EDITORIAL
Guerra é doença: a questão da paz e os profissionais da saúde coletiva no Brasil
L.D. Castiel
"Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força".*
Existe um sério agravo potencial à Saúde que ainda não está merecendo a devida atenção dos trabalhadores do setor no Brasil. Refiro-me à questão da gigantesca produção, aperfeiçoamento e instalação de artefatos bélicos (nucleares ou não) e a sustentação de conflitos armados que estimulam e "justificam" o consumo de armamentos. Este fato denota um quadro distorcido: ao lado de enormes quantidades de recursos dispendidos não apenas pelas potências militares na indústria de guerra, coexiste um panorama de pungentes carências sociais. Além disso, o estado das relações LesteOeste se apresenta bastante desgastado, sem perspectiva, a curto prazo, de reversão significativa das tensões políticas entre os dois grandes blocos.
A despeito das freqüentes demonstrações de grupos pacifistas nos países que podem, eventualmente, ser palco do "teatro da guerra", não se percebe, no Brasil, por parte dos profissionais da Saúde Pública, uma mobilização correspondente ao nível da ameaça. Por certo, a premência dos críticos problemas políticos, econômicos e sociais pode servir como explicação plenamente aceitável. No entanto, não diminui a responsabilidade dos trabalhadores em Saúde Coletiva na tarefa de buscar formas de mobilização e participação numa causa que não admite contemporização.
I
Podemos localizar na obra do admirável Samuel Pessoa um artigo publicado em 1956, intitulado "Conseqüências Médicas das Explosões Atômicas", resultado de conferência pronunciada na sessão de posse da nova diretoria do Centro Médico de Ribeirão Preto. Percebemos, nessa época, que a preocupação com o tema já fazia parte do ideário de um sanitarista do porte de Pessoa. Ernani Braga, outra figura destacada da Saúde Pública infelizmente falecido há pouco tempo, fazia parte do Comitê de Médicos da Organização Mundial da Saúde que se dedicava a estudar e discutir o perigo representado pela guerra nuclear. Em algumas ocasiões, para quem teve o privilégio de com ele trabalhar, ouviu-o comentar a respeito da pequena importância dada à questão no Brasil.
Publicações de entidades e instituições médicas estrangeiras vêm se manifestando com progressiva freqüência sobre o tema. Apenas para citar como exemplos mais recentes: "Medical Effects of Nuclear War'', relatório produzido pelo Comitê de Ciência e Educação da Associação Médica Britânica, em 1983; a publicação da Organização Mundial da Saúde: "Los Efectos de la Guerra Nuclear sobre la Salud y los Servicios de Salud, 1984; e o livro de referência para profissionais de saúde: "Nuclear Weapons and Nuclear War", de 1984. No Brasil, o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES) lançou, em 1984, a publicação dos médicos soviéticos: "Perigo: Guerra Nuclear". Apesar da iniciativa importante, parece ainda insuficiente para estimular a discussão e a mobilização dos sanitaristas quanto ao problema.
É preciso ressaltar outras dimensões da questão. Uma delas é a existência de conflitos "convencionais" na América Central, resultado da equivocada política externa norte-americana, fruto de concepções político-econômicas perniciosas quanto às relações com o Terceiro Mundo. Tais conflitos geram tensões capazes de desencadear conseqüências graves e, talvez, incontroláveis. Mais importante ainda, contribuem para deteriorar ainda mais o nível de vida das populações já pauperizadas pelos governos opressores que as tutelavam anteriormente.
Outro aspecto que pode passar despercebido é o fato da corrida armamentista ter como componente essencial uma decisão política do governo dos Estados Unidos. Desta forma, parcelas consideráveis do orçamento americano são reservadas para fins bélicos. Pode-se inferir, dentro desta racionalidade, que muitos recursos que o Brasil paga, sob juros escorchantes, para amortizar sua dívida externa, podem estar vinculados ao financiamento da produção de armamentos norte-americana.
II
A política econômica do governo brasileiro para equilibrar a balança de pagamentos consta de medidas monetaristas que incluem: contração das importações e estímulo às exportações. Para efeito da presente discussão, é interessante focalizar um dos principais componentes da nossa pauta de exportações: os produtos da indústria bélica nacional. Estas empresas, sediadas principalmente em São José dos Campos e no interior do Rio de Janeiro, dedicam-se à produção e ao aperfeiçoamento de armas, veículos terrestres e aviões de treinamento com fins militares. Uma questão que se coloca é avaliar as implicações desta opção de "superação" da crise econômica. Por um lado, o significado do incentivo às exportações para pagar uma dívida impossível de ser "saldada", nos termos vigentes. Por outro lado, o fato de que um dos elementos importantes das exportações são armamentos. Creio que não cabe a argumentação de que se busca satisfazer uma demanda mundial ou que se trata de reforçar defesa de "soberanias" dos países. Fomentar conflitos armados e ter nações militaristas como clientes só aumentam a instabilidade político-econômica mundial.
Numa época de transição política, é essencial articular grupos de pressão eficazes para influir nas questões cruciais para a sociedade brasileira. Dentro destas, cabe incluir temas como: a opção armamentista, a posição brasileira quanto aos conflitos na América Central, a ameaça nuclear.
III
Um aspecto importante a ser considerado é a constatação cada vez mais evidente de que nenhum serviço de saúde de qualquer região do planeta teria condições de atender apropriadamente às centenas de milhares de pessoas atingidas pelos efeitos de apenas um artefato atômico com o equivalente a 1 megaton. Desta maneira, a única possibilidade "terapêutica" para os efeitos das explosões nucleares é evitá-las, ou seja, a prevenção da guerra atômica.
E o que vem sendo feito neste sentido no Brasil ? De forma geral, ainda se procura difundir a idéia da importância dos movimentos pela paz. Neste sentido, podemos citar duas organizações: o Conselho Brasileiro de Defesa da Paz e O Movimento Brasileiro pelo Desarmamento e a Paz. Parece-me que uma das formas possíveis de se atuar na busca de soluções para o controle desta situação extremamente delicada seria o engajamento nos movimentos pacifistas já organizados no país. Tanto para procurar ampliar o conhecimento relacionado aos aspectos ligados à Saúde, como para ter acesso a outras dimensões de natureza sociológica, biológica, política e econômica que a questão suscita. Em suma, creio que o profissional de saúde deve tomar parte mais efetivamente na defesa da paz. Não apenas como elemento do setor que lida com os potenciais agravos à vida, mas também como cidadão que busca ter suas posições levadas em consideração quando decisões tão fundamentais são tomadas.
Recebido para publicação em 23/04/85
* "Slogans" do Grande Irmão em "1984", George Orwell