PESQUISA/RESEARCH
Avaliando a saúde infantil em uma pequena comunidade: o estudo de Itapirapuã, Vale do Ribeira, SP
Juraci Almeida CésarI; Cesar Gomes VictoraII
IBolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
IIProfessor Adjunto do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFPel
RESUMO
Através de inquérito domiciliar, avaliou-se a morbimortalidade e a utilização dos serviços de saúde em crianças menores de cinco anos em um aglomerado rural no Vale do Ribeira SP. A maioria das crianças pertencia a famílias de trabalhadores agrícolas com renda inferior a dois salários mínimos, vivendo em precárias condições de habitação e saneamento. O coeficiente de mortalidade infantil foi estimado em 83 por mil nascidos vivos, bastante superior aos dados oficiais para o Município e o Estado. A desnutrição crônica nas formas moderada ou grave atingiu 35% das crianças. As infecções respiratórias e a diarréia foram, repectivamente, os principais motivos de consultas médicas e hospitalizações. O aleitamento materno atingiu a mediana de 14,4 meses, valor jamais descrito no país. As coberturas pré-natal e vacinal foram de apenas 40% e 65%, respectivamente. O presente estudo evidenciou um enclave com preocupantes níveis de saúde infantil, dentro do estado mais rico do país. Mostrou, também, que, com um orçamento extremamente limitado e em um curto período de tempo, foi possível obter dados de grande valia para o diagnóstico comunitário e o planejamento de ações para melhorar a saúde infantil.
ABSTRACT
A household survey for evaluating the mortality, morbidity, nutritional status and health services utilization of children aged under five years was carried out in a rural village in Ribeira, São Paulo State. Most children belonged to families of rural laborers earning less than US$80 per month and living under inadequate environmental conditions. The infant mortality rate was equal to 83 per thousand and 35% of the children were affected by moderate or severe stunting, rates which are well above those for the State. The main reasons for clinic attendances and hospital admissions were acute respiratory infections and diarrhea. The median duration of breastfeeding was 14.4 months, the highest reported for Brazil. Only 40% of the mothers had received antenatal care, and 56% delivered in a hospital of whom 35% had a caesarean section. Vaccine coverage reached 65% of children aged 12 months or more. This survey revealed an enclave of high morbidity and mortality within Brazil's richest state. It also showed that with a limited budget and within a short time it is possible to obtain valuable information for planning child survival strategies.
A pobreza(...), produto de uma organização social inadequada, é ainda a causa mais comum de enfermidade no homem.
Hernán San Martin
INTRODUÇÃO
A avaliação dos indicadores de morbimortalidade e de utilização dos serviços de saúde em crianças, através de diagnósticos comunitários, tem sido crescentemente empregada (8, 15, 20, 22). No Brasil como um todo, inexistem informações confiáveis a respeito da maior parte dos indicadores de saúde materno-infantil (2,4), com exceção de algumas áreas restritas onde foram realizados inquéritos recentes (15, 20, 22). Estes diagnósticos permitem, se for o caso, sugerir a adoção de medidas relativamente simples e de baixo custo para melhorar a saúde infantil (8, 11).
Com o objetivo de transcender parte dessas dificuldades e de diminuir a distância entre os que sabem e os que fazem, o presente estudo foi realizado. Para tanto escolheu-se estudar o Vale do Ribeira, mais particularmente o distrito de Itapirapuã, no município de Ribeira. Esta região, situada no estado de São Paulo, o mais rico do país, é cenário de marcantes desigualdades sociais. Nesse distrito, investigou-se o processo saúde-doença e seus determinantes em crianças menores de cinco anos.
A proposta deste trabalho era demonstrar que, a partir de recursos mínimos e utilizando-se de uma metodologia relativamente simples e rápida, seria possível obter informações de grande valia para o planejamento e implementação de programas em atenção primária à saúde infantil em pequenas comunidades.
METODOLOGIA
Descrição da Área Estudada
O Vale do Ribeira (figura I) está localizado no sul do estado de São Paulo e nordeste do Paraná, englobando 25 municípios. Os 16 municípios paulistas ocupam 2,7% da superfície do estado e abrigam 0,8% de sua população (6, 19).
Ao redor de 1980, a maioria da população da região residia na zona rural (18). Para cada dez hectares de terras, quatro se encontravam em situação de posse irregular, o que resultava em conflitos permanentes e graves. Pouco mais de 10% dessas terras são exploradas economicamente, sendo as principais culturas o milho, feijão, chá e a banana. Neste mesmo espaço de precariedade e litígios, encontravam-se modernas fazendas de orquídeas destinadas à exportação (18, 19).
O município de Ribeira situa-se na região do Alto Vale, a 340 km da capital paulista, com uma população de 7.639 habitantes (6). Em 1987-1988, o município apresentava importantes deficiências em termos de rede educacional, saneamento básico e energia elétrica. A rede de saúde era constituída de um centro de saúde na sede do município e um Posto de Saúde localizado na zona rural, o qual se destinava a realizar cobertura vacinal e a distribuir suplemento alimentar às gestantes e crianças. Inexistiam clínicas particulares e hospitais (14).
A 29 Km da cidade de Ribeira situa-se o distrito de Itapirapuã, local do presente estudo, que se caracterizava por ser o maior aglomerado rural de todo o município, apresentando serviços, embora que precários, de saneamento básico, telefone, correios, entre outros.
Metodologia do Diagnóstico Comunitário
No presente estudo, foram visitados todos os 235 domicílios do distrito de Itapirapuã. A coleta de dados foi precedida de uma divisão do distrito em setores geográficos e do mapeamento de todos os domicílios. O trabalho de campo foi realizado em um período de 28 dias, nos meses de julho e agosto de 1988, por um acadêmico do curso de medicina (J.A.C.). Em cada domicílio anotou-se o número total de moradores, o que permitiu o recenseamento da população do distrito. Nos 115 domicílios visitados com crianças menores de cinco anos, aplicaram-se diferentes questionários, os quais haviam sido testados através de estudo-piloto.
O primeiro deste questionários era aplicado ao chefe da família (pessoa de maior renda) e buscava informações sobre as condições sócio-econômicas e ambientais da família. Um segundo questionário, mais extenso, foi aplicado à mãe ou mulher responsável pela criança, tendo por objetivo obter informações de variáveis maternas (escolaridade, consultas de pré-natal, atendimento ao parto, tipo de parto etc) e variáveis da criança (presença de irmãos menores, hospitalizações de doentes, amamentação e dieta, vacinação, local de nascimento, peso ao nascer, peso e altura atual etc).
Em seguida, a criança era pesada e medida, sendo que aquelas com idade até 24 meses eram medidas deitadas, e as demais, na posição ereta.
Foi aplicado, ainda, um terceiro questionário, sobre a história reprodutiva das mulheres de 15 a 49 anos, com vistas a estimar os coeficientes de mortalidade nos primeiros anos de vida e a expectativa de vida ao nascer.
A codificação era feita pelo entrevistador ao final de cada dia de trabalho. Os questionários foram digitados, utilizando-se o programa dBase III e analisados com o pacote SPSS/PC+ .
O coeficiente de mortalidade infantil (CMI) foi estimado através da técnica demográfica de Brass-Trussel (9), para cerca de quatro anos antes da coleta de dados (no caso, para 1984). Tabelas de sobrevida foram utilizadas para estimular a prevalência de crianças amamentadas em cada idade (12).
A ocorrência da diarréia foi definida como um mínimo de três evacuações de fezes líquidas ou amolecidas em um período de 24 horas. Para crianças menores de seis meses, que, freqüentemente, apresentam numerosas evacuações, utilizou-se a definição da mãe.
O cálculo da cobertura vacinai foi restrito às crianças com 12 meses ou mais. Aceitaram-se como válidas as informações contidas no cartão de vacinação e aquelas fornecidas pela mãe desde que a técnica vacinai fosse descrita adequadamente.
O estado nutricional das crianças foi avaliado através do padrão do National Center for Health Statistics (NCHS), recomendado pela Organização Mundial da Saúde (17). Considerou-se como desnutrida severa a criança que apresentasse três ou mais desvios-padrâo (dp) abaixo da mediana, e moderada de 2 a 2,9 desvios-padrão abaixo da mediana.
RESULTADOS
Nos 235 domicílios do distrito foram encontradas 203 mulheres com idade entre 15 e 49 anos e 171 crianças menores de cinco anos, estas distribuídas em pouco menos da metade (115) das famílias. Todos os questionários foram respondidos, sendo que apenas uma criança não foi examinada, por encontrar-se hospitalizada por ocasião da coleta de dados.
Pouco mais da metade dessas crianças (56%) pertenciam ao sexo masculino; 17% eram primogênitos e em 40% das 115 famílias havia duas ou mais crianças menores de cinco anos. Nas famílias com menores de cinco anos, o número médio de membros foi de 5,8, enquanto que, para todo o distrito, a média foi de 5,0 pessoas.
Cerca de 70% das famílias apresentavam renda mensal inferior a dois SMs sendo esta, na grande maioria das vezes (90%), proveniente de uma única pessoa. O setor agrícola absorvia 54% da mão-de-obra ativa, sendo que somente uma em cada dez famílias era proprietária da terra em que trabalhava. Para os demais trabalhadores agrícolas, 47% eram assalariados temporários (bóias-frias), 40% eram posseiros e os demais se distribuíam entre proprietários e assalariados permanentes. A remuneração dos trabalhadores agrícolas era marcadamente inferior à dos trabalhadores de outros setores, conforme mostra a tabela I.
Vinte e cinco por cento dos pais não eram alfabetizados e, dos alfabetizados, apenas dois em cada dez apresentavam escolaridade superior ao primário completo.
Para habitação e saneamento, verificou-se que quatro de cada dez moradias eram do tipo paiol ou taipa, não recebiam água tratada e não possuíam qualquer tipo de sanitário. Em 85% dos domicílios dormiam três ou mais pessoas em um mesmo aposento. Essas proporções diminuíam à medida em que aumentava o poder aquisitivo das famílias (figura II). Na localidade estudada, não existia rede de esgotos.
De cada dez gestantes, somente quatro realizaram cinco ou mais consultas pré-natais, sendo que 20% não fizeram uma única consulta. Apesar de não ter havido diferença significativa, houve uma tendência a um maior número de consultas à medida que aumentavam renda familiar, escolaridade e idade das mães, de acordo com o demonstrativo em outros estudos (15, 20).
Pouco mais da metade das crianças (56%) nasceram em hospitais e, destes partos, somente 37% foram atendidos por médicos. Quarenta por cento de todos os partos foram realizados por parteiras, no domicílio. Cesarianas foram realizadas em 21% de todas as crianças, e em 35% das nascidas em hospital.
Dos nascidos em hospital, 13% apresentaram baixo peso ao nascer. No entanto, a maior parte das crianças de baixo nível sócio-econômico estão excluídas desta análise, por haverem nascido em casa.
Noventa e cinco por cento das crianças foram amamentadas ao seio. Este valor decresceu para 80% aos seis meses de idade e, ao final do primeiro ano de vida, cerca de 60% dessas crianças ainda eram amamentadas. A mediana de duração da amamentação foi de 14,4 meses. A figura III mostra esses achados, comparando-os com outras localidades no Brasil.
O CMI estimado foi de 83/1000, bastante superior aos dados oficiais para todo o município de Ribeira (47/1000) e para a região (7). A expectativa de vida ao nascer foi de 58,2 anos. Este valor está ligeiramente abaixo da média brasileira (59,8), sendo bastante inferior à estimativa para o estado de São Paulo (64,5 anos) (6). Esses dados, no entanto, devem ser analisados com cautela, devido ao tamanho reduzido da amostra.
Cerca de 17% das crianças haviam sido hospitalizadas nos 12 meses que precederam a entrevista, sendo a diarréia (6,5%) e as infecções respiratórias (6%) os principais motivos. Todas as internações foram realizadas em municípios vizinhos. Pouco mais da metade das crianças (51%) havia consultado com médico nos últimos três meses, sendo que 47% das consultas foram por infecções respiratórias, seguidas pela diarréia (16%).
Quanto a prevalência e incidência de diarréia, verificou-se que 14% das crianças apresentavam diarréia no dia da entrevista, e 27% diarréia iniciada na semana anterior. Dessas crianças, apenas três (10%) receberam terapia de reidratação oral (TRO).
Quanto à prevalência de formas moderadas e severas de desnutrição, 35% das crianças apresentaram déficit de altura/idade, 9% de peso/idade e 0,6% de peso/altura. Estes achados caracterizavam importante presença de desnutrição crônica na população estudada (20).
A cobertura vacinal completa, para maiores de 12 meses, atingiu cerca de 2/3 (65%) das crianças. Setenta e três e sessenta e sete por cento das crianças receberam, respectivamente, três ou mais doses das vacinas sabin e DPT (tétano, coqueluche e difteria).
DISCUSSÃO
Para colocar os resultados acima em perspectiva, a tabela II os compara com dados similares da cidade de São Paulo (15) e do estado do Ceará (11). Apesar das diferenças de faixa etária, da sazonalidade das doenças e dos métodos empregados nos três estudos, os resultados obtidos para Itapirapuã e o Ceará são bastante similares, revelando as condições precárias em que sobrevivem essas crianças. Os indicadores de morbimortalidade e de utilização de serviços de saúde para o município de São Paulo foram consistentemente melhores.
Entre os resultados da presente pesquisa, quatro merecem especial destaque:
a) o coeficiente de mortalidade infantil de 83 por mil, mais de duas vezes superior ao do município de São Paulo;
b) a prevalência de diarréia de 14%, nas 24 horas que precederam a entrevista, apesar de a pesquisa haver sido realizada durante o inverno; esta prevalência é comparável aos mais altos índices já descritos, não só no Brasil como em outros países (5, 10, 11);
c) a elevada prevalência de déficit de altura/idade, evidenciando desnutrição crônica;
d) a longa duração do aleitamento, achado pouco freqüente em nosso país (3), sendo substancialmente superior ao observado no município de São Paulo e no Ceará (Figura III); a mediana de 14,4 meses confirma os achados de Rea, em 1975, (18) (mediana de 12,1 meses) na mesma região, e identifica uma das áreas de mais alta duração de amamentação no país.
Os resultados acima evidenciam uma população caracterizada pela má distribuição da terra (16), por péssimas condições de moradia e saneamento e com um serviço de saúde deficiente na prestação de serviços aos mais necessitados. Em última análise, estes fatores podem ser responsabilizados pelas más condições de saúde das crianças.
Algumas medidas de baixo custo e de aplicação relativamente fácil poderiam ser adotadas para reduzir de forma significativa a morbimortalidade dos menores de cinco anos (8, 11, 22). Estas medidas incluem a promoção da terapia de reidratação oral, o controle das infecções respiratórias, aumento da cobertura vacinal (principalmente nas vacinas de doses seriadas), maior assistência à gestação e ao parto, práticas adequadas de desmame, entre outras.
Um aspecto que merece especial atenção é a elevada duração da amamentação, associada a altas prevalências de desnutrição. Estes achados evidenciam a necessidade de promover práticas adequadas de desmame com suplementação por alimentos de alta densidade energética (21). Outro ponto a ser melhorado é a atenção pré e perinatal, onde medidas como o treinamento das parteiras e sua integração no serviço de saúde se fazem necessárias (1).
O presente estudo revelou um enclave de alta morbimortalidade no estado de São Paulo, o mais rico do país. Mostrou, também, que, utilizando-se de uma metodologia relativamente simples e com recursos humanos e financeiros bastante limitados, foi possível obter dados de grande valia tanto para o planejamento e implementação de programas, como, também, para monitorizar o progresso de futuras ações de saúde.
No entanto, é preciso salientar que estas medidas não substituem a necessidade de transformações profundas na estrutura social de produção, a qual gera desigualdades tão marcadas e submete as crianças de famílias trabalhadoras a índices inaceitáveis de morbimortalidade.
AGRADECIMENTOS
Ao Centro de Pesquisas Epidemiológicas do Departamento de Medicina Social da UFPel; aos professores Amilcar Gigante e Kurt Kloetzel; ao Joaquim e à Jacira por acreditarem nas pequenas idéias. A Elaine Tomasi, pelo carinho e paciência.
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