RESENHA
Ana Maria Canesqui
UNICAMP
SERVICIOS DE SALUD Y SECTORES POPULARES. LOS AÑOS DEL PROCESO. Juan José Llovet. Centro de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES). Buenos Aires, Argentina, 1984.
O consumo médico (de serviços, atos médicos e medicamentos) das camadas trabalhadoras é uma temática que tem despertado, atualmente, a atenção dos investigadores, no sentido de explorar e descrever padrões, alternativas e estratégias diferenciais entre categorias sociais no enfrentamento das situações de doença.
O livro de Juan Jose Llovet inscreve-se nesta preocupação, a partir de uma perspectiva qualitativa e micro-sociológica, que adentra e recupera os comportamentos dos setores populares da área metropolitana de Buenos Aires face ao consumo de cuidado médico. Ele partiu da família trabalhadora enquanto unidade de vida e consumo, cujos membros são basicamente vendedores de força de trabalho.
Enfocando a família socialmente inserida e não o indivíduo, as estatísticas ou as instituições como é usual nas pesquisas sobre consumo, o autor trouxe uma contribuição original sobre as interrelações entre saúde e família, área pouco privilegiada nas pesquisas em saúde coletiva. No terreno sanitário, o familiar apresenta relevância para o autor como desencadeante simbólico e factual da doença, como fator predominante na resolução do problema de saúde e como caixa de ressonância deste. Esta afirmação do autor não reduz a família à sua autonomia, mas admite o seu contexto, na decisão de modos de consumir atos médicos, subordinados, evidentemente, às situações de classe onde ela se inscreve.
O consumo em saúde não se configura apenas na família numa situação de classe. O autor foi além, procurando entendê-lo do lado dos efeitos sobre o consumo do impacto recessivo da política econômica argentina e das alterações da política de saúde, através do Processo de Reorganização Nacional instalado pelo Governo ditatorial, a partir de 1979, que remodelou a oferta de Serviços de Saúde.
Sem preocupar-se com generalizações sobre os dados que obteve, o autor elaborou seu estudo em 1981, a partir de uma amostra probabilística de 19 famílias (102 pessoas) residentes em diferentes bairros de Buenos Aires, abarcando uma heterogeneidade de condições sociais estratificadas dicotomicamente nos estratos altos e baixos, de acordo com o critério das condições habitacionais.
Se este critério pode ser questionado, o autor justificou-o em face da impossibilidade de adotar o parâmetro diferenciador renda per capita, devido à grande dispersão salarial, inflação e mudanças nos preços relativos numa economia recessiva. Agregou a esses dados outras informações procedentes de um estudo qualitativo sobre condições de vida, realizado pelo Centro de Estudios de Estado y Sociedad, entre 1979 e 1982, abrangendo 16 famílias e 180 entrevistas, assim como as estatísticas oficiais e entrevistas com agentes institucionais de saúde.
Os resultados alcançados pelo autor demonstraram nas camadas trabalhadoras o padrão de consumo tardio em relação à evolução da doença, com algumas variações nas unidades familiares em função da idade, sexo, posição familiar e social do indivíduo demandante do serviço de saúde, em decorrência da associação de determinantes ideológicos, micro-estruturais e estruturais.
Esta discussão sobre a demanda dos serviços de saúde, coberta por dois capítulos do livro, reafirma algumas idéias de Luc Boltanski, autor de As Classes Sociais e o Corpo (Graal, 1979), mostrando que a busca dos serviços de saúde nas camadas populares submete-se: 1) à maneira como o corpo é utilizado e percebidas suas alterações; 2) à estrutura do cotidiano; 3) à baixa disponibilidade salarial; 4) à incompetência médica. Configura-se, assim, o padrão de consumo tardio nas camadas populares, em relação à evolução da doença.
Este padrão permanece, ou varia, de acordo com o sexo, posição na família e estrato social dos demandantes. O padrão de consumo tardio foi encontrado nos homens pertencentes aos estratos altos e baixos, nas mulheres e crianças dos estratos baixos. Caracteriza-se, contudo, como padrão de consumo imediato para as mulheres e crianças dos estratos altos, associado às condutas preventivas.
Nos dois últimos capítulos dedicados à oferta dos serviços de saúde, o autor analisa os diferentes produtores de serviços de saúde, a cobertura efetiva e potencial, as alterações produzidas na política de saúde e política econômica, durante o regime militar, cujos parâmetros, a seu ver, foram neoconservadores, calcados na otimização e maximização dos custos e nos rendimentos políticos das decisões. Especificamente no setor saúde, o Processo de Reorganização Nacional modificou as obras sociais e os hospitais, controlando a demanda, reduzindo a cobertura, e descentralizando os serviços. Estas medidas, associadas à recessão econômica e ao desemprego, reduziram as possibilidades de acesso dos setores populares aos serviços de saúde.
Finalmente, o autor enfocou o hospital, como locus privilegiado da oferta e recepção, de parte dos setores populares, dos serviços de saúde. Nele reconstitui os agentes, as circunstâncias e os conteúdos do processo de consumo dos setores populares na instituição. O hospital, para o autor, sintetizou as vivências e as possibilidades dos setores populares, representando sua forma modal de cuidado médico. A análise do hospital mostrou o impacto da política sanitária sobre um setor, a duvidosa produtividade hospitalar, as resistências às inovações burocráticas, o controle sobre a demanda social e a deterioração do setor público. Enfim, a modalidade da oferta reforça o consumo tardio dos atos médicos nos setores populares.
Este livro é de enorme valia aos pesquisadores, docentes da área de saúde coletiva e leitores que se preocupam com o lugar da saúde e o processo de consumo em saúde nas camadas trabalhadoras, face ao processo de crise econômica e reorganização sanitária de uma realidade sul-americana.