TEMA

 

Um ganhador do prêmio Oswaldo Cruz

 

 

W. Lobato Paraense

 

 

Uma longa entrevista que dei há alguns anos iniciava-se com a pergunta: "Como surgiu seu interesse pelo que faz hoje?" Como o entrevistador não se referia à minha atividade na ocasião e sim às minhas motivações para a pesquisa biológica, respondi que, durante o curso primário, o que mais me excitou a imaginação foram a leitura e as ilustrações de um manual de ciências naturais intitulado "Lições de Coisas" e de uma cosmografia que surripiei da gaveta de uma escrivaninha. Tudo afinal era natureza. Na cosmografia enlevavam-me as idéias do infinito, das nebulosas e do sistema planetário, especialmente Saturno com seus anéis e Júpiter com sua mancha vermelha e seu cortejo de luas, os primeiros corpos do sistema solar descobertos com o telescópio, por Galileu. Durante mais de um ano tive absoluta convicção de que minha vocação era a astronomia, e lia com encantamento na revista "Eu Sei Tudo" uma longa série de artigos de vulgarização por Camille Flammarion. Porém, por mais que lesse minha Cosmografia não conseguia reconhecer, no céu, as constelações, e só depois vim a descobrir que se tratava de uma tradução de original europeu que só mostrava o céu do hemisfério norte. O interesse pela astronomia não se extinguiu de todo, pois ainda hoje me atraem revisões ao alcance de meu entendimento, entre as quais encontram-se agora, na minha mesa de leitura, uma sobre o vento solar e outra sobre o nascimento das estrelas.

O gosto pela natureza, entretanto, revelou-se mais intensamente com o estudo das "Lições de Coisas". Além das leituras, procurava encontrar os meios de comprovar os fenômenos, enfiando n'água uma vareta para ver a refração, acendendo um fósforo através de uma lente convergente, decompondo a luz através de um prisma, acompanhando o desabrochar da plântula a partir de um grão de feijão, seguindo de larva a adulto o desenvolvimento de um mosquito, e mesmo fazendo descobertas que depois vim a saber que já tinham sido feitas há muito tempo. A atração maior era para a área biológica.

Como então uma vocação biológica não tinha outro caminho senão o da medicina, decidi que tinha de ser médico. Quando aluno do Colégio Estadual explorei as habilidades de meu avô, carpinteiro amador, para fazer-me algumas caixas e gaiolas onde guardava pequenos animais, principalmente ratos, cobaias e rãs, que mantinha num pequeno quarto do porão de nossa casa. Uma das primeiras experiências foi localizar o "nó vital", referido por um professor de ciências, e que me evocava o simbolismo de uma espécie de sede da alma. Muito sofreram algumas pobres vítimas até me convencer de que, ao contrário do que fora ensinado, a simples picada do bulbo com um estilete não fulminava o animal. Usando clorofórmio como anestésico, observava as vísceras e seus movimentos, estimulava nervos com agulhas e pinças, e depois de mortos fazia dissecções com técnicas improvisadas.

Mas o grande impacto que me impeliu para um rumo definitivo foi o primeiro contato com um laboratório, modesto porém o melhor que até então eu ia conhecer, na primeira aula prática de Histologia da Faculdade de Medicina. As coisas banais que vi então deixaram-me encantado: o professor fazendo um esfregaço da mucosa bucal, corando com azul de metileno e mostrando as células epiteliais ao microscópio; depois tirando uma gota de sangue da polpa do dedo e mostrando os glóbulos a fresco, entre lâmina e lamínula; e depois corando esfregaços de sangue pelo método de Giemsa e mostrando os diferentes tipos de células, cada uma com sua coloração específica. Tudo aquilo me entusiasmou e resolvi, na minha mente de 16 anos, que ia dedicar-me àquela coisa. Perguntei ao professor se aquele material — lâmina, lamínulas, corantes — se compravam na farmácia. Com seu modo meio seco ele disse: "Que farmácia, coisa nenhuma, isso tudo é importado". Apesar disso fui à melhor farmácia de Belém e pedi 100 lâminas, 100 lamínulas e meio litro de Giemsa. Fiquei esperando a tarde inteira, até que recebi uns pacotes. Lamínulas não havia. As lâminas foram cortadas de alguma vidraça, em tamanhos não bem iguais, com bordas afiadas, sem polimento. O Giemsa, ao ser depois testado, não funcionou.

No caminho para casa, feliz da vida, encontrei um colega que viu o embrulho manchado de azul pelo Giemsa e perguntou o que era aquilo. Depois que expliquei e revelei meus planos ele disse: "Tu és louco, rapaz; como vais abrir um consultório de histologia? Quem vai te dar serviço desse negócio? Tens de ter um laboratório para todos os exames, senão vais morrer de fome". Apesar de ser um inspirado poeta, ele era pragmático. Foi bem-sucedido na vida, um dia encontrei-o no Rio como senador da República.

O próximo passo nas minhas aspirações era freqüentar o laboratório de Histologia da Faculdade e o de Patologia da Santa Casa, dirigidos pela mesma pessoa, o Professor Jayme Aben-Athar. Diplomado no Rio de Janeiro, trabalhara como estudante aqui em Manguinhos, onde elaborou sua tese de doutorado sob a orientação de Oswaldo Cruz. Durante a campanha contra a febre amarela no Pará, seu Estado natal, acompanhou o mestre que,em seguida, lá o deixou dirigindo um Serviço de Saneamento Rural. Por muitos meses eu o rondava na intenção de obter sua aquiescência, até que um dia reuni todas as forças para enfrentar uma recusa, mas tive a surpresa de ser recebido com uma complacência e até mesmo com um carinho que jamais imaginara em caráter tão arredio. De fato, era Aben-Athar um homem de aparência modesta, temperamento introvertido, sóbrio nas palavras, preciso na linguagem e profundo conhecedor das matérias que ensinava -Histologia e Anatomia Patológica. Embora não perdesse seu tempo em conversar comigo ou ensinar-me nada de especial, pelo menos deixava-me à vontade no laboratório para fazer minhas coisas: ler, estudar, preparar material. Raramente fazia-lhe perguntas, que respondia o mais brevemente possível, mas para mim bastava ver como ele trabalhava, os assuntos que estudava, para seguir-lhe o exemplo.

Eu freqüentava o laboratório há cerca de um mês quando um dia ele me deu umas dez lâminas de um embrião humano de quatro semanas cortado em série e me disse: "Você vai corar isso pelo tricrômico de Masson". Era um método complicado que eu ainda não tinha aprendido e que tinha duas fases seguidas de 24 horas cada uma e era completado por uma série de uns seis diferentes tratamentos durante o terceiro dia. Tão apavorado fiquei ao imaginar a possibilidade de pôr a perder tão precioso material, que sem querer fugir ao desafio defini uma estratégia. Consultei o "Précis de Microscopie" do Langeron, seu guia predileto e que eu também possuía, e depois de localizar nas prateleiras todos os reagentes usados no método resolvi modificar a seqüência. Em vez de começar o trabalho de manhã, comecei-o à noite, de modo que a complicada série de tratamentos foi feita durante a terceira noite. Desse modo evitei que ele ficasse espiando minhas possíveis canhestrices e principalmente a sujeira que meu nervosismo poderia produzir na mesa de trabalho. Terminada a tarefa, devolvi tudo aos seus lugares, guardei as lâminas e fui dormir. Quando ressurgi no laboratório - para ele, eu tinha desaparecido - foi logo perguntando: "Onde está o embrião? Então eu lhe dou um trabalho e você desaparece?". Entreguei-lhe as lâminas, ele olhou ao microscópio e disse: "Está ótimo". Minha felicidade não teve limites. E logo tive de explicar-lhe minha estratégia: "Com o senhor me vigiando ia sair tudo errado".

A convivência de três anos com Aben-Athar ensinou-me que quando existe motivação para o trabalho e as condições essenciais para executá-lo, a falta da tão valorizada figura do "orientador" pode ser suprida pela imitação de um bom exemplo.

Terminado o quarto ano da Faculdade, e aspirando a um melhor ambiente cultural, tive de enfrentar decidida oposição na família. Resolvendo ser o único responsável pelo que me reservasse o futuro, e disposto a não depender de nenhuma ajuda financeira, vendi o único bem de valor material de que dispunha livremente — um belo anel —, cujo produto em dinheiro só comprava uma passagem de terceira classe de navio até Recife, onde havia a mais próxima Faculdade de Medicina ao sul de Belém. Ainda guardei uma pequena quantia dessa transação, que reservei para manter-me enquanto arranjava um emprego.

Munido de uma caixa de preparações histopatológicas selecionadas, tive a sorte de fazer, em pouco tempo, duas grandes amizades. Aluizio Bezerra Coutinho, dotado de uma das mais sólidas culturas que até hoje me foi dado conhecer, estava em via de conquistar, aos 26 anos, a cátedra de Patologia Geral. Reconhecendo minha experiência em técnica histológica, apresentou-me ao Professor Aggeu Magalhães, catedrático de Anatomia Patológica, que ia precisar de um auxiliar-acadêmico para preencher uma vaga a ser aberta com a formatura de um estudante. Aggeu Magalhães, ciente de meu interesse pela Patologia perguntou-me se eu estava disposto a morrer de fome. "Se o senhor — respondi — é mais velho do que eu e está vivo, pelo menos chegarei à sua idade".

Passei então a visitar hospitais farejando uma vaga de interno remunerado. Agradei-me do Hospital Oswaldo Cruz, da Secretaria de Saúde, onde havia um grande pavilhão para casos de tuberculose avançada, outro menor para casos considerados recuperáveis, um pavilhão para doentes pagantes e, no fundo do terreno, uns seis pavilhões de isolamento para doenças infecciosas — varíola, sarampo, febre tifóide, disenterias, meningite, difteria, tétano, etc. Nesse hospital era ministrado o curso de Doenças Tropicais e Infecciosas. Pouco antes do início do próximo ano letivo ia haver concurso para preenchimento de quatro vagas de interno e o programa era o da cadeira de Medicina Tropical, que eu ainda não tinha cursado. Fui o quinto na ordem de inscrição. Como precisava desesperadamente de dinheiro para me manter e ia disputar com colegas já aprovados na disciplina, passei a estudar também desesperadamente, pretendendo ganhar o segundo lugar. Além de casa e comida para todos, o primeiro colocado ganharia 150 mil réis, o segundo 100 mil réis, e os dois últimos não teriam salário. Não pensava no primeiro lugar porque um dos candidatos já era interno interino há três anos. Mas afinal foi meu o primeiro lugar.

Os aprovados escolhiam as áreas de trabalho na ordem de colocação. Segundo a tradição, o primeiro escolhia o pavilhão dos pagantes, onde recebia remuneração extra pela ajuda que prestava aos médicos particulares. O segundo escolhia o pavilhão dos doentes recuperáveis, o terceiro ficava com os incuráveis, e para o último não havia opção: ia lá para o fundo, para o isolamento. Na hora de escolher, escolhi ir lá para o fundo, por duas razões. Primeiro, pela variedade de doenças que havia ali. Como de 4 em 4 dias teria de dar plantão o dia inteiro, nesses dias também atenderia os casos de tuberculose. Segundo, porque notei, enquanto freqüentava o hospital antes do concurso, que o médico responsável pelos pavilhões de isolamento, idoso e pouco interessado, só chegava pelas duas da tarde, assinava o receituário, as altas e eventuais atestados de óbito, deixando os pacientes aos cuidados da enfermeira-chefe, muito experiente e eficiente. Nessas condições eu poderia assumir toda a responsabilidade pela área, que se me apresentava como incomparável campo de estudo. O que deixasse de ganhar em dinheiro extra seria compensado pelo enriquecimento profissional. Muitos casos complicados ou mais interessantes eu acompanhava do leito do hospital ao laboratório histopatológico, passando pela mesa de necrópsia.

Duas lições me ficaram desse período: é possível aprender uma disciplina de curso sem estar matriculado formalmente na escola; e a melhor instrução é aquela que se adquire trabalhando.

No hospital havia uma biblioteca pequena mas bem dosada, com a coleção completa das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Depois de algumas informações sobre o Instituto absorvidas com ávido interesse nas raras e sempre rápidas conversas com Aben-Athar, era a primeira vez que me defrontava com um produto material da atividade de Manguinhos. Li todos aqueles volumes, do primeiro ao último artigo, extasiando-me com os trabalhos de Chagas, Gaspar Viana, Arthur Neiva, Henrique Aragão, Adolpho Lutz, Gomes de Faria, Lauro Travassos, Costa Lima, César Pinto, e de autores mais recentes como Evandro Chagas, Emmanuel Dias e Walter Cruz. Outros nomes que despontavam eram Herman Lent, Teixeira de Freitas, Hugo de Souza Lopes e Fábio Werneck, em áreas que naquela época me eram menos familiares. Muito trabalho tive com a então recente publicação de Magarinos Torres e Castro Teixeira sobre as inclusões celulares na varíola e no alastrim. Como estava sempre às voltas com estas duas viroses, fiz uma cópia datilográfica do longo trabalho de Torres e reproduzi as estampas coloridas que o ilustram. Tendo-me iniciado em contato com um discípulo de Maguinhos, vivendo e trabalhando num hospital com o nome de Oswaldo Cruz, e tendo ao meu alcance o principal repositório da produção científica da grande Instituição, comecei a ruminar a idéia de um dia também chegar até ela. Mas como, assim tão longe, e com que títulos?

O primeiro aceno veio de Belém, onde Evandro Chagas instalava seu Instituto de Patologia Experimental do Norte, agora Instituto Evandro Chagas. Eu estava terminando o 5º ano de medicina quando de lá me escreveu Nery Guimarães com uma proposta de Evandro: conseguiria minha transferência para a Faculdade de Belém e me oferecia um lugar com salário de médico. A entrada para Manguinhos via sucursal de Belém era proposta atraente, mas resolvi terminar meu curso no Recife.

Ano e meio depois eu estava como bolsista de Anatomia Patológica na Faculdade de Medicina de São Paulo quando veio o segundo aceno. Evandro estava organizando uma equipe para estudo da xistosomose em Pernambuco, liderada por Aggeu Magalhães e Bezerra Coutinho, e numa visita de Bezerra a São Paulo mandou-me um convite para integrar a equipe. Como ainda tinha meio ano de bolsa, decidi ir até o fim. Terminado o prazo, foi-me oferecido mais um ano. Apesar da convivência com bons amigos na Faculdade de Medicina de São Paulo e nos departamentos de Anatomia Patológica, Parasitologia e outros, não me sentia muito feliz no meu ambiente imediato de trabalho. Então aproveitei outra visita de Bezerra Coutinho para mandar uma proposta a Magarinos Torres: aceitar-me como bolsista por um ano com o único compromisso de me deixar terminar a tese de livre-docência sob sua orientação. A resposta que depois recebi de Bezerra foi que eu viesse ao Rio falar com Evandro, que me apresentaria a Magarinos Torres. Essa apresentação nunca foi feita, e só conheci Magarinos alguns meses depois. Evandro me disse que precisava organizar um laboratório de patologia no seu Serviço em Manguinhos e que me entregava essa tarefa. Como lhe dissesse que sendo bolsista ainda era um principiante, respondeu-me: "Se não tenho aqui nenhum patologista, acho melhor ter um principiante do que continuar sem ninguém".

Minha primeira missão no novo laboratório foi examinar as vísceras de grande quantidade de animais silvestres para ver se havia entre eles algum reservatório da leishmaniose visceral, recém-descoberta no Brasil.

Foi assim que, sem lances emocionantes nem disputas renhidas, aqui cheguei para ficar em janeiro de 1939. Durante mais de um ano examinei milhares de órgãos de animais silvestres, não encontrando nenhuma leishmânia, que no ambiente natural só ocorria no homem, no cão e no inseto transmissor, em nada diferindo da leishmaniose visceral do Mediterrâneo.

No ano seguinte o Instituto ministrou, juntamente com a Universidade do Brasil, um curso de especialização em malariologia para médicos em Belém, no qual fui designado para ensinar hematologia normal e anatomia patológica da malária. Enquanto me atualizava para esse curso, vi que despontavam indícios da existência de uma fase até então desconhecida no ciclo do parasito da malária que, se fosse confirmada, daria a chave para a solução de uma série de problemas que permaneciam obstruindo o progresso da malariologia. Esses problemas relacionavam-se ao período de incubação da malária, à ineficácia da medicação profilática, às falhas da terapêutica e às recaídas da infecção, para só citar aqueles de maior interesse prático. Já naquele curso levantei e discuti esses problemas sob o novo conceito, provocando as esperadas adesões e oposições. Estava então decidido a engajar-me nessa linha de pesquisa, quando voltasse para o Rio. Enquanto atendia uma recomendação de Evandro para organizar um laboratório de patologia no Instituto de Belém, tratava de abastecê-lo com a maior quantidade possível de material de referência, colhido em necrópsias e biópsias. Um dia mandei um estagiário, hoje dermatologista Arthur Porto Marques, a um leprosário em cidade distante para colher fragmentos de vários tipos de lesões lepróticas, fazendo esfregaços em lâminas para coloração dos bacilos antes de fixar os fragmentos. Examinando os esfregaços deparei com uma quantidade incrível de leishmânias reconhecíveis mesmo corados pelo método de Ziehl. Os cortes histológicos lembravam um tumor de histiócitos, mas as células examinadas com forte aumento estavam abarrotadas de leishmânias. O pobre paciente estava segregado há 17 anos, como corpo coberto de lesões de aparência lepromatosa, e mesmo quando soube que sua doença era outra recusou-se a deixar o leprosário. A trágica morte de Evandro nesse novembro de 1940 deixou-nos a todos em profunda depressão e perplexidade, e uma das conseqüências desse estado de espírito foi minha negligência em descrever o primeiro caso daquilo que em l 945 Convit e Lapenta denominaram leishmaniose tegumentar difusa.

Regressando ao Rio encontrei o Serviço de Endemias sob a direção de Carlos Chagas Filho, dizia-se — não sei se com fundamento - como delegado do ministro Capanema para evitar a extinção do Serviço, pretendida pela Diretoria do Instituto. Como éramos todos jovens e pouco experientes, custamos a recompor-nos do impacto emocional causado pelo desaparecimento de Evandro.

Afinal resolvi iniciar as pesquisas sobre o ciclo exoeritrocitário dos parasitos da malária, utilizando uma amostra de Plasmodium gallinaceum que me foi cedida pelo Dr. Henrique Aragão. A infecção por esse parasito logo mostrou-se um excelente modelo experimental, e passei alguns meses familiarizando-me com seu manejo e suas modalidades de expressão. Quando, afinal, resolvi relatar meus primeiros resultados significativos perante a Sociedade de Biologia, desabou a tempestade. Eu conseguira demonstrar que, ao contrário da concepção de Schaudinn, adotada há 40 anos, o esporozoíto inoculado pelo mosquito não penetra no glóbulo vermelho do sangue, mas primeiro penetra e reproduz-se numa célula do tecido subcutâneo (no caso da malária das aves) para só depois adquirir a capacidade de infetar o glóbulo vermelho. Mal acabei de expor meus resultados, fui literalmente arrasado pelas duas maiores sumidades em malária de Manguinhos: Henrique Aragão e Arthur Neiva. Não cabem aqui os detalhes da discussão nem os desacordos que durante mais de um ano quase me impediram a continuação das pesquisas. Pouco a pouco os dois grandes mestres, que tinham sinceras e legítimas razões para duvidar de meus resultados, foram aceitando-os e finalmente Aragão, como diretor do Instituto, passou a dar-me o apoio material de que eu necessitava. Meu primeiro trabalho, que depois desenvolvi na tese de concurso para o quadro permanente de Manguinhos, foi publicado em junho de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, quando o intercâmbio científico estava prejudicado pela perda de livros e revistas em conseqüência do afundamento de navios. Depois da guerra verifiquei que trabalho semelhante havia sido feito com outra espécie de plasmódio aviário na Alemanha, e publicado também em junho do mesmo ano. Dois anos depois, foi com certa emoção que li, numa revisão feita pelo grande protozoologista C. M. Wenyon, intitulada "Medicina Tropical na guerra e na paz", um trecho que dizia: "Certo número de observadores tentaram acompanhar este desenvolvimento com variável sucesso. Dos primeiros pesquisadores, Rechenow e Mudrow na Alemanha e Paranaese na América do Sul foram os mais bem-sucedidos". Apesar de trocadas as letras de meu nome, e apesar de situado em um país ignorado da América do Sul, tive a honra de ver meu trabalho reconhecido pela autoridade máxima na época.

Para compensar essa alegria, tive depois recusado pela revista "Science" um trabalho no qual relatava experimentos que, na minha interpretação, demonstravam um fato novo na imunologia da malária, que estava condensado na seguinte frase daquele artigo: "Pode-se pensar também que a imunidade estimulada pelas formas eritrocitárias não funciona contra os parasitos do ciclo exoeritrocitário". A recusa foi baseada no argumento de que era estranhável que um mesmo parasito pudesse ter antigenicidades diferentes. Hoje qualquer protozoologista sabe que o parasito da malária, e também outros parasitos, induz a produção de anticorpos diferentes e específicos não só para cada fase do seu ciclo como também para os estádios sucessivos de cada fase. Daí as diferentes abordagens para produção de vacina contra a malária, conforme o estádio evolutivo do parasito. Fiz referência a esses meus resultados em artigo publicado depois nas "Memórias do Instituto Oswaldo Cruz", que parece não ter sido lido por ninguém.

Animado pelos resultados que publiquei em uma série de trabalhos sobre o ciclo exoeritrocitário, resolvi transportar essas pesquisas para a malária humana. Precisava construir um insetário adequado para criar anofelinos, desenvolver as técnicas para manutenção e reprodução de um bom vetor como o Anopheles darlingi, produzir grande quantidade de esporozoítos e arranjar um meio de fazer experimentos em seres humanos sem ofensa aos princípios da ética. Por esse tempo a malária era usada no tratamento da sífilis do sistema nervoso, e obtive do Dr. Aragão que me designasse oficialmente para trabalhar no Hospital de Neurossífilis da Praia Vermelha, onde me associei a dois colegas. A instalação do insetário, apesar do apoio da Diretoria, consumiu cerca de dois anos, sendo consumido mais outro ano no desenvolvimento das técnicas de criação do mosquito. Quando estava tudo pronto para os experimentos decisivos, estoura como uma bomba no Congresso Internacional de Medicina Tropical e Malária reunido em Washington, em 1948, o primeiro encontro da forma exocritrocitária na malária humana por uma equipe liderada por Shortt e Garnham, na qual o esporozoíto, em vez de entrar na célula subcutânea como nas aves, entra na célula hepática.

A lição que tirei desse episódio passou a orientar o resto da minha carreira. Não por ter perdido uma provável prioridade em uma descoberta importante. Mas por ter me convencido da utopia que é, num país pobre, social, política e cientificamente subdesenvolvido, pretender competir com nações adiantadas em linhas avançadas de pesquisa, sujeitos a uma dependência total. Sem capacidade para produzir equipamentos sofisticados, reagentes confiáveis, animais para pesquisa que exigem linhagens puríssimas e instalações isentas de germes, programação financeira consistente, sem uma política científica definida e sem o reconhecimento do valor da ciência pela sociedade, prefiro confinar-me a linhas de investigação que, como digo para me divertir, "dependam de mim, não dependam do Delfim".

O resto do meu currículo, que foi considerado merecedor do Prêmio Oswaldo Cruz, mostra que minha atividade tem visado tentar contribuir para a solução de problemas que afrontam a saúde da porção mais carente de nossa população, usando para isso mais equipamento mental que aparelhagem material, pois nossa natureza de país pobre, até certo ponto, nos compensa dando-nos problemas de enorme, gravidade cuja solução muitas vezes ainda pode ser alcançada com engenho e arte.

Agradeço ao meu querido amigo José Rodrigues Coura a bondade de seu gesto ao indicar-me para receber este Prêmio, e ao nobre e venerável Conselho Técnico-Científico a generosidade de sua concordância e a unanimidade de seu sufrágio.

O Prêmio Oswaldo Cruz tem para mim o mais alto significado de minha carreira. Além de ser um prêmio ao qual o candidato não se candidata, incorpora-me mais integralmente à Instituição à qual sempre sonhei pertencer.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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