ARTIGO
Uma abordagem ecológica da tuberculose
Maria Lucia Fernandes Penna
Departamento de Epidemiologia. Instituto de Medicina Social. Universidade de Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
O estudo da epidemiologia das doenças infecciosas é na maioria das vezes baseado no estudo da transmissão. A aplicação de modelos ecológicos, que abordam a limitação do número de parasitas ou os mecanismos para sua perpetuação, ao caso da tuberculose aponta que o mecanismo fundamental na determinação da tendência epidemiológica do problema é a resistência ao adoecimento após a infecção, e não a transmissão. Esta resistência é por sua vez determinada pelo mecanismo de retroalimentação genética, cuja atuação tende a desaparecer com a redução da mortalidade por tuberculose, e pelas condições de vida da população. Programas de controle baseados na interrupção produzem pequeno impacto sobre a epidemiologia da doença, pois não se trata de uma infecção limitada pela transmissão.
ABSTRACT
The study of infections disease epidemiology is usually based on transmission. Applying concepts of regulation of parasite population size to tuberculosis, it is shown that the resistence to infection is the underlying mechanism that produces the trend in the tuberculosis situation. The resistence to infection is the result of genetic feed-back and also of the socioeconomic situation. The genetic feed-back disapears as the tuberculosis mortality rate falls. Control programmes based on the reduction of the transmission are not likely to reduce the tuberculosis problem, for it is not a transmission limited infection.
Desde a descrição do bacilo por Koch em 1882, a transmissão foi eleita como alvo das ações de controle, embora esteja há muito estabelecido o fato de que os já infectados manteriam a doença até a renovação da população mesmo que a transmissão pudesse ser totalmente eliminada.
No fim do século XIX e início do século XX, os altos riscos de infecção existentes em todo o mundo resultavam na infecção precoce de grande parte da população, criando uma situação em que raros eram os livres de infecção e, portanto, os que deveriam ser protegidos desta. No entanto, a idéia da maior relevância da transmissão do que do adoecimento foi sempre predominante, devido à ênfase nos achados microbiológicos e fenômenos fisiopatológicos.
A abordagem ecológica das doenças infecciosas avança em relação àquela centrada na transmissão, na medida em que as considera como resultado da interação entre duas espécies biológicas, e não apenas como um acidente na vida do homem. Assim, o bacilo não é mais encarado apenas como o inimigo do homem e sim como uma espécie, parasita obrigatório, que está sujeito a mecanismos de preservação e de limitação de população, que permitem sua existência entre os seres vivos. Esta abordagem revela novos aspectos na determinação da situação epidemiológica da tuberculose, e embora se mantenha dentro dos limites dos fenômenos biológicos, nos permite estabelecer uma articulação com fenômenos sociais.
LIMITAÇÃO DA POPULAÇÃO DE BACILOS
Bradley (1972) propõe um modelo ecológico para enfocar o problema da limitação das populações de parasitas na natureza, visando a fornecer uma melhor base para o controle de doenças. Propõe três tipos básicos de mecanismos que determinam o limite superior do número de parasitas: população de parasitas determinada pela transmissão (tipo I), regulação pela população de hospedeiros (tipo II) e regulação pelo hospedeiro individual (tipo III). Embora o modelo ecológico tenha se baseado em protozoários, o autor pretende que possa ser aplicado também a vírus e bactérias. Tentaremos trabalhar com os mecanismos propostos no caso do Mycobacterium tuberculosis em uma tentativa de fugir a um enfoque limitado à transmissão.
Para que apenas a transmissão regulasse a população de parasitas, configurando-se a ação exclusiva de mecanismos tipo I, é necessário que cada inoculação se desenvolva independentemente, ou seja, toda vez que se inocula um dado número de parasitas em um hospedeiro, este libera um múltiplo esperado deste número inicial de parasitas. Nestas circunstâncias a população seria regulada por fatores externos que afetassem a transmissão, isto é, por modificações nas condições de transmissão.
Na regulação pela população de hospedeiro, tipo II, a infecção é seguida pela morte do hospedeiro, significando também a morte de grande número de parasitas ou pela resposta imune resultando na morte de parasitas e na existência de hospedeiros imunes, havendo diminuição do número de hospedeiros parasitáveis, isto é, pela morte ou imunização dos hospedeiros a regulação se dá pela diminuição da população de hospedeiros efetivos.
Surge neste caso, o conceito de tamanho mínimo de população para a manutenção da circulação do parasita, sendo necessário um número mínimo de indivíduos que permita que através de nascimentos o número de suscetíveis não caia abaixo de um limite crítico.
No caso de regulação pelo mecanismo tipo III, frente a uma transmissão eficaz, a limitação do tamanho da população de parasitas é realizada pelo hospedeiro que limita o número de parasitas vivos em seu organismo através de um mecanismo de premunição ou processo semelhante. O conceito premunição refere-se a um fenômeno de resistência incompleta ao parasita, mediado por mecanismos imunológicos, que algumas vezes só persiste enquanto dura a infecção primária, e que se caracteriza pela limitação do aumento do número de parasitas do inóculo da infecção primária, e por alguma resistência frente a reinfecções. O uso do conceito premunição tem por objetivo separar esta forma de resistência parcial daquela onde os mecanismos imunológicos determinam uma resistência completa à reinfecção, como é o caso descrito no mecanismo de regulação tipo II, aplicável a doenças como o sarampo, influenza, poliomielite e outras. O termo premunição não decreve portanto um determinado mecanismo imunológico, e sim uma determinada forma de resistência, o que nos permite descrever o resultado da reação imunológica do organismo humano à infecção pelo M. tuberculosis como sendo um tipo de resistência similar à premunição, apesar deste conceito ter sido desenvolvido no estudo de infecções por protozoários e helmintos.
No caso da tuberculose, a infecção natural produz resposta imunológica tanto a nível celular quanto humoral. A resposta imune através de anticorpos não tem papel efetivo no combate do organismo ao crescimento bacilar, enquanto a resposta celular é responsável por desenvolvimento de resistência à reinfecção e limitação do crescimento bacilar. A resistência em tuberculose não é, porém, completa já que persistem bacilos viáveis nos organismos dos que não adoecem após a primoinfecção, permanecendo tais indivíduos sob risco de adoecimento até o fim de suas vidas. Por outro lado, a resistência à infecção também não é completa, já que esta pode se produzir e aumentar o risco de adoecimento. A diferença de risco de adoecimento nestas três situações recém-infectado, infectado antigo e reinfectado ilustra o efeito da presença ou não de contato anterior com o bacilo, mediado por mecanismos ligados à imunidade celular.
Quanto à ação de mecanismos do tipo I, Bradley (1972) aponta que estes mecanismos são erráticos, pois dependeriam de fatores externos aos parasitas, sendo densidade independente, gerando flutuações em número, extinções locais, sendo "a vida caramente muito incerta". É difícil valorizar este mecanismo enquanto relevante na limitação da população do M. tuberculosis tendo em vista as grandes proporções de infectados nas comunidades humanas onde a tuberculose é um problema importante. Este fato nos leva a descrever a transmissão como eficaz e não como reguladora.
O mecanismo tipo II seria importante na tuberculose apenas em situações limites, como comunidades pequenas e isoladas com ausência de experiência anterior com o bacilo, o que poderia resultar em uma mortalidade muito elevada, levando em uma situação extrema ao desaparecimento de hospedeiros, já que não existe resistência completa ao bacilo.
PERPETUAÇÃO DO BACILO
Se em lugar de raciocinarmos como até aqui no sentido da limitação da população de bacilos, mas no de sua perpetuação, podemos utilizar os conceitos de Matumoto (1969), desenvolvidos no estudo dos mecanismos de perpetuação dos vírus animais. O autor descreve os seguintes mecanismos de perpetuação: perpetuação por ciclo curto, quando há necessidade de uma população de hospedeiros com alta densidade para a manutenção da circulação do microorganismo (situação semelhante ao tipo II de Bradley); perpetuação por vírus resistente, quando este permanece viável por longos períodos no meio ambiente; perpetuação por infecção crônica, quando o vírus se mantém cronicamente no hospedeiro, que pode se tornar infeccioso contínua ou intermitentemente; perpetuação por transmissão congênita; e perpetuação por vetores onde o vírus se mantém infectando animais inferiores nos períodos interepidêmicos.
Embora estes conceitos tenham se desenvolvido tendo como objeto vírus animais, a situação colocada é, na verdade, de como um parasita obrigatório supera os mecanismos de regulação tipo II de Bradley, ou seja, supera o esgotamento de hospedeiros efetivos.
Acreditamos que este seja um ponto relevante na epidemiologia da tuberculose, já que o bacilo ''ocupou" em determinadas épocas e locais a população humana, infectando praticamente populações inteiras. Como exemplo para avaliação deste fenômeno, podemos citar que entre os esquimós do Alasca, 97% se encontavam infectados na idade de 1314 anos em 1960 (Grzybowski, Styblo & Dorken, 1976). Certamente um mecanismo importante na manutenção da circulação do bacilo da tuberculose é a infecção crônica que permite uma diminuição no tamanho mínimo de população de hospedeiros, permitindo que uma infecção muito antiga se torne doença e mantenha a circulação do bacilo, trazendo uma flexibilidade de duração do seu ciclo biológico.
Interessa observar que são dois aspectos do mesmo fenômeno aqueles que indicamos como fundamentais para a limitação do crescimento da população de bacilos e para a perpetuação da vida desta espécie. Se por um lado, um mecanismo imunológico semelhante à premunição limita o desenvolvimento dos bacilos no organismo, este mesmo mecanismo permite a sobrevivência deste último por longos períodos de tempo, possibilitando o reinício da multiplicação bacilar. Este fenômeno que estamos apontando é na verdade o da resistência ao adoecimento, indicando a presente abordagem, portanto, que a resistência ao adoecimento é mais importante para a determinação do tamanho da população de bacilos e portanto da situação epidemiológica da tuberculose do que a transmissão.
FATORES DETERMINANTES DA RESISTÊNCIA AO ADOECIMENTO
A resistência ao adoecimento após a infecção tuberculosa está determinada geneticamente e também pelas condições objetivas de vida dos grupos humanos.
Examinemos primeiramente a idéia de resistência natural geneticamente determinada. A experiência passada de uma população humana com o M. tuberculosis, significando a interação de suas espécies de seres vivos, resulta na seleção de indivíduos mais resistentes e de bacilos menos virulentos a curso de várias gerações. Este fenômeno, denominado retroalimentação genética ("genetic feed-back"), foi observado entre animais com alterações importantes no padrão de adoecimento como no caso da interação entre coelhos e o vírus do mixoma na Austrália. Descrito em 1961 por Pimentel, o mecanismo de auto-regulação genética inclui parasita e hospedeiro. Em um primeiro momento o parasita de alta virulência elimina os indivíduos mais sensíveis, selecionando os mais resistentes. A população de hospedeiros mais resistentes seleciona os parasitas menos virulentos, pois estes são mais hábeis para sobreviver. Este modelo é uma variação do predador-presa, mas introduz o conceito de variação genética, não considerando os indivíduos da mesma espécie iguais, levando em conta variações genotípicas (Krebs, 1978).
Como evidência de que este mecanismo também existe no caso da tuberculose, há a observação da grande dizimação que esta doença provocou entre populações que não tinham contato anterior com seu agente, como os índios americanos. Entre os esquimós de Canadá registrou-se a mais alta taxa de mortalidade por tuberculose conhecida 9% enquanto a maior taxa conhecida da Europa é de 1% em Varsóvia durante a primeira Guerra Mundial (Grzybowski, 1980). Também no Brasil tivemos tribos indígenas praticamente dizimadas pela tuberculose.
Cabe notar que recentemente vários surtos epidêmicos de tuberculose têm ocorrido em países desenvolvidos como resultado da baixa prevalência de infecção entre crianças e adultos jovens. Entretanto, em tais surtos não se observa a mesma patogenicidade que entre os indígenas.
Na medida em que cai a mortalidade por tuberculose como conseqüência da diminuição do coeficiente de incidência ou do tratamento, este mecanismo certamente deixa de ser importante na determinação da variação da resistência ao adoecimento, e portanto também da tendência epidemiológica da morbidade.
Por outro lado, existe farta evidência de que a distribuição da tuberculose na população se dá segundo as classes sociais. Um maior risco de adoecimento após a infecção, determinado pelas condições objetivas de vida das classes populares, gera maior coeficiente de incidência de casos e assim um maior risco de infecção.
A sociedade capitalista modela a epidemiologia da tuberclose distribuindo a doença segundo classes sociais. Não podemos no entanto encarar as relações de classe como estáticas no tempo. As condições de vida do proletariado são determinadas pela necessidade de reprodução de força de trabalho, que não se dá por um mínimo biológico, mas histórico necessidades históricas impostas pela luta da classe operária contra o aumento da jornada de trabalho e contra a diminuição dos salários. A tendência epidemiológica da tuberculose está articulada ao desenvolvimento da sociedade capitalista no aspecto do incremento da produção e bens e riquezas e do desenvolvimento social do que é produzido, isto é, determinando as condições de vida das diferentes classes sociais e, portanto, a resistência ao adoecimento após a infecção tuberculosa. É esta articulação que vai determinar as diferentes velocidades de queda da morbidade por tuberculose observadas em várias partes do mundo. Enquanto em países europeus como a Holanda o risco de infecção cai em um ritmo de aproximadamente 14% ao ano desde 1940 (Styblo, Meijer & Sutherland, 1969), em alguns países africanos não existe queda (Uganda e Lesoto) ou sua velocidade é muito pequena (2% ao ano em Transkei) (Styblo, 1980).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A maior relevância da resistência ao adoecimento do que da transmissão na determinação da situação epidemiológica da tuberculose nos permite compreender melhor sua dinâmica de transmissão e como aí se articulam fatores biológicos e sociais, nos permitindo também avaliar que a transmissão não se constitui no ponto privilegiado de intervenção. Os programas de controle atualmente implementados se baseiam no tratamento dos casos infectantes como forma de interromper a transmissão, e não em métodos que reforcem os mecanismos naturais de limitação da população de bacilos, isto é, a resistência ao adoecimento. Claro está que a escolha de estratégias de controle não se dá exclusivamente pelo conhecimento teórico sobre a epidemiologia da doença, como também pela disponibilidade de técnicas eficazes e seguras. Diante das limitações em eficácia e segurança da vacina BCG e da quimioprofilaxia, intervenções que se dariam no sentido de reforçar a resistência ao adoecimento, o controle da tuberculose está hoje baseado na redução da transmissão. Se como vimos a transmissão não se constitui em elemento regulador natural da magnitude do problema, pequeno é o impacto epidemiológico que podemos esperar de programas com esta estratégia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BRADLEY, D. J. Regulation of parasite populations. Trans. Royal Soc. Trop. Med. Hyg. 66: 697-708, 1972.
2. GRZYBOWSKI, S.; STYBLO, K. & DORKEN, E. Tuberculosis in eskimos. Tubercle 57(Suppl.) : 1-58, 1976.
3. GRZYBOWSKI, S. Tuberculosis: examen de la situación mundial. Chest 84 (6): 756-761, 1983.
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5. MATUMOTO, M. Mechanism of perpetuation of animal viruses in nature. Bacteriol. Rev. 33 (3) : 404-418, 1969.
6. STYBLO, K.; MEJER, J. & SUTHERLAND, I. The transmission of tubercle bacilli its trend in a human population. Bull. INTERN Un. Tuberc. 42: 5-104, 1969.
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