DEBATE

 

A saúde pública hoje: notas para um debate sobre a conjuntura em saúde e a situação da ENSP ao seu interior*

 

 

Jaime A Oliveira

Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da ENSP

 

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS DE MÉTODO

Tornou-se trivial no debate sobre a evolução recente da Política de Saúde entre nós, estabelecer uma associação entre a crise econômica e política que o país passa a viver a partir de meados dos anos 70, e o surgimento, desde então, em nossa área, de um conjunto de proposições de controle, reforma e racionalização do modelo de organização do sistema de atenção à saúde. Proposições estas que se expressaram em uma série de planos, projetos e programas, hoje bastante conhecidos; os quais giraram todos, como se sabe, em torno das mesmas noções e conceitos básicos; e passaram a ocupar, desde então, o centro das discussões neste campo.

Mas, se parece correta e consolidada, por um lado, a identificação desta associação, ela não deve, no entanto nos levar ao risco de uma simplificação, de corte funcionalista do problema. Risco muito freqüente na análise de políticas públicas e ao qual não esteve, nem está imune o debate sobre o nosso tema.

Dito de outra forma. Identificar uma associação entre, por um lado, o contexto mais geral de crise em que passa a viver o país a partir de meados da década passada, e, por outro, um conjunto de medidas adotadas daí para a frente num setor específico de políticas públicas como o nosso, não deve implicar na pressuposição de uma relação automática e mecânica entre os dois fatos. Como se o segundo correspondesse a uma mera resposta "natural" a "necessidades" emergentes a partir do primeiro.

Políticas públicas reais e empíricas jamais são resultado de um tal automatismo funcional (esta velha analogia entre a vida social e a homeostase dos organismos biológicos, que caracteriza o funcionalismo, mesmo quando este se apresenta com intenções e com um jargão de esquerda).

Políticas públicas, enquanto um fenômeno social, resultam, ao contrário, de um processo muito mais aberto e conflitivo, onde os resultados finais não estão previamente inscritos em nenhum "código genético" para continuar com a analogia biológica). E - o que é mais importante para a seqüência da nossa discussão - onde os próprios atores em conflito não necessariamente preexistem ao processo, ou, pelo menos, não preexistem tal como atuarão nele, constituindo-se, ao contrário, no seu próprio decorrer, e adquirindo, pelas vicissitudes deste transcurso, características próprias e particulares.

E é aqui que queríamos chegar com esta breve digressão "quase metodológica" inicial. Uma vez que, ao nosso ver, a história recente (leia-se pós-76) da ENSP, e de outras instituições a ela assemelhadas, é, em síntese, a história da constituição de um novo ator que se introduz no jogo da Política de Saúde nestes anos. Assim como os impasses e dificuldades vividos pela instituição hoje confundem-se, em grande medida, com os impasses e dificuldades vividos por sua criatura.

Para designá-lo de alguma forma, chamemos a este novo ator de, por exemplo novos sanitaristas, ou, usando uma expressão mais corrente, movimento sanitário (deixando claro, no entanto, que não se pretende, com isso, sugerir nenhuma idéia de homogeneidade absoluta neste campo, como a evolução posterior dos acontecimentos e a atual tendência à fragmentação deste grupo vieram a demonstrar).

Isso feito, revisemos rapidamente o processo de constituição deste grupo (processo que, como já assinalamos, confunde-se com a própria história recente da ENSP e de instituições próximas a ela), com o propósito central de buscar identificar algumas de suas características básicas que tenham importância para a compreensão dos problemas e dificuldades atuais. Para, em seguida e finalizando este texto, procurar explorar estas dificuldades.

 

A SAÚDE PÚBLICA ONTEM: A ENSP E O CONTEXTO DE CONSTITUIÇÃO DO "MOVIMENTO SANITÁRIO" (1974-1985)

Como foi apontado no início deste texto, uma visão "ex post factum" da evolução da Política de Saúde no Brasil dos últimos anos pode identificar elementos de "funcionalidade" entre, por um lado, as medidas aí propostas e/ou implementadas, e, por outro, "exigências" reslutantes da crise econômica e política mais geral iniciada em meados dos anos 70.

Mas, se procurarmos fugir dos riscos assinalados mais acima, nos deparemos com um aparente paradoxo. Qual seja, o de que o "clã burocrático" que viria a ser, em grande medida, responsável pela formulação e implementação de tais proposições "funcionais" não nasce ao interior de, nem é, a princípio, incorporado pelas instituições e núcleos centrais do "sistema" de atenção à saúde. Nomeadamente, pela assistência médica previdenciária.

Assim, uma primeira característica importante do "movimento sanitário" e a de que ele percorre uma longa trajetória, que vai da periferia para o centro do "sistema", tendo nascido em instituições "marginais" como: núcleos de pesquisa, departamentos universitários, grupos não hegemônicos ao interior do Ministério da Saúde, grupos em instituições externas ao próprio setor saúde (como o IPEA ou a FINEP), e algumas Secretarias Municipais de Saúde conquistadas com as eleições de 1976.

Desta forma o "movimento sanitário" vai constituir-se como um novo setor das "elites técnicas" da área, em disputa com outros grupos burocráticos que a história das instituições havia sedimentado em seu interior ao longo do tempo. E com um grande "handicap" frente a estes, qual seja: a inexperiência administrativa, a falta deste saber que flui cotidianamente do controle das instituições.

No lugar deste saber, muitas vezes precário e conservador, mas concreto, o "movimento sanitário" coloca um projeto. Projeto teórico, com forte grau de abstração, que vai permear todas as suas proposições.

E esta é uma segunda característica importante do "movimento sanitário": o fato de que ele tem a nucleá-lo um "pacote" articulado de noções, conceitos e categorias, desenvolvidas a partir de instituições internaconais da área, como a OMS e a OPS, e que alcançou, daí para a frente, grande divulgação, transformando-se no jargão do "novo sanitarista".

Embora apresentado como um projeto abrangente, a situação "marginal", "periférica", do "movimento sanitário" à época vai fazer com que, na prática a constituição inicial do movimento em grupo burocrático e não mais meramente acadêmico se concentre em torno daquilo que deveria ser, em tese, apenas um dos elementos do "pacote", a saber: a idéia de atenção primária.

A derrota de proposições de maior fôlego e amplitude como o PLUS e o PREV-SAÚDE, teve como conseqüência um "enquistamento" inicial do "movimento sanitário", quase que restrita a sua atuação a experiências docente-assistenciais, municipais; e, do ponto de vista geográfico, com ênfase nas regiões menos desenvolvidas do país e, nestas, voltadas predominantemente para o interior dos estados.

E uma tal situação veio a exacerbar um elemento latente do "pacote" formalizado em Alma-Ata: sua visão terceiro-mundista, interiorana dos problemas de saúde e de atenção à saúde; sua concentração nas "medidas simples, para pessoas simples, com problemas simples" (ao que não era estranho o contexto cultural dos anos 70, com suas idéias romântico-conservadoras de tipo "small is beautiful", sua preocupação com "práticas alternativas", etc).

Assim, no período de sua constituição, o "movimento sanitário" terminou associado ao "Brasil/Índia", vedado seu acesso ao "Brasil/Bélgica" permanecendo, este último sob controle de um modelo de atenção à saúde privativista predatório.

A ENSP, que fora fortemente afetada pelo período de "caça às bruxas" em Manguinhos, começa a reativar-se, na segunda metade dos anos 70, como parte ativa deste processo de constituição do "movimento sanitário". E compartilhando com ele as características assinaladas até aqui.

Assim, incorpora profissionais jovens, com pouca experiência do cotidiano administrativo, e da complexidade das macroinstituições; não encontra acesso nem interlocução com o "coração" do sistema de atenção à saúde; e, desta forma, se volta primordialmente para a "Índia" (estivesse ela no Nordeste ou na favela em frente), tendo nas mãos pouco mais do que o receituário da OMS.

 

A SAÚDE PÚBLICA HOJE: DE MONTES CLAROS A SÃO PAULO (OU GOIÂNIA...)

O Período 1982-1985 é um período de transição para o "movimento sanitário".

A "crise financeira" da Previdência Social em 1981; a conseqüente criação do CONASP e a elaboração de seu "Plano"; e a posterior incorporação do Conselho (aí incluída sua Secretaria Técnica) à estrutura formal do INAMPS, criam um fato novo: agora o "movimento sanitário" passa a ter um pé dentro da instituição-chave do sistema. Mas, a princípio, ainda "enquistado" numa secretaria (de Planejamento), e tendo que confrontar-se com outros grupos burocráticos, entrincheirados em outros núcleos de poder intra-institucional (e com fortes apoios "societários").

A partir de 1985, no entanto, a penetração do "movimento sanitário" na instituição nuclear do sistema de atenção à saúde se aprofunda. O que não significa, obviamente - e muito longe disso - o controle total da instituição, nem a eliminação da competição interna.

Mas, apesar desta última ressalva, o fato é que, de forma mais ou menos brusca, e por fatores políticos externos à dinâmica do setor, o "movimento sanitário" se vê guindado a uma situação de poder que jamais tivera. E, desde aí, confrontado com problemas de uma complexidade e magnitude que, sem exagero, encontram poucos similares no planeta. E mais, no controle de uma máquina administrativa organizada para, e acostumada a administrar estes problemas de forma perversa cujo arquiconhecido diagnóstico seria ocioso repetir aqui.

Se se tratasse apenas de dar continuidade a este "estilo" de administração, o problema seria simplesmente de adaptação: aquilo que a ironia burocrática chama de "aprender aonde fica o interruptor". Mas o "movimento sanitário" chega aí com intenções reformadoras. E, para isso, seu arsenal o receituário da OMS, acrescido agora da pequena experiência adquirida no que chamamos a pouco de "período de transição", e representada basicamente pelo esforço de implementação das AIS/SUDS - se mostra curto. E, com isso, o "movimento sanitário" se vê paralisado num cipoal de dificuldades.

Quanto à ENSP não se pode dizer, a rigor, que ela tenha ficado simplesmente estagnada no quadro dos anos 70. O surgimento de város núcleos e grupos, no seu interior, explorando áreas temáticas novas (ou recuperando antigas) e a projeção deste movimento na sua atividade docente, é uma expressão disto. Mas é preciso ter a coragem de admitir que a velocidade deste processo é lenta, frente ao gigantismo e à complexidade, que procuramos assinalar acima, das questões que passaram a se apresentar nos últimos tempos ao "movimento sanitário"

Mais adiante, neste texto, procuraremos ilustrar, com alguns exemplos, questões e problemas novos (ou velhos e abandonados) que ainda não conseguimos enfrentar. Esperando que a discussão nos grupos revise e amplie este diagnóstico.

Se não formos capazes, no entanto, de fazer, coletivamente, esta análise, e de encontrar solução para os problemas apontados por ela, corremos o sério risco de viver a situação apontada no relatório do último Seminário de Avaliação. Qual seja: a de voltarmos a nos tornar uma instituição marginal, e agora, não por portar um discurso crítico inaceitável ao "statu quo" , mas por não ter o que dizer frente à dimensão e complexidade dos problemas do momento.

 

A SAÚDE PÚBLICA AMANHÃ

O "movimento sanitário" vive um evidente momento de refluxo, bastante bem simbolizado na recente substituição do Presidente do INAMPS, e que é fruto do quadro mais geral de conclusão conservadora do processo de transição política a que o movimento esteve associado.

Para o futuro imediato é possível traçar vários cenários, mais otimistas ou mais pessimistas, o que, no entanto, nos faria entrar no pantanoso terreno da futurologia.

De qualquer forma, as "linhas de força" da evolução de um setor de políticas públicas correspondem a um movimento mais lento, complexo e incremental do que aquele sugerido pelo turbilhão de superfície representado pela substituição dos ocupantes do ápice das pirâmides administrativas.

Vimos como foi lento e complexo o processo que levou o "movimento sanitário" ao poder. Da mesma forma, e com sinal oposto, é difícil imaginar a hipótese da sua pura e simples erradicação da cena da Política de Saúde. Sendo mais razoável imaginar que o "clã burocrático" que se constituiu a partir dele continue convivendo ao interior das instituições, em disputa com outros grupos (a menos que o vício iluminista de só saber atuar no poder leve a um suicídio coletivo).

De qualquer forma, a ENSP não pode utilizar o argumento de eventuais e circunstanciais retrocessos do grupo burocrático ao qual ela esteve predominantemente vinculada na sua história recente para fugir aos problemas que já lhe estão postos. Não pode mais situar-se numa cômoda posição de oposição abstrata e genérica. Precisa aprofundar a construção de alternativas concretas de políticas. E tendo como referência, agora, os problemas de saúde e de atenção à saúde na magnitude e complexidade com que eles se apresentam numa escala-Brasil, e não Austin ou Montes Claros.

 

DO INTRABUROCRÁTICO AO SOCIAL, OU: DAS ELITES TÉCNICAS À SOCIEDADE CIVIL

O tema do refluxo do "movimento sanitário" nos remete, para finalizar esta introdução, a um comentário crítico a este movimento, cuja trajetória até aqui, no texto simplesmente acompanhamos, e cuja associação com a história recente da ENSP foi, como vimos, tão forte.

Momentos de refluxo impõem reflexão, e eventuais correções de rumo.

Para quem se deu ao trabalho de acompanhar esse texto até aqui pode parecer estranho que a trajetória do "movimento sanitário" tenha sido nele traçada como uma mera trajetória de conflitos e competição intraburocráticos, intra-institucionais, entre "elites técnicas" antigas e outras emergentes. Mas a culpa, neste caso,é menos do analista do que de seu objeto.

É mais do que sabido que outros setores da burocracia governamental na área atuam como expressão - às vezes direta, às vezes indireta - de interesses de grupos da "sociedade civil". O exemplo claro e importante é, como se sabe. dos prestadores privados de serviços de saúde.

Enquanto isso, o "movimento sanitário", por seu turno, jamais conseguiu construir vínculos orgânicos com grupos societários significativos.

O "movimento" sempre viu a si mesmo como pretensa expressão de interesses de setores subalternos da sociedade. Mas, acompanhando um vício elitista comum na esquerda brasileira, terminou sempre por procurar expressar estes interess es no lugar de, e não em conjunto, ou em articulação com aqueles setores.

Esta distância se expressa claramente nesta ideologia dos planejadores (núcleo do "movimento sanitário") que é o chamado "Planejamento Estratégico", onde uma burocracia com forte ranço iluminista dá "tratos à bola" para descobrir coisas como: de que forma conquistar apoios de grupos inertes, potencialmente motiváveis, no seu confronto com outros setores intraburocráticos.

O resultado é não só a desconfiança dos movimentos sociais, mas também a redução dos contatos entre estes e os setores progressistas da burocracia quase que a episódios mais ou menos grandiloqüentes (como o "I Encontro Popular de Saúde", ou a "8ª Conferência Nacional de Saúde"), que se destinam, no entanto, a terminar como episódios históricos isolados e sem conseqüência prática. Ou, alternativamente, o enclausuramento destes contatos em espaços não-decisórios na "ponta" do sistema.

Pode ser que as tintas estejam fortes na caracterização do problema, aqui simplificado, ademais, por limitações de espaço.

Mas todos nós sabemos que ele existe, e precisa ser enfrentado.

Não se pode também culpar por este divórcio apenas o "movimento sanitário", devendo-se levarem consideração, além disso, questões conhecidas, como a fragilidade dos movimentos sociais, sua forma viciada de ver o Estado, a fragilidade dos partidos políticos que deveriam superar o caráter corporativo dos movimentos, etc.

O problema é complexo e, obviamente, não se pretende resolvê-lo aqui. Mas apenas chamar a atenção para a sua importância. Porque, sem a sua solução, o destino do "movimento sanitário" continuará atrelado a eventuais oportunidades resultantes de "mudanças de gabinete".

Concluindo esta introdução, que visou contextualizar o quadro em que atua a ENSP hoje, diríamos que, o problema levantado nesta última seção do texto mostra como é falsa a dicotomia que vem tendendo a crescer, nos últimos tempos, dentro da instituição, quando ela se vê obrigada a pensar seu projeto futuro. Queremos nos referir à dicotomia entre uma vocação "política" e uma vocação "técnica".

A manter-se esta dicotomia, teremos que optar entre: um pragmatismo irresponsável, acrítico, oportunista, que se vê permanentemente sob o risco de lhe "puxarem o tapete"; ou reduzirmo-nos a formulações abstratas, genéricas, e impotentes, reduzirmo-nos, enfim, à incompetência como alternativa real de governo.

Parafraseando alguém, trata-se, ao contrário, ao nosso ver, de construir uma instituição "de luta e de governo", e que, nos dois casos, tenha clareza de seu objeto hoje: a totalidade deste país enorme, complexo e contraditório.

 

 

* Este texto foi escrito originalmente como contribuição para o Congresso Interno da FIOCRUZ, Fase I/ENSP.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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