EDITORIAL
Protegendo a ecologia
Fernando Dias de Avila-Pires
Pode-se dizer que o "movimento ecológico" é tão velho quanto a humanidade. Provavelmente, ao despertar na manhã seguinte à expulsão. Adão lembrou-se, com saudade, da vida tranqüila que levara no Paraíso, em meio aos animais e plantas criados para seu deleite. Virgílio cantou em versos as delícias do campo, décadas antes de Cristo. Rousseau, Thoreau, Gonçalves Dias, José de Alencar registraram, na visão naturalista idealizada e no indianismo romântico, o testemunho de um sentimento atávico de amor à vida simples. O sentimento rural identifica-se no panteísmo de Pittigrili e no saudosismo camponês de Eça, em A cidade e as serras e de Cabocla, que Ribeiro Couto escreveu na Europa. Sobrevive no lirismo nostálgico da "hora sertaneja", nos programas de rádio e televisão, ouvidos por muitos aficionados que nunca se levantaram às quatro horas da madrugada chuvosa para ordenhar vacas relutantes ou pegar no cabo rugoso de uma enxada.
O movimento ecológico-verde é a bandeira daqueles para quem o mico-leão é figura de poster; as baleias são conhecidas dos adesivos de pára-brisas, e a floresta é imaginada como o antigo paraíso, agora ameaçado pelo progresso.
O fenômeno não é novo.
No século passado, quando se tratava de estabelecer uma base sólida para a medicina clínica e terapêutica, nascia a fisiologia. Em pouco tornava-se moda e Mangendie, um de seus pioneiros, descreveu sua transfiguração na "fisiologia romântica" ou "fisiologia de salão". Balzac publicou a Physiologie du marriage, Brillat-Savarin, La Physiologic du goût, e Alibert, La Physiologie des passions.
Nas vésperas da revolução social que coincidiu com o nascimento da moderna saúde pública, a higiene ocupava o lugar da ecologia hoje. Ackerknecht descreve a higiene de então como... "un programme illimité, fait d'une assemblage e fragments empruntés à toutes les sciences". Revela que a maioria dos trabalhos publicados nos Annales d'Hygiene Publique et Médécine Legale de Paris, em 1829, tratavam de "metiers dangéreaux, produits industriels toxiques et Hygiène dans les usines" e que, em 1837, doze memórias apresentadas à Académie versavam os mesmos temas. Exatamente aqueles que constituem a matéria do Boletim de Ecologia Humana publicado no México, pela Organização Panamericana de Saúde, na atual onda do ecologismo.
A ecologia passou a fazer parte as plataformas políticas, das propagandas comerciais, das preocupações presidenciais e papais e do ideal escapista do homem urbano. Passou a ser moda.
Em 1988 anunciava-se uma "Reunião Anual sobre evolução, sistemática e ecologia micromoleculares", na revista Ciência e Cultura. Um ministro da saúde descreveu um "câncer ecológico" resultante dos desmatamentos descontrolados da serra do Mar, e a ecologia tornou-se a palavra de ordem da atualidade política e a palavra-chave, ou melhor, gazua, para abrir os cofres das financiadoras de projetos de pesquisa.
A ecologia de Haeckel, definida em 1866, evoluiu da antiga historia natural, como a biologia, que se tornou disciplina autônoma no início do século passado. Pouco a pouco, o estudo do comportamento animal (psicologia e sociologia animais) desmembraram-se da ecologia para constituir a etologia. A ecologia centrou-se na investigação das relações dos organismos com o ambiente. As interações com o meio físico, ressaltadas por Lamarck e as relações de competição e cooperação que resultam na seleção natural, privilegiadas por Darwin como endo o processo promotor e diretor da evolução das espécies, viriam a revelar-se como as grandes linhas de investigação ecológica moderna. Na década de 1960 polarizaram as discussões em torno da procedência de fatores físicos e bióticos na regulação das populações animais.
No uso popular, o termo ecologia passou a ser usado no sentido vago de natureza, como geografia, direito, ética, literatura. Vem sendo utilizado para designar tanto o objeto de estudo quanto a ciência ou disciplina correspondente. Mas, no caso da ecologia, de maneira imprópria, quando o correto seria ecossistema.
"Proteger a ecologia" tornou-se palavra de ordem. Mas, quando a FUNAI demarca terras indígenas, não está protegendo a etnologia; quando a comissão de direitos humanos age, não o faz para defender a antropologia ou a sociologia; e os parques nacionais e reservas naturais não protegem a botânica e a zoologia.
Entretanto, a ecologia, como ciência, precisa ser protegida, Ciência com implicações nos campos da política, da economia, do planejamento racional da ocupação do território nacional, das relações internacionais, do urbanismo, da arquitetura, do conservacionismo, a ecologia corre o risco de se desacreditar antes de que disponha de uma sólida base conceitual e factual e que proponha soluções viáveis para problemas urgentes, não se limitando os ecólogos a prever desastres e vaticinar catástrofes.
É preciso evitar o que aconteceu à história, ouvindo a advertência de Handlin. "A crise na história é resultado não da morte do passado, mas de sua malversação. Seus guardiões negligentes perderam o comando... permitiram que sua matéria escorregasse para as mãos de publicitários, políticos, dramaturgos, romancistas, jornalistas e engenheiros-sociais. ... Propósitos polêmicos e partidários obscurecem e distorcem o significado de tais palavras. Por volta do fim do século XIX, por exemplo, a palavra 'socialismo' aplicava-se a uma miscelânea de propostas para alterar o sistema político e social... Nos dois lados do Atlântico, abarcou os anti-semitas... e os gentis humanistas, pacifistas e vegetarianos." Pouco tempo depois organizavam-se os partidos socialistas.
E já temos o Partido Verde.