RESENHA/REVIEW

 

 

Maria Regina Varnieri Brito

Médica Sanitarista, aluna do Curso de Mestrado em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz

 

 

A continuing trial of treatment: Medical pluralism in Papua New Guinea. Editado por Stephen Frankel e Gilbert Lewis. Kluwer Academic Publishers (Dorderecht/Boston/London) 1989. 334 pp, figuras, tabelas, referencias, índice. US$ 24.00 (brochura).

O livro é uma coletânea de trabalhos diversos que têm em comum uma área geográfica — Papua, Nova Guiné — e um tópico — o pluralismo médico.

Doze capítulos escritos por antropólogos, com trabalhos de campo na área geográfica em questão sobre "pluralismo médico, continuidade e mudança", apresentando um retrato dos sistemas de cuidados médicos e das mudanças ocorridas nos locais estudados.

Os enfoques diferiram muito, de acordo com a área específica de cada pesquisa e da disponibilidade local de serviços de medicina ocidental, na época do trabalho de campo. Outro fator importante de diferenciação entre os diversos artigos foram as diversas épocas em que se realizou o contato com a medicina ocidental. Variando desde epidemias em 1800 até introduções recentes, nas décadas de 60 e 70, de postos de saúde em zonas rurais afastadas. Diversos anos, diversas situações políticas e internacionais (por exemplo, a 2a Guerra Mundial); diversas populações nativas, com culturas e hábitos diferentes, conforme estejam mais próximas ou afastadas do litoral ou em áreas montanhosas, e diversos colonizadores (alemães, norte-americanos, ingleses, australianos) que, por sua vez, instituíram diferentes políticas no trato com as populações nativas.

Além desta ampla gama de combinações histórico-culturais, em alguns lugares, a medicina ocidental foi introduzida por missões religiosas que visavam impor uma nova religião (converter os habitantes locais), da qual a medicina ocidental, que estava sendo introduzida, não pode ser desligada (servindo como instrumento de "conversão") e é incorporada, na medida em que a nova religião é aceita ou não. Em outros locais esta introdução foi "oficial", determinada pelo estado colonizador e com um enfoque "policiador" e autoritário sobre a população. A aceitação, ou rejeição, dos valores desta medicina é determinada não só pela necessidade (novas doenças introduzidas pelos europeus), mas também pelas condições em que ocorreu esta introdução.

O cuidado com o doente (e a doença) fazia parte da família, era uma obrigação familiar. A medicina ocidental oferece um sistema médico (ou de saúde) externo, que "assume" esta responsabilidade e interfere nos hábitos e crenças locais. Este ponto é um dos mais importantes nos padrões de mudança, pois altera a estrutura básica das relações sociais e culturais de uma população.

A variabilidade de respostas à nova medicina ou cultura é muito grande. Mesmo nos locais em que a medicina ocidental é bem aceita atualmente, a medicina tradicional persiste forte; elas convivem lado a lado e se fundem em um novo sistema de cuidados médicos. Isto seria p pluralismo médico: a convivência de medicinas de origens e práticas diferentes.

No capítulo 1, de autoria dos editores, os autores descrevem os objetivos desta coletânea, como ela foi organizada, e a maneira pela qual as contribuições foram solicitadas aos diversos autores. Em seguida, discutem alguns tópicos teóricos sobre os agentes de mudança: desenvolvimento dos serviços de saúde, gabinetes governamentais, missionários, plantadores e empresas; a influência do ambiente nos padrões de doença; a ação das missões religiosas e a instalação do pluralismo médico. Sempre utilizando exemplos e comentários dos assuntos tratados nos demais capítulos da obra.

O capítulo 2, da autoria de Bryant J. Allen, é sobre Infecção, Inovação e Residência: doença e desgraça em Torricelli Foothills desde 1800. O autor tenta estabelecer uma seqüência de eventos vivenciados pela população no noroeste de Papua e, dentro dos mesmos padrões temporais e espaciais, descreve como as práticas relacionadas à doença e à desgraça mudaram. Primeiramente, descreve as epidemias no início da colonização (1880) e sua repercussão nos padrões existentes de morbi-mortalidade e na pirâmide populacional. Depois descreve as respostas da comunidade a estas mudanças; o incremento na mortalidade de adultos foi atribuído a um aumento de bruxarias ou feitiçarias. A explicação dos padrões de doença e desgraça não se concentram nas doenças ou injúrias nelas mesmas, mas no indivíduo que caiu doente ou foi ferido, e em suas relações com outras pessoas e com o sobrenatural.

Na implantação da medicina colonial e da "Saúde Pública", as respostas da comunidade às regras de higiene foram de resistência. Esta não podia entender a necessidade de alterar suas práticas mortuárias (deixavam os corpos em putrefação no local de moradia) e passar a enterrar seus mortos.

Atualmente, os padrões são de persistência da crença em doenças causadas por espíritos e bruxaria. Os serviços médicos governamentais e missionários são procurados somente em caso de traumatismo ou dor. A população, habitualmente, não termina os tratamentos e evita hospitalizações. O autor sugere que uma saída para que se consiga que a população local aceite os serviços e práticas sanitárias da medicina ocidental é aceitar a bruxaria como causa primária das doenças, além de tentar diminuir o autoritarismo das ações de saúde atuais.

No capítulo 3, John Barker fala sobre medicina ocidental e a continuidade das crenças tradicionais. O autor faz uma descrição etnográfica das práticas e crenças médicas dos Maisin, incluindo o uso por eles das facilidades da medicina ocidental. Atualmente os Maisin incorporam a tecnologia médica ocidental, limitando-a através de padrões culturais de crenças e práticas.

Inicia com a descrição das condições históricas em que foi introduzido o sistema médico ocidental na área de Collingwood Bay, analisando em seguida os dados de um levantamento que tem por objetivo mostrar como os Maisin, atualmente, categorizam e lidam com as doenças. A terceira parte é a descrição de como se dá o manejo das doenças, hierarquicamente, através de médicos, curandeiros, religiosos. O autor conclui com uma discussão sobre o tipo de mudança dentro do complexo de crenças e práticas locais. Apesar do contexto histórico e da ocorrência de epidemias semelhantes à situação anterior (capítulo 2), no caso dos Maisin, o autor não encontrou evidências, nem no passado nem no presente, de resistência à medicina ocidental, a suas praticas e normas de higiene (inclusive o enterramento dos mortos em cemitérios). Os Maisin, como no passado, associam fortemente a saúde e a doença com padrões religiosos morais e políticos. A incorporação da medicina ocidental não alterou suas concepções originais de saúde e doença. Segundo o autor, isto se deve ao fato de que o modelo cognitivo da medicina ocidental é indivisível aos usuários dos postos de saúde, não sendo visto como uma explicação diferente e incompatível com o modelo tradicional local.

O capítulo 4, escrito por Gilbert H. Herdt, é sobre a medicina ocidental e o xamanismo entre os Sambia de Papua. Somente em 1975 o território tribal Sambia recebeu um posto de saúde com cuidado médico ocidental permanente, sendo que, até esta data, só havia xamans locais. Através de um inquérito domiciliar, o autor encontrou que 97% dos habitantes utilizavam, regularmente, o serviço médico ocidental e 45% referiram não mais utilizar o serviço dos xamans. Esta mudança social dramática é atribuída a um processo crescente de aculturação Sambia e de um declínio no prestígio do xamanismo tradicional. O autor acompanha e relata este processo de mudança e, ao final do capítulo, discute quatro categorias de análise que explicariam esta mudança: mudança em papéis, mudanças nas crenças, mudanças na ideologia e mudanças nas expectativas do curandeirismo.

No capítulo 5, Michael W. Young escreve sobre doença e ideologia, chamando a atenção para a influência de fatores ideológicos na cura tradicional e no uso de facilidades médicas modernas. Examina dados de registro de pacientes internados e ambulatoriais de dois centros de saúde na ilha Goodnough, um governamental e outro missionário, e descreve com detalhes os conceitos e práticas tradicionais de saúde/doença na área.

Tanto nas internações quanto no atendimento ambulatorial, foi observado um número muito maior de atendimento a crianças do sexo masculino do que feminino. Isto porque existe discriminação local entre filhos homens e mulheres, e uma preferência pelo sexo masculino, devido à estrutura patriarcal da família e da tribo: as mulheres casam e saem do local de moradia, enquanto que os homens permanecem no local com suas famílias.

O capítulo 6 trata sobre Cuidado médico e pluralismo médico: casos de Mount Hagen e é de autoria de Andrew Strathern. Neste capítulo, o autor faz uma descrição da relação entre práticas e idéias da medicina tradicional e as do novo cuidado médico introduzido, como são encontradas na população estudada. Ele apresenta alguns casos locais de doença, "tratados" em uma situação de pluralismo médico pela medicina ocidental e pela tradicional, e como os resultados são interpretados pela cultura local. Segundo o autor, existem duas circunstâncias básicas pelas quais é possível existir o pluralismo médico:

1 — Aceitação das práticas introduzidas sem a compreensão de suas razões ou bases teóricas.

2 — A crença de que existem certas condições que são causadas por entidades fora do mundo visto pela medicina ocidental, as quais devem ser tratadas de modo ritual, para que o paciente se recupere.

Na descrição dos casos locais, ele discute criticamente os benefícios e malefícios da medicina ocidental no âmbito sócio-cultural local e a validade de alguns diagnósticos e tratamentos tradicionais, como a doença chamada "Ira" ou "Raiva" ("Anger" no original).

O capítulo 7 é escrito por Acsah H. Carrier, e trata sobre o lugar da medicina ocidental na teoria Ponam de saúde e doença. Os Ponam entendem a medicina ocidental como específica para aquelas doenças causadas por "Deus", da mesma maneira que as curas indígenas são específicas para aquelas doenças causadas pelos ancestrais indígenas e espíritos. Portanto, a escolha entre a medicina ocidental e a indígena não é uma escolha entre sistemas alternativos, mas uma escolha entre diagnósticos alternativos em um sistema médico único.

O autor cita Welsch (1982), que argumenta que ps conflitos entre a medicina ocidental e a medicina indígena existem na cabeça dos pesquisadores ocidentais. A maioria dos povos de culturas não-ocidentais não vêem a medicina ocidental como incompreensível. Antes, eles incorporam a medicina ocidental, interpretada à luz do conhecimento indígena, e percebem um sistema médico único, não um sistema pluralista.

No capítulo 8, Carol Jenkins escreve sobre a história da colonização local, a instalação de uma colônia alemã, no arquipélago e, mais tarde, de missões luteranas. E um relato histórico interessante, incluindo a ocupação japonesa na 2a Guerra Mundial. Uma terceira parte do capítulo é dedicada à versão Amele desta convivência com a medicina e com os colonizadores ocidentais.

No capítulo 9, P. Roscoe trata de Pluralismo médico entre os Yangoru-Boiken, apresentando uma etnografia médica, enfatizando os hábitos, a história e a implantação dos serviços médicos ocidentais.

O capítulo 10, O médico e o curandeiro: teoria e prática médica em Kove, da autoria de Ann Chonning, também descreve a história de ocupação local primeiro pelos alemães, depois por norte-americanos, na época da 2a Guerra Mundial, e a história da implantação dos serviços de saúde. Descreve os hábitos locais sanitários e de diagnóstico e tratamento das doenças, tanto físicas quanto espirituais.

Em relação aos outros capítulos, os Kove parecem possuir uma cultura tradicional mais alterada pelo convívio com os estrangeiros, sem uma identidade forte, sendo esta muito fragmentada.

O capítulo 11 trata sobre Diferenças sexuais na dieta e na saúde dos Wopkaimin, por David C. Hyndman. O autor apresenta a estrutura populacional, as atividades produtivas e as características físicas do grupo estudado. Quanto aos hábitos alimentares, existem alimentos proibidos para os sexos e para adultos/ crianças. Através de um estudo antropométrico e de hábitos alimentares, foi constatada uma diferença importante no estado nutricional entre os homens e as mulheres. As mulheres e crianças tendem a ter um consumo protéico-energético muito inferior aos homens, levando-as à desnutrição e a anemias crônicas.

No capítulo 12, David R. Counts e Dorothy Ayres escrevem cobre Complementaridade no tratamento médico em uma sociedade de West New Britain.O capítulo é basicamente um relato histórico local e uma apresentação de casos clínicos locais, com as explicações tradicionais dadas para suas causas e resolução.

No capítulo 13, Edward Lipuma fala sobre Modernidade e medicina entre os Maring. Os Maring tiveram contato com o ocidente na década de 50, através de missionários anglicanos. A confluência de medicinas na região Maring envolve alguns aspectos: primeiro, uma transformação cultural na percepção da doença, a avaliação de cura, os tipos de tratamentos e os termos da integração. A transferência do controle médico dos xamans para o pessoal de saúde ocidental representa uma transformação na estrutura de poder. O aparecimento da medicina ocidental é inseparável das missões anglicanas que a introduziram. Segundo, a medicina tem suas raízes na relação entre as "categorias pelas quais o mundo é conhecido" e o corpo dos indivíduos. A técnica e a prática ritual de cura mediam esta relação.

Segundo Frankel e Lewis (capítulo 1): O pluralismo médico, a coexistência de tradições médicas diferentes é um padrão comum na maioria das áreas isoladas do mundo, e o livro pretende tratar de como as pessoas, com suas próprias tradições, respondem às novas teorias de causalidade da doença, e aos novos tratamentos.O livro é um relato de diversas situações, mas não esclarece esta pergunta, somente nos mostra exemplos que são importantes justamente por serem diversos nestas respostas. Quanto às novas teorias de causalidade da doença, fiquei com a impressão de que, dentro do pluralismo, não existe a incorporação de novas teorias, mas uma adaptação dos novos tratamentos à teoria já existente.

Só discordamos dos autores em um ponto: talvez este pluralismo não seja um padrão exclusivo de áreas isoladas do mundo, mas sim de todas as regiões. Como a tradição médica ocidental está se adaptando ou não aos novos conceitos e práticas da medicina oriental que vêm sendo introduzidas nos últimos anos? Além disto, mesmo em áreas urbanas, ainda existem práticas médicas tradicionais e curandeirismo.

A realidade de pluralismo médico em Papua, Nova Guiné, se repete em outros locais, com populações diferentes, mas onde o processo de mudança é semelhante.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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