidade e qualidade3838 Center for Pharmaceutical Management (CPM). Defining and Measuring Access to Essential Drugs, Vaccines, and Health Commodities: Report of the WHO-MSH Consultative Meeting [Internet]. 2000. [cited 2023 jun 11]. Available from: https://www.scienceopen.com/document?vid=6c730f7f-25d6-4ca2-a33f-08bc0c6b9aad
https://www.scienceopen.com/document?vid...
. No cenário das UPs, a diversidade e a quantidade de medicamentos disponíveis para atender à demanda em tempo oportuno foi considerada parcialmente adequada (47,1%) e parcialmente suficiente (39,2%). Em estudo nos Estados Unidos que estimou a distribuição de medicamentos nas prisões foi evidenciada importante disparidade entre a carga de doenças que afeta a PPL em relação à distribuição de medicamentos para o tratamento, sugerindo subutilização do tratamento farmacológico nos estabelecimentos prisionais em comparação com a população geral, por conseguinte representando um potencial problema de saúde pública3939 Curran J, Saloner B, Winkelman TN, Alexander GC. Estimated Use of Prescription Medications Among Individuals Incarcerated in Jails and State Prisons in the US. JAMA Health Forum 2023; 4(4):e230482.. Nacionalmente, no contexto geral da APS foi verificada disponibilidade inadequada de medicamentos para o tratamento de doenças crônicas e para doenças epidemiologicamente importantes, como a tuberculose e a sífilis congênita4040 Nascimento RCRM, Álvares J, Guerra Junior AA, Gomes IC, Costa EA, Leite SN, Costa KS, Soeiro OM, Guibu IA, Karnikowski MGO, Acúrcio FA. Availability of essential medicines in primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):10s..

Em relação ao suprimento de medicamentos, 88,2% das instituições penais são abastecidas tanto pela SUSEPE quanto pelo município onde a UP se localiza. Sobre tal aspecto, destaca-se que o financiamento do CBAF no âmbito da PNAISP é de responsabilidade do MS, sendo a execução das ações de responsabilidade dos estados ou dos municípios que aderirem à PNAISP e pactuarem em comissão intergestores bipartite (CIB) a descentralização dos recursos3636 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.765, de 12 de dezembro de 2014. Dispõe sobre as normas para financiamento e execução do Componente Básico da Assistência Farmacêutica no âmbito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), e dá outras providências. Diário Oficial da União 2014; 12 dez.. Contudo, permanece pouco elucidado o detalhamento de informações sobre a execução dos recursos destinados ao Fundo Estadual de Saúde, bem como aos municípios através dos relatórios anuais de gestão, e de como ocorre a articulação e a interface entre a Secretaria Estadual de Saúde e a SUSEPE na condução das ações e na execução dos recursos da AF.

A falta de medicamentos para atender à PPL nas UPs pode ter contornos mais complexos, tendo em vista a impossibilidade de esses indivíduos acessarem outras alternativas, em comparação com a população geral. Nas UPs do RS, 23,5% afirmaram que não houve desabastecimento de medicamentos no último ano, já os possíveis motivos mais apontados para a falta de medicamentos foram falha na programação (45,1%), recursos financeiros insuficientes (33,3%) e problemas no mercado farmacêutico (29,4%). Segundo dados da PNAUM, conforme percepção dos responsáveis pela dispensação de medicamentos, 38,0% relataram que faltas ocorrem sempre ou repetidamente nas unidades dispensadoras na APS, sendo a insuficiência de recursos financeiros (31,4%) e problemas no mercado farmacêutico (30,5%) os principais motivos para a ocorrência de desabastecimento4040 Nascimento RCRM, Álvares J, Guerra Junior AA, Gomes IC, Costa EA, Leite SN, Costa KS, Soeiro OM, Guibu IA, Karnikowski MGO, Acúrcio FA. Availability of essential medicines in primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):10s..

Diante da impossibilidade de obtenção de medicamentos nos serviços de AF na atenção primária, é evidenciado que 75,6% dos usuários não recebem nenhuma orientação, 8,3% são orientados a comprar o medicamento e 3,1% a procurar na Farmácia Popular4040 Nascimento RCRM, Álvares J, Guerra Junior AA, Gomes IC, Costa EA, Leite SN, Costa KS, Soeiro OM, Guibu IA, Karnikowski MGO, Acúrcio FA. Availability of essential medicines in primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):10s.. Já no contexto prisional gaúcho, as alternativas mais referidas perante tal situação foram solicitação ao familiar do detento (82,4%) e aguardar nova remessa de medicamentos (33,3%). Ressalta-se que na APS é singularmente importante tanto a disponibilidade quanto o acesso aos medicamentos, já que é a principal porta de entrada no SUS e importante ponto de atenção na promoção e recuperação da saúde, além da prevenção de algumas das doenças mais prevalentes.

O cenário verificado sobre o armazenamento dos medicamentos é deficitário nas UPs no RS, tendo em vista os baixos percentuais de itens para assegurar conservação e guarda adequadas, além do reduzido monitoramento das condições de armazenamento (Tabela 3). Realidade semelhante é descrita por estudo conduzido no sistema prisional de Portugal, onde o armazenamento dos medicamentos ocorria em local inadequado em 46% dos estabelecimentos, além da quase totalidade não ter ar-condicionado e não registrar temperatura e umidade (97%)4141 Guerra LAM, Fresco PFC. Characterization of pharmacy services in Portuguese prisons: a national survey. Int J Prison Health 2013; 9(4):187-195.. No Brasil também se verifica o descumprimento de requisitos técnicos e sanitários imprescindíveis à conservação dos produtos farmacêuticos, destacando-se que apenas 25,8% e 11,9% das unidades de dispensação na APS fazem controle de temperatura e umidade, respectivamente4242 Costa EA, Araújo PS, Pereira MT, Souto AC, Souza GS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA, Guibu IA, Alvares J, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Leite SN. Technical issues and conservation conditions of medicines in the primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):12s..

Entre os itens disponíveis para garantir as condições adequadas de armazenamento, 100% das UPs afirmaram ter armário com chave para a guarda de medicamentos controlados, porém, 23,5% referiram que o armazenamento ocorria em local de livre acesso. A Portaria GM/MS nº 344/19984343 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria nº 344 de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da União 1998; 12 maio. determina que substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial devem ser obrigatoriamente guardados sob chave ou outro dispositivo de segurança, em local exclusivo para este fim e sob a responsabilidade do farmacêutico. No entanto, a infração a essa regulamentação em unidades dispensadoras no SUS é uma realidade frequente, visto que em mais de 50% dos locais não há local adequado para a guarda conforme preconizado4242 Costa EA, Araújo PS, Pereira MT, Souto AC, Souza GS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA, Guibu IA, Alvares J, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Leite SN. Technical issues and conservation conditions of medicines in the primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):12s..

Em relação aos cuidados no armazenamento de medicamentos, é imprescindível a atenção ao prazo de validade, sendo que os itens vencidos ou inadequados para uso devem ser segregados em área distinta e identificada para adequado descarte4444 Pinto VA. Armazenamento e distribuição: o medicamento também merece cuidados. Uso Racional de Medicamentos: fundamentação em condutas terapêuticas e nos macroprocessos da Assistência Farmacêutica. Brasília. Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial de Saúde - OPAS/OMS. 2016; 12(1):1-7.. A respeito de tal aspecto, praticamente a totalidade (98%) das UPs observadas realizam o controle da validade dos medicamentos. Já em relação ao gerenciamento de resíduos de medicamentos, esse ocorre principalmente através do encaminhamento para descarte em unidade de saúde do município onde a UP se localiza (56,9%), porém em 3,9% das UPs ocorre descarte inadequado no lixo comum. Nesse sentido, é relevante o desenvolvimento de ações de conscientização dos usuários de medicamentos e a qualificação dos profissionais prisionais para o descarte adequado com foco na preservação ambiental e da saúde pública.

Um alto percentual das UPs gaúchas (78,4%) referiu fazer o fracionamento de medicamentos, sendo essa prática preocupante, considerando as condições deficitárias verificadas, em desacordo com as recomendações estabelecidas pela Anvisa em suas resoluções sobre o tema4545 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução de Diretoria Colegiada - RDC nº 80, de 11 de maio de 2006. As farmácias e drogarias poderão fracionar medicamentos a partir de embalagens especialmente desenvolvidas para essa finalidade. Diário Oficial da União 2006; 11 maio.,4646 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução RDC n° 67, de 8 de Outubro de 2007. Dispõe sobre boas práticas de manipulação de preparação magistrais e oficinais para uso humano em farmácias. Diário Oficial da União 2007; 08 out.. O fracionamento de medicamentos em condições inadequadas sem área específica, bem como a falta de equipamentos para embalagem e rotulagem, é uma realidade verificada em farmácias/unidades dispensadoras da atenção primária, podendo induzir a erros na administração e gerar riscos de segurança aos pacientes4242 Costa EA, Araújo PS, Pereira MT, Souto AC, Souza GS, Guerra Junior AA, Acúrcio FA, Guibu IA, Alvares J, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Leite SN. Technical issues and conservation conditions of medicines in the primary health care of the Brazilian Unified Health System. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):12s..

A infraestrutura física, assim como os recursos humanos e materiais, devem permitir a integração dos serviços e o pleno desenvolvimento das ações de AF, visando otimizar recursos, garantir a qualidade dos medicamentos e a humanização do atendimento, bem como o desenvolvimento de ações que contribuam na melhoria das condições de assistência à saúde4747 Leite SN, Manzini F, Álvares J, Guerra Junior AA, Costa EA, Acúrcio FA, Guibu IA, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Farias MR. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: Analysis of PNAUM - Services data. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):13s. Nesse sentido, observamos que a realidade nas instituições prisionais do RS não favorece a integralidade e a resolutividade do cuidado em saúde, já que em 70,6% das UPs não houve investimentos em infraestrutura nos últimos anos, um percentual reduzido referiu ocorrer algum tipo de qualificação/capacitação dos profissionais envolvidos nas atividades de AF (15,7%) e 9,8% contam com a presença de farmacêutico. Em estudos sobre a institucionalização da AF na atenção primária no Brasil, a situação também se mostrou preocupante, com um baixo percentual de ações voltadas à qualificação dos profissionais, sendo considerada insatisfatória a dimensão estrutura física/recursos humanos4747 Leite SN, Manzini F, Álvares J, Guerra Junior AA, Costa EA, Acúrcio FA, Guibu IA, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Farias MR. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: Analysis of PNAUM - Services data. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):13s,4848 Rodrigues PS, Cruz MS, Tavares NUR. Avaliação da implantação do Eixo Estrutura do Programa Nacional de Qualificação da Assistência Farmacêutica no SUS. Saude Debate 2017; 41(Esp.):192-208..

Em relação à dispensação de medicamentos, esse serviço ocorre em 3,9% das instituições prisionais observadas, já o registro da dispensação/entrega de medicamentos é feito tanto de forma manual quanto informatizada. No que se refere à periodicidade da dispensação/entrega de medicamentos psicotrópicos, verificou-se variabilidade entre as UPs, porém as frequências mais recorrentes foram diariamente (31,4%) e semanalmente (25,5%). Além disso, os participantes manifestaram que sempre (68,6%) ou quase sempre (21,6%) é fornecido algum tipo de orientação no momento da dispensação/entrega dos medicamentos aos detentos (Tabela 4).

Tabela 4
Dispensação de medicamentos nas unidades prisionais (n = 51). Rio Grande do Sul, 2022.

A dispensação de medicamentos é um ato privativo do farmacêutico que envolve a análise dos aspectos técnicos e legais do receituário, a realização de intervenções, a entrega sob orientação do uso adequado, sua conservação e descarte, com a finalidade de garantir a segurança do paciente, o acesso e a utilização adequada ao medicamento4949 Conselho Federal de Farmácia (CFF). Serviços farmacêuticos diretamente destinados ao paciente, à família e à comunidade: contextualização e arcabouço conceitual. Brasília: CFF; 2016.. A etapa de análise das prescrições pelo farmacêutico tem importante papel para a segurança do paciente e a efetividade do tratamento, sendo que em prisões da França foram identificados 22,3% de erros nas prescrições, relacionados principalmente à falta de monitoramento de medicamentos com ação no sistema nervoso central, à falta de adesão, à superdosagem e à inconformidade com diretrizes terapêuticas5050 Lalande L, Bertin C, Rioufol C, Boleor P, Cabelguenne D. Drug management of prisoners: Role of the pharmaceutical staff to ensure patient safety. Annales Pharmaceutiques Francaises 2016; 74(2):146-153.. Apesar da relevância do serviço de dispensação, esse não é uma realidade no cárcere, conforme observado por estudo realizado em penitenciárias na Paraíba, onde a entrega de medicamentos ocorria conforme os profissionais disponíveis em cada penitenciária e o comportamento do apenado3131 Cardins KKB, Freitas CHSM, Costa GMC. Dispensação de medicamentos no sistema prisional: garantia de assistência farmacêutica? Cien Saude Colet 2022; 27(12):4589-4598..

O registro da dispensação/entrega de medicamentos é geralmente realizado de forma manual (49,0%), e em 7,8% das UPs do RS não é feito registro algum, reforçando a falta da incorporação de sistema informatizado no contexto prisional para gestão da AF. Dados da PNAUM sobre a AF na atenção primária revelam que aquisição, armazenamento e controle de estoque e entrega de medicamentos aos usuários são itens contemplados quase que na totalidade onde há sistema informatizado para gestão da AF. Além disso, também é verificada associação direta entre a existência de sistema informatizado e maior acesso aos medicamentos no SUS5151 Barros RD, Costa EA, Santos DB, Souza GS, Álvares J, Guerra Junior AA, Acúrcio FA, Guibu IA, Costa KS, Karnikowski MGO, Soeiro OM, Leite SN. Access to medicines: relations with the institutionalization of pharmaceutical services. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):8s.

Pessoas privadas de liberdade são consideradas população chave no fenômeno da medicalização, sendo relatada taxa elevada de prescrições de medicamentos psicotrópicos, em comparação com a população geral5252 Hassan L, Senior J, Webb RT, Frisher M, Tully MP, While D, Shaw JJ. Prevalence and appropriateness of psychotropic medication prescribing in a nationally representative cross-sectional survey of male and female prisoners in England. BMC Psychiatry 2016; 16(1):346.. Nesse contexto, a periodicidade da entrega/dispensação de medicamentos psicotrópicos nas UPs observadas no presente estudo variou consideravelmente, revelando uma lacuna no controle desses fármacos, que apresentam potencial risco de abuso no sistema prisional. Em penitenciárias do Nordeste do Brasil foi observado que os detentos recebem os medicamentos independentemente de sua condição clínica ou avaliação de rotina3131 Cardins KKB, Freitas CHSM, Costa GMC. Dispensação de medicamentos no sistema prisional: garantia de assistência farmacêutica? Cien Saude Colet 2022; 27(12):4589-4598.. Destaca-se que, no ambiente prisional, o atendimento aos pressupostos do uso racional de medicamentos se torna pouco tangível diante da realidade enfrentada pelas equipes de saúde, que vivenciam um cenário de trabalho precarizado, com equipes incompletas, estrutura deficiente e falta de capacitação adequada5353 Brito LJS, Henriques SH, Bragança C, Leal, LA. Capacitação em serviço: percepção dos trabalhadores de saúde na assistência em unidades prisionais federais. Esc Anna Nery 2020; 24(1): e20190158.,5454 Schultz ÁLV, Dotta RM, Stock BS, Dias MTG. A precarização do trabalho no contexto da atenção primária à saúde no sistema prisional. Cien Saude Colet 2022; 27(12):4407-4414..

As orientações ao paciente no momento da dispensação de medicamentos são essenciais para a adesão à terapia e o sucesso do tratamento. Sobre tal aspecto, entre as UPs observadas foi referido majoritariamente que “sempre” ou “quase sempre” é fornecido algum tipo de orientação no momento da dispensação/entrega dos medicamentos, porém ressaltamos o possível viés desse dado, considerando que a presença ou mesmo suporte do farmacêutico não é uma realidade no contexto prisional. No Brasil, a proporção de profissionais de serviços de atenção primária que relataram transmitir orientações sobre os medicamentos no momento da entrega foi de 90,9%, além disso, nos locais que contavam com farmacêutico em período integral, os profissionais apresentaram 1,82 mais chance de transmitir instruções sobre o modo de usar os medicamentos5555 Lima MG, Álvares J, Guerra Junior AA, Costa EA, Guibu IA, Soeiro OM, Leite, SN, Karnikowski MGO, Costa KS, Acúrcio FA. Indicators related to the rational use of medicines and its associated factors. Rev Saude Publica 2017; 51(Supl. 2):23s..

Entre as limitações do presente estudo, destaca-se a impossibilidade de acesso aos dados da gestão da AF da SUSEPE ou da participação de farmacêutico responsável pela gestão da AF no contexto prisional do RS, o que poderia contribuir na articulação e melhor compreensão dos dados obtidos. Outro ponto se refere à inexistência de um instrumento específico destinado à avaliação da AF no sistema prisional, especialmente considerando as grandes discrepâncias em aspectos estruturais, operacionais e de assistência à saúde entre as instituições penais no Brasil. Também é importante pontuar que, diante das diferentes realidades, particularmente no que se refere aos recursos humanos nas UPs, deve-se considerar viés quanto à compreensão por parte dos respondentes sobre alguns termos utilizados na pesquisa. Apesar de tais limitações, o presente estudo apresenta um panorama inédito sobre a estrutura e organização da AF no sistema prisional do RS no contexto da APS, podendo contribuir para discussões e futuras ações de qualificação na gestão da saúde prisional tanto estadual quanto nacional.

Considerações finais

A partir do panorama verificado no presente estudo foi possível identificar importantes fragilidades nas ações de AF no contexto prisional do RS, destacando-se a inobservância das regulamentações de condições mínimas de infraestrutura que assegurem a efetividade e a segurança dos medicamentos. Além disso, ressalta-se o fato de o farmacêutico não estar devidamente inserido entre os profissionais atuantes no sistema prisional, sendo um ponto crítico na condução das ações da AF, pois os serviços farmacêuticos contribuem para a melhoria dos resultados em saúde da população.

É inegável que no SUS como um todo ainda permanecem problemas na institucionalização para a plena execução do modelo de AF proposto pelas políticas públicas de saúde. Contudo, importantes esforços foram empreendidos e avanços conquistados por meio de ações de qualificação nos últimos anos, especialmente a partir do Programa Nacional de Qualificação da Assistência Farmacêutica no âmbito do SUS. Nesse sentido, considerando que a PPL enfrenta de maneira desproporcional importantes agravos à saúde, e que a AF está entre as ações ofertadas pelo SUS para a integralidade do cuidado, é imprescindível que os gestores reconheçam o sistema prisional como integrante da rede de atenção à saúde, a fim de promover ações que proporcionam na prática a concretização do direito à saúde e o princípio da equidade para a PPL. Por fim, enfatiza-se a responsabilidade solidária das três esferas de gestão no que se refere à AF no âmbito da PNAISP, sendo imperativa uma maior articulação e sinergia entre estado e municípios para a execução das ações.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    Jan 2025

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    31 Out 2023
  • Publicado
    02 Nov 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br