OPINIÃO/OPINION

 

Compromisso social: uma nova ética na administração pública*

 

 


 

 

Assumo, hoje, a Direção da Escola Nacional de Saúde Pública, com uma pluralidade enorme de sentimentos. A alegria e a emoção de assumir a Direção da Casa que me acolheu, há 13 anos, inicialmente como Professor Convidado e, depois, como Professor Assistente, somam-se ao peso do compromisso e da responsabilidade. Assumimos, coletivamente, Jaime, eu e todo o primeiro Conselho Deliberativo criado pelo novo Regimento da ENSP, numa hora extremamente grave da vida brasileira e do Continente Latino-Americano. A profunda crise econômica que atravessamos, com a pobreza infame e inadmissível de nossos povos, repercute, dilacerantemente, na vida das crianças, das mães e dos trabalhadores brasileiros e latino-americanos. Estamos oprimidos por um dos mais injustos processos econômicos que se tem notícia na história da humanidade. O capital internacional, aliado a segmentos do capital nacional, comete um massacre que se aproxima do genocídio, com as regras ferozes que nos impõe, unilateralmente, frente às dívidas acumuladas pelas ditaduras latino-americanas. Os anos de vida subtraídos às crianças, às mães e aos trabalhadores brasileiros e do Continente, condição tantas vezes denunciada pelos profissionais e pesquisadores de saúde pública, só têm comparação com outros poucos holocaustos cometidos contra a humanidade, ao longo da história conhecida do homem. As taxas elevadas de mortalidade infantil e materna; a permanência de números absurdamente altos de doenças endêmicas; os acidentes, as incapacidades e as mortes decorrentes das péssimas condições de trabalho; a deterioração do ambiente e suas repercussões sobre a saúde; os novos problemas como a AIDS e o agravamento da morbo-mortalidade decorrente dos acidentes, violências e outras causas externas tecem, na sua terrível eloqüência, o quadro sanitário com que convivemos. De outro lado, o avanço e a qualidade de vida dos países desenvolvidos, em oposição à nossa miséria e ao volume das nossas necessidades, faz-nos pensar quão primitivas e bárbaras são, ainda, as relações entre os povos e as classes sociais, e quanto deve ainda a humanidade caminhar para experimentar a possibilidade de compartilhar as riquezas naturais e os benefícios que os avanços cientifico e tecnológico podem oferecer ao ser humano.

Este país vive, hoje, um momento singular de sua história, ao eleger, diretamente, um Presidente da República após quase 30 anos de termos vedado, pela força, este elementar direito democrático. Quando assumo a Direção desta Escola, de cujo produto da pesquisa aprendi as relações entre processos econômicos e sociais e condições de vida e saúde, sinto-me na obrigação de alertar ao futuro Presidente, seja ele quem for, sobre algumas questões extremamente importantes. É preciso que, nestes 5 anos de governo, se implemente uma política global, cujo principal objetivo seja, efetivamente, o povo brasileiro. É impositivo que seja realizado um processo profundo de redistribuição da riqueza gerada pela sociedade brasileira. Emprego, salário justo e terra são uma equação necessária para que a grande maioria do povo brasileiro consiga galgar patamares minimamente aceitáveis na condição humana de existência. Um verdadeiro pacto político e social, visando redistribuir a riqueza na sua mais ampla expressão e, com isso, promovendo melhores condições de vida e saúde, deve ser conduzido por este novo Presidente, com a autoridade que lhe conferirá a eleição, pelo voto de mais de 40 milhões de brasileiros.

Ainda que temamos pela manipulação política que se faz da ignorância e da ingenuidade de amplas camadas da população, ou pelos compromissos espúrios que se possam estabelecer no processo eleitoral, cremos que restam poucas alternativas aos grupos políticos que cheguem ao poder, senão incrementar o jogo da justiça social neste país. Não fazê-lo pode jogar brasileiros contra brasileiros, pois são insuportáveis as condições de existência de amplas camadas da população.

À nós, professores, pesquisadores, funcionários e alunos desta Casa, cuja preocupação primordial é com a saúde e as condições de vida da população brasileira, cabe exigir, portanto, do novo Presidente um projeto político claro no campo social, que inclui: saúde; educação; habitação e saneamento; transporte e lazer.

A saúde só virá se a riqueza for distribuída, e o emprego e a terra garantidos; temos consciência absoluta disso! Mas há um conjunto de políticas e ações que devem ser incrementadas no campo específico da saúde, para responder às necessidades imediatas da população. Assim, um aumento no gasto com saúde é fator fundamental! Não é possível pensar que um país que gasta (e mal) tão-somente em tomo de US $ 40 (quarenta dólares), anuais, per capita, com saúde consiga atender adequadamente às necessidades da população. A União, os Estados e os Municípios precisam realinhar seus orçamentos, realizar investimentos e custear serviços de saúde para a população. Estamos convivendo com situações absurdas, em que o jogo vil dos interesses politiqueiros, pessoais e grupais, muito mesquinhos e menores, tem comprometido a implantação de um sistema de saúde descentralizado e coordenado, como embrião de um sistema de saúde pleno e capaz de corresponder, efetivamente, às expectativas e necessidades. Lograr alcançar um sistema descentralizado e hierarquizado; universal, integral e equânime; com base estadual e municipal; custeado, multilateral e equilibradamente, pela União, Previdência Social, Estados e Municípios; com um grau aceitável de eficiência, é uma meta que precisa ser alcançada até o final do século. Não um sistema primário, no sentido de atenção simplificada, rural, de periferia, "para pobres" mas primordial, no sentido de estender-se do mais simples ao mais complexo, garantindo o acesso a quem dele necessitar, em qualquer dos seus níveis. Certamente não será com o conluio, entre uma burocracia ineficiente e o atendimento das imposições e exigências dos setores mercantilistas da saúde, que se chegará a um sistema deste tipo. Assim, cabe à nova administração da República retomar os princípios da VIII Conferência Nacional de Saúde e as regras Constitucionais, perseguindo a configuração do Sistema Único de Saúde, com as características que apontamos.

Gostaria de destacar dois fatores que considero essenciais neste processo de construção do Sistema Único, e que transcendem a questão da vontade política e dos princípios gerais que apontei antes. Um diz respeito à administração pública e aos serviços públicos de saúde e, outro, a esta Escola em particular.

Considero que perdemos com a ditadura, que esteve a serviço apenas de setores muito restritos e selecionados do capital, o conceito, a tradição e a ética do serviço público. Desenvolveu-se de forma marcada, no seio da burocracia governamental, uma postura de total descompromisso, por servir a um Estado cujo projeto era eminentemente excludente, inclusive da participação de seus funcionários. Os baixos salários completam um quadro trágico de sucateamento deliberado do setor público e desestímulo ao servidor público. Com isso, a saída "natural" é aniquilar, de vez, com o serviço público, e privatizar tudo, que é a meta perversa do "novo capital" brasileiro e dos políticos aliados. Quanto sofisma e perversidade! Nós conhecemos — e sabe também a população brasileira — que a rede capilar de serviços de saúde, que se estende do mais recôndito município à mais sofisticada capital, é pública. E que os grandes hospitais brasileiros são públicos. Nomeio-os: o Hospital das Clínicas e o Instituto do Coração, em São Paulo; o Hospital dos Servidores do Estado e a rede da Previdência no Rio; os Hospitais Universitários e os Hospitais da Previdência e dos Estados, em cada capital brasileira. Estão entre os funcionários dos serviços públicos de saúde os melhores e mais renomados profissionais de saúde do país. Ou seja, temos as bases para construir um sistema de saúde que efetivamente opere. É necessário, entretanto, que o novo governo formule, com a participação da sociedade, um projeto ousado e sério, capaz de conquistar as inteligências e os corações dos servidores no campo da saúde. Para isso, precisa aliaria Direção firme e decidida na construção do Sistema Único, expandir e reaparelhar os serviços de saúde, oferecendo salário dignos, condições adequadas de trabalho e possibilidades do progresso ao seu pessoal. Aos funcionários cabe refletir com seriedade sobre a reconquista de um ética perdida, em que o compromisso social, com a população e com o Serviço Público, sobreponha-se ao interesse meramente corporativo.

Impõe-se, ainda, uma ampla reformulação da administração pública brasileira, particularmente nos serviços destinados à execução das políticas sociais, no sentido de propiciar agilidade e eficiência. O povo brasileiro não suporta mais os péssimos serviços que lhe são oferecidos. É preciso que, de alto a baixo, a administração pública seja percorrida por uma nova ética: a do compromisso social.

Compromisso Social que esta Escola coloca na frente de suas propostas, programas e atividades, como diretriz central. Como escrevemos no nosso programa de direção oferecido ao julgamento dos companheiros nas recentes eleições, entendemos esta Escola como entidade acadêmica do setor público, que compõe os setores de saúde, ciência e tecnologia do país, daí derivando duas exigências básicas: a competência técnico-científica e o compromisso social.

Visando à ampliação da competência técnico-científica, temos como diretrizes a priorização da pesquisa e da pós-graduação, a capacitação do pessoal e a melhoria das condições da infra-estrutura para o desenvolvimento científico.

O compromisso social deve ser assegurado pela alta qualificação das atividades de ensino, pesquisa, cooperação e prestação de serviços desta Escola, por uma postura ética dos seus quadros com o seu trabalho, e pela participação da sociedade na definição dos rumos e na avaliação da instituição, através do Conselho Consultivo, recém-criado. Este Conselho Consultivo, formado por 12 entidades da sociedade civil, da comunidade científica, de setores governamentais, vai ser a nossa medida externa e contribuirá para o aperfeiçoamento das nossas atividades.

No próximo quadriênio, vamos consolidar e avançar o projeto institucional da Escola; procurando conciliar o aprimoramento da capacitação técnica na resposta aos complexos problemas de natureza administrativa e gerencial do sistema de saúde, com o aprofundamento da compreensão das condições de vida e dos problemas de saúde, e a preservação e desenvolvimento da tradição totalizante, reflexiva e crítica que é um traço importante da nossa experiência institucional.

Para alcançar estes objetivos, vamos implementar a democratização e a transparência nas decisões e na condução da instituição, através do fortalecimento do novo Conselho Deliberativo, das Coordenações e das Chefias e Conselhos Departamentais, bem como das Comissões de Pessoal Docente e de Apoio.

Quero colocar em marcha, imediatamente, uma ampla reforma administrativa e gerencial buscando agilidade, eficiência e desburocratização, com o máximo de autonomia.

A valorização do pessoal técnico, administrativo e dos alunos é diretriz fundamental para a plena realização do projeto institucional, e deve ser perseguida não só através do fortalecimento de suas instâncias e representação, como do alargamento das oportunidades de capacitação e aperfeiçoamento, mas, também, pela implantação de um processo sério e conseqüente de avaliação, capaz de discernir e premiar o mérito nas promoções, vantagens e outras formas de reconhecimento.

Temos profundo respeito e vamos trabalhar estreitamente com os órgãos de comunicação, através dos quais queremos prestar contas das nossas atividades à sociedade, e coletivizar o produto do nosso trabalho de pesquisa científica.

Ao lado de nossa atividade nacional como entidade de referência para os Cursos de Saúde Pública do país, queremos ampliar nossa atividade no Estado e no Município do Rio de Janeiro, apoiando a implantação do Sistema Único de Saúde, através da formação de recursos humanos e da cooperação técnica.

Temos consciência do nosso papel na definição da política de saúde deste país. Sob o tacão da ditadura, resistimos, junto com outras entidades acadêmicas da área de saúde coletiva como o Instituto de Medicina Social/UERJ, o Departamento de Medicina Preventiva /FMUSP, a Faculdade de Saúde Pública, o Departamento de Medicina Preventiva/UFBA e outros, e conseguimos forjar, através da indagação científica, um projeto de Sistema de Saúde consistente, e com alta legitimidade social. Nossas participações decisivas na VIII Conferência Nacional de Saúde e na definição do conteúdo de saúde da nova Constituição Brasileira são, simultaneamente, fruto do trabalho de investigação científica desta Escola, do movimento sanitário, e da competente ação política, aliança fundamental para a reafirmação permanente para qualquer entidade científica na vida nacional. Este papel, conquistado por direito e comprovada competência por esta Escola e pelo movimento sanitário, será profundamente estimulado pela nova Direção, na construção da Reforma Sanitária Brasileira em marcha.

Os serviços de saúde deste país vão receber nosso apoio, através da formação dos sanitaristas, da pesquisa e da cooperação técnica. O simbólico na presença do meu amigo e Secretário de Saúde do Rio de Janeiro, José Carvalho de Noronha, nesta mesa é o testemunho mais eloqüente desse desiderato.

Com todas estas diretrizes e propostas, que vão se traduzir em ações concretas, queremos estar na vanguarda do ensino e da pesquisa em Saúde Pública. Temos noção das dimensões e complexidades inusitadas dos problemas de saúde da população brasileira. E queremos estar preparados para responder à sociedade, que sustenta o nosso trabalho através do seu trabalho. Desejo expressar, ainda, o firme propósito de estreitar nossos laços, projetos educacionais, de pesquisas e de cooperação técnica com as demais Unidades da Fundação Oswaldo Cruz e com o Ministério da Saúde, na minha gestão. Também, nesta Fundação, ventam os ventos da renovação! Temos eleições para Presidente da Fiocruz nestes próximos dias. Um novo Estatuto que aprovamos no nosso Congresso Interno está para ser implantado. O crescimento dos últimos anos, da gestão Sérgio Arouca, deve ser consolidado, burilado, aperfeiçoado. Assim, cabe exortar o novo Presidente eleito da importância de apoiar cada uma das Unidades da Fundação, respeitando suas especificidade e singularidade, mas buscando a construção dos projetos comuns, capazes de potencializá-las na sua ação.

Temo pela partidarização do processo eleitoral na Fiocruz. Uma série de exemplos recentes tem demonstrado a nocividade desta prática para a vida das instituições acadêmicas. É preciso que tenhamos maturidade para fazer do processo de escolha da lista tríplice um processo fundamentalmente generoso e que saiamos dele sem fraturas inconsolidáveis. A lista tríplice deve ser o espelho da Unidade, dentro da pluralidade.

É preciso que o novo Presidente dispa-se de qualquer visão corporativa, que o tomará prisioneiro de uma visão distorcida da Fiocruz e do processo de saúde e doença da sociedade brasileira. Acreditar que qualquer das funções da Fiocruz — pesquisa biomédica, pesquisa médico-social, ensino, produção ou assistência — deva preponderar sobre outra é uma proposta destrutiva, que deve ser rejeitada. Acreditar que um modelo de investigação é mais científico e deve preponderar sobre outro é equívoco grave e, como tal, deve ser rejeitado. As posturas tecnocráticas, centralizadoras e autoritárias devem ser rejeitadas. As práticas clientelístas e que favoreçam grupos ou personalidades devem ser varridas da condução desta Fundação.

Condução que reputamos coletiva. Temos a clara e límpida noção de que o Congresso da Fiocruz confere ao Conselho Deliberativo poder de decisão e condução, e como tal vou me portar no Conselho Deliberativo, falando em nome da comunidade que em mim depositou confiança e esperança. Temos consciência da importância do trabalho que realizamos nesta Escola no campo do ensino, da pesquisa e da cooperação técnica em Saúde Pública, e queremos oferecer esta experiência e prestígio para somar ao todo unitário da Fundação.

Vou convocar, nos próximos dias, o CD da Escola e suas lideranças políticas mais expressivas para examinar o processo eleitoral da Fiocruz, e apresentar uma pauta de reivindicações aos canditatos à Presidência, centrada nos objetivos de alcançar uma Fundação competente, cientificamente, e comprometida socialmente.

Quero me dirigir, agora, aos meus companheiros da Escola, aos professores, pesquisadores, funcionários e alunos, para agradecer-lhes a confiança que depositaram no Jaime e em mim. Nosso compromisso é de fazer uma Escola onde seja bom trabalhar e viver. Precisamos de todos para fazer isto. E desejamos entender e acolher as necessidades de cada um. Queremos realizar uma Direção justa, capaz de contribuir para a expressão do talento e da criatividade de todos os funcionários, pesquisadores e alunos. Desejo ressaltar o alto grau da maturidade que conseguimos imprimir ao processo político de escolha dos novos Dirigentes da Escola, em eleições extremamente bem organizadas, democráticas e nas quais conseguiram-se expressar a pluralidade e as diferenças, para emergir, do outro lado, sem traumas e fraturas insuperáveis. Este foi o mérito da comunidade desta Escola.

 

 

* Discurso de posse do Prof. Paulo Marchiori Buss na direcão da ENSP, em 31/10/89

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br