EDITORIAL EDITORIAL

 

Dengue — a mais nova endemia "de estimação"?

 

 

Keyla Belízia Feldman Marzochi

 

 

A Dengue, no Estado do Rio de Janeiro, encontra-se no 2º ano do seu reconhecimento, tendo sido introduzida no início de 1986, talvez desde janeiro.

Evoluiu, com elevações, nos meses de maio, junho e julho; decresceu, acentuadamente, em setembro, outubro e novembro e apresentou franco recrudescimento em dezembro, até a presente data — março de 87.

Todos os casos diagnosticados, até o momento, foram associados ao flavivírus tipo 1. Sabe-se que os 4 tipos conhecidos de vírus da Dengue são potencialmente graves e fatais. Esse potencial de gravidade aumenta, expressivamente, em uma segunda infecção por novo sorotipo que, eventualmente, penetre na mesma comunidade, concomitante ou sucedendo ao primeiro. Considerando-se, entretanto, o número incalculável (milhões) de casos de infecção por Dengue l no Estado, desde o início do processo, teme-se que os casos graves, embora raros por uma única infecção, passem a ter expressão e venham a ser consideráveis em números absolutos. Todavia, trata-se, em sua forma benigna, de doença incapacitante por, no mínimo, 7 dias, determinando considerável comprometimento geral e conseqüentes perdas de trabalho e escolar, além do custo da atenção clínica e laboratorial.

Os primeiros casos, confirmados no Rio de Janeiro, datam de 2 e 3 de abril de 1986, através de exames sorológicos realizados no Departamento de Virologia do Instituto Oswaldo Cruz. FIOCRUZ, por inquérito domiciliar inicialmente dirigido para outras doenças (Febre tifóide e enteroviroses). Os primeiros inquéritos se realizaram no Município de Nova Iguaçu, nos bairros de Califórnia. Prata e Vila Nova e indicaram taxas médias de ataque, progressivamente, crescentes de 44.9, 56,0 e 76,1%, respectivamente. Estudo mais recente de incidência, do Departamento Geral de Epidemiologia e Controle de Doenças da Secretaria Estadual de Saúde e Higiene sugere que a epidemia possa ter iniciado em São João de Meriti, onde se verificou o pico mais precoce, e não, em Nova Iguaçu.

Diversos grupos técnicos, convocados no início, se voltaram à nova doença.

Ainda em abril, o Ministro da Saúde, Dr. Roberto Santos, resolveu assumir, pessoalmente, a coordenação da campanha antidengue.

A imprensa contribuía, razoavelmente, para alertar a população quanto à ocorrência e controle do surto.

Associações de bairro promoviam palestras com profissionais, principalmente, da SUCAM e COMLURB.

A FIOCRUZ sediava reuniões interinstitucionais, com a presença do Ministro da Saúde. A Escola Nacional de Saúde Pública, através do Centro de Estudos, promoveu uma mesa-redonda reunindo diversas autoridades nacionais sobre o assunto; surgiram, ali, algumas opiniões contraditórias, pois, enquanto uns alertavam para a potencial gravidade da situação, inclusive com participação do plenário, defendendo medidas energéticas, outro membro da mesa afirmava que a Dengue pouparia, sem dúvida, a capital do Rio de Janeiro, onde a taxa de infecção predial pelo Aedes aegypti não atingia 2%. Precisamente, nos dias seguintes, os primeiros casos da zona sul da cidade eram referidos pela imprensa leiga, tornando-se cada vez mais comuns.

Também, na ENSP, realizou-se (05/05/86) uma reunião interinstitucional com representantes das áreas de Epidemiologia e Doenças Infecciosas e Parasitárias que resultou em um Documento — Estratégia de Emergência para o Controle da Epidemia de Dengue no Estado do Rio de Janeiro — cujas propostas incluíram "Definição de um Controle Central constituído pela Comissão Interinstitucional de Saúde (CIS-RJ), "Identificação de estado de emergência em Saúde Pública e Estabelecimento, pela CIS, de Comissão Técnica cujo Coordenador deverá ser indicado pela Secretaria Estadual de Saúde".

Também na FIOCRUZ, o Centro de Estudos do Instituto Oswaldo Cruz promoveu várias apresentações científicas sobre Dengue, incluindo os trabalhos ali iniciados, além da participação de convidados de exterior. Nesta ocasião já foi considerada como inexorável diante da realidade local, política, social e geográfica, a transformação do surto que se iniciava em uma nova endemia brasileira.

Em maio, nas três últimas semanas quando registravam-se 12.185 casos de Dengue do Estado do Rio de Janeiro, a imprensa leiga, na segunda semana desse mês, referia 300.000 casos sendo que os bairros mais atingidos seriam, então, Penha, Nova Holanda, Campo Grande, Santa Tereza, além dos municípios de São João de Meriti, Duque de Caxias e Niterói.

Ainda em maio, a CIS/RJ criou a Coordenação Estadual de Controle da Dengue, devidamente constituída por representantes de órgãos federais, estaduais, municipais e da comunidade e incluiu a Dengue entre as doenças de notificação compulsória. A partir disso foi determinada a distribuição de formulários específicos a todos os Hospitais no Estado. Até hoje, porém, o Hospital Evandro Chagas, da FIOCRUZ, com ambulatório específico para Dengue, não os recebeu, como também, qualquer informação formal sobre a doença.

É importante assinalar que o Hospital Evandro Chagas — IOC, desenvolve, desde o mês de maio 86, estudo prospectivo clínico-laboratorial dos pacientes de Dengue integrado ao Departamento de Virologia e, posteriormente, a outros departamentos do IOC e ENSP. Circulares foram distribuídas, inicialmente, a todos os serviços médicos da AP3.1, informando sobre o interesse da investigação, baseada em fichas específicas e seguimento obrigatório dos pacientes, até 14 dias. Como principais finalidades destacavam-se a definição de um modelo clínico-laboratorial local da doença, assim como a vigilância clínico-laboratorial da Dengue hemorrágica. A iniciativa foi apoiada por técnicos da OPAS, convidados pelo Ministério da Saúde, dos quais o Hospital teve a oportunidade de receber marcada assessoria clínica.

Dessa forma, definiu-se o Modelo Clínico-laboratorial da Dengue no Rio de Janeiro, com base na confirmação etiológica dos casos.

O Modelo foi, devidamente, enviado ao Ministro da Saúde ainda em junho, mas utilizado, para orientação da classe médica, apenas em Niterói, em novembro, por iniciativa da Coordenação do Grupo de Trabalho de Vigilância Epidemiológica — Projeto Niterói. Além disso, nenhum recurso do Ministério da Saúde foi dado ao Hospital, embora solicitado, apesar da sua situação quase inviável, na época.

A investigação clínico-laboratorial permitiu, também, entre outras observações, detectar dois casos de Dengue hemorrágica grau II, conforme critérios da OMS, associados ao vírus Dengue, tipo l, que apresentaram sangramentos, hemoconcentração e plaquetopenia, mas evoluíram bem.

Os Municípios de maior incidência até setembro/86 foram: Niterói, São João de Meriti, Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e o da Capital. A taxa de incidência, entre março e setembro, variou de 163,27 casos/100.000, na Capital, a 664,45 casos/100.000, em Niterói. E o número de casos notificados até dezembro predominou no Município do Rio de Janeiro (15.652 casos), seguido de Caxias (2.659) e Nova Iguaçu (2.479).

Desconhecemos se algum bairro da capital foi, seguramente, poupado da infecção por Dengue, no decorrer do processo.

Quanto à situação do vetor — o Aëdes aegypti — já se admitia desde meados de 85, a necessidade de um trabalho rigoroso para seu controle no Rio de Janeiro. Na ocasião a infestação larvárea domiciliar pelo Aëdes era na Capital, maior que 5%, em 27 bairros, e entre 1% e 4,9%, em 43 bairros, desconhecendo-se os índices relativos à baixada fluminense. Entretanto, no início de 1986, o índice de infestação detectado nos bairros de Nova Iguaçu atingidos pelo surto era de 28%.

A SUCAM, contudo, teria previsto, ainda em maio, que o controle da infestação no Rio de Janeiro se daria em 30 a 45 dias. Para isso parece que contava com aumento de pessoal disponível que, entretanto, não chegaria aos 3.000 homens (em Cuba, na epidemia de 1981 foram mobilizadas 15.000 pessoas para o controle do vetor), com importação de 16 máquinas tipo LECO acopladas a veículos ("fumacês") e compra de 60 máquinas costáis, Hatsuda (em Cuba foram utilizadas 215 e 3.961, respectivamente), além de 60 novas camionetas.

No curso do primeiro ano epidêmico, com recrudescência nos últimos meses mais quentes, novo potencial vetor da doença foi identificado no Rio de Janeiro — o Aëdes, albopictus — cuja infecção pelo vírus não foi detectada até o momento. O Aedes aegypti passou a ser encontrado em quase todas as capitais brasileiras e surtos concomitantes da infecção já atingiram, consideravelmente, até agora, Maceió. Fortaleza e Recife.

Não conhecemos os níveis atuais da infestação predial pelo Aëdes aegypti no Rio de Janeiro. Também, não foram divulgados novos projetos para erradicação da Dengue da SUCAM e Secretarias Estadual e Municipal. A epidemia continua. Os pacientes aí estão, diariamente, excedendo a capacidade dos Serviços e procurando atendimento, apesar da conhecida inexistência de tratamento específico e da orientação, muitas vezes dada. de público, para que permaneçam em casa, pois. a doença não é grave e melhora com sintomáticos. Nem assim foi possível o "controle" do processo. Mas, lamentavelmente, tal orientação tem levado a que pacientes, com outras doenças infecciosas agudas e mais graves que a Dengue, supondo tratar-se de Dengue, recebam atendimento tardio. E quanto à epidemia, além de contribuir para a subnotificação, casos eventualmente graves da virose podem deixar de ser diagnosticados e atendidos.

O Hospital Evandro Chagas é uma amostra, na FIOCRUZ, da recrudescência da epidemia. Em 1986, o pico de atendimento ocorreu em maio com 130 casos, caindo a 4 casos em novembro, mas elevando-se a l 27 em dezembro, aumentando, em 1987, para 157 casos em janeiro e 174 em fevereiro.

Fazem-se necessárias muitas avaliações dessa epidemia, mas é fundamental para seu combate que sejam considerados e respeitados os números absolutos de doentes e o potencial de gravidade da doença, a perda financeira e social que representa, por dia de trabalho ou de estudo, avaliada pelo número de casos, os custos do atendimento clínico e laboratorial.

Não há dúvida de que a erradicação da Dengue não ocorrerá, ao menos no Rio de Janeiro, sem um planejamento realista de recursos humanos e materiais, com cronograma de execução, envolvendo prioridades de campanhas, integração do trabalho dos níveis federal, estadual e municipal, sistemática ampla de divulgação técnica e leiga e participação popular esclarecida; esta última, na prática, é fator principal, ainda mais considerando-se a economia de recursos. Não há dúvida, também, que isso ocorrerá naturalmente, bastando esperar que uns oitenta por cento da comunidade fique imune pela infecção e que um segundo tipo do vírus não atinja a população.

Não podemos deixar de comparar o tratamento da epidemia de Dengue do Rio de Janeiro com o realizado em Cuba em 1981, talvez como padrão ideal para uma população semelhante à do Rio de Janeiro e com nível médio de infestação predial pelo Aëdes aegypti de 35%. Em cinco meses — junho a outubro — a epidemia acabou, reduzindo-se os casos notificados de até quase 10.000/dia (pico máximo) a 3/dia ainda em setembro, decrescendo a taxa de infestação predial à média de 0,09% e desaparecendo os casos.

Entre nós, a permanecer o insuficiente investimento na saúde, o distanciamento da necessária reforma sanitária, a indiferença frente à necessidade de se estabelecer uma Política Brasileira de Saúde — que não venha a reboque de interesses de grupos, empresas ou nações desenvolvidas, ou não seja uma imitação pueril da realidade de saúde destas não temos senão que aceitar, desde já, na lista das nossas grandes endemias, tão familiares com seus números crônicos e recrudescências, ou ditas em expansão, mais uma: a Dengue ou o Dengue.

Parece que até o "sexo" dessa doença, no Brasil, também está por se definir.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br