DEPOIMENTO TESTIMONY

 

MPAS — o vilão da reforma sanitária?*

 

 

José Saraiva Felipe

Secretário de Serviços Médicos do MPAS; Coordenador da Secretaria Técnica da CIPLAN; Professor Assistente do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG. Brasília, DF Julho, 1987

 

 

Siglas Utilizadas

MPAS — Ministério da Previdência e Assistência Social
OMS — Organização Mundial de Saúde
OPAS — Organização Panamericana de Saúde
CENDES — Centro de Desenvolvimento Econômico e Social
ABEM — Associação Brasileira de Educação Médica
PIASS — Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento
PREV—SAÚDE — Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde
MTb — Ministério do Trabalho
GEIN — Grupo Executivo Interministerial
MINTER — Ministério do Interior
MS — Ministério da Saúde
SEPLAN-PR — Secretaria de Planejamento da Presidência da República
MEC — Ministério da Educação
FAS — Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social
INAMPS — Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
AIS — Ações Integradas de Saúde
CEME — Central de Medicamentos
CONASP — Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária
CIMS — Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde
CRIS — Comissão Regional Interinstitucional de Saúde
CIS — Comissão Interinstitucional de Saúde (estadual)
CIPLAN — Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação das Ações de Saúde
PAIS — Programa das Ações Integradas de Saúde
PIB — Produto Interno Bruto
OTN — Obrigações do Tesouro Nacional
INPC — Índice Nacional de Preços ao Consumidor
IPC-R —Índice de Preços ao Consumidor — Restrito
FUNRURAL — Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
AIH — Autorização para Internação Hospitalar
SAMHPS — Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social
CNRS — Comissão Nacional da Reforma Sanitária
CNRS/ST — CNRS/Secretaria Técnica
POI — Programação — Orçamentação Integrada
SUDS — Sistema Unificado Descentralizado de Saúde
CONASS — Conselho Nacional dos Secretários de Saúde
SINPAS — Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
CEBES — Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ABRASCO — Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
DOU — Diário Oficial da União
CNS — Conferência Nacional de Saúde
ENSP — Escola Nacional de Saúde Pública
FIOCRUZ — Fundação Oswaldo Cruz

 

Por trás do véu diáfano das idéias bem-postas ou enfeitadas pela nossa capacidade retórica, que peca por um certo convencionalismo expressional, medra uma questão: afinal de contas, o MPAS participa, promove ou obstrui a reforma sanitária? Variadas suposições são encontradiças aqui e ali nas linhas, e sobretudo nas entrelinhas, de algumas publicações do nosso movimento sanitário. Sem a pretensão do esclarecimento definitivo, mas com a intenção de assumir responsabilidades e provocar as contraposições, tão úteis às correções do que se está fazendo, resolvemos abordar diretamente o assunto, assumindo o ônus e os riscos de estarmos numa posição institucional definida.

A reforma sanitária, expressão de uso relativamente recente entre nós, precisa ser desdobrada no movimento, que tem uma história de pelo menos duas décadas, pela reestruturação do nosso modelo (seriam modelos?) de prestação de serviços médico-assistenciais, e na caracterização do objeto (representado no futuro e no desejo) do processo. Trata-se de um sistema de saúde universalizado, igualitário no tocante ao acesso e consumo dos serviços, racionalizado e hierarquizado em função de uma cobertura integral, que contemple desde a promoção da saúde até níveis complexos de tratamento dos doentes. A distribuição dos serviços deverá estar conforme às necessidades epidemiológicas-sociais e ser permeável ao controle social dos usuários.

A partir deste consenso, espraiam-se estratégias que recuperam o dissenso. À proposta contextualizada de fazê-lo crescente e majoritariamente público, se contrapõe o desejo de uma estatização imediata, com a desapropriação dos serviços privados, responsáveis por 90% das internações hospitalares e 50% dos atendimentos ambulatoriais. 1Essa posição não se compromete com avanços viáveis dentro do atual quadro sócio-político.

Diferenças à parte, que elas precisam existir, procuraremos desenvolver brevemente a trajetória do movimento sanitário, acreditando que o amadurecimento da proposta, no que ela tem de consensual, possa ser inferido a partir daí.

O movimento questionador da nossa estrutura de saúde e autor (executor em menor escala) de propostas alternativas, encontra, na sua genealogia, na década de 60, o movimento que resultou na criação dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social nas Faculdades de Medicina e Institutos Universitários. De inspiração modernizante, além de sacudir as recomendações fossilizadas das Disciplinas de Higiene e Saúde Pública, a iniciativa recebeu os incentivos de Kellogg ou Ford Foundation e foi amparada teoricamente pela OMS/OPAS (lembram-se do frisson do método OPAS-CENDES?). Mas o populismo agonizante, a nível dos serviços, não se sensibilizou. A bossa-nova preventivista ameaçava seus métodos eleitoreiros com o cisma da racionalidade, e os jovens docentes foram contidos nos limites da academia e seus fóruns de contestação próprios (lembram-se da importância e das posições indignadas nas reuniões da ABEM?).

Com o golpe autoritário de 1964, que derrocou nossa frágil e enviesada democracia, o novo regime precisava brandir contra o populismo, evidenciando as suas mazelas. Os serviços de saúde poderiam ser uma grande superfície de contato para novos projetos. A modernidade preventivista, poderia embasar o discurso social dos feitores do dia, que, ademais, tinham compromissos com a eficientização de algumas instituições que viessem respaldar projetos econômicos, tão ambiciosos quanto conservadores socialmente. Este quadro abriu as portas para a transação academias-serviços de saúde, propiciando as brechas. Em boa hora e para fazermos bom proveito da oportunidade, já que as contradições não circulam apenas nas ruas e fazendas, mas adentram às instituições.

O grande achado foi a criação das áreas de planejamento nas Secretarias estaduais de saúde, algo afastadas da rotina de clientelismo, do penoso esforço para a manutenção de redes limitadas e ineficazes e do socorro precário a ser prestado aos incêndios sanitários. A partir daí, no interior dos serviços, abriu-se o campo para o exercício do planejamento — mais pedagógico que factível — , da atividade crítica e da intervenção limitada mas expressiva pelo efeito-demonstração. Nestes espaços se formaram muitos técnicos que se comprometeram com o que fazer nas áreas de saúde pública e medicina social. Os exemplos mais significativos talvez tenham ocorrido em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul.

Paralelamente a estas ocorrências, e ainda contando com os mesmos estímulos externos e internos, que escondiam intenções perversas nas frestas de um discurso moderno, incorporador de categorias trazidas das ciências sociais, surgia o movimento da medicina comunitária. A mobilização em torno dele foi importante para a opção de estudantes e profissionais recém-engajados nos serviços para um novo comprometimento ao nível do conteúdo de suas práticas institucionais. Em Minas aconteceram os projetos de Diamantina e, depois, da Região Norte de Minas (Montes Claros), que superaram, pela releitura e praxis das propostas, as suas formulações oficiais originais, e se tornaram pontos de referência de alcance nacional. Nestas regiões, e na de Caruaru em Pernambuco, foram implantadas redes assistenciais primárias em escala.

À mesma época, ou pouco depois (meados da década de 70), algumas administrações municipais abriram espaços à medicina comunitária, como as de Londrina, Campinas, Niterói, etc.

Estas "ilhas da fantasia", de menor ou maior tamanho, não podem ser vistas como mera conseqüência de propostas políticas ou técnico-racionalizadoras circunscritas em conjunturas regionais ou locais, de duração efêmera no geral. Para além das circunstâncias, significaram um lugar de ensaio das idéias, funcionaram como elos de articulação de um incipiente mas insinuante movimento sanitário que buscava espaço para mudanças setoriais progressistas e, mais que tudo, contribuíram decisivamente para a marcação de quadros técnicos com determinado perfil. Mesmo a inflação de expectativas, fruto de um voluntarismo algo ingênuo, quando se pretendia influir no quadro político-social a partir das ações setoriais, para muitos de nós faz parte do processo de amadurecimento e aprendizagem, que descortinou novas perspectivas de articulações políticas e institucionais. Mas esta vivência não superou de todo o equívoco tecnocrático ou a perspectiva cricunstancialista de que podemos isolar a ação setorial, selecionar atores-pessoas e valorizar o seu desempenho específico, comumente conjuntural, do seu desempenho e compromissos mais gerais, enquanto elementos posicionados e atuantes diante de interesses sociais ampliados. Desse artifício pode derivar a fé no príncipe, na sua prodigiosa capacidade de discernimento relacionada com o ambiente da seção de poder em que assiste. Os príncipes da nossa devoção setorial têm tido um trágico desempenho no cenário político. E sabemos que condição de saúde e avanço democrático são parceiros siameses.

Deixando de lado as parábolas, o certo é que como pano de fundo dessas situações, perpassava o equívoco metodológico corrente das propostas desenvolvimentistas alimentadas pelo funcionalismo: o planejamento, per se, seria um instrumento eficaz de mudança social.

Um outro momento de avanço se deu pela mesma época, com a incorporação de propostas dessa natureza no plano federal, que veio com a PIASS, o PREV-SAÚDE (projeto natimorto importante por que deu o que falar) e as AIS.

O PIASS (1976) representava o espalhamento das propostas da extensão de cobertura, através da atenção primária, ao Nordeste rural brasileiro. Através do programa, o MPAS, desmembrado em 1974 do MTb, faz o seu debut na seara do movimento reformista. Além de integrar o Grupo Executivo Interministerial (GEIN), juntamente com o MINTER o MS, o MEC e a SEPLAN-PR, o MPAS, em 1978, passou a financiar alguns projetos do PIASS, na base da co-participação nos custos operacionais. Anteriormente, perpassando todo o processo de fusões e concentração burocrática, a Previdência elegera como política exclusiva e deliberada, o sucateamento dos seus próprios, privilegiando a compra de serviços privados. Houve tempo em que o FAS financiava os investimentos, o INAMPS garantia o custeio e a possibilidade de fraude impune compensava os preços aviltados, numa trama diabólica que estimulava os apetites mais vorazes e perversos. Reproduzia-se um expediente muito comum entre nós, através do qual o Estado estimula e banca a iniciativa privada sem nenhum risco.1

As motivações para esta pequena alteração de rota acham-se esmiuçadas em muitos trabalhos acadêmicos. Registramos a estratégia oficial político-ideológica da persuasão e adesão, ainda que tenham sido excluídos os principais focos de descontentamento, as áreas urbanas; a necessidade de modernizar o campo, sobretudo nas regiões mais atrasadas, integrando-as ao processo de capitalização intensiva e abrupta; o movimento interno ao setor relacionado com a expansão do mercado de consumo de equipamentos e medicamentos — via Estado e consolidação de hábitos — do complexo médico-industrial, reponsável por expressivas taxas de acumulação de capital num contexto oligopolista e internacionalizado2.

Algumas características destes programas de extensão de cobertura primária também já foram analisadas. Havia um distanciamento entre o discurso moderno e a viabilidade operativa, permeada por estruturas administrativas viciadas, afeitas ao clientelismo e à inoperância. O eficientismo propunha "custos compatíveis" ou "suportáveis " em nome da replicação de serviços de baixa qualidade, restritos à ampliação de uma rede de centros e postos de saúde pouco resolutiva. A utilização de pessoal leigo, após treinamentos sumários e descontínuos, significava a decomposição da ação assistencial segundo graus de complexidade: ações mais simples, supostamente repetitivas, executadas por trabalhadores de saúde menos qualificados, preferencialmente entre as populações sem tradição assistencial e desorganizadas, portanto menos exigentes. O resultado foi a instituição de uma medicina pobre, para pobres.

A insistente proposta da participação comunitária tinha um claro conteúdo funcionalista, adestrante e não conscientizador, quase sempre utilitarista e desorganizativo. São sinais desta perspectiva, as reuniões paralelas às formas de organização já consolidadas a nível de muitas comunidades, o desconhecimento da rearticulação do movimento sindical, as discussões em torno das questões específicas e restritas de saúde (de doenças, principalmente) e os mutirões, descritos, quantificados e fotografados como paradigmas da participação.

Apesar de todas as distorções, presumíveis ou constatadas a posteriori, foi possível, aqui e ali, dar uma substância técnica e política mais consistente às proposições oficiais. Os limites e as contradições embutidas no discurso foram evidenciadas, o que alimentou a polêmica e o conflito, abrindo novos horizontes em cima do cheque sem fundo das esperanças suscitadas em termos de atenção médico-assistencial e de participação comunitária. Uma vez mais o envolvimento consciente de profissionais de saúde foi decisivo para, atravessando o pântano e sujando os pés, assinalar os caminhos da necessária reformulação do nosso sistema sanitário. Não raro os embates e as derrotas mostraram a fragilidade política dos espaços conquistados, mas nem por isso o esforço foi menos válido. O acúmulo de conhecimento e força permitia um ressurgimento, num outro lugar, sob novas circunstâncias.

A estratificação do atendimento, conforme a inserção das camadas sociais no mercado produtivo, e o beco sem saída da rede primária sem referência, foram rechaçados pela população, que repudiou tal estrutura. O desaparecimento ou a agonia dos serviços, superada a excitação do processo de implantação, acabou sendo trágica, com o desperdício de capital social inativado em milhares de ambulatórios. O avanço, a nível de concepção, passou pela ambição em termos de cobertura de massa e abrangência da intervenção realizada, que incorporou ações de saneamento básico. A implantação de sistemas simplificados de abastecimento de água em comunidades rurais praticou o reconhecimento de que a saúde se liga à qualidade de vida. Também a realização maciça de obras através dos governos municipais, com êxito considerável, contribuiu para o recuo dos preconceitos quanto à descentralização. A administração municipal diluiu-se enquanto locus privilegiado de dispersão de recursos públicos.

A abrangência nacional, com a extensão do PIASS a outras regiões do País, fez aglutinar segmentos interessados no fortalecimento do setor público na prestação de serviços de saúde.

Um novo ciclo de proposições se inicia quando estourou a crise do financiamento previdenciário em decorrência da recessão econômica, com epicentro na passagem dos anos 70 para os 80. A retração dos gastos com saúde dentro da Previdência, considerados compressíveis em relação a gastos com benefícios2 o que tem amparo na própria legislação previdenciária que os considera sujeitos às disponibilidades orçamentárias e financeiras, forçou a nova construção teórico-discursiva que propunha a reorientação do sistema médico-assistencial, com o privilegiamento das ações desenvolvidas ao nível do setor público3. Esta atitude representou um corte, na medida em que retirou esses serviços da condição de marginalidade quanto à condução hegemônica da política setorial. Na prática, a viabilização das novas diretrizes mostrava-se difícil, pelo comprometimento institucional com o modelo engendrado, que implicou no desmonte ou estagnação dos serviços públicos próprios ou conveniados. A proposta do CONASP, consubstanciada nas AIS4, como apanágio de medidas racionalizadoras e saneadoras, incorporou muito de todas as experiências anteriores que sumariamente relatamos. Apareciam como resposta à irracionalidade da expansão de leitos e internações pelo país, a impossibilidade de crescimento dos gastos com a absorção de tecnologia intensiva e obsolescente, muitas vezes discutível em termos de eficácia e utilização social, e a premência de consertar o modelo privatista sustentado pela intermediação do Estado.

Embora, dentro da preocupação com a integração de recursos e ações institucionais, as AIS tenham nascido como entrelaçamento do nível federal com o estadual e municipal, o MPAS assumiu não apenas a condução de fato da política setorial, pelo peso dos recursos financeiros, mas também a hegemonia no tocante às iniciativas de reformulação setorial.

Dois ou três anos depois, alguns de nós, instalados em outras posições institucionais, movidos quem sabe pela categoria menos nobre das perspectivas imediatistas e pessoais — discursivamente intoleráveis, mas tão presentes no dia-a-dia do jogo das posições políticas e institucionais — investiram contra a origem das AIS: entulho autoritário, último rebento setorial da ditadura. A sensação que me ocorreu foi a da rejeição da paternidade de um ente promissor, cujas potencialidades mal podiam ser entrevistas.

O que se repara nessa postura circunstancial não é o reconhecimento das insuficiências da proposta, mas a tentativa inoportuna de sua exclusão ou desqualificação, o seu desconhecimento como estratégia válida para fazer avançar o movimento democrático na área de saúde.

A aprovação em 28/05/85, pelo Congresso Nacional, de uma "lei delegada" que, desnecessariamente, delegava poderes ao Presidente da República, que ainda dispõe de poder do decreto-lei, para promover a reestruturação dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, açulou os ânimos. Se é verdade que os Ministros das duas pastas tinham razões políticas e pessoais para, de um lado, pressionar pela transferência do INAMPS para o MS e, de outro, para resistir à proposta, o certo é que, apesar de inúmeros documentos sugerirem a medida, foi fácil neutralizar a sua consecução: representações classistas dos trabalhadores, parte significativa do Clero e muitos políticos se posicionaram contra a medida. A solução salomônica veio com a transferência da CEME para o MS. Alinhamentos corporativos resultaram em enfrentamentos técnicos-burocráticos entre o MPAS e o MS, o que, sem dúvida, retardou e até imobilizou o dispendio de energias em favor das transformações realmente necessárias e factíveis.

Lamentavelmente, e uma vez mais assumo o ônus da queixa numa posição institucional definida, a transferência do INAMPS para o MS, viável ou não politicamente, para alguns passou a ser o leit motiv da reforma sanitária, a sua única expressão, a ponte obrigatória entre o caos irremediável e a solução de todos os problemas. A ação necessária se encolheu na defesa ardorosa da medida.

Esquecidas ficaram as análises sobre o espaço contraditório do Plano CONASP5, posicionamentos importantes como o de Eleutherio Rodriguez Neto que fez as seguintes considerações sobre a fusão INAMPS/MS: "Não há dúvida que esse deve ser o destino do processo de implementação da política preconizada. No entanto, cabe a discussão da oportunidade de efetivação da fusão. O que se aventa é a grande dificuldade administrativa que isso acarretaria, dadas as dimensões exageradas das máquinas burocráticas das duas instituições, podendo impedir a consolidação de alguns processos de avanço mais funcional que poderiam se dar no período, como preparação para mudanças estruturais significativas a serem conquistadas através da Constituinte6 (grifos nossos). Tal posicionamento foi também expresso em documento da Câmara dos Deputados quando preconizara a "implantação de um Sistema Unificado de Saúde Federalizado e Democrático. Este processo deve ser constituído a partir do aprofundamento das AIS, que coordenam os diversos serviços, no sentido de se intensificar a integração das diferentes instituições de saúde"7

O importante a ressaltar é que o Sistema Único de Saúde para o país, desejado e necessário, não se resume nem se esgota nas alterações burocráticas que o conformarão. O professor Sérgio Arouca, que tem uma clara posição acerca da sua conveniência, procurando situar historicamente o objeto, nos adverte: "La creación de un Sistema Único de Salud en el interior de una sociedade capitalista, nada mas es que una actualización técnico-administrativa de um aparato estatal, sin que su esencia misma de relaciones sociales hayan sido modificadas"8.

Mas o assunto fora sobejamente discutido, o consenso chegara ao âmago dos lares, era preciso aliviar a Constituinte, "à qual se postergaria até a aprovação das mais conhecidas receitas de bolo". A transferência não veio, ato contínuo é extrair culpados.

O INAMPS, com suas burras cheias e sua política privatista, saecula saeculorum, é um bom saco de gatos e de pancadas. Com isso pode-se até esconder a própria inépcia de ter reduzido a ação à ruminação de slogans. As filas e o dengue só têm solução na vala comum da unificação. Ou isto, ou o país empesteado, sem resgate possível.

Divergências, ou melhor, circunstâncias à parte, creio que podemos situar a importância ("dois passos à frente")9 das AIS. Em primeiro lugar, ao aumentar significativamente o volume de recursos repassados ao Setor Público — através dos estados e municípios — com a possibilidade de ampliação e melhoria da rede. No entanto, o fato político gerado foi mais significativo. A Previdência, como detentora de 80% do gasto público federal com a função saúde e de 50% do gasto público total, se consideradas as despesas dos estados e municípios com serviços de saúde, passou a ter um novo interlocutor, de vigor político incontestável. A força de vereadores, prefeitos, parlamentares e governadores, articulados com instâncias político-burocráticas, passou a exercer pressão na disputa pelos recursos previdenciários destinados à saúde, antes reivindicados e arrancados, também com algum grau de articulação lobista entre políticos e burocratas, pelo setor privado. A efetiva abrangência nacional das AIS, que hoje incorpora todos os estados e cerca de 2.500 dos 4.104 municípios brasileiros, garante a irreversibilidade da maior participação dos gastos federais com a área pública de saúde. Diante das resistências organizadas, por temor à redução dos recursos que lhe eram destinados, revelou-se a fragilidade do setor privado em termos de articulação e força política. Periférico em relação ao grande capital e alheio à estratégia da grande burguesia nacional, que preconiza a ausência do Estado da produção de mercadorias e a sua presença e eficientização na oferta de infra-estrutura e produção de serviços para consumo coletivo (saúde, educação, transportes, etc), como subsidiamento do salário (salário indireto), a mobilização privatista não conseguiu deter o processo de redistribuição dos recursos.

As AIS, herança do autoritarismo alarmado com o descontrole setorial e nascida sob a égide do marginalismo e da maquilagem racionalista, ganhou fôlego no novo governo de transição, ofereceu a oportunidade para a integração possível, alteou-se como bandeira dos setores — nos vários níveis político-administrativos — inconformados com a discriminação e a exclusão praticadas nos nossos serviços de saúde, e até, aqui e ali, propiciou a aproximação dos usuários com os serviços, chamando-os à participação nas instâncias colegiadas gestoras do programa (CIMS, CRIS e CIS). Assim, ao invés de se tentar redescobrir a roda, o que se fez foi fazê-la girar com mais desenvoltura, melhorando e alargando a estrada, certo de que o longo e penoso trajeto abria caminho a um sistema de saúde mais justo, que passa pela unificação do sistema e vai adiante. Um mérito incontestável (embora minoritariamente, contestado em determinada conjuntura) foi não praticar a descontinuidade administrativa leviana, tão ao gosto do nosso paroquialismo político e burocrático.

Além de difundir propostas históricas como a da universalização e equanimidade, da integração e participação, num enfoque mais preciso de controle social sobre os serviços, as AIS fortaleceram o princípio federativo e buscaram a incorporação do planejamento à prática institucional, constituindo-se em importante instrumento (ou momento) pedagógico de planejamento descentralizado e integrado.

A CIPLAN, no plano federal, tem representado um esforço positivo na articulação interministerial (MS, MPAS, MEC e MTb) para a condução da política setorial.

A universalização da utilização dos recursos previdenciários se deu na prática, contrariando o meridiano artificial que separa as ações curativas (médico-individuais) e preventivas (de alcance coletivo)3. Nos níveis estadual e municipal os recursos serviram à compra de medicamentos e insumos, pagamento de pessoal, etc, para a rede ambulatorial e de hospitais públicos, abertas ao conjunto da população. A questão da integralidade da atenção devida veio à tona, com a utilização ampliada dos recursos previdenciários.

Enfim, as AIS — ex-PAIS —, livres do p fatídico dos projetos e programas, que albergam o agouro da brevidade e finitude, foram erigidas à condição de estratégia setorial comum e revelaram potencialidades, tanto na mobilização de forças políticas articuladas e poderosas quanto na reestruturação do setor público como prestador de serviços de saúde.

Os recursos absorvidos, 4% do orçamento do INAMPS em 1984 ou 207 bilhões de cruzeiros, saltaram para 1,7 trilhão de cruzeiros em 1985, ou 10% do orçamento do INAMPS, e para 5,6 bilhões de cruzados em 1986, ou seja, 12% do orçamento do INAMPS. Os números e percentuais são importantes num país acostumado à dissociação entre a retórica e a prática.

As pedras no meio do caminho que passa pelas AIS precisam ser lembradas. Estão nas dificuldades de integração devidas a zelos institucionais das burocracias, temerosas da perda de poder, nos desalinhamentos políticos entre representantes institucionais ou níveis de governo e até na falta de tradição para a tomada de decisões coletivas. O desequilíbrio na distribuição regional dos recursos, que ainda persiste, está ligado à própria forma de pagamento por produção de serviços. Esta, por um lado, aparentemente estimula a ampliação dos mesmos, mas, por outro, privilegia estados e municípios que têm redes maiores e maior capacidade de investimento, porquanto o aporte de recursos mais significativos, o previdenciário, se destina apenas a custeio.

A situação do desequilíbrio assistencial se agrava na medida em que a concentração de serviços contratados, e conseqüentemente, de recursos, obedece à mesma tendência. Em São Paulo, por exemplo, temos mais de 4 leitos por l .000 habitantes, enquanto que em alguns estados do Nordeste, menos de 2. Um parâmetro recomendado é 2,3 leitos por 1.000 habitantes. Obviamente, a incorporação dos serviços pelo INAMPS se deu de acordo com a pressão da oferta, correlacionada com o peso dos interesses expressos politicamente, e em dissonância com o perfil de necessidades, passível de ser estabelecido em termos epidemiológico-sociais. Assim é que, enquanto o parâmetro internacional recomenda como razoável 6,0 internações/100 hab/ano e o INAMPS trabalha com uma média histórica de 10, o Nordeste se situa abaixo desta média e um estado da federação propôs, sem êxito, 23,5 internações por 100 habitantes por ano, como meta para 19874.

Outra dificuldade observada diz respeito à substituição de recursos. O encolhimento dos orçamentos estaduais e municipais, detectados esporadicamente à falta de instrumentos eficazes de acompanhamento e avaliação, é uma ameaça à perspectiva de somação de recursos e conseqüente expansão e melhoria dos serviços postos à disposição da população. O total de recursos destinados hoje à saúde pelo setor público, estimado aproximadamente em 270 bilhões de cruzados (150 bilhões do MPAS/INAMPS, 40 bilhões do MS, 40 bilhões dos estados e 40 bilhões dos municípios), não alcança 4% do PIB, o que nos coloca em nítida desvantagem quanto a gastos com saúde mesmo no contexto da América Latina. Não permitir o recuo e lutar pela ampliação e eficientização dos gastos, precisa ser um compromisso comum e abrangente.

Reduzir a capacidade ociosa do setor público (estimada em 40% no tocante a hispitalizações e atendimentos ambulatoriais) seria relevante para que não se desse margem à ampliação do setor privado típico.

As AIS se ressentiram, ainda, do seu confinamento no gueto da atenção primária. Na medida em que os leitos públicos em funcionamento (aproximadamente 90.000) são escassos e concentrados, a questão da referência hospitalar passou a ser crucial para a consolidação das atividades. Um grande passo foi dado com a incorporação dos hospitais filantrópicos dentro de uma modalidade convenial que padroniza a forma de remuneração, garante o seu atendimento universal e institui um índice de valorização que excede a sua qualificação técnica restrita, premiando a sua articulação dentro das redes municipais ou locais de saúde5.

O reposicionamento da rede classificada como filantrópica ou beneficente, que representa em torno de 50% dos leitos implantados no país, considera "extensão do setor público prestador de serviços de saúde", representou, ainda, o resgate do INAMPS — como representante do setor público — da incômoda situação de refém incondicional. Recentemente, as tentativas de lock-out do setor tipicamente privado (conveniados-lucrativos) esbarravam na não adesão das entidades filantrópicas, o que fez fracassar o movimento ou reduziu-lhe o ímpeto e as conseqüências.

O novo relacionamento estabelecido com o subsetor tem sido estrategicamente fundamental tanto para a consolidação das AIS, quanto para a redefinição de forças intrasetoriais no embate para a construção de um sistema nacional de saúde mais perto das necessidades de saúde da grande maioria da população.

Na mesma linha, situa-se a instituição de uma minuta de contrato-padrão6 afeita às normas do direito público, que, ao mesmo tempo, normaliza as relações da Previdência com os seus serviços contratados e garante o direito inalienável da atenção à saúde dos usuários, para além das disputas (justas, por sinal) de melhor remuneração pelos serviços prestados. A propósito, no período de janeiro de 1983 a 1985, a remuneração dos atos médicos acumulou uma defasagem de 26%, com relação à variação do valor da OTN. Desde então, graças a aumentos escalonados que superaram os índices oficiais da inflação, a recuperação pode ser apresentada com defasagem positiva de 77%, com relação ao salário mínimo, 82% com relação à OTN e 71% com relação ao INPC/IPC-R7.

É evidente a necessidade de aproximar custos reais pelos serviços contratados, pois faz parte do resgate da dignidade do atendimento devido à população. A deterioração da qualidade, o faturamento indevido, a pressão por cobranças extras, a restrição da internação de pacientes cobertos com recursos previdenciários, a reutilização de materiais descartáveis, etc. são expedientes compensatórios condenáveis e passíveis de severa punição. Mas é preciso lembrar o pacto que, implicitamente, vigorou nos anos de aplastamento do valor dos salários e aumento do desemprego, coincidentes com uma retração sem precedentes dos gastos previdenciários com saúde. Aos preços aviltados se contrapunha a possibilidade das fraudes, de naturezas diversas, que conviviam com a pouca disposição do poder público em exercitar o seu papel de fiscalização adequada. Desta forma, empresários, políticos e burocratas se eximiam da denúncia da situação de fundo: a retração ignominiosa do gasto social, advinda com a recessão, e a insensibilidade sócio-política, num momento perverso de agravamento dos problemas.

Acrescente-se o continuado esforço para a recuperação dos hospitais próprios e universitários. Esses últimos, de 149 milhões de cruzeiros destinados em 1984, receberam 1,1 trilhão de cruzeiros em 85 e 2,0 bilhões de cruzados em 868.

Uma série de medidas foi adotada no campo da igualização da forma de remuneração pelos serviços prestados a trabalhadores urbanos e rurais. Esses, sob o "modelo FUNRURAL" — pagamento aos serviços contratados por subsídio fixo, que foi se deteriorando — , passaram a ser rechaçados. Isso porque os serviços mantinham outros convênios mais vantajosos, e porque a Previdência, sem condições de uma fiscalização adequada, pagava independentemente dos serviços serem ou não prestados, de forma automática, com base em informação prestada burocraticamente. O convênio hospitalar das AIS, que universalizou a clientela, e a autorização que equiparou a forma e os valores de remuneração para o conjunto dos segurados, faz parte da estratégia de eliminar as discriminações. Só para exemplificar, em 1984, para cobrir os 25% da população brasileira rural, o INAMPS havia programado a utilização de apenas 3% do seu orçamento. A resistência para a aceitação destas medidas foram e são muitas. Em alguns estados do país, onde a concentração de pequenos produtores e outros estratos rurais com alguma capacidade de consumo é maior, esta faixa da clientela fora escolhida para pagar diretamente pelos serviços, sobretudo hospitalares. Os valores cobrados excediam aos do "Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social (SAMHPS — "Sistema AIH"), que remunera por procedimentos a atenção prestada aos previdenciários urbanos, e, portanto, a equiparação contrariava os interesses dos profissionais e das instituições privadas, que se posicionaram corporativamente através de suas associações representativas. Nas mesmas regiões, a situação acha-se agravada pelo descredenciamento coletivo de especialistas, como os anestesistas, que passaram a fixar livremente os valores de sua remuneração profissional, impondo preços ao conjunto dos doentes que recorrem aos seus serviços. Daí a necessidade, expressa no texto do novo contrato-padrão, que os hospitais relutam em assinar, de os convênios exigirem da instituição contratada a integralidade da atenção prestada a cada doente.

Considerando o longo processo em que se vem desdobrando a reforma sanitária brasileira, que passou pelos momentos anteriormente descritos e por muitos outros não alinhavados, em virtude do meu interesse em enfocar a participação do MPAS, um corte significativo está sendo vivenciado a partir de maio de 1987. Trata-se da estadualização das atribuições do INAMPS, com a passagem para as Secretarias Estaduais de Saúde da gestão dos próprios (hospitais — 41, com 9.761 leitos; postos de assistência médica — PAM — 610, com 8.333 consultórios médicos) e dos convênios (com a rede privada credenciada). Os hospitais contratados somam 3.823, e 195.074 leitos, entre os lucrativos e filantrópicos.

É bom ressaltar que a unificação resultante da criação dos Sistemas Unificados Descentralizados de Saúde — SUDS9 faz parte de todas as propostas, como elemento estratégico, para a consecução da reforma sanitária, que tem passagem pela unificação do sistema de saúde do país. Assim, no documento encaminhado aos Senhores Ministros pela CNRS10 encontramos o seguinte: "Não se trata, portanto, simplesmente, como poderia parecer à primeira vista, da construção abstrata, numa perspectiva de organização sistêmica do setor saúde, de um novo Arcabouço Institucional estabelecido por dispositivos legais. É necessário, considerando os atuais objetivos, distorções e tendências do sistema de saúde existente, definir uma estratégia de transição que estabeleça as condições para a institucionalização do novo Sistema Nacional de Saúde, sujeito, de acordo com as peculiaridades de cada Estado brasileiro, a ajustes e correções ao longo de sua implantação (grifos nossos). O mesmo documento, mais adiante, ao se referir a Diretrizes da Rede Nacional de Serviços de Saúde, no que tange à sua organização, diz no item 1: "Integração Institucional com comando único em cada esfera de governo — isso significa a existência de uma única instituição pública em cada nível de governo, responsável pelas atribuições correspondentes — ao nível federal, o novo Ministério da Saúde; no estadual, as Secretarias Estaduais de Saúde e no municipal, as Secretarias Municipais de Saúde ou equivalentes".10

Também a VIII Conferência Nacional de Saúde, o evento mais significativo de quantos tivemos no setor, se posicionou transparentemente ao aprovar a recomendação da transferência para os estados e municípios de "todos os serviços federais de caráter local que tenham relações diretas com o atendimento da população"11.

Recentemente, a CNRS distribuiu uma publicação, complementar à proposta de texto constitucional, com a "Proposta de conteúdo para uma nova Lei do Sistema Nacional de Saúde", que, no item onde estão discriminadas as atribuições dos Estados, Territórios e Distrito Federal, consagra como funções deste nível, o "planejamento, gestão, coordenação, controle e avaliação do Sistema Nacional de Saúde em nível estadual"10.

A propósito, é bom lembrar que a estratégia da unificação via Estados e Municípios não só já vinha sendo proposta no interior da Previdência12, como mobilizou membros da CNRS, que, antes da posse dos governadores eleitos em novembro de 1986, procurou, através de visitas, incentivá-los, através de suas equipes de saúde em formação, a lutarem pelo fortalecimento dos Sistemas Estaduais de Saúde. Esse passo reconhecia um fato novo e significativo que emergia das urnas: a força dos governadores no cenário político do país, na direção da restauração do federalismo. Ademais, por grandes que tenham sido os esforços, os avanços imediatos e substanciais no plano federal, quanto à reorganização setorial da saúde, se mostravam politicamente inviáveis no curto prazo. A perspectiva passou a ser a Constituinte, que se propunha a debruçar-se sobre a questão. Por isso, rechaçamos a pecha de novidosa à iniciativa, ao mesmo tempo em que estranhamos os apelos ao engessamento da estratégia, que nega a sua própria condição como tal, da reforma sanitária. Se as diretrizes da descentralização e da unidade de comando referida a uma base geográfica (estado, região, município, distrito) são pressupostos da reforma sanitária, parece-nos um contra-senso, de anacrônica inspiração positivista-castilhista, a crença de que a unificação do sistema de saúde deva obedecer a etapas, a partir do nível central, desdobrando-se sucessivamente nas instâncias mais periféricas, num mecanicismo descolado da dinâmica da realidade.

Uma outra linha de crítica, que não se mostrou ainda no seu aprofundamento analítico, aponta para o açodamento da iniciativa do MPAS e do INAMPS, à pouca estruturação dos processos de estadualização em curso, a diversificação dos modelos adotados de estado para estado, etc.

Em primeiro lugar, desconhecer a oportunidade, na medida em que podemos influenciar mas não controlamos os tempos e as conjunturas políticas, de fortalecer a ação federativa no campo de saúde, parece-nos um descalabro. Mesmo o argumento de que iniciativas dessa ordem precisam ser precedidas por uma nova Lei do Sistema Nacional de Saúde, para evitar desvios ou caos, é frágil.

Afinal, num país heterogêneo como o nosso, com uma larga tradição de ignorar ou interpretar as leis segundo as conveniências, a nossa esperança e o nosso empenho devem se concentrar no crescimento da consciência e da organização política e democrática da população, que é quem deve, participando, interferir decisivamente nos rumos da política de saúde em todos os níveis. A heterogeneidade, marcada por inclinações distintas das políticas estaduais e municipais, além de mero dado conjuntural, tem muito mais chance de operar no sentido de aprofundar as contradições, as diferenças, além de ter mais próximo o objeto sobre o qual devem ser exercidas as pressões, ou seja, os governos estaduais e municipais. A alternativa a esta situação no contexto político que experimentamos, é o prevalecimento histórico das pressões retrógradas, concentradas e de abrangência nacional, responsáveis no âmbito da saúde pelas distorções na conformação do nosso quadro sanitário, nas vertentes epidemiológico-social e de configuração dos serviços. Se bem que descentralização não deva se confundir, mecanicamente, com democratização, a personificação e o deslocamento do processo de gestão para mais perto dos usuários, poderá contribuir para uma maior eficiência e eficácia, a depender do nível de controle social, que passa pela cobrança. O que tem sido esquecido nestas discussões é que o principal recorte da nossa sociedade não são as pertinências administrativo-burocráticas ou geográficas, mas as classes sociais. Aliás, por viés profissional e corporativo, a reforma sanitária não tem conseguido sair do discurso e das proposições de cunho administrativo para trabalhar a questão do sistema de saúde real, com as suas distorções internas relacionadas com o próprio conteúdo das práticas médicas, nem tem conseguido avançar na questão da articulação do sistema de saúde existente ou proposto com a sua própria razão de existir, a população a que serve. A superveniência de um novo modelo médico-assistencial, sem dúvida importante, não resolve todos estes problemas. Estas observações são absolutamente pertinentes quanto ao próprio direcionamento deste texto11.

Consideramos válidas, no que diz respeito ao processo em foco, juntamente com a reiteração de que não somos os donos do tempo e das contingências que desencadearam as estadualizações, as observações de Solon Magalhães Vianna, ao discutir a saúde sob os prismas da descentralização e desburocratização: "Para os mais cautelosos, assunto de tal magnitude e complexidade deveria ser conduzido por etapas graduais, ainda que irreversíveis. A experiência nacional em assuntos dessa natureza, paradoxalmente, sugere conduta oposta. Na área social há exemplos recentes de terapias radicais bem-sucedidas"13

A questão de que os recursos ainda são oriundos do governo federal, que os repassa a outras instâncias, precisa ser desdobrada e aprofundada mais conseqüentemente. Em primeiro lugar, no atual quadro de concentração tributária, não conseguimos vislumbrar outra alternativa. Atrelar todo o processo da reforma sanitária à expectativa de uma reforma tributária torna-se problemático. Mesmo porque não se conhecem as dimensões e a natureza dessa reforma e, no caso dos recursos previdenciários destinados à saúde, parece pouco provável — inclusive, pelas tendências verificadas na atual Assembléia Nacional Constituinte — que ocorra dois desmembramentos: o da parcela destinada à saúde a partir da contribuição e a sua retenção por instância de arrecadação. Há que se considerar, ainda, as questões da necessária redistributividade dos recursos e a impossibilidade, no curto prazo, da substituição dos gastos previdenciários com saúde.

Em segundo lugar, no que diz respeito ao financiamento, importa menos que a nível de governo recolha os tributos do que o estabelecimento de regras e mecanismos claros que regulem os repasses e transferências.

De qualquer forma, para tentar fugir ao que já foi chamado "administração convenial"14, vem sendo trabalhada a inclusão da globalidade dos recursos programados para os estados na Programação Orçamentação Integrada (POI) das ações de saúde, o que automatiza os repasses, de acordo com o desempenho, sem a instável necessidade de negociação de convênios e aditivos, ano a ano. A POI, conforme decreto presidencial, passa a ser o único instrumento de relacionamento entre as instâncias federais de saúde e os estados. Daí o empenho em inverter o seu enfoque: ao invés de destinar-se à captação de recursos, mormente previdenciário, que passe a ser um instrumento de programação do conjunto das ações e, correlacionadamente, da orçamentação setorial, consolidada a partir dos agregados estaduais.

O processo de estadualização12 apontando para uma descentralização maior em direção à municipalização, vem sendo discutido caso a caso, a partir de uma proposta básica, com as equipes estaduais de saúde, procurando-se respeitar as condições de absorção das novas estruturas e novas atribuições pelos Estados. A diversificação obedece "às peculiaridades da reforma e à heterogeneidade do país, que exigem que temas como o da descentralização obedeçam, em sua implementação, a ritmos próprios em cada região ou localidade".13

O objetivo do MPAS/INAMPS, até o final do ano, é retirar-se inteiramente da área de execução, direta e indireta, de serviços de saúde, transferindo esta atribuição a Estados e Municípios e transformando-se — já sediado em Brasília e com uma equipe reduzida e ágil — num órgão de acompanhamento e avaliação do desempenho setorial, no que tange às ações co-financiadas com recursos previdenciários. A aproximação com o MS, MEC e MTb privilegiará a ação coordenadora da CIPLAN, e a proposta é a integração orgânica neste espaço comum das áreas de planejamento e dos órgãos normativos das instâncias federais que lidam com a questão saúde (28).

Além do fortalecimento e da abertura das instâncias gestoras das AIS, na sistemática de implementação dos SUDS, o CONASS vê ampliada a sua participação na condução geral da política de unificação.

A estadualização, assim, não só contribui para uma nova configuração do sistema de saúde do país, como aporta recursos capazes de fortalecerem as estruturas estaduais e municipais do setor. Anteriormente, a Previdência se limitava a participar do custeio.

Outros avanços são relacionados com a inclusão, neste processo, da viabilização dos planos estaduais de cargos e salários, possibilitando o direito à ascensão funcional e à equiparação dos salários entre as equipes estaduais e previdenciárias. Ainda, na área de recursos humanos, possibilita a contratação — via estados e municípios — de novos profissionais (ou opção dos já em exercício) em regimes de tempo integral ou dedicação exclusiva.

Além de levar muito adiante a proposta de universalização, com o fim das clientelas cativas, deve ser mencionada, também, a adoção generalizada da co-gestão (co-custeio e co-administração), superando a relação compra e venda de serviços. A reformulação organizacional acha-se contemplada na proposição de implantação dos distritos sanitários, que, dimensionada as necessidades assistenciais à luz de novos parâmetros, e vinculando mais consistentemente segmentos definidos da população aos "seus" serviços, aponta para a necessária revisão dos conteúdos das práticas médicas e assistenciais13.

Em suma, todas estas iniciativas se inserem no corpo doutrinário e na praxis da reforma sanitária, que não pode ser concebida, cartesianamente, como um processo que tem princípio, meio e fim, desvinculada da luta política das forças sociais que interagem na nossa sociedade.

Só se concebida abstratamente, como projeto intelectual e burocrático, pode-se pressupor um ponto final, demarcado por medidas administrativas, que significarão não mais do que o resultado provisório de um processo que avançará sempre mais com a democratização da sociedade. Como nos ensina Solon M. Vianna: "Mudanças não acontecem da noite para o dia só porque determinadas no Diário Oficial. Entre o formal e o real nem sempre a distância é curta e sem obstáculos"13. Este é o caso da estadualização e da unificação. Os exemplos estão aí, basta acompanhar o que vem acontecendo nesta área na Alemanha, na Espanha, na Itália e em outros países, envolvidos neste mesmo esforço há muito mais tempo.

A resistência mais objetiva ao processo de estadualização das ações previdenciárias tem vindo do setor privado lucrativo, temeroso com a desconcentração da administração dos contratos e das negociações, o que diluirá o alvo das pressões. Também alguns superintendentes regionais do INAMPS, assustados com a previsível perda do poder e influência, têm reagido, até mobilizando os seus funcionários, receosos com a perda de direitos funcionais adquiridos a duras penas. Quanto a estes últimos, os textos dos convênios asseguram o vínculo com a administração federal, as vantagens progressivamente adquiridas e aquelas que futuramente atinjam os funcionários federais e, particularmente, do SINPAS. Ademais, os problemas de saúde não podem se confundir corporativamente com os problemas dos trabalhadores da saúde.

Saindo um pouco das iniciativas e de sua justificação, abordaremos as críticas mais gerais que são feitas ao MPAS e ao INAMPS, já há algum tempo. Gostaríamos de dizer que, apesar da atitude de autodefesa instintiva, furto da dificuldade em nos desfazermos de um corporativismo institucional atávico, elas têm nos remetido a reflexões e correções de rumo, na medida em que somos levados a relativizar a verdade, a nossa e a do outro, que, além de provisória, será sempre verdade aproximada, como nos ensina Bachelard.

Estas críticas, em uma de suas vertentes, mencionam desvios na condução institucional, buscando mostrar, com este e aquele episódio, que as decisões não se enquadram numa linha de coerência, de linearidade de atitudes. O que gostaríamos de lembrar é que, em uma instituição complexa como a Previdência Social, à qual se vincula o segundo maior orçamento público desse país, há, permanentemente, uma tensão entre interesses diferentemente articulados, além da necessidade de se utilizar de expedientes emergenciais para apagar incêndios e aliviar pressões diuturnas. O que precisa ser relevado é a resultante das decisões e práticas institucionais assumidas — isto, ao fim, é que configura a política institucional, para além dos episódios que possam ser privilegiadamente enfocados.

Nestes apontamentos, a verdade comprometida, ou o desejo de exercê-la, precisa, numa relação necessariamente dialética, encontrar a sua contrapartida, que é a recuperação das ações institucionais na perspectiva da própria população seja na representação que ela faz (ou, pior, nem faz) das mudanças que se está operando, seja na tentativa de sentir e dimensionar a natureza da qualidade e o impacto das ações terminais do processo, razão última de todas as elaborações. No bojo desta reflexão, vale lembrar de que fora dos aparatos institucionais oficiais há instituições, no âmbito da sociedade civil, que acompanham e atuam em favor dos avanços, pari passu com os esforços — ainda insuficientes — que podem ser envidados através da ação do governo. Citaria a atividade parlamentar que, a partir do I Simpósio sobre Política de Saúde da Câmara (1979), tem hoje espaço nobre para o encaminhamento das questões na Assembléia Nacional Constituinte; o movimento sindical que tem questionado crescentemente as condições de vida e de saúde da classe trabalhadora, a exemplo das associações de moradores e outras organizações. O CEBES e a ABRASCO, além do peso de sua capacidade de mobilização, exercitam um papel elaborativo e crítico em relação às formulações e iniciativas setoriais. O certo é que, enquanto movimento que se define por seus compromissos, extrapolamos obrigatoriamente os meios institucionais. Articulando e somando todas as nossas energias talvez possamos recuperar as nossas propostas, traduzidas hoje em algumas iniciativas institucionais, a partir da perspectiva da população, que é o que importa mais, insisto.

Para terminar, respondendo à indagação inicialmente colocada, de como vejo a atuação do MPAS e do INAMPS e de seus atuais dirigentes no processo em curso da reforma sanitária, abusarei da complacência para descartar o vilão. Acredito que, explorando o possível de forma decidida, vamos diminuindo a distância entre a intenção e o gesto. Mesmo porque não existe ação no futuro ou transformação substanciada apenas no desejo e nos slogans.

 

REFERÊNCIAS

1 BRAGA, José Carlos de Souza e GÓES DE PAULA, S. Saúde e Previdência, CEBES/HUCITEC, São Paulo, 1981. Capítulo 2: Industrialização e Políticas de Saúde no Brasil.

2 Capítulo 4: Desenvolvimento do Capital Industrial no Setor Saúde.

3 BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social. 2 ed. Brasília, 1982, 42 p.

4 BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. Programa de Ações Integradas de Saúde. 14 pág, mimeos. d.

5 TEIXEIRA, S. M. F. Reorientação da Assistência Médica previdenciária: um passo adiante ou dois atrás? Rio de Janeiro, EBAP, 183, 15 f. mimeo.

6 RODRIGUEZ NETO, E. Subsídios para a definição de uma política de atenção à saúde para um governo de transição democrática. Saúde em Debate nº 17, Belo Horizonte, 1985.

7 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Comissão de Saúde. Proposta política para um programa de saúde. Saúde em Debate nº 77, Belo Horizonte, 1985.

8 AROUCA, A. S. da S. Salud en las sociedades en transición. Revista Centroamericana de Ciencias de la Salud, nº 21, Enero-Abril, 1982.

9 PAIM, J. S. Ações Integradas de Saúde (AIS): por que não dois passos atrás. Saúde, Crises e Reformas. Universidade Federal da Bahia/PROED, Salvador, 1986.

10 CNRS/ST. Proposta de Conteúdo para uma Nova Lei do Sistema N acionai de Saúde, RJ, maio de 1987 (7 pág.).

11 ______. Documentos I. Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde (março de 1986) págs. 11-24, RJ, 1987. CNRS/ST. Op.cit. (20).

12 CORDEIRO, Hésio. A Reforma Sanitária — Bases Estratégicas e Operacionais para a Descentralização e Unificação do Sistema de Saúde (Reflexões e Controvérsias), 10 pág., mimeo, 1986.

13 V1ANNA, Solon M. Saúde: Descentralização e Desburocratização. Brasília, DE, Setembro, 1986, 19 pág., mimeo.

14 MENDES, Eugênio Vilaça. Reformulação do Sistema Nacional de Saúde. 8a. CNS, Brasília, DE, março de 1986, 76 pág.

 

 

* As opiniões expressas neste documento refletem a posição do autor, não sendo, necessariamente, no todo ou em parte, endossadas pela instituição à qual está vinculado.
1 Estes percentuais se reduzem para 65% e 45% se considerarmos, como o INAMPS vem fazendo, a dissociação entre setor privado não lucrativo filantrópico e o setor lucrativo conveniado.
2 29,6% em 1967; 30% em 1979; 20% em 81/82; 26,7% em 85 e 25,3% em 86. MPAS/Secretaria-Geral. Dimensões da Previdência e Assistência Social no Brasil. Brasília, março de 1987.
3 Ver Lei do Sistema Nacional de Saúde, Decreto Presidencial 6229 de 17.07.75.
4 Outras informações contidas nas Notas para a apresentação do Ministro Waldir Pires na Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre a Previdência Social, Brasília, Agosto, 1985, 16 f. mimeo.
"A rede hospitalar contratada se compõe de aproximadamente 3.500 hospitais, com 350 mil leitos instalados, dos quais 200 mil contratados pelo INAMPS. Utilizando parâmetros tecnicamente aceitáveis, esses 350 mil leitos possuem uma capacidade de produzir 1,8 milhão de internações/mês. Uma resolução da Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação (CIPLAN), composta pelo MPAS, MEC e MS, a de nº 3, de 11. 03.85, fixou — com base em indicadores técnicos e necessidade verificada — em 750.000/mês o limite máximo de internações necessárias ao atendimento da população. De acordo com os mesmos parâmetros utilizados acima, este teto situa a necessidade de leitos em torno de apenas 150 mil. Se considerarmos que um médico é capaz de se responsabilizar por 10 leitos, precisaríamos de apenas 15 mil médicos. Entretanto o INAMPS tem cadastrados 75 mil médicos desenvolvendo suas atividades nesses hospitais. Quer dizer, temos 200 mil leitos e 50 mil médicos "ociosos", mal aproveitados e, sobretudo, mal distribuídos". A questão da concentração é séria, quando constatamos que 7% dos médicos faturam entre 60 e 70% dos procedimentos pagos pela Previdência.
5 Portaria do Ministro Raphael de Almeida Magalhães nº 3.728 de 23.04.86. Publicação DOU de 24.04.86.
6 Portaria do Ministro Raphael de Almeida Magalhães nº 3.893 de 11.12.86. Publicação DOU de 18.12.86.
7 Ver Citação da página
8 Ver Citação da página
9 Ver Decreto Presidencial nº 94657, de 13.07.87, publicado no DOU em "que dispõe sobre a criação de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde nos Estados (SUDS) e dá outras providências" e o texto da Exposição de Motivos (E. M.) interministerial (MPAS/MS), que estabelece as diretrizes do SUDS. Aprovada pelo Presidente da República em 13.07.87 (11 pág.). Documentos publicados no DOU de 21.07.87.
10 Comissão Nacional da Reforma Sanitária. Criada através da Portaria interministerial MEC/MS/MPAS nº 2/086. Publicada no DOU de 22.08.86.
11 Algumas dessas considerações foram desenvolvidas, e eu as aproveitei, na fala do professor Adolfo Horacio Chorny no Curso de Especialização em Programação e Gerência da ENSP/FIOCRUZ, realizado em julho de 1987.
12 As assinaturas dos convênios de estadualização tiveram início em 21.05.87 e, até 22.07.87, incluíam RN, PE, AL, BA, MT, GO, RJ, SP, PR e RS.
Op. cit. (25)
13 Ver referência à organização dos distritos sanitários, E. M. op. cit. página
Op. cit.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br