EDITORIAL/EDITORIAL

 

 

A Crise no Setor Público e o Futuro da Pesquisa em Saúde

 

 

Nilson do Rosário Costa

Pesquisador da Ensp / Fiocruz e Vice-presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)

 

 

Quais os efeitos da atual crise no setor público sobre o futuro da produção científica em saúde pública? Que amargas conseqüências o estrangulamento financeiro e moral dos serviços públicos trará sobre salários, infra-estrutura física e recursos para a pesquisa e ensino nos próximos anos?

Os impactos dessa crise não podem obviamente ser compreendidos de maneira restrita ao setor saúde e ao nível da Fiocruz/Ensp. Devem ser pensados no âmbito de uma ofensiva do discurso neoliberal a respeito do papel da esfera pública em nosso país. Para esse discurso, o "mercado" e a privatização são as panacéias para a cura de todos os males: as atividades públicas compõem um todo indiferenciado, parasitário e perdulário. Essa ótica conservadora põe comodamente no mesmo saco tanto empresas estatais inúteis e deficitárias — usinas nucleares, por exemplo — como centros de excelência na pesquisa científica ou hospitais públicos para doentes crônicos. Qual proposta tem esse discurso para o prometido resgate da dívida social do país?

Talvez promover o crescimento, a modernização industrial e a integração à economia mundial, esperando que esse movimento, pela via do mercado, universalize os frutos da prosperidade. Cabe perguntar se em algum lugar do mundo foi performado esse milagre. Até agora não se tem registro histórico de tal experiência. Ademais, não temos muito boas lembranças sobre as promessas de crescimento de bolo da economia e o milagre na distribuição dos pães.

Ora, nunca é tarde lembrar que todo processo de consolidação de uma economia nacional e de ampliação de direitos sociais de cidadania exigiu uma forte presença da função pública na produção de bens e serviços. A característica central dessa produção é que ela se viabilizou fora da lógica do mercado, ou seja, na contramão da estrita razão do cálculo econômico.

Coube às políticas sociais, científicas e econômicas tomarem realidade os interesses que confrontaram a lógica da rentabilidade imediata ou a possessividade empresarial.

Não resta dúvida que durante décadas a idéia de "público" foi profundamente desgastada pela sistemática negação das instituições a pensar o sentido social de suas práticas ou mesmo a baixíssima produtividade de suas atividades. A vasta tradição de uso patrimonialista pelas elites e pelas corporações profissionais das instituições fez com que se tornasse parte da ética do serviço público a recusa a qualquer propósito de avaliação, julgamento ou compromisso social.

Não há dúvida que nessa ''cultura" cotidiana das instituições está a outra face da crise: a incômoda interpelação a respeito de absenteísmo, de qualidade do trabalho, produtividade etc, que encontra eco e respaldo na opinião pública.

Embora o tom levemente histérico dessa interpelação tente explicar os problemas da inflação, da pobreza, dos baixos salários como decorrência direta da presença do setor público na economia. O que é uma grosseira simplificação.

Ainda assim a generalização desse diagnóstico sobre a incompetência e nocividade da esfera pública tem produzido um resultado extremamente tortuoso na percepção imediata da população e dos formadores de opinião. Parece, hoje, uma verdade incontornável considerar tudo que é "privado" como bom e virtuoso. E tudo que é público nocivo e impuro. O que pode tomar natural a violenta implosão de todo acervo cultural, científico e tecnológico das várias e sérias instituições públicas do país.

Nesse ponto pode-se sugerir que as iniciativas políticas em defesa da pesquisa, da produção e do ensino públicos do país devam assumir alguns compromissos que foram muito desconsiderados na trajetória de muitas instituições. É necessário, primeiro, tornar visíveis, públicas, as avaliações periódicas do conjunto das atividades de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e ensino desenvolvidas pela esfera pública; segundo, ampliar o uso de critérios de competência e mérito na ordenação e orientação da política de recursos humanos, especialmente no que diz respeito a promoções e ampliação de quadros; terceiro, estimular o uso de alguns instrumentos de planejamento e programação na gestão das instituições, para que seja possível a articulação mínima das propostas de trabalho.

Assim, atenuando as vastas e ecléticas iniciativas setoriais que tornam extremamente confuso o perfil das instituições — quando o há — perante a sociedade. Que, em última analise, as sustenta através dos recursos públicos. Estes são compromissos mínimos que podem, pelo menos, servir para atravessar o crescente abismo entre a produção científica nas instituições do país e parcelas da população. E que devem ser preocupações fundamentais para uma defesa legítima da atividade pública nesses tempos de pragmatismo irresponsável.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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