ANÁLISE
Ricardo Ventura Santos
Bolsista do CNPq, Department of Anthropology, Indiana University, Bloormington, Indiana, 47405, (U.S.A.)
South American Indians - A Case Study in Evolution, por F. M. Salzano e S. M. Callegari-Jacques, Oxford: Clarendon Press. 1988. xii + 259 pp., figuras, tabelas, referências, índice. US$ 75,00.
De acordo com o prefácio, o desenvolvimento dessa obra remonta aos anos 50, quando o primeiro autor tornou-se interessado no estudo da biologia humana de populações nativas da América do Sul. Tal consideração introduz o objetivo do livro, qual seja, consolidar e sumarizar a ampla literatura disponível referente aos variados aspectos biológicos de tais populações. Ao apontar que os ameríndios sul-americanos têm sido objeto de contínuos e múltiplos estudos, Salzano e Callegari-Jacques reconhecem que a tentativa de cobrir de forma exaustiva a bibliografia existente reveste-se necessariamente de um esforço de caráter quase que enciclopédico. De fato, o leitor defronta-se com tal característica ao longo de todo o volume.
O livro é organizado em dez capítulos. Capítulos 1 e 2 enfocam a questão das origens e diferenciação biológica, populações históricas e o ambiente físico, biótico e cultural. Nos capítulos 4 e 5, respectivamente, os autores discutem ecologia, nutrição, adaptações fisiológicas e os quadros nosológicos. Capítulos 3, 6, 7, 8 e 9 seguem a divisão tradicional das monografias em biologia humana, cobrindo temas tais como demografia, antropometria, dermatóglifos, genética dentária e polimorfismos sanguíneos. O material original é apresentado nos capítulos 7 e 9, consistindo de um resumo da tese de doutoramento de Callegari-Jacques, enfocando variabilidade genética no sangue e saliva de populações indígenas sul-americanas. Finalmente, no capítulo 10 os autores procuram sintetizar os conhecimentos apresentados, indicando novas linhas de pesquisa a serem seguidas.
Além das origens e diferenciação, discutem-se no capítulo 1 cronologia, possíveis rotas de migração, estoques fundadores, vida dos primeiros ameríndios e diferenciação morfológica. Os autores sugerem que a colonização do continente americano deu-se inicialmente através do Estreito de Bering entre 30.000 e 40.000 anos atrás. Contudo, Salzano e Callegari-Jacques argumentam que outras rotas (via Polinésia, por exemplo) podem ter sido igualmente utilizadas.
O capítulo 2 fornece uma base em demografia histórica e apresenta aspectos gerais do ambiente físico, biótico e cultural, refletindo assim um cuidado por parte dos autores em considerar uma perspectiva holística no estudo de populações ameríndias. Tais tópicos são de amplo espectro e têm sido abordados de forma mais sistemática e aprofundada em recentes volumes de ecologia humana (cf. Hames e Vickers, 1983). Provavelmente refletindo a dificuldade de acompanhar a crescente literatura na área, Salzano e Callegari-Jacques nem sempre utilizam abordagens atualizadas, sendo a ênfase em áreas culturais um exemplo dessa defasagem. Portanto, o tratamento dispensado pelos autores é, nesse tocante, condensado e, de certa forma, superficial.
O livro torna-se particularmente deficiente quando os autores procuram produzir generalizações de cunho sócio-cultural. No capítulo 3, por exemplo, uma perspectiva tipológica e evolucionista domina a discussão, onde os autores procuram classificar várias sociedades como "caçadores e coletores com agricultura incipiente" (grupo A) ou "tecnologicamente mais avançados agricultores ou pescadores" (grupo B).
Se o leitor opta por aceitar a classificação apresentada, de imediato surge a questão: se ambas as categorias incluem a prática de algum tipo de agricultura, afinal o que difere grupo A de B e vice-versa? Diante da escassez de estudos em profundidade sobre as práticas agrícolas dessas populações, expressões tais como "incipiente" ou "mais avançado", ao invés de clarificar, produzem um quadro confuso. A categorização torna-se ainda mais arbitrária quando se considera que a maior parte dos grupos classificados como de agricultura incipiente pelos autores são tratados na literatura etnográfica como horticulturalistas praticantes de agricultura de coivara (ou "swidden agriculture"). Os Yanomama são um exemplo. Classificados como de agricultura incipiente pelos autores, Chagnon (1983:59) argumenta que a maior parte da alimentação do grupo provém de plantas cultivadas. Enfim, a conclusão que se chega é que a validade do sistema classificatório apresentado fica deficiente já que não baseado em dados de cunho ecológico e/ou etnográfico.
Outro ponto que merece consideração refere-se à abordagem reducionista que caracteriza a interpretação das semelhanças e diferenças na estrutura demográfica de sociedade classificadas como pertencentes aos grupos A e B. É difícil aceitar, como Salzano e Callegari-Jacques parecem crer, que níveis de exogamia, uniões interétnicas ou intertribais e endogamia são simplesmente função de diferentes níveis de desenvolvimento tecnológico (capítulo 3). Ao invés disso, sabe-se que o quadro é bem mais complexo, assumindo o contato com a sociedade nacional, e subseqüente mudança sócio-cultural, um papel preponderante sobre a estrutura demográfica de tais populações. Infelizmente, apesar de fazerem menção a mudanças sócio-culturais em outras partes do livro (cf. capítulo 2), os autores não incorporam tal dimensão na discussão da dinâmica demográfica.
O capítulo 4 é dividido em 8 partes, onde apresentam-se uma revisão não-exaustiva dos estudos envolvendo ecologia e comportamento, estudos nutricionais, pressão arterial, metabolismo e adaptação térmica. Já que muitos dos estudos em adaptação fisiológica foram realizados com populações andinas, os autores dispensam considerável atenção para as inter-relações entre hematologia, doenças cardiovasculares e pulmonares, fertilidade, crescimento físico, capacidade de trabalho e adaptações a regiões de altitude.
No capítulo 5 os autores apresentam a bibliografia sobre nosologia indígena. Diversos aspectos são abordados, incluindo resultados de inquéritos clínico-epidemiológicos, parasitológicos e imunológicos. Uma perspectiva mais de ordem clínica e genética do que ecológica e/ou epidemiológica predomina. O capítulo 6 é dedicado à apresentação dos estudos envolvendo morfologia. Os autores chamam atenção para a existência de um pequeno número de pesquisas sobre crescimento e desenvolvimento infantil. Faz-se ainda menção a trabalhos sobre composição corporal, dimorfismo sexual, casamentos assortativos, genética de cor-de-pele, variação antroposcópica e dentição.
Nos capítulos de 7 a 9 são analisados de forma aprofundada a questão da variabilidade genética utilizando-se polimorfismos salivares e sanguíneos. Os autores apresentam a bibliografia sobre o tema, analisam sistemas genéticos específicos e, finalmente, descrevem os resultados de uma análise multivariada. Entre os muitos pontos, Salzano e Callegari-Jacques destacam a existência de um gradiente norte-sul para alguns genes. Os autores mais uma vez reinforçam a idéia de que as populações nativas da América do Sul e Polinésia não devem ser vistas como geneticamente independentes, já que similaridades genéticas podem ser detectadas entre elas.
Certamente deve ser uma experiência recompensadora iniciar uma linha de trabalho em uma região previamente pouco estudada e, aproximadamente 30 anos depois, ser capaz de escrever um volume indicando os avanços obtidos nas últimas décadas. De uma maneira ampla, Salzano e Callegari-Jacques resumem o presente conhecimento da biologia humana de populações nativas sul-americanas que o seu próprio grupo de pesquisa, e Salzano em particular, teve um papel de destaque em construir.
No capítulo final do livro os autores reconhecem que vários aspectos não chegaram a ser abordados. Tendo a concordar com tal afirmação. Contudo, o volume contém grande soma de informação e vem preencher uma lacuna na bibliografia onde o livro é particularmente forte populações das terras baixas sul-americanas. A impressão que se tem é que os autores estavam mais preocupados na apresentação e sumarização dos vários tópicos do que com um tratamento mais de cunho analítico. Portanto, o livro serve principalmente como fonte de referências bibliográficas. Outra característica positiva da obra é o " índice de populações", através do qual o leitor pode facilmente localizar referências mais específicas.
O livro de Salzano e Callegan-Jacques interessa a uma variada gama de leitores, incluindo tanto os interessados em populações indígenas sul-americanas de maneira geral como aqueles trabalhando em temas mais específicos, tais como variação humana, evolução e epidemiologia, pena que o elevado preço do livro venha a dificultar a obtenção do mesmo entre os pesquisadores brasileiros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAGNON, N. A. Yanomamo: The Fierce People.New York: Holt, Rinehart and Wiston, 1983.
HAMES, R. B. & VICKERS, W. T. (eds) Adaptative Responses of native Amazonians. New York: Academic Press, 1983.