ANÁLISE

 

A propósito de paleoparasitologia*

 

 

Fernando Dias de Ávila-Pires

Professor Titular do Deptº. de Ciências Biológicas da Escola Nacional de Saúde Pública

 

 

O Programa de Educação Continuada da Escola Nacional de Saúde Pública (PEC/ENSP) acaba de lançar um volume reunindo as contribuições do grupo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz que, desde 1979, vem-se dedicando ao estudo pouco difundido da paleoparasitologia. (*) Esta é uma área multidisciplinar por excelência, onde são utilizadas técnicas correntes na parasitologia para o exame de coprólitos ou fezes fossilizadas, que são encontradas em sítios arqueológicos ou paleontológicos. A pouco prosaica ocupação desse grupo pioneiro revela fatos importantes para a compreensão da origem e distribuição geográfica de certas doenças, de sua dispersão, dos padrões alimentares de populações pré-históricas, de paleoecologia e de coevolução de hospedeiros e parasitas.

Malgrado o reduzido número de especialistas em todo o mundo, o interesse pelo assunto não é de hoje.

Restos de animais, plantas, pegadas, moldes, impressões e sinais deixados em terrenos fossilíferos encontram-se mencionados e desenhados em obras publicadas desde a antigüidade. A verdadeira natureza dos fósseis, entretanto, só foi reconhecida a partir do século XVIII. A preocupação com a paleoparasitologia humana, por sua vez, teve que aguardar a elucidação do verdadeiro papel dos parasitas, o encontro dos primeiros restos humanos fossilizados, e a admissão de sua idade ou origem pré-histórica, o que ocorreu na metade do século passado.

As relações parasita/hospedeiro nem sempre são claras, nem sempre resultam em doença e raramente são estáticas. A princípio, ignorava-se o significado das associações parasitárias e a natureza das interações ecológicas de dependência trófica, entre um organismo e sua microbiota endógena. Assim, em 1862, José Vieira dos Santos, médico no Rio de Janeiro, descrevia um "Caso de peritonite, consecutiva á perforação intestinal determinada pelo Ascárides Lombricoides" (Gaz. Med. Rio de Janeiro, 1862 (4):41) e comentava que "Alguns médicos francezes não acreditão nos graves accidentes que produzem os vermes nas crianças, e affirmão que longe de serem prejudiciaes á economia, eles ajudam pelo contrario o trabalho da nutrição, desembaraçando os intestinos das materias não assimilaveis, opinião esta que não adoptamos." Entretanto, atribuía os elevados índices de verminose nas populações de lavradores e escravos no norte e centro do Brasil à alimentação vegetariana, o que não ocorreria no sul.

A partir do final do século XIX, após o des crédito da teoria da geração espontânea, passou-se a admitir um relacionamento permanente e estável. Mas a partir do século atual, estenderam-se à parasitologia clássica os conceitos ecológicos, que explicam o relacionamento das espécies nas cadeias tróficas e verificou-se o caráter transitório e variável do relacionamento hospedeiro/parasita.

O interesse pelo estudo das fezes fossilizadas data do encontro de dejetos preservados em jazidas de fósseis. Em 1806, Pallas descreveu um "elefante" encontrado em excelente estado de conservação, no gelo siberiano, do qual os cães comeram a carne e cujo intestino guardava os restos de sua última refeição.

Buckland (La geologic et la minéralogie dans les rapports avec la théologie naturelle. Paris, 1838) analisa o processo de digestão e estuda os restos de alimentos encontrados associados a um ictiossáurio fossilizado.

Benjamin E. Cotting, médico norte-americano que viveu algum tempo no Rio de Janeiro, onde se incorporou à Expedição Agassiz, pronunciou, em 1865, o discurso anual perante a Associação Médica de Boston (Rep. Boston Med. Assoc., 1866), no qual abordou o tema "A doença como uma parte do Plano da Creação". Comentando a conferência, Wucherer escreveu um longo e interessante artigo (Gaz. Med. Bahia, 1866 (11): 17-21), observando que: "Os coprolites, fezes petrificadas encontradas dentro ou fora de animaes fosseis, revelam-nos muitas vezes não só a natureza dos ingesta, exhibindo partes de outros animaes consumidos, mas até a natureza da superfície mucosa dos intestinos, e provam que a digestão era feita, n'aquelles tempos, pouco mais ou menos como nos nossos."

Por sua vez, Louis Figuier, em um livro destinado aos jovens (La Terre avant le Deluge, Hachette, Paris, 1883), relata um fato curioso mencionado por Vogt (Leçons de géologie, Leipzig, 1883): "Uma inglesa, Miss Marie Aiming, a quem se devem muitas descobertas feitas nos arredores de Lyme-Regis, sua cidade natal, possuia, em sua coleção, um enorme coprólito de ictiossáurio. Era a pérola da coleção do pequeno museu de Lyme-Regis. Entretanto, o pudor inglês impedia a proprietária de exibi-lo. Após se fazer o percurso da coleção, entrava-se em um salão; Miss Anning desaparecia e, em seguida, um servo trazia, em um prato, coberto por um guardanapo discreto, a amostra, que depunha sobre um móvel. E não era senão após a saída das damas que se podia levantar o guardanapo."

A obra que agora se edita foi possível graças à gentil permissão concedida pelos editores dos periódicos onde os artigos foram originalmente publicados. Dessa maneira dispõe-se, agora, de um texto introdutório ao tema para uso dos cursos de pós-graduação, o qual reúne a contribuição brasileira integral.

Esperamos que sirva para despertar o interesse de jovens pesquisadores, para que ponham mãos à obra.

 

 

(*) Ferreira, L. F.; Araújo, A. e Confalonieri, U., Paleoparasitologia no Brasil. PEC/ENSP, R. Janeiro, 1988.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br