COMENTÁRIO

 

A epidemia final*

 

 

Frederico Simões Barbosa

Escola Nacional de Saúde Pública — FIOCRUZ-RJ

 

 

Este periódico** publicou uma análise do documento intitulado "Hunger in America: the growing epidemic", editado pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, EE UU, no qual foram identificados problemas de saúde e de fome que não se poderiam imaginar em uma país do poder econômico dos EE UU. A fome foi rotulada como uma epidemia crescente, sendo o resultado das políticas do governo federal.

Naquela ocasião, foi comentado que, se a pobreza, a desnutrição e a fome, então denunciadas, estão ligadas à má distribuição de renda nacional (como parece implícito em vários trechos do documento), as modificações a operar deverão ser muito mais profundas do que o documento preconizado, i. e., terão de atingir as raízes estruturais da economia do país.

A pobreza e a denustrição passaram a ser também problemas do Primeiro Mundo. E é neste mundo, das ilusões e de contradições, onde surgiu a literatura do pós-modernismo que veio para substituir o realismo de décadas passadas. É a literatura da exaustão, uma metaficção, com liberação de dogmas e de regras. Perguntava-se naquela ocasião: será essa literatura o sinal de decadência da sociedade de consumo em sua forma dita mais avançada, a era pós industrial?

Estas reflexões vêm à mente de todos os que meditarem sobre o futuro da humanidade.

É de extrema importância ressaltar como as raízes dos problemas de saúde das populações estão basicamente nas condições sociais e econômicas de determinado país, qualquer que seja seu grau de desenvolvimento, e como tudo isso depende de decisões de ordem política. Este é o traço de ligação entre a Análise citada e o Comentário, publicados pelo "Cadernos de Saúde Pública".

Em seguida, são transcritos, em tradução para o nosso idioma, os tópicos acima mencionados.

 

PREVENIDO A EPIDEMIA FINAL***

Em 1967 o editor deste Jornal concluía seu discurso presidencial diante da Associação Americana de Saúde Pública dizendo: "A guerra, ela própria, é um enorme problema de saúde pública. Durante o século XX ela destruiu muitos milhões e incapacitou número desconhecido de pessoas através de ações militares, inflingindo fome e doença. Ainda, sua tendência é para crescente destrutividade de vidas e saúde humanas. Nosso século tornou-se um século de horror, no qual populações foram submetidas a bombardeios, napalm e fome por defoliação. . . Culpa é atribuída à saúde pública por ter emprestado seus conhecimentos biológicos em microbiologia e epidemiologia para a criação das armas bacteriológicas. Começando por Hiroshima e Nagasaki, atingimos agora o ponto onde nos confrontamos com o evento final da saúde pública: a possibilidade de que a guerra nuclear possa causar a total extinção da população de nosso planeta ".

"Trabalhadores de saúde são protagonistas da humanidade. Deixe-nos fazer tudo a nosso alcance para trazer a paz ao mundo e a saúde a todo o seu povo "1.

A incompatibilidade fundamental entre militarismo e saúde pública foi enfatizada em recente Editorial deste Jornal:

"Um programa nacional de saúde efetivo é inconcebível sem que a população inteira tenha atingido padrão saudável de vida. O melhoramento da saúde física e mental não pode ser realizado a não ser que as necessidades humana s fundamentais sejam atendidas.

Um padrão saudável de vida requer a reversão imediata das prioridades da nação, voltando-se da astronômica escalada, de gastos militares para os seguinte objetivos: 1) emprego para todos; 2) renda familiar adequada; 3) habitação decente, incluindo-se aqui a eliminação de favelas urbanas e rurais; 4) boa nutrição; 5) maior apoio financeiro à educação superior; 6) melhoramento das oportunidades culturais e recreativas; 7) ação afirmativa em todos os campos da vida nacional, com a finalidade de eliminar a discriminação contra grupos minoritários baseada em raça, sexo, idade, crença, religião e nacionalidade; e 8) liberação da guerra e da ameaça de holocausto nuclear. Esta "epidemia final'' está se tornando mais próxima enquanto a Administração Reagan se engaja em ações militares, planos são elaborados para "guerra nuclear limitada", guerra nuclear protraída e capacipação para o primeiro ataque, e recebe suporte congregacional para o desenvolvimento de armas nucleares ainda mais mortíferas. O desvio dos recursos nacionais para fins militares torna impossível atingir uma economia saudável e um padrão sadio de vida para o povo dos Estados Unidos "2.

A situação piorou recentemente. De acordo com a revista Science, o número de detonações de armas nucleares aumentou agudamente durante a década de 80. Paul Robinson, antigo diretor associado dos programas de segurança nacional em Los Alamos, afirmou que parte do aumento foi autorizado pelo presidente Jimmy Carter duas semanas depois de sua derrota na eleição de 1980). "Porém ", observou R. Jeffrew Smith, do corpo editorial de Science, "outros dizem que a maioria do aumento ocorreu em 1984 e 1985, devido à expansão do esforço para a "Guerra nas Estrelas" e o fato de que uma variedade de armas estratégicas chegavam a seu estágio final de desenvolvimento"3.

Talvez a descrição mais sensível e acurada da situação corrente, não oriunda das páginas de uma revista científica, mas do grande diretor espanhol de cinema Luís Buñuel que escreveu, pouco antes de sua morte, em 1983:

"Porém, agora que estou só e velho, prevejo apenas catástrofe e caos. Sei que pessoas idosas sempre dizem que o sol era mais quente quando elas eram mais jovens, e também estou consciente quanto de lugar-comum tem o anúncio do fim do mundo a cada milênio. Entretanto, ainda penso que o século inteiro está se movendo em direção a algum momento cataclismico. O demônio parece finalmente vitorioso; as forças da destruição tem empurrado os dias; a mente humana não tem feito qualquer progresso em relação à clareza. Talvez tenha mesmo regredido, vivemos a era da fraqueza, do medo e da morbidade. De onde poderão vir a bondade e a inteligência para nos salvar?"4

O Papel da Associação Americana de Saúde Pública

Em algum lugar deste número, encontra-se o "Apelo Conjunto da Associação Americana de Saúde Pública e do Sindicato dos Trabalhadores de Saúde da URSS ao Secretário Geral Gorbachev e ao Presidente Reagan "para que seja feito todo o possível a fim de prevenir o "momento cataclísmico" no qual a guerra nuclear destruirá o planeta Terra. O Apelo Conjunto resultou de uma semana de atividade da reunião anual da AASP, durante a qual ficou demonstrado o valor da bondade e da inteligência com as quais Buñuel esperava poder salvar a humanidade da auto-destruição. Três sessões científicas foram realizadas, com a participação de líderes trabalhadores soviéticos de saúde, especialistas em saúde materno-infantil saúde ocupacional e saúde rural. Dra. Lydia Novak, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Médicos da URSS, falou na sessão geral sobre "Cooperação Internacional para a Saúde dos Povos"; enquanto o Vice-Presidente da Conferência, Dr. Victor Sidel, Presidente da AASP, encerrou a sessão geral da clausura falando sobre a "Prevenção da Guerra Nuclear como Responsabilidade da Saúde Pública"; e foi eleito membro honorário da Associação Americana de Saúde Pública pelo Conselho Diretor.

O encorajante início de mútuo entendimento e coleguismo precisa ser fortalecido e ter continuidade. As apresentações feitas pelos trabalhadores soviéticos de saúde deverão ser publicadas no American Journal of Public Health, e contribuições posteriores deverão ser solicitadas. Entendimentos serão feitos para que contribuições semelhantes de autoria de trabalhadores americanos de saúde pública sejam publicadas em jornais soviéticos especializados. Há necessidade de que sejam estabelecidos contatos profissionais mais diretos entre trabalhadores de saúde pública das duas nações; uma excelente abordagem seria para sessões individuais da Associação Americana de Saúde Pública e associações estaduais de saúde pública desenvolverem tais contatos com suas organizações similares na URSS. Isto seria útil para ajudar a dissipar a ignorância mútua que fomenta solo fértil para a paranóia e a guerra.

O Papel da Associação Internacional de Epidemiologia

Infelizmente nem todas as organizações de saúde pública parecem reconhecer completamente o crescente perigo de um holocausto nuclear. Durante a 10ª Reunião Científica da Associação Internacional de Epidemiologia, ocorrida em Vancouver, Canadá, em agosto de 1984, o editor deste Jornal fez os seguintes comentarios em sua apresentação à Conferencia Robert Cruikshank:

"A prevenção da epidemia final — a destruição militar de nosso planeta por bombas nucleares — exige o fim da Guerra Fria, o acordo sobre congelamento nuclear, eliminação progressiva das armas nucleares e drástica redução de todo tipo de produção militar. A Associação Internacional de Epidemiologia tem, a esse respeito, especial responsabilidade. É lamentável que, de mais de 1500 membros da AIE, em dezembro de 1982, apenas 33 pertenciam a 14 países socialistas, países esses que representam um terço da população mundial. Embora nossa letter head traga o nome, Associação Internacional de Epidemiologia, em seis línguas — inglês, francês, chinês, russo, árabe e espanhol — nenhum nome da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou da República Popular da China estava entre os membros signatários. E urgente que corrijamos essa anomalia e façamos nossas próprias contribuições para o entendimento internacional e a paz mundial, trazendo nossos colegas dos países socialistas para participarem totalmente de nossas reuniões científicas e atividades outras"5

A XI Conferência Científica da Associação Internacional de Epidemiologia terá lugar de 8 a 13 de agosto de 1987, em Helsinki, Finlândia.

Esta será uma excelente oportunidade para a AIE dar sua contribuição própria à compreensão internacional e à paz mundial. Epidemiologistas líderes da União Soviética e de outros países socialistas serão convidados e encorajados a apresentar trabalhos na reunião. Helsinki está a curta distância de Leningrado; viagens pré e pós-conferência podem ser seguramente promovidas pelo Sindicato dos Trabalhadores Médicos da URSS para que os participantes da conferência possam visitar a União Soviética, observar seus programas e serviços de saúde, discutir problemas de saúde pública de interesse comum com seus colegas soviéticos. Tal ação da Associação Internacional de Epidemiologia ajudaria não apenas a Associação a tornar-se verdadeiramente internacional, mas encorajaria também os trabalhadores de saúde pública e pessoas em qualquer lugar que acreditem que "a bondade e a inteligência" existem para prevenir a epidemia final, apagando o "momento cataclísmico" do holocausto nuclear.

 

APELO CONJUNTO

Apelo conjunto que fazem a "Associação Americana de Saúde Pública" e o "Sindicato de Trabalhadores Médicos da URSS " ao Secretário Geral Gorbachev, do Partido Comunista da União Soviética, e ao Presidente Reagan, dos Estados Unidos6

Nós, representantes das organizações de saúde pública dos EE UU e da URSS, participantes da Reunião Anual da Associação Americana de Saúde Pública realizada este ano (1986) com o tema "Responsabilidade Governamental e a Saúde do Povo", reunímo-nos em Washington, DC para discutir problemas cruciais relacionados, com os profissionias de saúde e que afetam os interesses de toda comunidade a que servimos. A cooperação efetiva e a longo alcance entre nossas organizações — a Associação Americana de Saúde Pública e o Sindicato dos Trabalhadores Médicos da URSS — é um exemplo de diálogo útil que poderá contribuir tanto para atingir o objetivo global de "saúde para todos", como para melhorar a compreensão mútua entre nossas nações.

Como trabalhadores de saúde pública, acreditamos que a proteção da saúde e da vida das pessoas depende diretamente da solução do maior mecanismo atual de pressão — a preservação da guerra nuclear e da paz sobre a Terra. Acreditamos que as condições de relacionamento soviético-americano, levadas a significante nível, pode influenciar o destino do mundo e o futuro de seus povos. Assim, saudamos o encontro de cúpula entre os líderes de nossos países e colocamos muitas esperanças nos seus resultados.

A comunidade mundial espera um diálogo construtivo, consistente com o grau de responsabilidade de nossos líderes, e permeado pelo desejo de suplantar desentendimentos, com a finalidade de estabelecer entendimento mútuo. Há a necessidade de melhoramento radical da situação internacional, a fim de que se possa atingir, mutuamente, soluções aceitáveis em pontos cardinais como a manutenção da paz e a preservação da guerra nuclear. Nós, particularmente, pedimos urgência para que os senhores cheguem a um acordo em relação a uma verificável interrupção do desenvolvimento, teste, produção e estocagem de armas nucleares, seguido de redução balanceada e eventual eliminação dessas armas.

Os recursos liberados como resultado do desarmamento podem ser usados para lutar contra a pobreza, a fome, a doença e outras necessidades sociais urgentes.

Nós acreditamos, sinceramente, que a reunião de cúpula pode tornar-se um marco histórico acerca da complexa via em busca do objetivo desejado por todos os povos — o banimento e eliminação completa de todas as armas nucleares.

O profundo respeito de todos que, no momento, habitam a Terra e a gratidão das gerações que virão serão atribuídas àqueles que fizerem o maior esforço para libertar a humanidade do perigo nuclear e para atingir o grande objetivo de um mundo pacífico e saudável

Os apelos a favor da Paz Mundial têm sido numerosos. Associações, leigas e religiosas, têm se pronunciado com relativa freqüência sobre o angustiante tema da destruição da Terra por armas nucleares.

Apesar de todo o realismo do problema em questão, nem todos parecem estar totalmente conscientes do perigo nuclear.

Por outro lado, interesses econômicos continuam a movimentar as usinas atômicas, não obstante os desastres nucleares ocorridos em vários países, particularmente os de Chernobyl e Seven Milles Island.

O encontro acima, comentado pela imprensa mundial, revelou a intransigência do Presidente Reagan em não negociar o Programa de Defesa Estratégica, comumente chamado de Guerra nas Estrelas.

A reunião, encerrada em l 2 de outubro de 1986, deixou um vazio na história dos povos, não havendo data marcada para novo encontro. Na ocasião, Gorbachev afirmou; ''A corrida armamentista não foi contida, e agora estamos chegando a um ponto de não-retorno no qual essa corrida vai recrudescer, com conseqüências imprevisíveis''.7

Logo em seguida, sete mil cientistas americanos manifestaram forte oposição ao projeto da Guerra nas Estrelas, em um movimento coordenado pelas Universidades de Cornell e de Illinois. Dentre os cientistas, figuram 15 prêmios Nobel. O projeto é rotulado de desestabilizador, perigoso e tecnicamente irrealizável, afirmaram os cientistas americanos8.

O impasse continua... Planeja-se outro encontro de cúpula entre as duas superpotências. O impasse continuará, não obstante o idealismo de muitos, enquanto os países não encontrarem meios de se entenderem na base da justiça social e da liberdade para todos e não no enfrentamento e exibição de força e poder condicionados psicologicamente pelo medo. Somente políticas econômicas e sociais elaboradas através de novas formas de organização social e econômica tornarão o Homem capaz de dialogar liberto do medo.

 

 

* Tradução comentada sobre o Editorial e o Apelo Conjunto publicados pelo ''Journal of Public Health Policy" dos EE UU.
Com permissão do Dr. Milton Terris, Editor do South Burlington, Vermont, USA.
** Cadernos de Saúde Pública, 1 (3):35-371, 1985.
*** Jour. Publ. Health. Pol. 7 (1): 7-11, 1986.
1 Terris,M. "A Social Policy for Health", Am. J. Pub. Health 58 (1968): 5-12.
2 Editorial, "A National Health Program for the United States: The Need for a Citizens Coalition", J.Pub. Health Policy .5 (1984): 10-17.
3 Smith, R J. "Nuclear Testing Up Sharply Under Reagan", Science 231 (1968): 333-4. br>4 Buñuel, L. My Last Sigh. New York. Vintage Books, 1984, p. 252.
5 Terris, M. "The Changing Relations ships of Epidemiology and Society: The Robert Cruikshank Lecture", J. Pub. Health Policy 6 (1985): 15-36.
6 Victor W. Sidel, Presidente da Associação Americana de Saúde Pública e Lydia Novak, Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Médicos da URSS. Jour. Publ. Hlth. Policy,7 (1): 103-104, 1986.
7 Jornal do Brasil, 13/10/86
8 The Washington Post, citado pelo Jornal do Brasil, 16/10/86.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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